Resumos
O fenômeno de autolesão, definido como a prática de ferir o próprio corpo sem intenção suicida, vem se tornando cada vez mais frequente nos serviços de saúde públicos e privados. Não à toa, é considerado um sintoma emblemático da clínica contemporânea. O presente artigo tem como objetivo expor algumas contribuições do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933) para pensar esse fenômeno. As contribuições são apresentadas em duas partes. A primeira traz construções teóricas relacionadas a uma psicanálise das sensações e da superfície, a exemplo do sistema mnêmico do eu e do modelo dos tiques. A segunda apresenta reflexões de Ferenczi sobre o trauma, particularmente sobre a solidão traumática e a dor como uma expressão de revolta.
Palavras-chave: Autolesão; psicanálise; dor; Ferenczi
The phenomenon of self-injury, defined as the practice of injuring one’s own body free of suicidal intent, has become increasingly more frequent in public and private health services and is now considered an emblematic symptom of contemporary clinical practice. The present article features some contributions by psychoanalyst Sándor Ferenczi (1873-1933) to assess this phenomenon. His contributions are presented in two segments. The first one contains theoretical constructions related to psychoanalysis of sensations and surfaces, such as the mnemic system of the ego and the model of tics. The second one presents Ferenczi’s reflections on trauma, particularly on traumatic loneliness and of pain as an expression of revolt.
Key words: Self-injury; psychoanalysis; pain; Ferenczi
Le phénomène de l’automutilation, à savoir la pratique de blesser son corps sans intention suicidaire augmente progressivement dans les services publics et privés. Pour cette raison, il s’agit aujourd’hui d’un symptôme emblématique de la clinique contemporaine. Cet article vise à prendre en compte quelques contributions du psychanalyste hongrois Sándor Ferenczi (1873-1933) pour réfléchir sur ce phénomène. Les contributions sont présentées en deux parties. La première présente des apports théoriques liés à une psychanalyse des sensations et de la surface, telles que le système mnémonique du moi et le modèle du tic. La seconde présente des réflexions de Ferenczi sur le trauma, en particulier sur la solitude traumatique et la douleur en tant qu’expression de révolte.
Mots clés: Automutilation; psychanalyse; douleur; Ferenczi
El fenómeno de la autolesión, definido como la práctica de herir el propio cuerpo sin intención suicida, se hace cada vez más frecuente en los servicios de salud, públicos y privados. No por casualidad, es considerado un síntoma emblemático de la clínica contemporánea. El presente artículo tiene como objetivo exponer algunas contribuciones del psicoanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933) para reflexionar sobre ese fenómeno. Las contribuciones se presentan en dos partes. La primera, trae construcciones teóricas relativas a un psicoanálisis de las sensaciones y de la superficie, a ejemplo del sistema mnémico del yo y del modelo de los tics. La segunda, presenta las reflexiones de Ferenczi sobre el trauma, particularmente sobre la soledad traumática y sobre el dolor como una expresión de la indignación.
Palabras clave: Autolesión; psicoanálisis; dolor; Ferenczi
O fenômeno da autolesão vem aparecendo com uma fre- quência cada vez maior nos consultórios e nos serviços de saúde mental, bem como nas escolas e em outros contextos, tendo uma incidência marcante em adolescentes e jovens. A prática de autolesão consiste em provocar ferimentos contra a superfície do próprio corpo, podendo ser utilizado, para isso, algum tipo de instrumento (American Psychiatric Association, 2014). A possível associação com um objeto faz da autolesão uma ação que se expressa, virtualmente, de infinitas formas - cortar-se com uma lâmina, queimar-se com a ponta do cigarro, enfiar agulhas, esfregar insistentemente uma borracha na pele - e pode produzir consequências variadas - dor, sangramento, contusão, queimadura, cicatrizes. Constata-se, na literatura, o uso de variados termos para designar esse fenômeno. Dentre eles, destacam-se: automutilação e autoagressão, que são considerados, no entanto, estigmatizantes; escarificação e cutting, relacionados especificamente ao ato de se cortar; flebotomia etc. (Demantova, 2017).
De acordo com a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a autolesão pode desempenhar três funções que não são excludentes entre si (American Psychiatric Association, 2014). Em primeiro lugar, ela é realizada com a finalidade de aliviar sentimentos, emoções ou pensamentos de cunho negativo, como ansiedade, tensão, tristeza, raiva, tédio, autocrítica, culpa. No que se refere a esta última, o ferimento adquire a função de punição e, assim, de expiar, ainda que provisoriamente, o sentimento de culpa. Uma segunda função é, opostamente, a de induzir uma sensação de prazer, uma espécie de “barato”, tal como se consegue atingir com o uso de certas substâncias. Por fim, a autolesão pode servir à tentativa de resolver ou suprimir uma dificuldade que o sujeito sente na sua relação com o(s) outro(s): tanto no sentido de evitar e se retrair de certas demandas sociais, quanto no de ser uma tentativa de angariar atenção e encontrar apoio e ajuda (American Psychiatric Association, 2014; Cipriano, Cella & Cotrufo, 2017). As três funções aludidas são comumente descritas na literatura como tendo uma finalidade maior de regulação emocional, se bem que considerada desadaptada e, portanto, supostamente patológica (Cipriano, Cella & Cotrufo, 2017).
