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Um estudo comparativo entre as teorias de Klein e Winnicott: analisando o conceito de fantasia1 1 Trabalho realizado com o financiamento concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

A comparative study between Klein and Winnicott theories: analyzing the concept of fantasy

Une étude comparative entre les théories de Klein et de Winnicott : analyse du concept de fantasme

Un estudio comparativo entre las teorías de Klein y Winnicott: analizando el concepto de fantasía

Pretende-se, neste artigo, levantar algumas considerações acerca do conceito de fantasia, elaborado por Melanie Klein e expandido por Donald Winnicott, na tentativa de propor uma possível comparação teórica entre essas duas linhagens da psicanálise. Para tanto, apresentamos, ainda que de maneira breve, a concepção de desenvolvimento psíquico para esses dois autores, enumerando algumas aproximações e afastamentos. Por fim, apontamos as vantagens desse tipo de pesquisa comparativa e as suas respectivas dificuldades, destacando os aspectos que assinalam a singularidade da noção de fantasia no pensamento kleiniano e winnicottiano, assim como sua utilidade na narração de exemplos clínicos.

Palavras-chave:
Melanie Klein; Winnicott; fantasia; elaboração imaginativa; clínica


Resumos

In this article, we intend to raise some considerations about the concept of fantasy, elaborated by Melanie Klein and expanded by Donald Winnicott, aiming at proposing a possible theoretical comparison between these two branches of psychoanalysis. For this purpose, we briefly present the concept of psychic development of these two authors and list some similarities and differences. Finally, we point out the advantages and difficulties of this type of comparative research, highlighting the aspects that characterize the uniqueness of the notion of fantasy in Kleinian and Winnicottian thought, as well as its usefulness in the narration of clinical examples.

Key words:
Melanie Klein; Winnicott; fantasy; imaginative elaboration; clinical

Cet article soulève quelques considérations sur le concept de fantasme développé par Melanie Klein et élargi par Donald Winnicott, dans le but de proposer une comparaison théorique possible entre ces deux lignes de psychanalyse. Pour ce faire, nous présentons, bien que brièvement, le concept de développement psychique chez ces deux auteurs, en énumérant quelques similitudes et différences. Enfin, nous soulignons les avantages de ce type de recherche comparative et ses difficultés respectives, en mettant en évidence les aspects qui soulignent l’unicité de la notion de fantasme dans la pensée kleinienne et winnicottienne, ainsi que son utilité dans la narration d’exemples cliniques.

Mots clés:
Melanie Klein; Winnicott; fantasme; élaboration imaginative; clinique


En este artículo, se pretende plantear algunas consideraciones sobre el concepto de fantasía, elaborado por Melanie Klein y ampliado por Donald Winnicott, en un intento de proponer una posible comparación teórica entre estas dos corrientes del psicoanálisis. Para ello, se presenta brevemente la concepción del desarrollo psíquico de estos dos autores, enumerando algunas semejanzas y diferencias. Finalmente, se señalan las ventajas de este tipo de investigación comparativa y sus respectivas dificultades, con foco en los aspectos que marcan la singularidad de la noción de fantasía en el pensamiento kleiniano y winnicottiano, así como su utilidad en el uso de ejemplos clínicos.

Palabras clave:
Melanie Klein; Winnicott; fantasía; elaboración imaginativa; clínica


A fantasia kleiniana

As primeiras experiências corporais começam acumulando as pri- meiras recordações, e as realidades externas são progressivamente incluídas na contextura da fantasia. Não tardará que as fantasias da criança sejam capazes de apoiar-se tanto em imagens plásticas como em sensações — imagens visuais, auditivas, cinestésicas, táteis, gustativas, olfativas etc. E essas imagens plásticas e representações dramáticas da fantasia são progressivamente elaboradas, a par das percepções articuladas do mundo externo. (Isaacs, 1952/1969, p. 107;Isaacs, S. (1969). A natureza e a função da fantasia. In M. Klein, P. Heimann, S. Isaacs, & J. Rivière. Os progressos da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1952). itálicos nossos)

Melanie Klein foi a grande precursora da psicanálise com crianças, mas não somente. Ela também foi responsável, dentre outras coisas, por cunhar o termo phantasia na história do movimento psicanalítico. “O PH inicial vem sublinhar como os kleinianos entendem a phantasia ou o phantasma, que são sempre inconscientes, nada tendo em comum com o devaneio ou com o sonho diurno” (Prado, 2021, p. 200;Prado, L. E. (2021). Impasse e solução: controvérsias entre Anna Freud e Melanie Klein, origens do Middle Group. Revista brasileira de psicanálise, 55(3), 191-205. itálicos nossos). Porém, as traduções brasileiras apagam essa diferença essencial da proposta kleiniana. “Consultado, Elias Mallet da Rocha Barros justifica esse erro por simples problema com a gráfica, que corrigiu PH por F, e os editores ulteriores mantiveram o erro, perpetuando o engano entre os kleinianos brasileiros” (Prado, 2021, p. 200)2 2 Levando em consideração as citações dos textos kleinianos em língua portuguesa que utili zaremos aqui, e para não ter de ficar corrigindo a tradução do termo o tempo todo, manteremos o vocábulo “fantasia” ao longo do texto, para nos referirmos ao conceito de Klein. No entanto, a diferença no sentido semântico (grafias com ph e f) deve ser considerada conforme a citação do trabalho de Prado (2021). .

