Resumos
Este texto tenta discutir o lugar da voz na noção de chiffonnage ─ que Lacan esboça no seminário 24 ─ como uma direção da cura, ou, mais precisamente, uma in(ter)venção em direção ao sinthome. Trata-se de pensar a chiffonnage como uma in(ter)venção clínica com a voz, quer dizer, uma in(ter)venção que opera sobre a fonação, sobre a voz que é, no corpo, um real pulsional do fato que há um dizer. A voz aqui está para além do muro da palavra, em que é necessário quebrar o muro, chiffonner a palavra para fazer um outro uso que aquele para o qual ela é feita. Nessa operatória, é necessário fazer uma torção da voz para inventar um significante novo, um significante que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido.
Palavras-chave:
Chiffonnage; sinthome; voz; muro
This article discusses the place of the voice in the notion of chiffonnage -which Lacan sketches in Seminar 24 - as a direction of healing or, more precisely, an intervention towards the sinthome. Chiffonnage is understood as a clinical intervention using the voice, i.e., an intervention that operates on phonation, on the voice that is, in the body, an actual instinct of the fact that there is a saying. The voice here lies beyond the wall of the word, it requires breaking the wall, chiffonner the word to make a different use of it than the original one. This operation requires twisting the voice to invent a new signifier free of any meaning, as opposed to the actual one.
Key words:
Chiffonnage; sinthome; voice; wall
Cet article cherche à discuter la place de la voix dans la notion de « chiffonnage » - que Lacan va esquisser dans le Séminaire 24 - comme un élément de la direction de la cure ou, plus précisément, une intervention vers le sinthome. Il s´agit de penser le chiffonnage comme une intervention clinique avec la voix, c´est-à-dire, une intervention qu´on opère sur la phonation, sur cette voix qui est, dans le corps, un réel pulsionnel du fait qu´il y a un dire. La voix est au-delà du mur de la parole et il est nécessaire de casser le mur, de chiffonner la parole pour faire d’elle un autre usage que celui pour lequel elle a été faite. Pour y parvenir, il faut effectuer une torsion de la voix afin d’inventer un signifiant nouveau, un signifiant qui n´aurait, comme le réel, aucune espèce de sens.
Mots clès:
Chiffonnage; sinthome; voix; mur
Este texto intenta discutir el lugar de la voz en la noción de chiffonnage - noción esbozada por Lacan en su Seminario 24 - como elemento de la gestión de la cura o, más precisamente, como una intervención hacia el sinthome. Se trata de pensar en la noción de chiffonnage como una intervención clínica con la voz, es decir, una intervención que actúa sobre la fonación, sobre esta voz que es, en el cuerpo, una pulsión real del hecho de que hay un decir. Aquí, la voz supera el muro de la palabra, en que es necesario romper el muro, chiffonner la palabra para que cumpla otro uso diferente al uso para la cual fue hecha. En esta operación, es necesario hacer una torsión de la voz para inventar un nuevo significante, un significante que no tendría, como el real, ninguna especie de sentido.
Palabras claves:
Chiffonnage; sinthome; voz; muro
Chiffonnage: uma operação da voz
Lacan (1975-76/2005)Lacan, J. (2005). Le séminaire. Livre 23. Le sinthome. Paris, FR: Seuil. (Trabalho original publicada em 1975-76) dedicou boa parte de seu ensino trabalhando questões relativas à intervenção do analista. Em seus últimos seminários, notadamente a partir do Seminário 23, tratou de intervenções que se situam na clave real da experiência psíquica e não apenas intervenções contemplando os registros simbólicos e imaginários. Entre essas intervenções destacamos a chiffonnage, 1 1 Por ser um neologismo na língua francesa optamos por não traduzi-la para o português. apresentada na classe de 17 de maio de 1977 do Seminário 24: L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre, 2 2 Seminário inédito proferido por Jacques Lacan no ano de 1977. Nesse caso de ineditismo, a citação estará referida à data da aula do seminário. como a possibilidade de intervir sobre a palavra para dela extrair outra coisa que não o sentido. Trata-se, em nossa leitura, de abordar a chiffonnage como uma intervenção no real da voz que pode ecoar no corpo produzindo um outro efeito sobre o corpo que não o sintomático.
