Open-access A maturação como defesa: uma reflexão psicanalítica à luz da obra de Ferenczi e Winnicott

Maturing as defence: a psychoanalytical reflection on Ferenczi’s and Winnicott’s Works

La maturation comme défense: une réflexion psychanalytique à la lumière des travaux de Ferenczi et Winnicott

La maduración como defensa: una reflexión psicoanalítica a la luz de las obras de Ferenczi y de Winnicott

Reife als Verteidigung: eine psychoanalytische Reflexion anhand des Werkes von Ferenczi und Winnicott

成熟作为自我防御:用精神分析法对费伦茨和温尼科特的作品的反思

Resumos

O objetivo deste trabalho é investigar a noção de maturação como defesa, a partir da metáfora do “bebê sábio” na concepção de Ferenczi e do conceito de “falso self” na obra de Winnicott. A investigação discute a relação entre os processos de maturação e a dimensão do cuidado nos primórdios da existência, enfatizando as repercussões psíquicas da progressão traumática.

Maturação; Ferenczi; Winnicott; psicanálise


This study aims to investigate the notion of maturing as defense, based on Ferenczi’s “wise baby” metaphor and Winnicott’s “false self” concept. It discusses the relationship between maturation processes and the dimension of care during the early childhood years, emphasizing the psychic repercussions of the traumatic progression.

Maturing; Ferenczi; Winnicott; psychoanalysis


Cette étude a pour but d’examiner la notion de maturation comme défense à partir de la métaphore du «nourrisson savant» chez Ferenczi et du «faux self» dans l’œuvre de Winnicott. Notre recherche discute le rapport entre les processus de maturation et la dimension des soins dans les premières années d’existence, en soulignant les répercussions psychiques de la progression traumatique.

Maturation; Ferenczi; Winnicott; psychanalyse


El objetivo de este trabajo es investigar la noción de maduración como defensa desde la metáfora del “bebé sabio”, en la concepción de Ferenczi, y de la idea del “falso self”, en la obra de Winnicott. La investigación discute la relación entre los procesos de maduración y la dimensión del cuidado en los albores de la existencia, haciendo énfasis en las repercusiones psíquicas de la progresión traumática.

Maduración; Ferenczi; Winnicott; psicoanálisis


Ziel dieser Arbeit ist es, die Idee der Reife als Verteidigung zu untersuchen, aufgrund der Metapher des „weisen Babys“ in Ferenczis Werk und Winnicotts Konzept des „falschen Selfs“. Wir ermitteln die Beziehung zwischen dem Reifungsprozess und der Dimension der Fürsorge im Kindheitsalter und heben die psychischen Folgen der traumatischen Progression hervor.

Reife; Ferenczi; Winnicott; Psychoanalyse


这项研究的目的是调查成熟作为自我防御的概念。此观点来自于费伦茨的“聪明宝宝”论和温尼科特的“假自我”理念。该研究讨论了婴儿成熟化进程和新生儿的护理存之间的关系,强调创伤性过程对婴儿心理的影响。

成熟化; 费伦齐; 温尼科特; 精神分析


Pensa-se nos frutos que ficam maduros e saborosos depressa demais, quando o bico de um pássaro os fere, e na maturidade apressada de um fruto bichado.

(Ferenczi, 1933/1992, p. 104).

Cada vez mais, em nossa prática clínica, nos deparamos com uma significativa incidência de crianças amadurecidas precocemente a partir da exploração do potencial intelectual. Tais crianças são particularmente perspicazes e compassivas, mostrando desenvoltura e relativa independência no desempenho das tarefas cotidianas. Tornam-se, assim, crianças muito bem-comportadas, tanto no sentido de portar-se quanto de conter-se. Frequentemente, obtêm um reconhecimento acadêmico exemplar, exibindo uma autocrítica severa diante do menor indício de fracasso. Na maioria dos casos, encontram-se numa posição de filiação invertida, adotando uma postura parental diante dos adultos importantes para o seu existir.