A definição desse conceito ampliou os limites da nossa prática clínica, possibilitando uma maior compreensão do mundo interno e, por conseguinte, das novas formas de adoecimento psíquico — como as psicoses e o transtorno borderline. Sendo assim, nessa parte inicial do trabalho, iremos definir a noção kleiniana de “fantasia”.

Para Klein, desde muito cedo, ocorrem o que podemos nomear de relações de objeto — inicialmente, entre o ego prematuro do lactente e o seio materno. Partindo dessa premissa, ela pressupõe a existência de uma possível triangularidade nos primórdios da vida — os “estágios iniciais do conflito edipiano” (Klein, 1928/1996bKlein, M (1996b). Estágios iniciais do conflito edipiano. In Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. (André Cardoso, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1928).). No entanto, é relevante destacar que essas relações objetais se dão, nesse período inicial, com objetos parciais, pois, para Klein, o primeiro mecanismo de defesa utilizado pelo psiquismo do bebê é a cisão (splitting). Explicamos melhor: diante das angústias provocadas pelo intenso trabalho do instinto de morte que, na teoria kleiniana, é de natureza constitutiva, o frágil ego do bebê (ainda primitivo e dotado de poucos recursos) se estilhaça, projetando para fora os aspectos maus. Esse fenômeno acaba “tingindo” o ambiente, que passa a ser assimilado pelo recém-nascido como algo ruim.

À medida que a criança recebe os cuidados maternos de amor e gratificação, ela sente o ambiente — ou o seio conforme Klein denominou originalmente — como algo bom, introjetando esses aspectos bondosos no interior do seu psiquismo. Assim, na origem da vida, a mãe (o ambiente e/ou figura cuidadora) é sentida pelo bebê como sendo dois objetos totalmente dissociados e incomunicáveis entre si: uma mãe boa e outra má. Trata-se, pois, da consagrada metáfora kleiniana relacionada ao seio bom e ao seio mau que, infelizmente, ainda é pouco compreendida no campo psicanalítico.

Todos esses fenômenos acontecem, predominantemente, na esfera intrapsíquica — embora envolvam uma interação com o mundo externo. Eles se originam dentro da psique da criança, sendo fruto das suas projeções e introjeções. Por isso que, para Klein, a realidade exterior será sempre “manchada”, em decorrência da ação desses movimentos — o que não invalida, de forma alguma, a importância do ambiente para a constituição da subjetividade humana (desenvolveremos essa temática mais adiante).

Essa, portanto, é a espinha dorsal do conceito de fantasia. Para a autora, tudo será fantasia — incluindo as ações dos mecanismos de defesa. Na teoria kleiniana, as fantasias inconscientes estão subjacentes a todos os processos mentais; são representações psíquicas dos acontecimentos somáticos e, desde o início, envolvem sensações físicas advindas das relações objetais — ou seja, da constante interação entre o ego e o mundo externo.

No seu clássico Dicionário do pensamento kleiniano, Robert Hinshelwood (1992)Hinshelwood, R. D. (1992). Dicionário do pensamento kleiniano. Artes Médicas., assinala que as fantasias inconscientes são transformadas por duas maneiras: 1) pela mudança através do desenvolvimento dos órgãos dos sentidos para a percepção subjetiva — ou seja: do corpo para o psíquico; e 2) pelo surgimento do mundo simbólico da cultura, a partir do próprio corpo — isto é: a importância do soma para a produção cultural (intersubjetividade)3 3 Como um artesão que cria um vaso ou uma escultura, a partir de suas percepções corporais. Aliás, toda e qualquer produção humana apresenta traços somáticos (embora fundamentalmente inconscientes). . Logo, as fantasias podem ser elaboradas para alívio dos estados internos da mente, quer pela manipulação corporal e suas sensações, quer pelo fantasiar direto. Dito de outra forma, a fantasia é a expressão mental dos instintos e, também, dos mecanismos de defesa erigidos contra a intensidade dessas forças instintuais.

Essa é uma das características fundamentais que assinalam a singularidade do pensamento de Klein quando o comparamos com o arcabouço freudiano. A fantasia aparece, no contexto da obra de Freud, de modo explícito, em 1905, no relato do caso Dora, e, mais precisamente, no ensaio “As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”, de 1908, em que o autor defende que as fantasias são inconscientes o tempo todo, mas que a maioria delas existe primeiro como devaneios, ou seja, como fantasias conscientes que são recalcadas (Verdrängung), passando pela via da representação para o inconsciente.

Outro aspecto que precisamos salientar é o fato de que, para Freud (1924/2011b)Freud, S. (2011b). A dissolução do complexo de Édipo. In Obras completas (v. 16; Paulo César de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924)., o complexo de Édipo ocorrerá por volta dos quatro anos de idade, quando o menino se “apaixona” pela mãe e se volta contra o pai; ou, o contrário: quando a menina se “enamora” pelo pai e passa a rivalizar com a mãe. Tais impasses afetivos serão resolvidos por meio do não ou de um significante capaz de impedir a realização do desejo incestuoso, representante da castração simbólica — a instituição da lei que, mais tarde, irá resultar na formação do superego.