O que pretendemos salientar, e isso não é por acaso, é a maneira como Lacan opera com os restos vocálicos, com os jogos homofônicos, com as onomatopeias como forma de intervenção na clínica. Ele toca no elemento fônico, justamente nessa dimensão fonante da constituição pulsional do sujeito. Na referida classe do Seminário 24, Lacan esclarece que a operação de chiffonnage “consiste em se servir de uma palavra para fazer um outro uso que aquele pelo qual ela é feita” (Lacan, 17/05/77Lacan, J. (1977). Le séminaire. Livre 24. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre. (Seminário inédito).; tradução nossa). A palavra chiffonnage vem de chiffonner, que significa amarrotar, enrugar, [froisser], também significando comprimir, submetendo a uma pressão violenta. A utilização que Lacan faz do termo é uma referência ao modo do analista incidir na sessão, e essa incisão se faz através da voz e dos seus avatares, ou seja, as onomatopeias, homofonias, escanções, acentuações, aliterações, em que se trata de amarrotar a palavra, torcendo a voz para extrair outra coisa que não o sentido. Mais precisamente, numa incisão breve, repentina, o analista faz jorrar desse amarrotamento um significante novo, “um significante que não teria, tal como o real, nenhuma espécie de sentido [...] isso seria fecundo [...] um meio de sideração, em todo caso” (Lacan, 17/05/77Lacan, J. (1977). Le séminaire. Livre 24. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre. (Seminário inédito).). A chiffonnage tenta expropriar o sentido da palavra ao invés de dar-lhe outro, por isso essa intervenção na fonemática do sujeito, na clave da fonação, para fazer soar algo para além da consonância da linguagem. Lacan (1977)Lacan, J. (1977). Le séminaire. Livre 24. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre. (Seminário inédito). mostra uma chiffonnage ao transliterar unbewusst [inconsciente] em une-bévue [uma equivocação]. Aqui o sentido fica expropriado da palavra por esta estropiação, em que não se produz um outro sentido, mas um significante novo.
Trata-se então de uma operação em que a voz - com suas polifonias disfônicas, representativas dos ecos pulsionais da lalangue no corpo - funcionam como uma transgressão diante do sentido harmônico das palavras. A voz é a possibilidade de extração de um significante novo - que não é, em hipótese alguma, um novo significante, pois este seria mais um na série da cadeia linguageira. O significante novo faz um corte na seriação, um corte nessa cadeia da fala para instauração de um discurso outro. A chiffonnage como possibilidade de direção da análise tenta promover uma torção da voz para a produção de um significante novo, promovendo uma outra articulação do sujeito com o objeto a vocal. Não poderia ser essa operação (da chiffonnage) uma forma de intervenção, em que a voz incide na constituição subjetiva? Trata-se, neste texto, de pensar a chiffonnage como uma intervenção clínica com a voz, quer dizer, uma intervenção que opera sobre a fonação, sobre a voz enquanto um real pulsional, no corpo, do fato que há um dizer (Lacan, 1975-76/2007Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicada em 1975-76), p. 18). A voz aqui está para além do muro da palavra, em que é necessário chiffonner a palavra para fazer um outro uso que aquele para o qual ela é feita. Nessa operatória, a voz tem um lugar importante, pois é necessário torcê-la para extrair um significante novo, “um significante que não teria, como o real, nenhuma espécie de sentido” (Lacan, 17/05/77Lacan, J. (1977). Le séminaire. Livre 24. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre. (Seminário inédito).).