Tamanha progressão do intelecto não se realiza, contudo, sem custos emocionais. O avanço dos processos de maturação exige uma alta dose de sacrifício, paga com a moeda mais cara ao universo infantil: o brincar espontâneo. Do ponto de vista clínico, observamos, portanto, crianças com dificuldades para se entregar relaxadamente à brincadeira, crianças preocupadas em parecer sempre agradáveis e satisfeitas, crianças esbanjando conhecimentos e empreendendo discursos sofisticados. Em geral, estas crianças são levadas para a análise por um significativo retraimento que se estabelece com uma coloração fóbica ou depressiva e, às vezes, com sentimentos de tédio e algumas compulsões. Não raro, apresentam entraves na interação com outras crianças, tornando-se solitárias e sem pertencimento.

É possível sustentar aqui que a criança amadurece às pressas justamente pelo imperativo de não ser mais criança, com as necessidades e os desejos que lhes são peculiares. O súbito desenvolvimento parece assumir uma função fundamentalmente protetora, de forma que a maturidade forjada se revela tributária das falhas dos objetos parentais no exercício de suas funções. Nesse contexto, a criança não costuma ter nenhuma percepção consciente do seu desamparo, tampouco da insuficiência das figuras de cuidado, sentindo-se, ao contrário, como uma grande sabe-tudo, responsável por suprir as carências do seu entorno.

No âmbito destas considerações, o presente estudo tem como objetivo investigar a noção de maturação como defesa, a partir da metáfora do “bebê sábio” na obra de Ferenczi e do conceito de “falso self” na concepção de Winnicott, ambas manobras primitivas de sobrevivência psíquica. Tanto o psicanalista húngaro quanto o psicanalista inglês ressaltam a importância do ambiente para a constituição da subjetividade. Por esta via de abertura, as ficções psicanalíticas do “bebê sábio” e do “falso self” expressam as circunstâncias dramáticas dos primeiros encontros do indivíduo com o outro primordial. Levando em conta a imaturidade do bebê humano e o contexto inicial de dependência absoluta dos objetos cuidadores, torna-se possível depreender o desespero existencial experimentado diante das falhas das figuras parentais.

Desse modo, pretendemos nos debruçar, em primeiro lugar, na conjuntura traumática da maturação precoce, articulando os processos de maturação e a dimensão do cuidado oferecido pelas figuras parentais. Em seguida, examinaremos a metáfora do “bebê sábio” na obra de Ferenczi e o conceito de “falso self” na concepção de Winnicott. Por fim, vamos abordar as repercussões psíquicas da progressão traumática. Cabe sublinhar que tal opção teórica tem como pano de fundo o incremento da clínica psicanalítica com crianças na atualidade, com vistas a ampliar as possibilidades de intervenção terapêutica e transformação subjetiva.

Os processos de maturação e a dimensão do cuidado

Ressaltar a dimensão do cuidado nos processos de maturação implica valorizar os efeitos do exercício da parentalidade na constituição psíquica do infante. Desse modo, a qualidade dos primeiros encontros com o outro primordial se mostra intimamente relacionada com o campo de possíveis da subjetividade por vir.

Ferenczi e Winnicott, ao longo de suas trajetórias teórico-clínicas, acentuam a função do ambiente na construção do psiquismo. Se podemos reconhecer o psicanalista húngaro como um dos precursores deste acento no movimento psicanalítico, consideramos que o psicanalista inglês, sem dúvida, radicaliza a ênfase concedida ao papel do meio. Nesse sentido, ambos os autores contemplam as vicissitudes da implicação da família no desenvolvimento emocional primitivo. A partir dos caminhos traçados pelos mesmos, optamos por destacar a noção de “adaptação do ambiente” para o entendimento da dimensão do cuidado nos primórdios da existência, malgrado as possíveis dissonâncias conceituais entre as contribuições psicanalíticas em voga.

