Resumos
Neste trabalho, abordarei a questão do desterro humano e da busca incessante pela identidade, realizando um diálogo entre a experiência clínica e a literatura de Imre Kertész, escritor húngaro e Prêmio Nobel de Literatura de 2002.
Desterro humano; Kertész; psicanálise; literatura
In this paper, I shall discuss the issue of human exile and the incessant search for human identity by conducting a dialog between clinical experience and the literature of Imre Kertész, a Hungarian author and 2002 Nobel Prize Winner in Literature.
Human exile; Kertész; psychoanalysis; literature
Dans ce travail, j’aborde la question de l’exil humain et de la recherche incessante de l’identité en réalisant un dialogue entre l’expérience clinique et la littérature d’Imre Kertész, auteur Hongrois qui a reçu le Prix Nobel de Littérature en 2002.
Exile humain; Kertész; psychanalyse; littérature
En este trabajo se plantearán las cuestiones del destierro humano y de la búsqueda incesante por la identidad, a través de un diálogo entre la experiencia clínica y la obra literaria de Imre Kertész, escritor húngaro y Premio Nobel de Literatura en el año 2002.
Destierro humano; Kertész; psicoanálisis; literatura
Dieser Artikel untersucht die Frage des menschlichen Exils und die ewige Suche nach Identität aufgrund eines von uns erstellten Dialoges zwischen der klinischen Erfahrung und der Literatur von Imre Kertész, einem ungarischen Autor, der in 2002 den Literatur-Nobelpreis erhalten hat.
Menschliches Exil; Kertész; Psychoanalyse; Literatur
在本文中,我将通过开展临床经验关于人类流亡问题,和人们不断追寻身份认同问题,与伊美尔·凯尔泰斯的文学作品展开对话。伊美尔是匈牙利作家,2002年诺贝尔文学奖获得者。
流亡; 凯尔泰斯; 精神分析法; 文学
Introdução
Desde seus primórdios, a psicanálise se apoia e se enriquece com a literatura. O maior exemplo dessa afirmativa vem do próprio Freud, que na literatura se baseou tanto para desenvolver a parte metafísica de sua obra, como apontado em Freud com os escritores, por Pontalis & Mango (2012/2013Pontalis, J.-B., & Mango, E.G. (2012/2013). Freud com os escritores (A. Telles, Trad.). São Paulo: Três Estrelas., p. 70), bem como e, principalmente, no que se refere à parte teórico/clínica de seu pensamento. Vejamos alguns dos exemplos em que Freud se baseia em textos literários para argumentar e mesmo legitimar alguns de seus conceitos clínicos:
Já desde 1900, no texto que é universalmente consagrado como o que inaugura a psicanálise — A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1987Freud, S. (1987). A interpretação dos sonhos (Parte I). In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. IV, pp. 15-363). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).) —, Freud se vale da literatura em suas primeiras elaborações sobre aquele que se tornaria um dos principais fundamentos psicanalíticos, o complexo de Édipo,1 1 Nesse texto de 1900, Freud descreve, publicamente, por primeira vez, a questão do complexo de Édipo, embora anteriormente o tivera apresentado em uma carta a Fliess, datada de 15 de outubro de 1897. A expressão “complexo” como tal só aparecerá posteriormente, em 1910, na primeira de suas “Contribuições à psicologia do amor”. Cf. Freud, 1917/1976a, p. 385, nota de rodapé 2. assim denominado, exatamente, pelo fato de o pai da psicanálise haver observado na vida cotidiana e na prática clínica que o psiquismo humano é constituído de desejos e conflitos muito assemelhados aos descritos na famosa tragédia grega Édipo Rei, escrita por Sófocles (cf. pp. 287-294). Ainda nessa obra inaugural, Freud, também, se apoia em outra obra literária para discutir o complexo de Édipo, qual seja, Hamlet de Shakespeare (cf. pp. 291-292). Afirmando que esta obra shakespeariana “tem suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex” (Freud, 1900/1987Freud, S. (1987). A interpretação dos sonhos (Parte I). In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. IV, pp. 15-363). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., p. 291), ele nos diz, ainda, que há diferença na forma como ambos autores abordaram a questão edípica.
No Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é abertamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet ela permanece recalcada; e — tal como no caso de uma neurose — só ficamos cientes de sua existência através de suas consequências inibidoras (p. 291).
Outro exemplo da presença direta da literatura em Freud é seu artigo “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen” (Freud, 1907/1976bFreud, S. (1976a). Conferência XXI. O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XVI, pp. 375-395). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917).), onde se vale dos sonhos, delírios e desejos de Norbert Hanold, personagem principal da novela de Jensen, para não só exemplificar como até mesmo defender algumas de suas formulações teóricas, entre elas, a de que o sonho é realização de desejo e que este se orienta para o futuro:
(...) pois o sonho, ao fim da laboriosa tarefa de traduzi-lo, revelou-se ao autor como sendo a representação da realização de um desejo do sonhar; e quem poderia negar que os desejos se orientam predominantemente para o futuro?. (p. 19)
Ao longo de seu trabalho sobre a Gradiva, ele concebe a ideia de que o esquecimento tem sempre alguma razão secreta ou um motivo oculto (p. 30);2 2 Para não alongar o presente texto, indiquei referências ao conteúdo da obra freudiana, sem citar textualmente suas palavras, embora tenha identificado entre parênteses a página onde ele apresenta suas ideias. Procedi da mesma forma, mais adiante, quando me referi a seu artigo “Dostoievski e o parricídio” (Freud, 1928/1961). discorre sobre seus conceitos de repressão (p. 39) e de retorno do reprimido (pp. 39-40), bem como sobre a questão do delírio (pp. 48-81). Aborda a diferença entre delírio histérico e delírio paranoico (p. 48) e formula que o ponto fundamental do tratamento é o despertar do sentimento (p. 82). Freud, também, faz poesia, digamos assim, ao dizer que “(...) não se pode desprezar o poder curativo do amor contra um delírio” (p. 30). Fica evidente a grande e valiosa importância que dava aos escritores quando formula
E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (p. 20)
Outro clássico exemplo da literatura em Freud é seu trabalho “Dostoievski e o parricídio” (Freud, 1928/1961Freud, S. (1961). Dostoievski e o parricídio. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (J. Strachey, Trad., Vol. XXI, pp. 177-196). London: Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Trabalho original publicado em 1928).). Alinhando o gênio russo logo atrás de Shakespeare e afirmando que Os irmãos Karamazov é a novela mais grandiosa jamais escrita, nesse trabalho Freud se utiliza tanto da vida como da obra de Dostoievski para discorrer sobre diversos conceitos, como sua concepção sobre a moral (p. 177), seu entendimento sobre os traços essenciais num criminoso (p. 178), apresentar uma síntese sobre o que seria a neurose, ao dizer “porque a neurose é, em resumo, só um sinal de que o ego não conseguiu fazer uma síntese, que nessa tentativa de fazê-lo perdeu sua unidade” (p. 179, tradução nossa), defender a hipótese de que a epilepsia de Dostoievski era, na verdade, um sintoma de sua neurose e que seria classificada como uma “histeroepilepsia — ou seja, uma severa histeria” (p. 179, tradução nossa). Ainda nessa obra, discorre sobre o parricídio, o complexo de Édipo, a homossexualidade, a castração, a bissexualidade, o medo de atitudes femininas (pp. 183-184), o conflito entre o amor filial e o desejo de matar o pai, a culpa e a necessidade de punição daí decorrentes (p. 184), seu entendimento de que o superego pode se tornar sádico (p. 185), interpreta a desastrada vida de jogador de Dostoievski como uma autopunição (p. 191), e nos diz que a masturbação é uma forma de adição (p. 193).