O propósito deste artigo é apresentar algumas contribuições que a teoria de Sándor Ferenczi (1873-1933) - psicanalista húngaro contemporâneo a Freud, atualmente notabilizado pelas suas formulações sobre o trauma -, podem fornecer para a compreensão do fenômeno da autolesão. Dividido em duas partes, o artigo esboça, na primeira delas, contribuições oriundas daquilo que Ferenczi denominou de “fisiologia do prazer” e, na segunda, formulações derivadas de suas investigações sobre a clínica do trauma.
Aspectos epistemológicos preliminares
Uma exposição sobre as possíveis contribuições de Ferenczi para pensarmos sobre os fenômenos de autolesão não pode deixar de levar em conta, antes de tudo, o texto “Reflexões psicanalíticas sobre os tiques”, publicado em 1921. O título desse trabalho pode induzir ao estranhamento na medida em que propõe, de saída, investigar um objeto específico: os tiques, sintomas neurológicos por demais heterogêneos quando comparados ao ato de provocar uma lesão no próprio corpo. Ainda que, de fato, alguns tiques possam se apresentar como movimentos que produzem tais consequências, eles não se confundem com, por exemplo, a categoria de autolesão não suicida proposta pela força-tarefa do DSM-5 (American Psychiatric Association, 2014).
Com efeito, o manual diagnóstico norte-americano esforça-se por distinguir essa condição tanto dos tiques (e das estereotipias) quanto de doenças genéticas e de outros transtornos psiquiátricos, como os de neurodesenvolvimento; os relacionados ao transtorno obsessivo-compulsivo; e, especialmente, do transtorno de personalidade borderline (American Psychiatric Association, 2014). Em todos esses quadros, o sujeito pode desencadear atentados contra o próprio corpo com graus de severidade distintas: desde arrancar os pelos das sobrancelhas em um transtorno de tricotilomania até cortar seu órgão genital ou vazar seus olhos em um surto psicótico.
Se, portanto, o DSM-5 busca estabelecer limites e fronteiras bem delimitados para fundamentar a autolesão não suicida como uma condição específica contando, para isso, com uma diversidade de critérios excludentes, Ferenczi desvia dessa proposta. Antes de mais nada, vale dizer que o seu trabalho sobre os tiques não se debruça apenas sobre esses fenômenos (Ferenczi, 1921/1993b; 1921/1993c). O próprio autor confessa que não faz distinções claras entre um tique e uma estereotipia, e nem entre ambos e um ato compulsivo, um ato sintomático ou o hábito de roer e morder as unhas ou de arrancar os cabelos. Nem mesmo entre eles e esse movimento verbal que chamamos de coprolalia ou essa reação genérica que designamos como negativismo. Nem, por fim (e este é o mais incrível), entre todos os citados e a catatonia (Ferenczi, 1921/1993b). Paradoxalmente, isso não significa dizer que ele não conceba diferenças entre os fenômenos.
Acontece que em seu texto sobre os tiques, Ferenczi não trabalha com categorias e nem com uma ideia de estrutura: ele não coloca divisões nítidas que separam os diversos fenômenos, mas os concebe distribuídos e dispersados ao longo de um continuum. O tique é rápido como um trovão, a catatonia imóvel como uma pedra; o hábito não muda, o tique se desloca; o ato sintomático é pontual e da ordem do acidental, o tique se repete mecanicamente e não é considerado acidental, ainda que não seja voluntário; a estereotipia, o ato obsessivo e o tique rivalizam apenas quanto à frequência com que são executados; entre coçar a pele e amputar uma parte do corpo repousa uma questão de perspectiva, na medida em que, ao nos coçarmos, estamos arrancando com nossas unhas, sem o sabermos, um sem número de células epiteliais - em outras palavras, provocando lesões na superfície da pele (Ferenczi, 1921/1993b). Uma forma de ação pode se tornar outra e vice--versa, agravar ou abrandar seus efeitos, deslocar seu alvo do outro para o próprio corpo, e sobre uma parte do corpo para outra, e assim por diante.
Enfim, Ferenczi percebe, em toda essa multiplicidade de ações, não tanto diferenças de categoria quanto diferenças de grau, e esses graus se repartem seja em termos de velocidade, de frequência, de severidade e, sobretudo, de dinâmica. Em outras palavras, não são fronteiras estruturalmente definidas que as separam, mas limiares, assim definidos como zonas de transição sem contornos claros, nas quais os territórios transbordam entre si em um espaço de mistura e de indistinção (Câmara, 2018). Assim, todos esses movimentos corporais são virtualmente possíveis na medida em que a história do corpo os traz na forma de esboços, de verdadeiras entidades virtuais. Conjuntos de movimentos latentes iniciados e não terminados, que se atualizam no momento mesmo em que, por alguma circunstância - sempre traumática, sempre catastrófica -, são resgatados para o presente como tentativa de criar alternativas e testar soluções para situações que parecem não ter nenhuma saída. Ademais, eles se misturam uns com os outros, resultando daí novas combinações que adquirem conformações novas e singulares, transitórias e precárias.