A chiffonnage e a violência com a linguagem
A chiffonnage, no caso, é tratada como um forçage, pois é uma violência na e da linguagem. O termo forçage tenta produzir um significante desatrelado de sentido. No Seminário 24, Lacan (19/04/77)Lacan, J. (1977). Le séminaire. Livre 24. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre. (Seminário inédito). aponta que “é o forçage por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que o sentido”, pois o sentido obstrui e o forçage abre, rompe, quebra. O termo forçage não possui inscrição no léxico da língua portuguesa, a sua aproximação com forçamento perde a riqueza de sua potência. Em francês, forçage significa: “Cultura de plantas antes da estação” (Morvan, 1995Morvan, D. (1995). Forçage. In D. Morvan (Dir.), Le Robert Mini (p. 305). Paris, FR: Dictionnaires Le Robert., p. 305; tradução nossa), também pode ser entendido como fora da estação ou num lugar inapropriado. Talvez essa intradução do termo soe bem condizente com a proposta do Seminário 24, em que se aposta na intradução como forma de uma transliteração, para além da tradução, e de tomar o significante ao pé da letra. Trata-se de conceber o termo forçage na sua violência da, na e com a linguagem, roçando o sem sentido de pontas de um real impossível de ser simbolizado. Essa forçage se faz fundamentalmente na voz, na medida em que a voz provoca a violência da linguagem, uma vez que a voz é um real sonoro que provoca um turbilhão na fala.
Lacan trabalha um além da palavra, marca os limites da interpretação que são ultrapassados por um saber fazer da ordem de um, ou como um, forçage que promove uma violência da e na linguagem, estropiando ali com a metáfora sintomática, com a linguagem fálica do sintoma. Trata-se de estropiar a palavra, apostando que toda palavra é valise, em que há diversas palavras/significantes dentro dessa mala. É necessário violentá-la, provocar alguma torção na voz, para enxotar o sentido que serve ao gozo sintomático - a jouissance (jouis-sens), o gozo com o sentido do sintoma. O forçage é aquilo que tenta quebrar, com a violência da linguagem, com o real da língua, a metáfora sintomática, e transformar o gozo fálico do sintoma em um gozo produtivo, um gozo da vida. O sintoma que foi produzido pela linguagem será quebrado na forja da linguagem, através do amarrotamento da voz. Lacan (1975-76/2007)Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicada em 1975-76) mostra que “é por estar engajado na linguagem que o sintoma subsiste, ao menos se julgamos poder modificar alguma coisa no sintoma pela manipulação dita interpretativa, isto é, jogando com o sentido” (p. 39).
Essa violência da linguagem é apontada por Roberto Harari (2007)Harari, R. (2007). Palabra, violencia, segregación y otros impromptus psicoanalíticos. Buenos Aires, AR: Catálogos. em seu livro Palabra, violencia, segregación y otros impromptus psicoanalíticos, ao mostrar que Joyce promove uma outra escrita com a língua a partir do sonoro. É isso que Harari tenta enfatizar, pois para ele, na clínica, trata-se de fazer a língua ecoar outra coisa. A violência da linguagem promove um ato, um forçage que insiste na transliteração da letra, na transgressão do significante e no eco da voz como forma de esvaziar o sentido da interpretação para produção do sinthome e uma quebra da metáfora sintomática. Para além da interpretação, trata-se de saber fazer ali com aquilo que gerava o sintoma para que possa gerar algo de um sinthome.
O forçage e a chiffonnage parecem apontar para uma violência com a linguagem, em que a voz tem uma função fundamental, a saber, desde uma posição real, cair como objeto do gozo do Outro. A voz precisa deixar de ser um real, cair como um objeto a, para que a fala, oriunda da cadeia linguageira inconsciente, possa advir. Forçage e chiffonnage são conceitos desenvolvidos por Lacan em seus últimos seminários. É sobretudo a partir do Seminário 23 que essas noções tomam corpo e orientam uma direção da análise. Contudo, não podemos esquecer que Lacan era freudiano, e isso significa dizer que Freud, de algum modo, já havia feito, sem o saber, uma chiffonnage em suas intervenções, como veremos mais adiante.