Quanto ao parricídio, especificamente, se apoia na literatura para afirmar com todas as letras que
Não por acaso, três das maiores obras-primas da literatura de todos os tempos — Édipo Rei de Sófocles, Hamlet de Shakespeare e Os irmãos Karamazov de Dostoievski — lidam com a mesma temática, parricídio. Em todas as três, mais ainda, o motivo para a ação, rivalidade sexual por uma mulher, está, claramente, desnudado. (p. 188, tradução nossa)
O desterro humano na clínica3 3 Remeto o leitor interessado na questão do desterro humano na clínica à minha tese de doutorado, onde abordo amplamente este tema, relacionando-o com a corporeidade na clínica contemporânea. Cf. Cotta, 2010.
Há muito que observo na prática clínica a existência massiva de uma condição de desterritorialidade emocional e psíquica, fenômeno clínico esse que, em trabalho anterior (Cotta, 2003Cotta, J.A.M. (2003). O alojamento da psiquê no soma, segundo Winnicott. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica, não publicada. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo.), digo que nos
(...) é comunicado pelos pacientes das mais variadas formas: em suas vivências de não terem uma identidade própria, nas sensações de viverem fora do corpo, de não terem um corpo, de viverem o corpo como algo estranho a si mesmos, de se perceberem como que falando de fora do corpo — como uma outra pessoa —, bem como quando diante de situações em que se sentem ameaçados, nos dizem que seu eu se esvaiu, ou que seu eu não estava lá. (p. 1)
Ainda nesse trabalho, digo que é como se me deparasse com casas vazias, onde o morador evadiu-se. Sumiu e ninguém sabe para onde. De vez em quando, ele volta, habita a casa e depois se vai, de novo. São como corpos sem alma, sem mente, sem psique.
O contrário, também, ocorre: muitas vezes, só há a alma, a mente, a psique. Aí, é o corpo que se esvai, se vai. Só há o morador de uma casa inexistente, que perambula por ruas vazias, algumas vezes sombrias e fétidas, outras vezes, ele nos surpreende com sua mente brilhante, com sua pintura magnífica.
Independente da forma como manifeste sua experiência de desterro, o indivíduo está sempre a se viver como um homeless. Não tem para onde ir, não tem para onde voltar. “Estou à deriva”, conta-me um paciente. O que está à deriva é a identidade pessoal, o sentido e o destino da existência, assim como bem o explicitou uma paciente: “Não sei quem eu sou, não sei o que fazer, não sei para onde vou”.
Quero, agora, ressaltar um aspecto que considero fundamental sobre o que estou aqui abordando: independente do fato de não se verificar sua existência em qualquer quadro nosográfico, é minha convicção que a questão do desterro humano não é da ordem da doença, da psicopatologia, ainda que essa questão possa aparecer mais claramente em determinadas patologias, como no caso de pacientes fronteiriços e esquizoides. Inclusive, são recentes e raras as obras da literatura especializada que tratam deste tema, ainda que assim não o denominem, como é o caso das pesquisas de Nancy J. Bothne e Rebecca Rojas, desenvolvidas na Chicago School, sob o nome de Psicologia da imigração.4 4 Nancy J. Bothne e Rebecca Rojas apresentaram, respectivamente, os trabalhos Immigration to the United States: Experiences of Survivors of State-Sponsored Torture e Immigration Psychology: Anti-immigrant Attitudes in the United States and the Impact on Latino/a Families, em abril passado, no Seminário Psicanálise e Literatura: Visitando Imre Kertész, realizado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP, organizado por mim e pelo Prof. Titular Gilberto Safra. Seus trabalhos, bem como os demais apresentados no referido seminário, estão sendo por nós organizados, visando sua publicação em e-book.
Outro exemplo vem de Philippe Lacadée, psicanalista francês, cujo livro O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência (Lacadée, 2011Lacadée, P. (2011). O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. (C. R. Guardado e V. A. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Contra Capa.), é dedicado a suas pesquisas com adolescentes.
O autor que há muito vem trabalhando sobre o tema do desenraizamento humano é Gilberto Safra, com quem compartilho o entendimento de que o desterro humano não é uma questão da ordem da psicopatologia, mas, sim, inerente mesmo à condição humana, à natureza humana, e à ontologia do Ser.