Essa perspectiva é, a bem dizer, um dos pilares do programa de pesquisa denominado por Ferenczi de “fisiologia do prazer”, que começou a ser desenvolvido no início da Primeira Guerra Mundial e atingiu seu clímax dez anos depois, quando da publicação de “Thalassa” (Ferenczi, 1917/1992a; 1919/1993a; 1924/1993d). A fisiologia do prazer representou sua tentativa mais radical de conceber, com base na teoria e na clínica psicanalíticas, por um lado, e na biologia teórica e evolucionista, por outro, uma forma alternativa de entender o corpo e seu funcionamento tendo como eixo norteador a dimensão do prazer (Câmara & Herzog, 2018). Não à toa, ela nasce de uma crítica severa à concepção unilateralmente utilitarista da fisiologia e disciplinas correlatas, que tratam o corpo, sua história e suas funções sob o viés de utilidade, nunca da dinâmica do prazer no qual podem estar envolvidos (Ferenczi, 1919/1993a). Por mais estranho que isso possa parecer, basta pegar o exemplo da autolesão para nos darmos conta de que é possível, por meio da violência contra uma parte do corpo sexualmente anódina, produzir uma verdadeira sensação de prazer - Ferenczi chega a falar de uma verdadeira experiência de orgasmo (Ferenczi, 1921/1993b).
Contribuições da fisiologia do prazer
A tese estabelecida por Ferenczi a respeito dos tiques é esta: o sujeito apresenta uma hiperestesia na superfície de uma parte do seu corpo, e os movimentos motores que desencadeia têm o único propósito de dela se defender (Ferenczi, 1921/1993b). Hiperestesia é um conceito clássico de psicopatologia, referente às alterações quantitativas de sensopercepção, definida como uma condição na qual uma sensação é sentida com uma intensidade anormalmente elevada, sendo incongruente com o estímulo que a provoca (Dalgalarrondo, 2008). Além disso, a sensação pode ser intensa a ponto de provocar dor. Apesar de a hiperestesia se associar a qualquer tipo de sensação (visual, acústica, olfativa etc.), o objeto com que Ferenczi trabalha o faz restringir seu campo de investigação para somente o tato, isto é, a hiperestesia tátil.
Observa-se, de saída, que sua tese implica nada menos que desenvolver, para além de uma concepção particular sobre o corpo, uma psicanálise das sensações e das superfícies. Enfatizemos isto: o seu ensaio sobre os tiques é um trabalho psicanalítico-experimental que trata do corpo, de suas superfícies e de sua sensorialidade - e também, acrescente-se, de seus movimentos, isto é, de sua motilidade. Que fique claro, pois, o seguinte: ainda que se baseie no tique, o modelo teórico que Ferenczi desenvolve se estende para outros fenômenos que, como aquele, consistem na execução de ações motoras nas quais o sujeito se sente coagido a fazer e cujos motivos e consequências estão intimamente relacionados a experiências sensoriais. Daí o fato de esse modelo servir como uma contribuição para investigar o fenômeno da autolesão.
Dito isso, cabe observar que a formulação segundo a qual o tique é um movimento de defesa contra um foco de hiperestesia exige o desenvolvimento de dois pontos: em primeiro lugar, o motivo da hiperestesia; em segundo, de que maneira as ações motoras são identificadas a gestos de defesa à sensação intensa. Ao lado dessas duas questões, um terceiro problema é enfrentado por Ferenczi: como pode haver hiperestesia sem que esteja associada a um estímulo atual? (Ferenczi, 1921/1993b). Em outras palavras, como pode haver uma sensação por demais intensa e sua defesa através de uma ação motora sem que, no entanto, algum objeto a esteja causando no momento mesmo em que é sentida?
Tomando-se a partir de um viés utilitário, a dor é uma sensação cuja função é sinalizar que uma parte do corpo está sendo destruída e sob ameaça e, por consequência, que algo deve ser feito para interromper essa destruição e neutralizar essa ameaça. Sob a perspectiva da fisiologia do prazer, por sua vez, a dor mobiliza para si libido que se encontra alhures, havendo uma erotização da parte do corpo submetida à dor. Essa formulação fora desenvolvida por Ferenczi para tratar das patoneuroses, quer dizer, circunstâncias nas quais o adoecimento ou ferimento do corpo altera, de modo substancial, a dinâmica libidinal e, por conseguinte, a posição subjetiva (Ferenczi, 1917/1992a). O essencial a ser retido é que esse processo implica uma regressão ao narcisismo (Ferenczi, 1917/1992a; 1921/1993b).
Com efeito, sabemos que uma das situações que Freud evoca para apresentar o conceito de narcisismo - particularmente no sentido de exemplificar a retração da libido dos objetos para o eu - consiste no famoso exemplo da dor de dente (Freud, 1914/2010). Quando alguém sofre uma dor corporal muito forte, ele é de tal maneira absorvido por essa condição, que retira toda sua libido e interesse do mundo: “No buraco de seu molar”, diz Wilhelm Busch do poeta que sofre dor de dente, “se concentra a sua alma” (Freud, 1914/2010, p. 26).