A intervenção analítica, ao retomar essa violência com a linguagem, ao realizar o forçage, tenta desfazer com a violência da linguagem aquilo que foi forjado na violência com a linguagem. Em outras palavras, aquilo que foi feito na forja da chiffonnage será desfeito igualmente na mesma forja. Por isso mesmo, dissemos que a psicanálise só pode trabalhar com um já dito, com o já acontecido, não sendo possível, ao modo das psicologias, fazer prevenções, recomendações, premeditações, previsões. Trata-se, na psicanálise, de um já acontecido.
Uma in(ter)venção na voz
Para tentar ilustrar o que estamos tentando demonstrar, trago uma pequena vinheta clínica que pretende marcar uma passagem em torno da chiffonnage como um corte através da torção da voz e a instauração de um discurso outro. Através do amarrotamento da voz, em suas torções e avatares, pode-se provocar uma outra in(ter)venção. Trata-se de um jovem de 18 anos encaminhado para análise pelos pais. A queixa dos pais era que o filho não se interessava por nada: não gostava de estudar, não queria trabalhar, não tinha namorada, não saía de casa, ficava apenas jogando no computador. Na primeira entrevista com o jovem, ele diz que gosta mesmo de game. No entanto, ao pronunciar a palavra inglesa, acentua fortemente o primeiro vocábulo. Na escuta chiffonnada do analista, isso parece soar homofonicamente a um outro termo da língua inglesa, gay ou um neologismo: gay-me. O analista, em sua intervenção, somente reproduz a vocalização da frase dita pelo jovem: “Gosta de ga-me!” mantendo a mesma acentuação fonética e também jogando com a homófona e inventiva expressão gay-me. O paciente, ainda não analisante, lança um olhar de surpresa sobre o analista, arregalando os olhos ao escutar o eco de sua própria enunciação. Podemos inclusive citar a conhecida passagem de Lacan (1953/1998)Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise. In Escritos. (pp. 238-324). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicada em 1953) em que “o emissor recebe do receptor sua própria mensagem sob forma invertida” (p. 299). Trata-se da “inversão” de sua voz, do eco de sua própria fonação que retorna para o sujeito, que recebe do Outro sua mensagem sob a forma invertida e inventiva. Erik Porge (2015)Porge, E. (2015). As vozes, a voz. In M. E. Maliska (Org.), A voz na psicanálise: suas incidências na constituição do sujeito, na clínica e na cultura (pp. 21-45). Curitiba, PR: Juruá. mostra, nesse sentido, que a pulsão invocante percorre o grafo das pulsões e retorna ao sujeito após uma torção no nível do Outro que ouve, e isso faz com que o sujeito receba sua mensagem sob a forma invertida. O analista é esse Outro que promove essa torção da voz, que faz a mensagem tornar-se invertida e inventiva.
O analista pergunta ao analisante por que ele arregala os olhos quando ouve da boca do analista a palavra game/gay-me. Numa resposta que tenta desconversar, ele simplesmente diz: “Não, por nada!”. Depois de algumas entrevistas, e de muita inibição, declara que sente um forte desejo sexual por homens, que não sente nada por moças e que gosta de rapazes, apesar de nunca ter tido uma experiência homossexual; tampouco, é claro, havia tido uma experiência heterossexual. Enfim, ele gostava de gay-me. Diante disso, parece ser claro a queixa dos pais de que ele não se interessava por nada que não fossem jogos no computador. Ele não conseguia demonstrar seus verdadeiros desejos (sexuais); diante disso, apagava todos os outros desejos e interesses, aparentando certa apatia ou desinteresse por quase todas as coisas da vida, salvo o game/gay-me. Diante desse desinteresse alarmante, surge a preocupação dos pais. O jogo homofônico, que aparece já na primeira entrevista, mostra o amarrotamento da palavra e a emersão da homofonia. Mostra como essa violência da linguagem pode, via chiffonnage, trazer à tona a questão central do fantasma e do desejo do sujeito como fio condutor da direção da análise e da constituição do sujeito.