Kertész e a vulnerabilidade humana
Kertész tem sido para mim um mestre. Pois sua obra literária aborda de forma profunda e mesmo poética as questões do desterro humano, da busca incessante pela identidade e da importância fundamental do outro para a constituição do si mesmo, questões essas que não encontro ou pouco encontro descritas e pensadas na literatura psicanalítica.
Citarei, agora, algumas passagens de sua obra, em que a questão do desterro humano está poeticamente explicitada, com o objetivo de poder demonstrar que a leitura de seus textos pode nos ajudar a compreender profundamente a questão do desterro humano e da busca sem fim pela identidade, questões que, como já dito anteriormente, estão massivamente presentes na clínica contemporânea. Passemos a ele:
Heureca é o título que Imre Kertész deu a seu pronunciamento por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura de 2002, publicado em seu livro que tem o sugestivo título de A língua exilada (Kertész, 2004Kertész, I. (2004). Liquidação (P. Schiller, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 2001).). Ele, assim, inicia seu discurso:
Devo começar com uma confissão, talvez estranha, mas sincera. Desde que embarquei no avião para vir receber aqui, em Estocolmo, o Prêmio Nobel de Literatura deste ano, senti o olhar estranho, fixo, de um observador imparcial às minhas costas; e mesmo neste momento solene, quando me vejo como foco das atenções, eu me sinto mais próximo desse observador frio que do escritor cujo trabalho, de súbito, é lido em todo o mundo. Só posso esperar que a fala que terei a honra de pronunciar nesta ocasião especial ajude a desfazer a dualidade e unificar os dois eus que vivem em mim. (p. 9)
Suas últimas palavras nesse pronunciamento são:
Em suma, eu morri uma vez, para que pudesse viver — e talvez seja essa a minha verdadeira história. Se assim for, dedico meu trabalho, nascido da morte de uma criança, aos milhões que morreram e a todos os que ainda se lembram deles. Porém, como estamos falando de literatura, da espécie de literatura que, no entender da Academia, é também testemunho, ela ainda pode ter utilidade no futuro, e — e este é meu desejo — poderá mesmo servir ao futuro. Porque sinto que, ao refletir sobre o impacto traumático de Auschwitz, acabo chegando às questões fundamentais da vitalidade e da criatividade do homem de hoje; e, ao pensar em Auschwitz dessa forma, eu penso, talvez paradoxalmente, não no passado, mas no futuro. (pp. 19-20)
Kertész (1979/2007)Kertész, I. (2007). Eu, um outro (R. Abi-Sâmara, Trad.). São Paulo: Planeta. (Trabalho original publicado em 1979). dedica seu ofício a desvelar a condição humana. Esse escritor húngaro faz de sua obra uma reflexão sobre a existência, a morte, a identidade e a escrita. Diz ele:
A mitologia moderna começa com um negativo gigantesco: Deus criou o mundo, e o homem criou Auschwitz. (p. 138)
Embora tenha me criado no nada e tenha aprendido desde pequeno com a pura razão, ou antes, com o meu senso comum a adaptar-me ao nada, mover-me e achar meu caminho dentro dele, pois ele representava para mim a vida, na qual eu deveria saber me virar, coisa que, sendo um menino, não foi mais difícil do que aprender a falar. (pp. 142-143)
Ele carrega na pele experiências de Estados, sociedades e de relações objetais não reconhecentes, onde há o império da coisificação do outro e daquilo a que Hanna Arendt (1962/1990)Arendt, H. (1963/1994). Eichman in Jerusalen: aspects on the banality of evil. New York: Penguin Books. chamou de “banalização do mal”: sobreviveu às atrocidades de Auschwitz-Birkenau, Buchenwald e Zeitz, para onde fora deportado aos quinze anos; no pós-guerra, novamente a experiência de ser tratado como coisa, desta feita, sob a ditadura comunista da Hungria; no âmbito das relações objetais, viveu sob o domínio de um pai autoritário e de uma família cínica. Em Liquidação (Kertész, 2005), outro título também muito sugestivo, nos diz:
Vivemos na era das catástrofes, todo homem é portador da catástrofe, e para a sobrevivência se faz necessária uma arte peculiar da sobrevivência. O homem do tempo das catástrofes não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter. O meio social terrível — o Estado, a ditadura, chame-o como quiser — o seduz com a força de atração dos redemoinhos vertiginosos até que ele desista da resistência e nele exploda o caos como um gêiser fervente — e a partir de então o caos se torna sua morada. Para ele, já não existe retorno a um ponto de equilíbrio do Eu, a uma certeza sólida e incontestável do Eu: portanto, perde-se no sentido mais verdadeiro da palavra. Esse ser sem o Eu é a catástrofe, o verdadeiro Mal. De novo se tornam válidos os dizeres da Bíblia: resista à tentação, evite conhecer-se, porquê, se o fizer, estará danado. (pp. 48-49)
É notável a semelhança entre tudo isso e a resposta que Silenos foi obrigado a dar ao rei Midas: “A melhor coisa para você seria não ter nascido, não ser nada. A segunda melhor coisa, porém, seria morrer o quanto antes”. (p. 139)
Em Kaddish, por uma criança não nascida (Kertész, 1990/2002Kertész, I. (2002). Kaddish, por uma criança não nascida. (P. Schiller, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1990).), ele começa o livro com um retumbante “Não!”. Nessa obra, ele explica suas razões para negar-se a ser pai, ainda que ao preço da enorme dor de separar-se de A., sua mulher amada. Nesse texto, ele expõe sua visão de que Auschwitz, a ditadura comunista húngara e sua família de judeus ortodoxos se igualam no que diz respeito a tratar o outro como nada, como ninguém. Daí se compreende a contradição do título — Kaddish, por uma criança não nascida —, pois Kaddish, do aramaico sagrado, é uma reza tradicional judaica em homenagem aos mortos...
Já em Eu, um outro (Kertész, 1979/2007Kertész, I. (2007). Eu, um outro (R. Abi-Sâmara, Trad.). São Paulo: Planeta. (Trabalho original publicado em 1979).),5 5 A respeito desse livro, há uma excelente resenha elaborada por Tatiana Salem Leví. Cf. Leví, 2008. uma espécie de autobiografia em que relata suas muitas viagens, mas não como um mero turista, e sim, num certo sentido, como um pesquisador da condição humana, diz ser um eterno exilado, more onde morar, esteja onde estiver. Fala-nos que não tem ninho; que tem pátria, mas não a tem:
É diferente ser sem pátria em seu próprio país e sê-lo no estrangeiro, onde justamente essa falta de pátria pode nos levar a encontrar um novo lar. (p. 88)
Vivo como um exilado. Nesse único aspecto vivo corretamente: sou um exilado. (p. 75)
Kertész sabe que tem língua materna, mas sua língua é estrangeira:
A língua – sim, ela é a única coisa que me mantém ligado a ele. Como é estranho. Essa língua estrangeira, minha língua materna. Minha língua materna, que me ajuda a entender meus assassinos. (p. 35)
Ele se pergunta “quem sou eu?”, mas sabe que não é possível responder tal pergunta:
Às vezes, ocorre-me a pergunta (impossível de responder): quem sou eu? O que sou eu? E qual é a minha história? (p. 30)
O “Eu” é uma ficção na qual, no máximo, podemos ser coautores. “Eu é um outro”. (Rimbaud) (p.14)
Que tipo de judeu sou afinal? Nenhum. Há muito tempo não estou mais à procura de minha pátria, nem de minha identidade. Sou diferente deles, sou diferente dos outros, sou diferente de mim. (p. 155)
Às vezes, quase tenho que me arrancar do refúgio sossegado do meu anonimato, quando ouço falar ou vejo escrito o nome I. K., mas sei que nunca vou me identificar com ele. (p. 15)
Vocês não vão querer de mim que declare claramente minha nacionalidade, religião e raça? Vocês não vão querer de mim que eu tenha uma identidade?
Então, vou contar para vocês: tenho uma única identidade, a identidade do escrever. (Uma identidade que se escreve a si mesma).