A hiperestesia de uma parte do corpo, base dos tiques, encontra sua explicação na retração narcísica da libido para aquele locus específico. Para Ferenczi, a gênese dos tiques está associada sempre a um trauma, mas a um trauma orgânico, a algum ferimento ou lesão cometida contra a superfície do corpo. O trauma conduz à dor, mas também à erogenização do lugar ferido. E é precisamente nessa mistura de destruição e prazer, dor e libido, que não apenas se constitui a hiperestesia, como evidencia sua natureza eminentemente narcísica. Acrescente-se que, com a destruição do tecido, forma-se um Triebreizdepot, um “depósito de excitação pulsional” (Ferenczi, 1921/1993b, p. 91; 1921/1927, p. 214) que, à maneira de uma “nova pulsão” (einen neuen Trieb), passa a produzir tensão e exigir medidas para escoá-la, ainda que o objeto provocador do trauma não esteja mais presente.
Dissemos que a dor é uma sensação que demanda algum tipo de ação para sua resolução. Mesmo quando a hiperestesia não acarreta dor, a sensação que ela traz é de tal forma elevada que exige que algo seja feito para suprimi-la ou, ao menos, reduzi-la ao limiar do suportável. Se a base do tique é a hiperestesia de uma região que foi ferida, o tique per se é uma ação motora realizada com o propósito de combater a sensação, um movimento corporal destinado a extrai-la de si e obter, consequentemente, um alívio da excitação. Por ter um caráter narcísico, de urgência e de grande intensidade, a hiperestesia é menos suscetível de ligação psíquica e sua correlata inibição, e mais propensa a convocar, de maneira imediata, o próprio corpo para resolvê-la através da descarga motora (Ferenczi, 1921/1993b).
Para Ferenczi, existem quatro técnicas motoras para lidarmos com a dor, e todas elas seriam protótipos de uma série de tiques. A primeira consiste em simplesmente escapar da dor, como quando o braço se afasta instantaneamente de um objeto muito quente. A segunda técnica baseia-se em atacar a fonte da dor: em vez de afastar o braço, golpeia-se a superfície quente com toda força, quase que à maneira de um espasmo, para arremessá-la longe. A terceira vale-se de voltar a agressão contra si próprio: “Citemos como exemplo desta última forma”, diz Ferenczi (1921/1993b), “os tiques de coçar (muito comuns) e o tique que consiste em infligir uma dor a si mesmo, o que na esquizofrenia converte-se numa tendência para a automutilação” (p. 91). A quarta técnica, por fim, é representada pelo fenômeno de flexibilidade cérea apresentada por certos quadros de catatonia: o sujeito deixa o seu corpo ser modelado ao bel-prazer do objeto, não impondo a ele nenhum tipo de resistência.
Na medida em que o tique é a consolidação de uma defesa contra uma sensação hiperestésica sem estar, após um tempo, associada a um objeto que provoque essa excitação, Ferenczi propõe um acréscimo à primeira tópica freudiana conforme apresentada em A interpretação dos sonhos (Câmara, 2018). No modelo do aparelho óptico, entre o sistema perceptivo (sistema aferente, isto é, que recebe excitação) e o motor (eferente, que desvencilha essa excitação), há uma multiplicidade de sistemas de memória cuja função é associar os traços de acordo com diferentes modos de organização. Um sistema mnêmico associa de acordo com a simultaneidade, outro com a semelhança, e assim por diante. A memória seria justamente aquilo que diferencia o aparelho psíquico de um aparelho arco-reflexo, uma vez que, ao invés de dar uma resposta (eferente) automática a um estímulo (aferente), estabelece conexões que, a cada vez, modificam a resposta e são modificadas pelo estímulo.
Ademais, em um de seus trabalhos metapsicológicos, Freud estabelece que haveria um sistema de memória das coisas, isto é, dos objetos (Freud, 1914/2010). O acréscimo proposto por Ferenczi consiste na postulação de outro sistema de memória, mais precisamente um sistema de memória do eu, o qual teria por incumbência registrar todos os processos que se passam no próprio corpo, sejam eles sensações, ações, afetos (Ferenczi, 1921/1993b). Ele seria mais antigo que o sistema de memória das coisas, na medida em que elas, as coisas, só emergem na experiência subjetiva da criança tempos depois de ela abdicar progressivamente de sua onipotência (Ferenczi, 1932/1990).
No que diz respeito aos tiques, o trauma corporal seria registrado no sistema mnêmico do eu e, a partir daí, devido à sua intensidade e seu caráter narcísico, ficaria marcado como uma forte sensação (uma hiperestesia) que, a depender das condições, retornaria. Da mesma forma, o movimento desencadeado para se defender dessa sensação também seria registrado no sistema de organização de memória do eu, levando a uma associação estreita entre a hiperestesia e a ação motora, cuja consequência maior é a formação de um automatismo, isto é, de um tique (Ferenczi, 1921/1993b). Esse automatismo, sem dúvida produzido pela sensação insuportável que exige uma resolução imediata, levaria o aparelho psíquico a regredir para aquilo que Ferenczi (1919/1993a) designou como a “protopsique”: ele voltaria a ser um sistema arco-reflexo, cujo trilhamento ou facilitação do reflexo teria sido desenhado pela associação entre a sensação e o tique, e que, a cada sensação, forçaria uma resposta motora imediata.