Seguindo nesta direção, Ferenczi (1928/1992) vai afirmar categoricamente a necessidade da adaptação da família à criança e não o inverso. O autor defende a importância de o novo integrante se sentir bem-vindo ao ambiente familiar, uma vez que a relação com o mundo se inaugura por meio das trocas interpessoais com as figuras parentais. Tal recepção positiva se transmite por meio do acolhimento, isto é, com base no cuidado dispensado com tato e ternura por parte dos objetos primordiais (Ferenczi, 1929/1992). Para o autor, é importante que os pais respeitem a diferença existente entre os modos de relação da criança e do adulto (Ferenczi, 1933/1992). Nessa medida, não acolher a criança ferencziana significa violar a sua experiência lúdica e franca, desqualificando suas vivências mais intensas e genuínas.

Na esteira destas ideias, Winnicott (1963/1983) postula que os processos de maturação se desenrolam com base no atendimento às necessidades somatopsíquicas do bebê pelos objetos cuidadores. Tal atendimento se realiza a partir da adaptação às necessidades do infante na proporção adequada e suficiente para ele e não em função dos anseios parentais. Nessas circunstâncias, a criança experimenta uma simplicidade estável e uma confiança no ambiente, condições favoráveis para o desenvolvimento de uma linha de vida pessoal e autêntica. Na contramão da adaptação, a inabilidade parental implica em desilusão precoce e descontinuidade com o ambiente, diante das quais, o bebê winnicottiano se vê compelido a reagir ao invés de simplesmente seguir sendo.

É importante salientar que a adaptação se desdobra na série de cuidados disponibilizados pelos adultos primordiais, considerando o próprio ato físico de segurar e manusear o recém-nascido. Expressa-se, ainda, na atmosfera do ambiente, envolvendo diferentes aspectos, tais como temperatura, luz, som, mímica, postura e ritmo, comportando, também, a maneira como o bebê é visto. É indispensável, portanto, que os pais se ajustem ao filho, aproximando-se do seu mundo interno e engajando-se na tarefa de partilhar o seu estado de ser. Nesse sentido, concordamos com a afirmação de Figueiredo (2009), que “muitas vezes, cuidar é, basicamente, ser capaz de prestar atenção e reconhecer o objeto dos cuidados no que ele tem de próprio e singular, dando disso testemunho e, se possível, levando de volta ao sujeito sua própria imagem” (p. 138).

A esse propósito, Winnicott (1971/1975a) enfatiza a função de espelho na relação inicial com o ambiente, mediante a qual o outro primordial reflete o objeto do cuidado sem, no entanto, se confundir com ele. A ideia aqui é que o bebê possa ser visto no rosto da mãe, de tal forma que ela o faça ver a si mesmo. Valendo-se das contribuições winnicottianas, Roussillon (2004) chama atenção, também, para o valor do prazer envolvido no encontro espelhado com o outro. Tal prazer se efetua na relação primária com o objeto “duplo de si mesmo”, isto é, com o objeto capaz de se fazer semelhante ao sujeito numa relação de espelhamento. Com efeito, o entusiasmo dos adultos primordiais em adaptar-se à criança, ou seja, o prazer em desempenhar as funções de cuidado, permite, tanto quanto possível, que a condição primária de dependência possa ser tolerada.

A compreensão do modo como a dependência pode ser experimentada pelo indivíduo nos estágios iniciais se apresenta como uma via interessante para abordar os sobressaltos nos processos de subjetivação. Considerando a imaturidade primitiva, podemos entrever como as falhas parentais na sustentação da dependência podem engendrar desproteção e ameaça de desintegração psíquica, exigindo, muitas vezes, o acionamento de defesas radicais. Nesse contexto, a descoberta por parte da criança da dependência das figuras de cuidado assume um caráter traumático, impondo-se previamente à organização do psiquismo. Com isso, o outro primordial passa a ser percebido antecipadamente pela criança, em detrimento de si própria. Sendo assim, quando os pais se mostram incapazes de se adaptar à criança, quem se adapta aos pais é a criança, submetendo-se compulsivamente ao ambiente para poder sobreviver.