Contudo, convém recordar que, em 1923, com o desenvolvimento da “Segunda Tópica”, apresentada no texto “O Eu e o Id”, Freud reafirma a importância filogenética da constituição superegoica: “Graças à história de sua formação, o ideal do Eu tem amplos laços com a aquisição filogenética, a herança arcaica do indivíduo” (Freud, 1923/2011a, p. 46;Frreud, S. (2011a). O Eu e o Id. In Obras completas (v. 16; Paulo César de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923). itálicos nossos). Como sabemos o “ideal do Eu” será a base da fundação do superego freudiano, instaurando a moralidade ao fim do complexo de Édipo.

De modo análogo, ao observar crianças muito pequenas, Klein notou que, diferente do que Freud postulava, o “conflito edipiano” pode ser identificado desde os momentos mais arcaicos da vida do bebê.4 4 É importante destacar que Klein não discorda de Freud quanto ao início do complexo de Édipo nos moldes em que o autor o delineia. Ela apenas nos dirá que os conflitos edipianos irão ocorrer muito antes do prazo estipulado por ele, mas o seu auge como um fenômeno ambivalente, determinante da sexualidade genital, acontecerá no mesmo período assinalado por Freud (por volta dos 4 ou 5 anos). O complexo edipiano precoce tem a ver com a equivalência simbólica originária entre “seio” e “pênis”, criando já desde muito cedo uma triangulação que envolve mãe e pai como objetos parciais, diante dos ciúmes e rivalidades infantis. Para a autora, esse fenômeno ocorre de uma maneira bastante confusa e desorganizada, pois os primórdios do psiquismo são marcados pelo que ela chamou de “posição esquizoparanoide”. Portanto, por mais que haja uma triangulação nesse período inicial, ela incide com objetos parciais em meio a um cenário altamente persecutório. Somente mais tarde, quando a criança alcança a “posição depressiva”, percebendo que o objeto cuidador é o mesmo objeto que frustra, o sentido de realidade começa a predominar, surgindo as relações com objetos totais — assim, aquilo que antes era “dividido” em seio bom e seio mau, passa a ser visto como um único e mesmo seio portador das duas características simultâneas. Essa descoberta exige do indivíduo certo grau de maturidade para lidar com a ambivalência, ao encarar a culpa de ter “danificado” (em fantasia) o objeto amado.

Baseando-se em sua observação clínica minuciosa, Klein percebeu que o bebê possuía um superego em plena atividade, muito antes dos quatro ou cinco anos de idade — divergindo da constatação freudiana. Para chegar a essa conclusão, ela foi se dando conta de que alguma coisa atormentava a criança, ainda no seu desenvolvimento mais precoce: sentimentos de culpa (posição depressiva) e perseguição (posição esquizoparanoide) foram amplamente estudados pela autora. Vejamos:

Os efeitos desse superego infantil sobre a criança são semelhantes aos que o superego exerce sobre o adulto. No entanto, eles são um fardo bem mais pesado para o ego infantil, mais fraco que o do adulto. Como nos ensina a análise de crianças, conseguimos fortalecer esse ego quando o procedimento analítico põe um freio nas exigências excessivas do superego. (...) Contudo, quando libertamos o ego da criança pequena da neurose, ele consegue enfrentar perfeitamente as exigências que encontra na realidade — exigências que ainda são bem menos sérias do que aquelas feitas aos adultos. (Klein, 1926/1996a, p. 158;Klein, M. (1996a). Princípios psicológicos da análise de crianças pequenas. In Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. (André Cardoso, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1926). itálicos nossos)

Esses aspectos do desenvolvimento primário, que não foram devidamente explorados por Freud, são indispensáveis para pensarmos a dinâmica do funcionamento das fantasias inconscientes. Com efeito, para compreender a natureza e a função da fantasia na vida mental, é necessário um estudo detalhado das fases iniciais da vida humana, sob a ótica de Klein.

Susan Isaacs (1885-1948), uma grande psicanalista kleiniana, formulou o conceito de fantasia inconsciente de maneira muito clara e consistente. Em um longo ensaio, apresentado em 1943 e publicado, numa versão ampliada, em 1952, chamado “A natureza e a função da fantasia”, ela afirma que um dos grandes equívocos da psicanálise consiste em assinalar um contraste entre fantasia e realidade. Esse gesto, segundo a autora, subestima a importância dinâmica da fantasia, que aparece tanto em quadros mais neuróticos, quanto em psicóticos. A diferença entre normal e patológico reside, portanto, na maneira como as fantasias inconscientes são tratadas e os processos psíquicos por meio dos quais elas são trabalhadas e transformadas.