Em relação às diferentes formas de tique e de lidar com a dor aludidas anteriormente, a terceira é a que nos mais interessa, visto que consiste em provocar ferimentos contra o próprio corpo, aproximando-se assim do fenômeno de autolesão. Contudo, é no mínimo curioso Ferenczi declarar que se pode aliviar de uma dor agredindo a mesma parte do corpo de onde provém essa sensação. A base de sua justificativa repousa em uma noção importada da biologia e, mais restritamente falando, da zoologia - a saber, a noção de autotomia. A autotomia é um comportamento essencialmente defensivo desempenhado por um animal que se expressa na capacidade de se desvencilhar ou se separar de partes do próprio corpo “que estiveram submetidos a uma irritação excessivamente intensa ou que, de algum modo, o façam sofrer” (Ferenczi, 1924/1993d, p. 276). Em outras palavras, a autotomia é uma reação que consiste em uma morte parcial para se continuar sobrevivendo ou, o que dá no mesmo, uma morte parcial para evitar a morte total.
O exemplo mais típico é o de certas espécies de répteis que conseguem se separar de sua cauda à vista de uma ave predadora. Uma vez deixada para trás, a cauda realiza mecanicamente uma sequência de espasmos e contrações, como se fosse um verme ou alguma criatura a ele aparentado. Assim, a ave, em vez de continuar perseguindo o lagarto, tem sua atenção atraída para a cauda, enquanto seu antigo proprietário consegue fugir. Outros animais, ao sentirem uma dor insuportável em determinada parte do corpo, são capazes de dela se desvencilharem, como se resolvessem amputá-la para não sentir mais essa sensação insuportável: é, por exemplo, o caso do cão que, tendo ferido de algum jeito sua perna, arranca-a a dentadas (Ferenczi, 1921/1993b).
Para Ferenczi, mais que um comportamento restrito a certas espécies, a autotomia é uma tendência - uma tendência que se expressa como “um traço fundamental de todo ser vivo” (Ferenczi, 1924/1993d, p. 276) e que, enquanto tal, pode se manifestar em graus diversos: desde a amputação de facto de um pedaço da carne até a provocação de ferimentos mais superficiais no tecido, ou, até mesmo, a clivagem de parte da personalidade (Ferenczi, 1939/1992b). No que se refere à relação entre os tiques e a autotomia, Ferenczi (1921/1993b; 1921/1927) afirma:
Encontra-se a mesma tendência a separar-se das partes do corpo que se tornaram fontes de desprazer no reflexo normal de coçar, onde se manifesta com clareza o desejo de eliminar, raspando-a, a parte da epiderme submetida à excitação, assim como as tendências dos catatônicos para a automutilação [Selbstverstümmlungstendenzen der Katatoniker] e certas tendências de numerosos portadores de tiques para representar ações automáticas de modo simbólico. (pp. 92-3; p. 216)
Interpretados de acordo com a tendência de autotomia, presente em todos os viventes, os tiques que consistem em cometer uma violência contra si próprio seriam, portanto, uma tentativa malsucedida (ou parcialmente bem-sucedida) de arrancar a região do corpo de onde emana uma sensação superintensa - quando não dolorosa - e, principalmente, insuportável. É como querer remediar uma terrível dor de cabeça arrancando a própria cabeça ou interromper as perturbações de uma coriza cortando o próprio nariz. Ainda que (nem sempre) isso ocorra, o tique consegue suprimir, por algum tempo, a sensação hiperestésica, como se a arrancasse, extraísse ou, ainda, como se a desvencilhasse do corpo. Em suma, uma dor em troca da outra.
Os tiques que voltam contra o próprio corpo teriam, nesse sentido, uma função bem específica: a de descarregar o desprazer, a de trazer alívio a uma tensão, paradoxalmente na produção de dor. Porém, essa função encontra-se misturada com uma outra, a saber, a de produzir sensações de prazer. Como apresentado acima, Ferenczi concebe que toda lesão orgânica mobiliza uma quantidade variável de libido para a região do corpo onde ela se deu, a ponto de a destruição do tecido dar espaço à criação de uma nova pulsão (Ferenczi, 1921/1993b). No caso dos tiques que atentam contra o próprio corpo, na medida em que agridem sua superfície não apenas o fazem com o intuito de se desvencilhar do desprazer, como também de obter uma sensação voluptuosa, um prazer positivo - positivo no sentido de essa sensação não se dar, pelo menos não somente, pela redução do desprazer. Assim, encontra-se uma surpreendente aproximação (mas não identificação ou equalização) entre a concepção de Ferenczi sobre a terceira forma de tique e as funções de dita regulação emocional descritas pela literatura atual sobre o fenômeno de autolesão: a autodestruição do corpo busca, por um lado, desvencilhar-se de uma sensação insuportável e, por outro, produzir sensações de prazer.
Conforme visto, para o autor, a origem de um tique é um trauma orgânico, isto é, um ferimento no corpo, e, no caso da autolesão, esse trauma não é nada mais que a lesão inaugural que o sujeito provoca em si mesmo através, por exemplo, de cortes desferidos com uma lâmina em seu braço. A partir dessa autolesão inaugural, forma-se uma nova pulsão que, marcada no sistema mnêmico do eu, passa a exigir a mesma medida de trabalho a cada vez que as circunstâncias a forçam a se atualizar. Daí o caráter compulsivo que a autolesão gera na economia psíquica do sujeito a qual, à maneira de um vício ou de uma adição, passa a participar de sua vida como um recurso para lidar com circunstâncias que escapam ao seu controle.