De resto, quem sou eu? Quem é que poderia saber? (73)
Ele termina seu livro Eu, um outro, assim explicitando o desterro em que se encontrou após a morte de AnaMária, sua mulher amada:
Minha história desprendeu-se de mim: de repente, perco o equilíbrio como alguém que perdeu seu caminho e, entre passado e futuro, escapuliu do tempo. Mais tarde, vou me reerguer penosamente dessa queda e seguir a voz persistente, a palavra que, por detrás dessa neblina cinzenta que me circunda agora, me chama para viver de novo. Neste momento, porém, não sei de nada, não entendo nada, estou, por assim dizer, no limiar da vida e da morte, com o corpo inclinado para a frente, em direção à morte, com a cabeça ainda voltada para trás, em direção à vida, com o pé que se levanta, hesitante, para dar um passo. Em que direção irá? Não importa, porque aquele que dará o passo, não será mais eu, será um outro... (p. 173)
Kertész e a questão da alteridade
Nada indica que um tenha lido o outro. Mas por um curioso mistério da vida, Kertész e Winnicott compartilham inúmeros pontos de vista. Um deles é a noção de que o indivíduo necessita de um outro para constituir seu si mesmo.
Em Playing and reality, Winnicott (1971/1999)Winnicott, D.W. (1999) Playing and reality (7th. ed). New York: Routledge. (Trabalho original publicado em 1971). nos fala da função especular da mãe suficientemente boa, a qual seria a de devolver o bebê para ele mesmo: ao olhar nos olhos da mãe, o bebê se veria refletido nos olhos dela. Isso implica dizer que a mãe é uma alteridade que ama o sujeito bebê, o aceita, o reconhece, o respeita e, por que não, o legitima como uma pessoa singular.
A esse respeito, gostaria de fazer três comentários: o primeiro é que Winnicott está a falar de uma situação ideal; o segundo, a de que mesmo que o indivíduo tenha tido a sorte, digamos assim, de haver tido uma mãe suficientemente boa que o devolveu a si mesmo, tal experiência não o torna invulnerável ao defrontar-se com uma alteridade que o vê como nada, como resto, haja vista a condição humana de dependência, vulnerabilidade e fragilidade, bem como o fato de que o ser humano está sempre e sempre a necessitar do outro para constituir-se, por mais que sua mãe tenha sido suficientemente boa nos termos de Winnicott.
O terceiro ponto que quero abordar é relativo à alteridade Górgona: em seu livro O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas, Marília Amorim (2004)Amorim, M. (2004). O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa., seguindo Vernant (1985)Vernant, J-P. (1985). La mort dans les yeux – Figures de l’Autre dans la Grèce-Ancienne. Paris: Hachette., nos fala que “a Grécia antiga dispunha de três figuras míticas que davam inteligibilidade ao acontecimento da alteridade” (p. 51), as quais seriam Dionísio, Artêmis e Górgona. É sobre esta última que quero deter-me.
Segundo Marília Amorim,
A máscara monstruosa de Górgona traduz a alteridade extrema. É o horror daquilo que é absolutamente outro, o indizível, o impensável, o puro caos: o confronto com a morte, imposto pelo olhar de Górgona. Todo aquele que cruza seu olhar, todo ser vivo, que se move e que vê a luz do sol, transforma-se em pedra, congelada, cega e escura. Do ponto de vista do homem, a morte encarnada por Górgona seria, pela própria oposição ao mundo dos vivos, o Outro absoluto. Olhar Górgona nos olhos seria encontrar a dimensão do terror: (p. 51)
Citando Vernant (1985Vernant, J-P. (1985). La mort dans les yeux – Figures de l’Autre dans la Grèce-Ancienne. Paris: Hachette., p. 82), ela diz “(...) cruzar o olhar com o olho que, fixando-lhe incessantemente, é a negação do olhar, acolher uma luz cujo brilho que lhe cega é o brilho da noite” (p. 51).