Desse modo, as fantasias são representantes mentais dos instintos. “Não existe impulso, nem ímpeto, ou reação instintivos, que não sejam experimentados como ‘fantasia’ inconsciente” (Isaacs, 1952/1969, p. 96;Isaacs, S. (1969). A natureza e a função da fantasia. In M. Klein, P. Heimann, S. Isaacs, & J. Rivière. Os progressos da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1952). itálicos nossos). No decorrer do amadurecimento infantil, a fantasia se converte também num meio de defesa contra as ansiedades, uma forma de inibir ou controlar os impulsos instintivos, assim como uma expressão legítima dos desejos reparadores. A seguir, compartilhamos uma citação de Isaacs que resume bem o sentido desse conceito kleiniano:

As fantasias primárias, as representantes dos mais antigos impulsos de desejo e agressividade, são expressas e tratadas por processos mentais muito distantes das palavras e do pensamento relacional consciente, e determinadas pela lógica da emoção. Num período anterior, elas podem, sob determinadas condições (por vezes, no brincar espontâneo das crianças, outras vezes, só na análise), tornar-se capazes de expressão em palavras. Há provas abundantes para mostrar que as fantasias estão ativas na mente muito antes do desenvolvimento da linguagem e que, mesmo no adulto, continuam operando a par e independente das palavras. (pp. 102-103)

Sendo assim, na infância e na vida adulta, vivemos e sentimos, fantasiamos e atuamos muito além dos nossos significados verbais. Sabemos que a expressão artística, por exemplo, como as pinturas, os desenhos, as esculturas, as danças etc., podem representar uma infinidade de significados implícitos. Também na vida social, as expressões faciais, o tom de voz e uma série de gestos sem palavras, representam fenômenos percebidos, imaginados e sentidos, que são a base da experiência. “As palavras são um meio de referência à experiência, real ou fantasiada, mas não são idênticas a ela nem a substituem” (Isaacs, 1952/1969, p. 103Isaacs, S. (1969). A natureza e a função da fantasia. In M. Klein, P. Heimann, S. Isaacs, & J. Rivière. Os progressos da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1952).).

Na intenção de tornar a nossa explicação mais didática, compartilhamos, de modo sintetizado, um caso narrado por Susan Isaacs nesse mesmo artigo de 1952. Trata-se de uma menina de um ano e oito meses, com a fala ainda pouco desenvolvida, que viu um sapato da sua mãe, cuja sola se desprendera e ficara pendente. A criança ficou assombrada com a cena e gritou com terror. Durante uma semana, a garotinha encolhia-se e procurava fugir, aos berros, sempre que via a mãe calçando quaisquer sapatos. Com o passar do tempo, a criança esqueceu seu terror e deixou que a mãe usasse sapatos. Aos dois anos, porém, ela subitamente perguntou à mãe: “Onde estão aqueles sapatos quebrados?”. A mãe respondeu apressadamente — temendo outra crise de angústia da filha — que os jogara fora, e a criança comentou, então: “Eles poderiam comer-me toda!” (p. 104).

Com base no referencial kleiniano, é possível que aquele sapato com a sola despregada tenha sido visto pela criança como uma boca ameaçadora e, por isso, ela reagiu ao mesmo com bastante terror, embora a fantasia ainda não pudesse ser traduzida em palavras, senão um ano depois. “Aqui temos, pois, a prova mais evidente possível de que uma fantasia pode ser sentida — e sentida como real — muito antes de poder ser expressa em palavras” (p. 105).

Cabe destacar que Melanie Klein atribui grande importância aos instintos5 5 Existem, ainda hoje, intensas discórdias sobre qual é a melhor tradução para o conceito freudiano de Trieb. Desde a proposta lacaniana de um novo termo: pulsion, como tradução de Trieb, a fim de distingui-lo do outro termo alemão usado por Freud: Instinkt, muito se tem discutido a respeito. No Brasil, em que pese o fato de a maioria dos autores ter optado pelo termo “pulsão”, seguindo os franceses, há tradutores de Freud, como Paulo César de Souza, que vem traduzindo as Obras Completas para a Companhia das Letras, que julga que o texto freudiano original não permite a distinção clara entre Trieb e Instinkt, optando por uma tradução única dos dois termos: “instinto”. Sem querer tomar, aqui, qualquer partido nessa polêmica (já que não temos competência para tanto), estamos usando o termo “instinto”, apenas para cotejar com as traduções de Paulo César de Souza (referência de nossas citações), além da predominância do vocábulo na linhagem inglesa da psicanálise. constitutivos do bebê, assim como Freud já havia proposto em seu texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) e em vários outros trabalhos — sobretudo, nos quais ele aborda o tema “cultura e sociedade” (Freud, 1915, 1921, 1927, 1930Freud, S. (2015). As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. In Obras completas (v. 8; Paulo César de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1908). etc.).6 6 Todos esses textos podem ser facilmente encontrados no livro “Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos”. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. In S. Freud, Obras incompletas de S. Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. Contudo, é no artigo “Além do princípio do prazer” (1920) — no qual se instala a dualidade: instinto de vida versus instinto de morte — em que Freud reafirma, com todas as letras, o peso do fator constitucional — temática que também será discutida no clássico “O problema econômico do masoquismo” (Freud, 1924/2011cFreud, S. (2011c). O problema econômico do masoquismo. In Obras completas (v. 16; Trad. Paulo César de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924).). “Como Freud, Klein assume que a atividade de fantasiar é inata, assim como as próprias particularidades das fantasias” (Spillius et al., 2011, p. 23Spillius, E. et al. (2011). The New Dictionary of Kleinian Thought. Routledge.; tradução nossa).