Contribuições das incursões sobre o trauma
Uma questão que surge, sem dúvida complexa, é a seguinte: por que há a “escolha” da terceira técnica de lidar com o sofrimento, se ela pode levar a consequências desastrosas? A resposta para esse problema surge mais de uma década depois da publicação do ensaio sobre os tiques, precisamente na época em que Ferenczi estava mergulhado em suas investigações sobre o trauma. Importa observar que ele não emprega o conceito de pulsão de morte para tratar do motivo de tal escolha, como o faz, por exemplo, Karl Meninger (1938), psicanalista e psiquiatra estadunidense considerado o primeiro autor a tratar especificamente das autolesões. Ainda que esse conceito participe de sua teorização, tal participação não tem a finalidade de explicar a gênese do processo de autodestruição. É no entorno, na relação, no entre que Ferenczi esboça uma explicação (Câmara, Herzog, Pinheiro, Verztman, Pacheco--Ferreira & Viana, 2015).
Sua teoria do trauma engloba duas perspectivas complementares: uma intersubjetiva e outra intrasubjetiva. A primeira refere-se ao desmentido e, a segunda, à clivagem (Câmara, 2018). O desmentido, também designado na literatura pelos termos “descrédito” e “desautorização”, é um movimento no qual uma criança, após ter sofrido uma violência - e a violência pode se dar de diversas formas, como abuso sexual, agressão física, tortura psicológica, negligência - tem a sua experiência negada por aqueles que dela cuidam (Câmara, 2012; Miranda, 2012; Kupermann, 2015). Seja qual for o motivo para os adultos desmentirem a criança, importa frisar que ela é desautorizada a ser sujeito da experiência sofrida e forçada a não acreditar que passou pela situação. O grau dessa desautorização é tão brutal que ela perde a certeza não apenas sobre sua memória, como também sobre suas próprias sensações, mesmo as mais imediatas, as mais evidentes, as mais pessoais. Ela perde, em suma, a própria certeza de si (Pinheiro & Viana, 2011).
Em alguns trechos de “Reflexões sobre o trauma” e especialmente do Diário clínico, ambos publicados após sua morte, Ferenczi tenta, repetidas vezes, formular o que seria o insuportável (Ferenczi, 1934/1992c; 1932/1990). Diante de uma comoção, de um choque, enfim, diante de um evento traumático, é possível suportá-lo caso se consiga defender dele, seja fugindo de quem comete a agressão ou, de alguma forma, atacando o agressor (em total consonância com a sua descrição das técnicas para lidar com o sofrimento). Mesmo que isso não seja possível, uma alternativa resta: dissociar-se do que está acontecendo agora e imaginar, com todas as forças, um futuro no qual isso vai acabar e em que se estará bem - ou, como se diz, são e salvo. “Essas representações [Vorstellungen]”, observa Ferenczi (1934/1992c; 1934), “agem como antídoto contra o desprazer (como anestésico) [Antidot gegen Unlust (als Anästhetikum)] e capacitam-nos para um comportamento apropriado enquanto durar o desprazer ou a ação que engendra a dor” (p. 110; p. 6). Em outras palavras, o último recurso que resta frente ao traumático é a esperança, a esperança de que algo vai mudar, de que aquilo não pode durar para sempre, enfim, a esperança de que não se está sozinho e que alguém virá salvar (Ferenczi, 1932/1990).
O sofrimento se torna insuportável quando nada disso é possível e, principalmente, quando se perde a esperança de uma saída. O insuportável é o que Ferenczi denominou de “solidão traumática”, uma solidão total e absoluta, um abandono horrível e cósmico (Ferenczi, 1932/1990, p. 250). Em suma, o insuportável é a impotência de resistir ao outro, a desesperança quanto a ser salvo, o abandono total a si mesmo. A saída que resta à criança em tais circunstâncias é a autodestruição: “se a quantidade e a natureza do sofrimento ultrapassam a força de integração da pessoa, então ocorre a rendição, deixamos de suportar, não vale mais a pena reunir essas coisas dolorosas numa unidade, nos fragmentamos em pedaços” (Ferenczi, 1932/1990, pp. 214-215).
Essa citação acena para a faceta intrasubjetiva da teoria do trauma de Ferenczi: um sofrimento da ordem do insuportável leva o sujeito a lançar mão da clivagem. A clivagem é um processo de autodestruição que não chega até o fim, mas que, ao promover a fragmentação da personalidade, leva a algumas mutações profundas no funcionamento psíquico (Ferenczi, 1939/1992b). Vale destacar, mais uma vez, que a fragmentação não é provocada pela pulsão de morte, mas por uma catástrofe que se dá na relação da criança com o entorno. A pulsão de morte é despertada somente quando dessa catástrofe, e sua participação consiste justamente em promover o rasgo, a fissura, a fragmentação da personalidade. Também cabe precisar que a autodestruição não se restringe à clivagem psíquica (ou “autonarcísica”, como Ferenczi a chama), podendo se manifestar na forma de uma violência perpetrada contra o próprio corpo (Ferenczi, 1934/1992c).