Ela explica, também, como o filósofo Lyotard (1983)Lyotard, J-F. (1983). Le differend. Paris: Minuit. concebe a alteridade radical de Auschwitz:
Auschwitz: nome que marca o limite do conhecimento histórico; nome próprio de uma paraexperiência, ou de uma destruição da experiência. Território de ausência total de legitimação onde a própria enunciação da experiência é impossível. Nos campos de extermínio, não teria havido sujeito na pessoa do plural; nenhuma frase teria sido construída na modalidade do “nós fazíamos isso”, ou “eles nos faziam aquilo’’. Cada um teria sido reduzido à solidão e ao silêncio e não teria havido testemunha coletiva. (p. 58)
Ora, Kertész viveu a experiência radical de ter se deparado inúmeras vezes com a alteridade medonha de Górgona, tanto nos campos de concentração quanto durante e após a ditadura comunista em seu país, e mesmo em sua própria família e amigos dos familiares. Credenciando Auschwitz não ao antissemitismo, mas, sim, ao totalitarismo, vale dizer, à alteridade Górgona, ele sabe que esta figura mítica de alteridade não se manifestou somente durante o período nazista, mas sim continua presente e pode se manifestar em qualquer lugar, a qualquer tempo, como, por exemplo, ao dizer (Kertész, 1979/2007Kertész, I. (2007). Eu, um outro (R. Abi-Sâmara, Trad.). São Paulo: Planeta. (Trabalho original publicado em 1979)., p. 123): “No país vizinho, o homem desentranha o homem, violenta-o, a África é um Auschwitz de dimensões continentais”.
Podemos verificar a presença dessa que chamaria de alteridade Auschwitz/Górgona em inúmeros exemplos: no ataque de 11 de setembro; no descaso da humanidade com as legiões de famélicos na África; no extermínio de oitocentos mil tutsis por seus irmãos hutus; no regime de Bashar al-Assad que mata crianças e adultos civis com suas armas químicas; na “moda” que tomou conta do Rio de Janeiro de assassinar pessoas arrastando-as pelas ruas do subúrbio, dependuradas em carros, como no caso do menino Joãozinho, cujos algozes haviam roubado o carro de sua mãe, sendo dois deles filhos de um zeloso casal de evangélicos, seja no de d. Cláudia, recentemente arrastada por um camburão da PM, em plena luz do dia e na frente de seus filhos e vizinhos; no de adolescentes de nossas grandes capitais que assassinam outros adolescentes para roubar-lhes o tênis e trocá-lo por algumas pedras de crack; nos porões da polícia brasileira, onde, desde o Estado Novo, a tortura não só elimina fisicamente, mas pode matar a alma de sua vítima e, efetivamente, levá-la a morrer, como assim o entende e diz o grande Antônio Candido sobre a morte de Luís Salinas, no Posfácio que escreveu para o livro Retrato calado, do próprio Salinas (2012)Salinas Forte, L.R. (2012). Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify..
No que diz respeito à clínica, muitos são os pacientes que se sentem tratados pelo outro como nada, como ninguém. Falam de experiências semelhantes às abordadas por Kertész, no sentido de que enunciam terem sido atravessados por experiências medonhas. Pois falam de terem sido abordados por um outro como não humanos. Por esta razão, compartilho a posição de Kertész de que Auschwitz perdura até hoje, pois observo o acontecimento medonho não só acontecendo nas relações das pessoas, mas, sobretudo, sendo explicitado na situação clínica.