Fazer a palavra soar ao pé da letra através dessa torção da voz aponta para uma in(ter)venção em análise que faz com que as palavras não representem apenas significados, mas que possa ser enrugada e estendida, para que a letra venha à tona como forma de tilintar uma outra coisa, ecos de uma voz que não cessa de não se inscrever. Nessa torção da voz pode surgir um significante novo, que não é qualquer significante, mas um significante que possa representar o sujeito para um outro significante, instaurando um discurso outro. Um significante novo não é a mesma coisa que um novo significante, pois este é mais um na cadeia da fala, está em continuidade na linguagem. Já o significante novo é aquele que coloca um limite, faz um corte e instaura um discurso outro. Um dos propósitos de Lacan, no Seminário 23, é tomar Finnegans Wake como um artifício joyceano capaz de mostrar a operação com a voz e a letra no campo da prática psicanalítica. Em outras palavras, Lacan toma Finnegans para mostrar o que Joyce fez com a(s) língua(s); é o que o analista pode fazer com a fala do sujeito em análise. Em suma, Lacan (1975-76/2007)Lacan, J. (2007). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicada em 1975-76) recomenda: “Leiam esse livro [Finnegans], não há uma única palavra nele que não seja feita [...] de três ou quatro palavras que, pelo seu uso, faíscam, cintilam. Sem dúvida, é fascinante, ainda que, na verdade, o sentido, [...] aí se perca” (p. 160). O cintilar da palavra é uma operação com a voz, é apostar que em cada sujeito há um ser de balbucio, para utilizar a expressão de Pascal Quignard (1969)Quignard, P. (1969). L’être du balbutiement: Essai sur Sacher-Masoch. Paris, FR: Mercure de France., que vocaliza, sopra, suspira, muito mais do que fala. Nas palavras de Harari (2003a)Harari, R. (2003a). Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le sinthome de J. Lacan. Salvador, BA/Rio de Janeiro, RJ: Ágalma/Companhia de Freud. “à insistência acerca de que importam, para o analista, os balbucios, e não a linguagem estruturada” (p. 151). Ou, ainda, “antes do que (se diz), importa ‘a música’ do que se diz” (p. 161), entendendo que esta musicalidade é encarnada na voz do que se diz.
Retomando a citação acima de Lacan sobre o Finnegans, pode-se depreender: (i) que em cada palavra pode haver várias, ou seja, toda palavra pode ser valise [mala]; (ii) que o uso das palavras fazem-nas faiscar; e (iii) que o sentido fica perdido. Tomando esses três pontos como “recomendações” aos analistas no exercício da psicanálise, pode-se analisar cada um desses pontos. Retomemos, para isso, o termo “gay-me” considerando que há nele uma palavra-valise;3 3 O termo palavra-valise não está, necessariamente, sendo utilizado em seu sentido clássico, aquele inaugurado por Lewis Carroll (1999) e desenvolvido por Deleuze (2000) na Lógica do sentido, em que ela representa a formação de uma palavra a partir de outras duas ou três. Aqui se trata somente de demonstrar como toda palavra pode ser uma valise [mala], em que há outras palavras dentro dela. abrindo-a, podemos tirar: games; gay; gay-me (tal como em excuse-me [desculpe-me], o falante se faz desculpar; aqui, o sujeito se faz gay); gay-me (também no sentido de um pronome pessoal oblíquo e/ou um pronome reflexivo); gay-miss e miss gay (no caso em questão, o sujeito falava muito, quase repetidamente, dos games, e se repetirmos a palavra games por várias vezes seguidas, teremos, como efeito sonoro, gay-miss e miss gay).