A primeira consequência da clivagem “é a brusca transformação da relação de objeto, que se tornou impossível, numa relação narcísica” (Ferenczi, 1934/1992c, p. 117). Uma vez que se encontra radicalmente sozinha, tendo perdido a esperança de ser salva por alguém e, ao mesmo tempo, tendo sua confiança sobre aqueles que dela deviam proteger e cuidar completamente destroçada, a criança divide-se em dois fragmentos: uma que cuida e outra que é cuidada. A dinâmica da clivagem mostra-se, nesse sentido, bastante singular: em vez de uma dinâmica pautada no conflito, a clivagem baseia-se em uma dinâmica balizada no cuidado (Câmara, 2018). Uma parte cuida da outra e a protege de um mundo violento e traiçoeiro do qual não se pode depositar confiança e nem se esperar por ajuda. É precisamente essa configuração particular que faz a clivagem transformar uma relação de objeto em uma relação narcísica.
Paradoxalmente, a segunda consequência levada a cabo pela clivagem é a mudança na experiência do sofrimento, principalmente no que diz respeito à sua distribuição. Com a fragmentação, cada pedaço passa a sofrer por si próprio, como se, com isso, o sofrimento total pudesse ser repartido e, assim, reduzir sua intensidade: “Eu não sofro mais, deixo até de existir, pelo menos como Ego global. Os fragmentos isolados podem sofrer, cada um por si” (Ferenczi, 1932/1990, p. 215). Ainda que a clivagem se dê sobretudo na personalidade, isso não exclui que a própria maneira como sentimos e experimentamos nosso corpo também não se fragmente, como se instaurasse, a partir daí, uma verdadeira anarquia nas relações das diferentes partes do corpo, cada qual podendo concentrar, em si, uma parcela da dor, do sofrimento e do prazer. É assim que, em uma anotação de seu Diário clínico, Ferenczi retoma a sua concepção de corpo de acordo com a fisiologia do prazer para tratar da autodestruição e da fragmentação corporais:
Fragmentos de órgão, elementos de órgão, fragmentos e elementos psíquicos são dissociados. No plano corporal, trata-se realmente da anarquia dos órgãos, partes de órgão e elementos de órgão, quando a colaboração recíproca é a única que torna possível o verdadeiro funcionamento global, ou seja, a vida. (Ferenczi, 1932/1990, pp. 105-106)
Sob o ponto de vista das formulações ferenczianas sobre o trauma, pode-se conceber que a autolesão se dá em um contexto de solidão radical. O sujeito perdeu de tal maneira a possibilidade de contar com os outros - pois aqueles que esperava que cuidassem dele não o fizeram em um momento crítico -, que se encontra em um estado de abandono absoluto. Os sofrimentos que surgem precisamente das relações com os outros não podem ser compartilhados com alguém em quem se confia, pois este alguém não existe, e sequer se tem esperança de que alguém venha para ajudar, proteger ou salvar. É nessa situação sem saída; nessa condição de impotência, desesperança e abandono; nessa ausência de uma perspectiva de futuro - isto é, de que o sofrimento vai passar, de que o que se está sentindo no presente vai terminar - enfim, que o sofrimento se torna, como vimos, insuportável. A partir daí a autodestruição acena como única perspectiva possível.
Longe de considerá-la sob um viés normativo, a autodestruição tem, para Ferenczi, uma função vital. Com a noção de autotomia, ele quis evidenciar que, em certas situações, e justamente aquelas nas quais o sofrimento se torna insuportável, a autodestruição é a única possibilidade encontrada para se desvencilhar da dor e das sensações intoleráveis cortando uma parte de si próprio. Com o conceito de clivagem, ele mostrou que a autodestruição é um movimento de devir no qual, a partir da destruição, se consegue construir novas formas de existência (Ferenczi, 1926/1993e): um modo de vida no qual, após ter sido abandonada e não ter mais em quem confiar, a criança passa a cuidar de si mesma e a se proteger de acontecimentos que podem levar a um novo trauma; um modo alternativo de experimentar o sofrimento, dividindo-o e redistribuindo-o por sobre as superfícies e dobras dos múltiplos fragmentos (Ferenczi, 1932/1990).
Assim, além de extrair de si sensações de desprazer e obter sensações de prazer, a autolesão desempenha um papel fundamental na relação do sujeito com os outros. Isso não passou despercebido pelos autores contemporâneos, que veem a autolesão como uma forma de resolver conflitos interpessoais ou, até mesmo, como uma tentativa de pedir ajuda (Cipriano, Cella & Contrufo, 2017). Entretanto, ao dar visibilidade a questões como o abandono, a clivagem como cuidado de si sobre si, a dor insuportável e a confiança, Ferenczi fornece elementos fundamentais para se pensar o papel da autolesão na relação com o outro e, ademais, as direções terapêuticas a serem seguidas. Menos um problema de regulação emocional a ser retificado, a autolesão é, isto sim, uma técnica de cuidado de si, na qual o sofrimento, na medida em que não pode ser partilhado e, portanto, diluído com alguém com quem se confia, encontra uma forma alternativa de se expressar, de si para si, na solidão do próprio corpo.