É importante precisar que o fracasso parental no desempenho das funções primordiais pode se apresentar sob a forma de um cuidado excessivo, ausente ou errático (adaptativo e não adaptativo de maneira imprevisível). A esse respeito, convém ainda sublinhar que o que está em questão nas falhas de adaptação do ambiente é a “experiência da medida” (Figueiredo, 2009), tendo em vista que tanto os extravios quanto os excessos nas funções de cuidado tornam-se traumáticos nos primórdios da existência. Nesse sentido, entendemos que se trata, sobretudo, do não reconhecimento do ritmo próprio da maturação infantil, o que equivale a um exercício da parentalidade de forma mecânica, teórica e artificial (Féres-Carneiro & Magalhães, 2011).

Para ilustrar esta ideia, podemos pensar aqui na mãe que sempre interpreta o choro da criança como um choro de fome, por conta de sua própria frustração oral. Desse modo, em vez de corresponder ao movimento espontâneo da criança, ela impõe suas próprias demandas. É interessante notar que quando a mãe responde “leite”, a partir de suas próprias carências, ela ignora as necessidades do filho, em última instância as invalida. Podemos nos referir também ao caso de uma mãe, cujo rosto está congelado por um humor deprimido, tal como propõe Winnicott (1971/1975a). Nesse caso, o olhar materno reflete apenas o seu humor e não o mundo interno do infans, sendo este compelido a ver apenas o estado de espírito da mãe em detrimento do seu próprio.

Assim, configura-se o solo fértil para o surgimento das independências forçadas, das inversões geracionais e do amadurecimento como defesa. Trata-se aqui de performances de adaptação primitivas diante da insuficiência do cuidado parental.

Bebê sábio e falso self

É importante ressaltar que não se trata aqui de comparar o bebê sábio ferencziano com o falso self winnicottiano, mas sim de permitir o diálogo entre estas duas ficções teóricas da psicanálise em favor da reflexão sobre o fenômeno da maturação como defesa. Como vimos, para Ferenczi e Winnicott, o rumo da constituição subjetiva se entrelaça intimamente com a configuração do ambiente inicial. Vamos agora examinar de que forma a insuficiência do cuidado primordial pode engendrar desvios traumáticos nos processos de maturação.

A metáfora do bebê sábio surge pela primeira vez na obra de Ferenczi num pequeno artigo intitulado “O sonho do bebê sábio” (1923/2011). Partindo desse sonho típico, o autor coloca em cena o desejo infantil de suplantar os “grandes” em sabedoria, desejo que, por sua vez, inverte a situação na qual a criança se encontra em relação ao adulto. A análise do referido sonho abre muitas vias de interpretação, ganhando maior relevância, contudo, após os avanços da teoria do trauma na obra ferencziana. Nesse contexto, o bebê sábio vem ilustrar a configuração psíquica de uma criança que sofreu uma série de experiências traumáticas e se torna extremamente adulta para dar conta do seu sofrimento psíquico.

É importante salientar que, apesar de Ferenczi se referir ao trauma enquanto abuso sexual stricto sensu, utilizando como enredo a sedução efetiva de uma criança por um adulto, podemos depreender que a questão sexual delimita mais um campo de linguagens e relações do que apenas comportamentos, tal como sugere Reis (1997). Do ponto de vista da criança, o traumático recai no desencontro entre aquilo de que ela precisa do adulto e a surpresa pelo que sobrevém do adulto (Lejarraga, 2008). Nesse sentido, o fator determinante residiria, sobretudo, na ausência de um cuidador em quem confiar. Na biografia traumática da criança ferencziana encontram-se, então, figuras parentais que, por indiferença, inabilidade, incompreensão, ou mesmo loucura, desautorizam o seu modo particular de ser e estar no mundo.