Nesse sentido, as primeiras fantasias são resultantes dos impulsos físicos e estão interligadas às sensações corporais. Explicamos melhor: as experiências corporais iniciais acumulam as primeiras recordações, e a realidade externa é progressivamente incluída na tessitura dessas fantasias arcaicas. Não tardará para que as fantasias da criança se apoiem tanto em imagens visuais como em sensações, que serão pouco a pouco elaboradas, em consonância com as percepções articuladas ao ambiente. Entretanto, as fantasias, para Klein, “não têm origem no conhecimento articulado com o mundo externo; sua fonte é interna, nos impulsos instintivos” (Isaacs, 1952/1969, p. 107;Isaacs, S. (1969). A natureza e a função da fantasia. In M. Klein, P. Heimann, S. Isaacs, & J. Rivière. Os progressos da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1952). itálicos da autora). Esse aspecto, em específico, se diferencia da concepção winnicottiana, conforme veremos a seguir.

O desenvolvimento emocional para Winnicott

Antes de qualquer coisa é fundamental destacar que o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott não trabalhava com o conceito de instinto de morte. Na sua opinião, esse foi o maior equívoco teórico de Freud e Klein. Em uma carta dirigida a Roger Money-Kyrle, em novembro de 1952, Winnicott escreve: “É uma pena que Melanie tenha feito um esforço tão grande para conciliar sua opinião com o instinto de vida e de morte, que é talvez o único erro de Freud” (2017, p. 52). Ele também não acreditava na existência de um ego arcaico, tampouco na capacidade do lactente de projetar e introjetar nos primórdios da vida.

Para Winnicott, na origem, o Id é externo ao Eu, devendo ser experienciado e apropriado pelo indivíduo por meio de um processo que ele nomeou de “elaboração imaginativa das funções corporais”. Trata-se de um fenômeno inicialmente bastante rudimentar, realizado pela psique primitiva do bebê, mas que necessita dos cuidados ambientais para manter um mínimo de consistência no tempo e no espaço — lembrando que o infante, inicialmente, se encontra em um estado não integrado, vivendo em instantes dispersos, enquanto assume a forma de identidades emprestadas e provisórias (como o seio ou o colo materno, por exemplo).

Em suma, o bebê winnicottiano nasce em uma condição de extrema vulnerabilidade, estabelecendo uma relação de dependência absoluta com o ambiente cuidador. Nesse sentido, o nosso autor elabora uma teoria do desenvolvimento emocional (ou maturacional), em que descreve uma série de estágios que necessitam ser conquistados pelo indivíduo em constante interação com o meio. Vejamos:

Quero frisar que é nessas primeiras e mais importantes semanas de vida do bebê que os estágios iniciais do processo de amadurecimento têm oportunidade de se transformar em experiências desse bebê. Quando o ambiente facilitador — que deve ser humano e pessoal — é suficientemente bom, as tendências hereditárias de crescimento do bebê alcançam suas primeiras conquistas. É possível dar nome a essas coisas. A principal se resume na palavra integração. Todas as pequenas e singelas atividades e sensações que contribuem para formar o que reconheceremos como um bebê específico começam a se unir e possibilitam momentos de integração nos quais ele se torna uma unidade, ainda que, sem dúvida, permaneça extremamente dependente. (Winnicott, 1966/2020, pp. 25-26;Winnicott, D. W. (2020). A mãe dedicada comum. In Bebês e suas mães. Ubu. (Trabalho original publicado em 1966). itálicos originais)

Winnicott centrou seus esforços em descrever como o ser humano progride de sua situação inicial — na qual é imaturo, totalmente dependente do ambiente e não integrado — para as diversas integrações que vão ocorrer ao longo de sua existência, chegando à diferenciação entre mundo externo e interno, conquistando uma unidade individual, diferenciando o eu do não eu. Além disso, ele foi um dos psicanalistas que mais se dedicou a compreender os impactos do ambiente na formação psíquica e, também, um dos que mais enfatizou o papel do ambiente como fator indispensável ao crescimento humano. Para o nosso autor, o estágio inicial da vida é um período extrema-mente delicado, em que o bebê precisará de todos os cuidados disponibilizados pela figura materna7 7 Preferimos utilizar este termo ao invés da palavra ‘mãe’. É importante lembrar que a obra de um autor sempre deve ser considerada dentro do contexto social, cultural e histórico que cor-responde ao período de sua criação. Na época de Winnicott, era comum as mães exercerem esses cuidados primários aos seus filhos. Entretanto, atualmente, a configuração das famílias mudou significativamente e essa função passou a ser exercida não apenas pela mãe, mas também por outras pessoas. para poder vir a ser.