Por último, quero crer que por detrás da literatura de Kertész, do sofrimento manifestado por nossos pacientes, e das questões aqui levantadas, encontra-se uma pergunta ontológica. Exatamente por ser ontológica e dada a condição de vulnerabilidade, fragilidade e dependência inerentes ao ser humano, o indivíduo faz essa pergunta inúmeras vezes, desde o momento de seu nascimento até o de sua morte. Dependendo de quem a responda, aquele que a faz pode ser levado para Auschwitz, ser vítima de um homem-bomba, que assassina seu diferente em nome de Alá, ser espancado por skinheads por sua escolha homoafetiva, ser assassinado para que seu celular se converta em algumas gramas de cocaína, tornar-se um cidadão invisível, fruto de um Estado não reconhecente, como nos ensina o grande filósofo e sociólogo alemão Axel Honeth (1992/2003)Freud, S. (1987). A interpretação dos sonhos (Parte I). In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. IV, pp. 15-363). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)., cair nas angústias impensáveis e despedaçar-se psiquicamente, após uma separação amorosa, ou, na melhor das hipóteses, subir ao altar e desposar a pessoa amada. Diversas são as formas como essa pergunta é formulada. Parafraseando a famosa expressão de Flaubert (2007)Flaubert, G. (2007). Madame Bovary. (E. Corvisieri, Trad.). Porto Alegre: L&PM. em Madame Bovary, “le mot juste”, parece-me que a “frase justa” para tal pergunta ontológica é aquela que, a partir de Mia Couto (2008)Couto, M. (2008). Venenos de Deus, remédios do diabo. São Paulo: Companhia das Letras., esse notável escritor moçambicano, assim se enuncia: Que olhos são os meus, nos olhos teus?
Referências
- Amorim, M. (2004). O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas São Paulo: Musa.
- Arendt, H. (1963/1994). Eichman in Jerusalen: aspects on the banality of evil New York: Penguin Books.
- Cotta, J.A.M. (2003). O alojamento da psiquê no soma, segundo Winnicott Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica, não publicada. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, São Paulo.
- Cotta, J.A.M. (2010). Memórias de um desterro: corporeidade na clínica contemporânea Tese de Doutorado, não publicada. Universidade de São Paulo – USP, São Paulo.
- Couto, M. (2008). Venenos de Deus, remédios do diabo São Paulo: Companhia das Letras.
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Financiamento/Funding: O autor declara não ter sido financiado ou apoiado / The author has no support or funding to report.
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1
Nesse texto de 1900, Freud descreve, publicamente, por primeira vez, a questão do complexo de Édipo, embora anteriormente o tivera apresentado em uma carta a Fliess, datada de 15 de outubro de 1897. A expressão “complexo” como tal só aparecerá posteriormente, em 1910, na primeira de suas “Contribuições à psicologia do amor”. Cf. Freud, 1917/1976aFreud, S. (1976a). Conferência XXI. O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XVI, pp. 375-395). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917)., p. 385, nota de rodapé 2.
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2
Para não alongar o presente texto, indiquei referências ao conteúdo da obra freudiana, sem citar textualmente suas palavras, embora tenha identificado entre parênteses a página onde ele apresenta suas ideias. Procedi da mesma forma, mais adiante, quando me referi a seu artigo “Dostoievski e o parricídio” (Freud, 1928/1961Freud, S. (1961). Dostoievski e o parricídio. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (J. Strachey, Trad., Vol. XXI, pp. 177-196). London: Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Trabalho original publicado em 1928).).
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3
Remeto o leitor interessado na questão do desterro humano na clínica à minha tese de doutorado, onde abordo amplamente este tema, relacionando-o com a corporeidade na clínica contemporânea. Cf. Cotta, 2010Cotta, J.A.M. (2010). Memórias de um desterro: corporeidade na clínica contemporânea. Tese de Doutorado, não publicada. Universidade de São Paulo – USP, São Paulo..
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Nancy J. Bothne e Rebecca Rojas apresentaram, respectivamente, os trabalhos Immigration to the United States: Experiences of Survivors of State-Sponsored Torture e Immigration Psychology: Anti-immigrant Attitudes in the United States and the Impact on Latino/a Families, em abril passado, no Seminário Psicanálise e Literatura: Visitando Imre Kertész, realizado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP, organizado por mim e pelo Prof. Titular Gilberto Safra. Seus trabalhos, bem como os demais apresentados no referido seminário, estão sendo por nós organizados, visando sua publicação em e-book.
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A respeito desse livro, há uma excelente resenha elaborada por Tatiana Salem Leví. Cf. Leví, 2008.
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Citação/Citation: Cotta, J.A. (2015, junho). A questão do desterro humano: diálogos entre a experiência clínica e a obra literária de Imre Kertész. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 369-382.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jun 2015
Histórico
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Recebido
4 Nov 2014 -
Aceito
15 Jan 2015