A palavra miss já é extremamente polissêmica, pois pode significar: fracasso, falha, sentir saudades, sentir falta, errar, perder, não encontrar, não entender, não escutar, senhorita; ou seja, há aí uma palavra-valise, pois há muitas palavras dentro dela, basta abri-la como se abre uma mala e começar a tirar as palavras de dentro dela. Todos esses significados possuíam relação com o sujeito do presente caso, pois fracasso, falha, errar, perder possuem relação com os jogos [games] e também com os fracassos na sua própria vida, dada sua “apatia” frente a ela. Já sentir falta, sentir saudade poderia estar relacionado, por hipótese, a sentir falta da relação (homossexual), como uma senhorita que sente falta da relação sexual.
De igual forma, o termo gay também é polissêmico, pois pode significar: homossexual, vistoso, brilhante, alegre. Desses significados, destacam-se, evidentemente, o homossexual - ou, por escansão homofônica, homem sexual que ele não era, na medida em que não exercia nenhuma sexualidade, seja homo ou hetero. Sua sexualidade estava escondida atrás dos jogos eletrônicos - que tem a ver com o caso em questão, mas também alegre, pois gay pode ter relação com joy e Freude (em alemão), de modo que pode haver um deslizamento de gay para joy, de alegre para gozo. Em resumo, o termo gay, escutado homofonicamente na palavra game, também pode apontar para o gozo do analisante; neste sentido, um gozo restrito aos jogos eletrônicos, em que nada mais lhe interessava. Seu gozo estava no game, já que o gozo que poderia obter com(o) gay não podia vir à tona, então, precisava se restringir aos games e nada mais. Esse gozo restrito aos games e nada mais poderia se tornar um gozo gay-me mais, ainda? O decorrer dessa análise, infelizmente, colocou limites nessa direção.
O fragmento em tela mostra como o uso das palavras faz com que elas tilintem, pois é um uso excessivo e repetitivo de games que se pode escutar gay miss e miss gay, por exemplo. É num atrito sonoro que as palavras largam faíscas produzindo um outro som, desabonado do sentido. Aí está uma forma de fazer violência com a linguagem, escutando-a em sua fonação. O tilintar da palavra games quebra com o seu sentido original, aquele referente aos jogos eletrônicos, e no lugar desse sentido fechado e único vem uma polissemia polifônica, em que os sentidos são dissipados nas fonias. Não se trata da construção de outros sentidos, como pode parecer no fragmento, mas das dissipações desses sentidos em muitos outros, como uma quebra com o game, como forma de tirar o sujeito desse único e “espetacular” universo.
Pode-se considerar que essa torção da voz não é necessariamente um fazer clínico dos últimos Lacan, pois algo dessa violência já estava presente na clínica de Freud (1909/1996a). Podemos citar o caso do “Homem dos Ratos”, que em suas orações rogava o nome de Gisela seguido da expressão Amém, e isso era repetido de forma incessante, tal como: Gisela - Amém, Giselamém, Giselamém, até chegar num enrugamento da palavra Giselasamen e Giselasêmen. Nessa chiffonnage a voz faz surgir um significante novo como um efeito de sua torção, em que surge um significante que não é oriundo do discurso, mas desse achatamento do som, ao modo das crianças que criam e brincam de forma inventiva repetindo o som de uma mesma palavra até que ela perca o seu sentido, ou que o término da palavra faça coalescência com o início da mesma. Nesse achatamento da chiffonnage, a palavra perde seu estatuto simbólico e um real toma conta. Se um significante novo entra para compor a cadeia significante, ele provoca quebra e ruptura no discurso emanado dessa cadeia. No fragmento clínico exposto anteriormente, essa quebra no discurso aparece com o significante (novo) gay-me, algo que se confirma diante do olhar de surpresa do paciente sobre o analista ao escutar um espelho de sua própria fonação. Nesse ponto, não se trata de uma construção em análise, interpretação, de uma argumentação ou de qualquer outra intervenção explicativa ou interpretativa, mas de um ato analítico que coloca uma posição implicativa ao provocar o rompimento com o sentido adormecedor e com a palavra apaziguadora. O significante novo perturba, irrompe, quebra a sonífera cadeia discursiva. No exemplo do “Homem dos Ratos”, esse significante novo mostrava a relação do sujeito com o seu desejo sexual para com Gisela.