No que se refere à autolesão como um modo de expressão, em deter-minada entrada de seu Diário, Ferenczi esboça uma definição surpreendente da dor e do sofrimento: “aquele que sofre”, escreve ele, “está totalmente revoltado contra a realidade dolorosa específica; aquilo a que chamamos dor talvez não seja outra coisa senão uma tal revolta” (Ferenczi, 1932/1990, p. 66; grifos nossos). À esteira disso, cabe questionar se a autolesão, enquanto uma forma singular de expressão, busca, na dor provocada contra seu próprio corpo, expressar a revolta contra um mundo que Ferenczi qualifica como hipócrita, na medida em que abafa as verdades e impõe a política de engolir sapos - muitas vezes em nome do gozo próprio -, sob a égide da autoridade e a mordaça do tirano. Um mundo, em suma, que, por ter desautorizado e não ter vindo em socorro, é sentido como algo com que não se pode contar. Com efeito, é o que Ferenczi parece nos dizer nestas linhas, escritas há quase noventa anos:
Ora, nos casos em que o protesto e a reação negativa, ou seja, qualquer crítica e expressão de descontentamento, são interditas, a crítica só pode exprimir-se de forma indireta. Por exemplo, o julgamento: vocês são todos mentirosos, idiotas, malucos com quem não se pode contar, é representado na própria pessoa de maneira indireta através de exageros, manias e produções insensatas (...). Esta reconhece precocemente os absurdos do comportamento daqueles que têm autoridade sobre ela e, no entanto, a intimidação impede-a de criticar. Exageros irônicos, cuja natureza não é reconhecida pelo entourage, ficam sendo o único meio de expressão. (Ferenczi, 1932/1990, p. 85; grifos nossos)
Considerações finais
Talvez a maior contribuição de Ferenczi seja poder acolher a autolesão como uma expressão do corpo, cuja função envolve não apenas aliviar a dor e o desprazer, mas também obter prazer e experimentar novas formas de sentir o próprio corpo. Não à toa, em determinado momento de seu trabalho sobre os tiques, ele afirma: “Há razões para supor que a função secundária, senão a principal, de toda uma série de tiques e de estereotipias consiste em permitir ao sujeito sentir ou observar por instantes certas partes do seu corpo” (Ferenczi, 1921/1993b, p. 87). Paradoxalmente, a autolesão, ao provocar dor, pode ser uma forma de expressar a revolta contra um mundo hipócrita e do qual não se pode confiar.
Importa salientar que suas contribuições não recorrem ao discurso hegemônico que propõe uma dicotomia (e por que não dizer, uma oposição?) entre a linguagem e o ato, o simbolizável e o corpo. Uma das maiores consequências desse gesto é, em primeiro lugar, o de não traçar, como perspectiva única de análise, a simbolização da autolesão pela linguagem e pela palavra. A noção de simbolização de Ferenczi, aliás, se passa fundamentalmente na expressão corporal e na relação com o outro e menos na transposição de algo para a ordem da representação e da linguagem (Gondar, 2010; Câmara, 2018). Além disso, ao não encontrar guarida em um discurso que coloca a linguagem como centro e eixo cardinal, Ferenczi constrói uma visão que não estabelece a normatização da autolesão de acordo com a categoria da linguagem, o que a colocaria no lugar do déficit e da falta de simbolização.
Cabe notar, além disso, que a regulação emocional enquanto objetivo almejado por certas terapias fundamenta-se na ideia de que o indivíduo - e ressaltamos aqui o uso do termo “indivíduo” - é capaz, por si só, de controlar sua vida afetiva, e tudo se passa como se a autolesão fosse uma maneira patológica e desadaptativa de regulação que deve ser desaprendida em prol de uma melhor. Ferenczi, por sua vez, não coloca o treinamento de técnicas de regulação como uma meta a ser perseguida; contrariamente, ao convocar o analista a “sentir com” o paciente, entende que o mais importante é o analista partilhar de sua dor, mas também do prazer e das demais funções que a autolesão desempenha ou pode vir a desempenhar na vida do sujeito - e isso não apenas por meio de palavras, mas também pelos seus afetos, pelo seu corpo. Se infligir um ferimento contra si mesmo acarreta uma dor que expressa, em última instância, um sentimento de revolta contra um mundo inóspito, o analista ser afetado por essa dor é uma maneira, talvez a única, de partilhar dessa revolta e reconhecer, por fim, aquilo que não foi reconhecido. É por essa via que se torna possível ao sujeito deixar de contar somente consigo próprio e passar a contar com o mundo - ou, ao menos, com um pequeno pedaço desse mundo: o analista.
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Este artigo foi desenvolvido com o auxílio de uma bolsa PNPD (Programa Nacional de Pós-Doutorado), concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes
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Citação/Citation: Câmara, L., & Canavêz, F. (2020, março). Contribuições de Sándor Ferenczi para o fenômeno da autolesão. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 23(1), 57-76. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n1p57.5
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Financiamento/Funding: Este trabalho recebeu apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (Brasília, DF, Br) / This work is supported by. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (Brasília, DF, Br).
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Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2020
Histórico
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Recebido
11 Mar 2019 -
Aceito
10 Dez 2019