Portanto, a “mãe” será responsável por apresentar o mundo ao bebê em pequenas doses, sustentando o seu sentimento de onipotência inicial, em que há uma sensação temporária de ilusão — é como se fosse algo criado pela única coisa que existe: o bebê. Tudo que é externo é advindo dessa sua criação ou dos gestos espontâneos criativos (Fulgencio, 2016Fulgencio, L. (2016). Por que Winnicott? Zagodoni.). Da perspectiva do observador, é o ambiente que atende às necessidades da criança, mas do ponto de vista do bebê, não há ambiente, há apenas ele, e os objetos aparecem e desaparecem na exata medida de sua necessidade, como elementos de sua própria criação.

De forma esquemática temos: 1) o bebê está com fome; 2) a mamãe oferece o peito; 3) para o bebê, o peito foi criado por ele (sentimento de onipotência). Grosso modo, “caberá ao ambiente não decepcionar a criança, não a forçar, fora do tempo, a reconhecer a realidade externa como tal; não lhe impor uma unidade para a qual ela ainda não está madura para assumir” (Fulgencio, 2016, p. 30).

Entretanto, nos primórdios da vida, o meio deve apenas sustentar (holding) e garantir que o vir a ser seja uma conquista própria do infante, ocorrendo a partir do seu gesto espontâneo. Nessa lógica, tudo que é imposto de fora para dentro é sentido, pela criança, como uma intrusão, na medida em que não é uma criação sua e não faz parte da sua área de onipotência (como um prolongamento seu).

Por exemplo: se o bebê está chorando de fome e o adulto o coloca para dormir, ele acaba substituindo o “gesto espontâneo” do lactente pelo seu próprio gesto. Em outras ocasiões, quando a criança é deixada chorando por horas a fio em seu berço, ela pode sentir os seus impulsos instintivos8 8 Como mencionado anteriormente, para Winnicott, no início da vida, o Id (impulsos instintivos) é externo ao Eu do bebê, precisando ser experienciado por ele através de um processo que o autor chamou de “elaboração imaginativa das funções corporais”. Mas essa função processa-se, somente, se for sustentada pelos cuidados maternos (holding) e pelo manuseio (handling) indispensável aos tratos iniciais do infante: as trocas, o banho, as massagens nos momentos de dor e desconforto etc. como algo intrusivo e ameaçador para a sua própria condição existencial, levando-a a erguer defesas contra essas sensações de desamparo. Tais defesas vão ganhando força e, em certa ocasião, se separam da parte saudável da personalidade do indivíduo, criando, assim, o que Winnicott nomeou de falso self cindido e patológico, que impede o contato do verdadeiro self com as experiências adquiridas no mundo real. Dessa forma, a vida se torna vazia de sentido e o potencial criativo se esfacela (Almeida, 2023Almeida, A. P. (2023). Por uma ética do cuidado: Winnicott para educadores e psicanalistas (v. 2). Blucher.). Nas palavras do psicanalista inglês:

Estou dizendo, de certa forma, que cada pessoa tem um self educado ou socializado, e também um self pessoal e privado, que só aparece na intimidade. Trata-se de algo comum, que pode ser considerado normal. Se olharem ao redor, poderão ver que essa divisão do self é uma aquisição saudável do crescimento pessoal; na doença, a divisão é uma questão de cisão na mente, que pode chegar a variar em profundidade — a mais profunda é chamada esquizofrenia. (Winnicott, 1964/2021b, p. 77;Winnicott, D. W. (2021b). O conceito de falso self. In Tudo começa em casa. Ubu. (Trabalho original publicado em 1964). itálicos do autor)

Em outros termos: todos nós precisamos construir um falso self para convivermos em sociedade. O problema, porém, desponta quando ele se torna uma estrutura fixa, rígida e cindida da parte saudável da personalidade (o verdadeiro self). A nosso ver, essa é uma das grandes problemáticas da teoria winnicottiana que, quando estudada de forma leviana, acaba produzindo desentendimentos ou afirmações generalizadas do tipo: “Aquele sujeito tem um falso self”. Ora, como acabamos de verificar na citação acima, todos nós temos. O que muda, entretanto, é o grau de dissociação/cisão que esse mecanismo defensivo adquire ao longo do processo de desenvolvimento.

Vale sublinhar que, ao final de sua obra, Winnicott passa a distinguir o conceito de dissociação do conceito de cisão, usando o primeiro para descrever falhas de comunicação entre partes da personalidade de uma pessoa integrada e o segundo para descrever tanto o estado inicial do recém-nascido (sendo que essas cisões iniciais vão desaparecendo com o processo de integração, propiciado pelo cuidado ambiental) quanto a principal defesa esquizofrênica (Winnicott, 1988/1990, p. 137Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Imago. (Trabalho original publicado em 1988).).

Com efeito, é coerente pensar as modalidades do falso self numa gradação contínua, que vai desde diferentes graus de dissociação, caminhando para diferentes graus de cisão: do mais saudável ao mais patológico.