Na obra de Freud há muitos outros exemplos clínicos que podem ser lidos, a posteriori, a partir de Lacan, como uma chiffonnage. Para citar mais um fragmento, pode-se notar a maneira como Freud (1927/1996b)Freud, S.(1996b). Fetichismo. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXI). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicada em 1927). escuta o “brilho do nariz” no caso ilustrado no texto “Fetichismo”. Freud promove uma translinguisticidade,4 4 Trata-se de uma escuta que atravessa mais de uma língua, em que pelas polifonias dos termos, e não pelas polissemias, é possível surgir um significante novo, que não possui necessariamente relação semântica com o anterior. Através do som de um vocábulo pode-se escutar outra coisa que não a tradução semântica daquele termo. não o escutando em alemão: “Glanz auf der Nase”, mas em inglês, a língua materna esquecida do paciente: “Glance at the nose”. O “brilho do nariz” (tradução da expressão alemã) era na realidade “vislumbre do nariz” (tradução da expressão inglesa), e isso fazia toda a diferença, pois se tratava de um fetiche originado na primeira infância, consequentemente, na língua inglesa esquecida pelo paciente. Além disso, vislumbre do nariz representava o vislumbre do pênis, na medida em que este entrava como um substituto fálico para a ausência de pênis na mulher. O nariz, e o seu vislumbrante brilho, era um fetiche, um objeto colocado no lugar da castração, como forma de denegá-la. A esta escuta polifônica e translinguística de Freud, Rosolato como citado em Harari (2003b)Harari, R. (2003b). As dissipações do inconsciente. Porto Alegre, RS: CMC. acrescenta homofonicamente que glans, em latim, significa glande, ou seja, mais uma alusão ao pênis, e o nariz como um fetiche.
O que queremos demonstrar com esses exemplos, seja esses de Freud ou aquele de nossa prática clínica, é que a voz, nesses casos, derruba o muro da palavra e, nesse sentido, está para além da palavra. Se no autismo, por exemplo, a voz é o muro - no sentido de um bloco monolítico que não permite as articulações e fluências da linguagem - e frente a esse muro a linguagem deve atravessar, romper ou derrubar; na neurose, a linguagem é o muro - no sentido de solidificar o significante, de cristalizar o sintagma, sedimentar a fala e endurecer a palavra - frente a esse muro da linguagem, a voz deve atravessar, romper, derrubar, para que possa estar para além do muro da palavra. A chiffonnage parece ser a operação possível em que a voz pode fazer soar outra coisa que o sentido harmônico e consoante da linguagem estruturada, atravessando o muro da palavra.
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Por ser um neologismo na língua francesa optamos por não traduzi-la para o português.
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Seminário inédito proferido por Jacques Lacan no ano de 1977Lacan, J. (1977). Le séminaire. Livre 24. L’insu que sait de l’une bevue s’aile a mourre. (Seminário inédito).. Nesse caso de ineditismo, a citação estará referida à data da aula do seminário.
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O termo palavra-valise não está, necessariamente, sendo utilizado em seu sentido clássico, aquele inaugurado por Lewis Carroll (1999)Carroll, L. (1999). Alice no país das maravilhas. Porto Alegre, RS: L&PM. e desenvolvido por Deleuze (2000)Deleuze, G. (2000). Lógica do sentido. São Paulo, SP: Perspectiva. na Lógica do sentido, em que ela representa a formação de uma palavra a partir de outras duas ou três. Aqui se trata somente de demonstrar como toda palavra pode ser uma valise [mala], em que há outras palavras dentro dela.
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Trata-se de uma escuta que atravessa mais de uma língua, em que pelas polifonias dos termos, e não pelas polissemias, é possível surgir um significante novo, que não possui necessariamente relação semântica com o anterior. Através do som de um vocábulo pode-se escutar outra coisa que não a tradução semântica daquele termo.
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Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Abr 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2021
Histórico
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Recebido
06 Fev 2020 -
Aceito
14 Out 2020