No âmbito traumático, portanto, Ferenczi retoma o sonho do bebê sábio dez anos após a sua publicação, em seu artigo emblemático acerca da “confusão de língua entre os adultos e a criança” (1933/1992). Tal retomada serve para reforçar o postulado de que a criança pode, “sob a pressão da urgência traumática, manifestar todas as emoções de um adulto maduro, as faculdades potenciais para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades virtualmente pré-formadas nela” (Ferenczi, 1933/1992, p. 104). Ora, trata-se, evidentemente, de um saber traumático, designado pelo psicanalista húngaro em termos de “progressão traumática” ou “prematuração patológica”, com vistas à defesa do eu infantil ameaçado pelas falhas dos adultos importantes para o seu existir. Na perspectiva ferencziana, o vivido traumático, reduz, por um lado, a criança a um estado emocional embrionário, por outro, forja uma sabedoria intelectual como a de um filósofo compreensivo, inteiramente objetivo, mas sem que se estabeleça ligação entre palavra e afeto (Ferenczi, 1932/1990).

É possível encontrar na obra de Winnicott uma descrição muito próxima à organização defensiva do bebê sábio ferencziano, a saber, o funcionamento falso self. Em seu artigo princeps sobre o tema, intitulado “Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self” (1960/1983), Winnicott aborda o falso self com base na sua função de preservação do self verdadeiro, isto é, daquilo que é singular e original no indivíduo. Tal preservação se faz necessária tendo em vista a precariedade psíquica do infante frente à ameaça das falhas ambientais nos estágios de absoluta dependência. Sob ameaça de colapso narcísico, o falso self se submete às exigências do meio, adaptando-se de maneira camaleônica à realidade externa. A ideia aqui é de uma performance de adaptação, um faz de conta que dá conta, tentativa desesperada da criança para criar uma atmosfera favorável ao seu próprio crescimento.

Nessas circunstâncias, a exploração do intelecto se apresenta como via majoritária para o desenvolvimento do falso self, a tal ponto que o psicanalista inglês pode afirmar que “o funcionamento mental passa a existir por si mesmo, praticamente substituindo a mãe boa e tornando-a desnecessária” (Winnicott, 1949/2000, p. 336. Grifos do autor). Com efeito, o intelecto se prostitui por uma escalada da necessidade de compreender o entorno, razão pela qual o aumento excessivo da função mental revela algum grau de privação ambiental. Dessa perspectiva, o pensamento se transforma num substituto do cuidado parental, anulando, em última instância, o efeito devastador das falhas ambientais. Nessa medida, entendemos que o amadurecimento intelectual pelo falso self busca, de certa forma, camuflar as carências de adaptação, preservando a imagem dos objetos primordiais tão caros ao seu existir, ao mesmo tempo em que coloca a criança como dona da situação.

É importante observar que, à medida que a criança não tem condições de produzir modificações no ambiente intrusivo de maneira aloplástica, dada a sua pouca idade, não lhe resta outra alternativa senão transformar a si mesma de modo autoplástico, engendrando uma nova subjetivação adaptada às circunstâncias externas (Ferenczi, 1932/1990). Por este viés, ela instaura uma espécie de anjo da guarda interno, renunciando a qualquer espera de ajuda alheia. A saída dramática pela aceleração dos processos de maturação se realiza, com efeito, a partir de um corte no seu próprio psiquismo, o qual promove uma desconexão no coração das experiências infantis. Tal corte corresponde ao mecanismo designado por Ferenczi (1933/1992) como “autoclivagem narcísica”, mecanismo por meio do qual uma parte do eu infantil se sacrifica em prol da sobrevivência psíquica. Tal fragmento assume uma progressão intelectual notável, como vimos, porém, à custa do esgarçamento da afetividade.

Decorre daí o divórcio entre o pensamento e o afeto, dito de outro modo, a dissociação entre um eu, que tudo sabe e nada sente, e um eu que sente tudo e sabe nada. Em termos precisamente ferenczianos, o indivíduo “divide-se num ser psíquico de puro saber que observa os eventos a partir de fora, e num corpo insensível” (Ferenczi, 1932/1990, p. 142). Tal sabedoria, apartada da sensibilidade, adquire ares de autossuficiência, criando uma onipotência ilusória e um mínimo de apaziguamento, a despeito dos traumas outrora experimentados (Mello & Herzog, 2012). Desse modo, a inteligência se ocupa do autocuidado, livrando a criança do perigo de estar à mercê de adultos pouco confiáveis, com os quais não se sente em segurança.