Para complementar nossa explicação e sintetizar nossas ideias, citamos o trecho de um artigo escrito por Naffah Neto (2019)Naffah Neto, A. (2019). Em primeira pessoa. Nat. hum. [online], 21(2), 211-219.:

Entretanto, também é verdade que, nos primeiros tempos, o bebê só pode se tornar sujeito do seu destino a partir de uma ilusão. Isso porque, ao longo de todo o processo de dependência, o seu amadurecimento somente se realiza à custa de um ambiente suficientemente bom, quer dizer, capaz de sustentá-lo tanto física quanto psiquicamente. É somente assim que o pequeno rebento pode ir elaborando imaginativamente as suas funções corporais e criando, paulatinamente, a sua psique nelas ancorada, de forma a constituir, mais adiante, uma unidade psico-somática.9 9 Mantemos a palavra de língua portuguesa grafada com hífen, como a inglesa, por entender que, para Winnicott, psique e soma não se reduzem um ao outro, possuem identidades distintas, embora atinjam uma unidade funcional nos casos saudáveis. (...) [Com o amadurecimento] a primeira pessoa continua à frente da sua história, mas conhecendo as limitações impostas pela sociedade e pela cultura. A essa altura, a criança já formou um falso self saudável, isto é, já consegue pagar o seu tributo à necessária vida em sociedade sem perder contato com o seu mundo subjetivo — sua espontaneidade e criatividade. (pp. 214-215; itálicos originais e colchetes nossos)

A noção de fantasia para Winnicott

Após essa breve e resumida explicação a respeito da teoria winnicottiana do amadurecimento, acreditamos ser possível adentrar o território específico do tema da fantasia.

Pois bem, se, de acordo com o autor inglês, o ego do bebê não tem maturidade para projetar e introjetar desde o nascimento, como ele concebe a noção de fantasia?

Comecemos considerando que, para Winnicott, fantasia tem de ser entendida sempre, num certo contraponto funcional com a realidade. Em seu clássico texto “Desenvolvimento emocional primitivo”, de 1945, o autor salienta:

O ponto é que na fantasia as coisas funcionam de modo mágico: não há freios na fantasia, e o amor e o ódio têm consequências alarmantes. A realidade externa tem freios, e pode ser estudada e conhecida, e a verdade é que o impacto total da fantasia pode ser tolerado somente quando a realidade objetiva é reconhecida e valorizada. (Winnicott, 1945/2021a, pp. 293-294;Winnicott, D. W. (2021a). Desenvolvimento emocional primitivo. In Da pediatria à psicanálise. Ubu. (Trabalho original publicado em 1945). Winnicott, D. W. (2021b). O conceito de falso self. In Tudo começa em casa. Ubu. (Trabalho original publicado em 1964). Winnicott, D. W. (2017). O gesto espontâneo. Martins Fontes. itálicos nossos)

Ou seja, podemos interpretar essa afirmação como nos dizendo que, enquanto não se estabelece a distinção entre fantasia e realidade, tudo funciona “sem freios” na psique do bebê. Mas o texto pode também nos dar a falsa impressão de que a fantasia existe na psique infantil desde os estágios primitivos; o que não acontece, de fato.

Sendo assim, o ensaio fundamental para entendermos o conceito de fantasia propriamente dito surge em 1968, no artigo “O uso de um objeto e a relação por meio de identificações”, publicado pela primeira vez no International Journal of Psycho-Analysis, em 1969. Uma versão mais completa e atualizada desse escrito foi inserida no livro O brincar e a realidade (1971/2019).

Para o psicanalista britânico, o plano psíquico do bebê define-se como um vazio prenhe de possibilidades de vir a ser, que o autor denomina de criatividade primária. Não há, nesse sentido, a existência de heranças ou proto-fantasias transmitidas filogeneticamente, como em Freud (1923/2011a)Frreud, S. (2011a). O Eu e o Id. In Obras completas (v. 16; Paulo César de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)., tampouco phantasias, como ocorre na linhagem kleiniana. A fantasia inconsciente só aparece mais tarde, após a fase do “uso de um objeto”, e como a contraparte do objeto real, quando o mundo externo é criado/descoberto. Nas palavras de Winnicott: “(...) para que possa ser usado, o objeto deve necessariamente ser real, no sentido de que faz parte de uma realidade compartilhada, e não de um conjunto de projeções” (Winnicott, 1971/2019, p. 144Winnicott, D. W. (2019). Sonho, fantasia e vida: caso clínico que descreve uma dissociação primária. In O brincar e a realidade. Ubu. (Trabalho original publicado em 1971).).

Para usar um objeto, o sujeito precisa ter desenvolvido a capacidade de usar objetos. Isso é parte fundamental para a introdução do princípio da realidade. Não se pode dizer, na perspectiva winnicottiana, que essa capacidade é inata nem que o seu desenvolvimento em um indivíduo é uma certeza. Essa conquista depende fortemente de um ambiente facilitador. Citamos Winnicott (Winnicott, 1971/2019Winnicott, D. W. (2019). Sonho, fantasia e vida: caso clínico que descreve uma dissociação primária. In O brincar e a realidade. Ubu. (Trabalho original publicado em 1971).):

A sequência tem, em primeiro lugar, a relação de objetos e, só no fim, o uso do objeto. Entretanto, entre uma etapa e outra ou talvez o fracasso inicial mais complicado de ser reparado. O que existe entre a relação e o uso é o ato de retirar o objeto da área de controle onipotente do sujeito; ou seja, a percepção do objeto como fenômeno externo, e não como entidade projetiva, ou melhor, o reconhecimento do objeto como entidade em si mesmo. A mudança (da relação ao uso) significa que o sujeito destrói o objeto. (...) Em outras palavras, (...) “depois que o sujeito se relaciona com o objeto”, o “sujeito destrói o objeto” (à medida que este se externaliza); e, depois disso, pode ser que “o objeto sobreviva à destruição perpetrada pelo paciente”. (p. 126)