O autocuidado implica, frequentemente, um desvio para o cuidado dos objetos primordiais insuficientes, tal como pontua Parseval (2007), o que se constitui, muitas vezes, como filiação invertida: a criança se torna pai e mãe ou, mais precisamente, pai e mãe de seus pais. Nota-se que não há um objetivo altruísta nesta tomada megalômana de responsabilidade por parte da criança em relação ao ambiente, mas uma tentativa de assegurar sua própria vida. No contexto das falhas ambientais precoces, podemos testemunhar, então, o desenvolvimento de uma espécie de atividade meteorológica, como bem ressalta Rabain (2010), por meio da qual as crianças estudam as variações do ambiente para adaptar-se adequadamente, tal como os meteorologistas estudam o céu para predizer o tempo que vai fazer.

Colocando tais proposições em perspectiva, entendemos que a própria percepção se torna uma defesa contra possíveis novas falhas dos objetos, forçando, assim, os limites da capacidade intelectual do bebê sábio e/ou do falso self. Considerando o árduo esforço envolvido tanto para prever quanto para adequar-se às demandas do ambiente, a criança termina por renunciar às suas necessidades infantis em prol da adaptação madura. Decorre daí a retração dos movimentos espontâneos e a precariedade no brincar, no limite, a perda da sensação de que a vida vale a pena ser vivida, como bem expressaria Winnicott (1971/1975b).

Considerações finais

A investigação da noção de maturação como defesa, a partir das contribuições de Ferenczi e Winnicott, nos permite refletir sobre as possibilidades de intervenções analíticas na prática clínica com crianças. Tendo em vista que no cerne da progressão traumática se encontra uma série de falhas na sustentação das funções primordiais de cuidado, tratar-se-ia de estabelecer um ambiente vivo, seguro e confiável para os bebês sábios e falsos selves que chegam para atendimento. Desse modo, o analista deve criar um dispositivo terapêutico adaptado às necessidades próprias da criança, não cabendo a esta se adequar ao referido dispositivo. Tal adaptação comporta, justamente, a oferta de tempo e espaço para o brincar criativo, ambos avessos à pressa e rigorosamente espontâneos. Nesse contexto, podemos afirmar com Winnicott (1963/1983), que as interpretações visando o insight se tornam menos importantes do que a manutenção de uma situação adaptativa ao eu infantil.

Trata-se, portanto, de assegurar as condições necessárias para uma inversão de sentido nos processos de maturação pelas vias da regressão. Por estas vias, o eu protetor da criança pode ser gradativamente entregue ao analista, capaz de sustentar o lugar de suposto saber. Para tanto, é preciso instaurar uma comunicação genuinamente verdadeira com a criança, mediante a qual se torna possível reconhecer o seu modo de ser e de estar no mundo, reavivando, progressivamente, o contato entre as partes clivadas do eu infantil. Assim, sem dúvida, não há como ultrapassar as defesas, engenhosamente forjadas, sem encontrar obstáculos e temores, idas, vindas e reviravoltas nos processos de maturação. Contudo, convém insistir no convite para o abandono da invulnerabilidade defensiva em benefício da invenção de um ambiente aprazível para existir, apesar dos pesares.

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  • Financiamento/Funding: As autoras declaram não terem sido financiadas ou apoiadas / The authors have no support or funding to report.
  • Citação/Citation: Mello, R., Féres-Carneiro, T., Magalhães, A.S. (2015, junho). A maturação como defesa: uma reflexão psicanalítica à luz da obra de Ferenczi e Winnicott. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 268-279.
  • Editores do artigo/Editors: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    8 Abr 2014
  • Aceito
    18 Out 2014
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