Entretanto, a sobrevivência do meio externo pode não acontecer. Com esse olhar de Winnicott, chegamos a uma nova característica das relações objetais. “O sujeito diz ao objeto: ‘Eu destruí você’, mas o objeto está lá para receber a comunicação. De agora em diante o sujeito diz: ‘Olá, objeto! Eu destruí você’; ‘Eu amo você’” (Winnicott, 1971/2019, p. 147Winnicott, D. W. (2019). Sonho, fantasia e vida: caso clínico que descreve uma dissociação primária. In O brincar e a realidade. Ubu. (Trabalho original publicado em 1971).). O objeto passa, então, a ter valor à medida que sobrevive. Embora o indivíduo o ame, ele o destrói o tempo todo em fantasia. É nesse ponto que a fantasia começa a existir: quando o bebê pode usar o objeto que sobreviveu. “Desse modo, o objeto desenvolve sua própria vida e autonomia e (quando sobrevive) contribui com o sujeito, conforme propriedades específicas” (p. 147). Sendo assim, “devido à sobrevivência do objeto, o sujeito pode começar a viver no mundo dos objetos, obtendo ganhos imensuráveis; porém, o preço é a aceitação da destruição em curso na fantasia inconsciente vinculada à relação de objeto” (p. 147).

Resumindo: a fantasia somente se constitui como a contraparte do objeto sobrevivente — este que permanece imune à destruição do bebê, passa a designar o objeto real. Não obstante, o objeto que continua a ser destruído ao bel prazer do bebê (por um amor impiedoso/instintual), passa a designar a fantasia.

Mas por que o bebê continua a destruir o objeto fantasioso?

Esse movimento é necessário para que a distinção entre fantasia e realidade se mantenha, considerando que ela ainda não está garantida de uma vez por todas.

Colocando tudo isso numa conceituação winnicottiana mais precisa, podemos dizer que, por meio da elaboração imaginativa da sobrevivência do “objeto seio”, destruído pelos ataques sádicos do bebê (que vivencia o auge do seu sadismo oral), “(ele) bebê, poderá ir, paulatinamente, discriminando um objeto real, objetivo, independente da sua área de onipotência, de um outro objeto subjetivo, que continua a destruir na sua fantasia” (Naffah Neto, 2017, p. 130Naffah Neto, A. (2017). Veredas psicanalíticas à sombra de Winnicott. Novas Edições Acadêmicas.) — isso se dá entre os 8 meses e 1 ano de idade, mais ou menos (o que assinala outra diferença do pensamento de Klein). Logo, “essa etapa marca o surgimento das fantasias como constituintes do mundo interno, 14 portanto, numa área discriminada da realidade, do mundo externo” (p. 130; itálicos nossos).

Gradualmente o bebê atinge uma forma mais sofisticada de elaboração imaginativa, expandida pelo uso das fantasias. Aos poucos, se desenvolve a possibilidade de recalcar essas fantasias, deslocando-as da consciência — o que origina o inconsciente recalcado, tal como Freud definiu (Naffah Neto, 2017Naffah Neto, A. (2017). Veredas psicanalíticas à sombra de Winnicott. Novas Edições Acadêmicas.).

É apenas por meio desse árduo percurso psíquico, que o indivíduo poderá fazer uso de objetos reais e, sempre que for preciso, conseguirá resguardar-se em seu mundo interno, como alguém que se recolhe em seu próprio abrigo para descansar (Naffah Neto, 2017Naffah Neto, A. (2017). Veredas psicanalíticas à sombra de Winnicott. Novas Edições Acadêmicas.). Essa interação com a realidade externa, faz o indivíduo sentir que a vida vale a pena ser vivida, pois não se limita a uma pura adaptação mecânica. Nesse sentido, a fantasia exerce o papel de mediadora com o mundo exterior.

Quanto à questão dos mecanismos projetivos e introjetivos — que, para Klein, atuam desde o início da vida —, para Winnicott, eles têm uma constituição também marcada pelo processo de amadurecimento, sendo constituídos ao longo do tempo.

No seu último livro, não terminado e publicado postumamente, chamado Natureza humana (1988/1990), Winnicott distingue incorporação de introjeção. Incorporar bons objetos sob a forma de cuidados, nessa distinção, é um processo espontâneo que ocorre desde o início da vida, como uma manifestação natural do crescimento, sem nenhuma conotação defensiva. Já introjetar bons objetos implica uma idealização mágica dos objetos internalizados, na linha de um mecanismo de defesa contra a angústia, quando o ambiente se torna ameaçador. O mesmo raciocínio se aplica à evacuação e à projeção: evacuamos os restos daquilo que incorporamos e que não têm utilidade psíquica para nós. Mas projetamos objetos internos persecutórios, que nos produzem uma dor psíquica insuportável, para magicamente nos livrarmos deles (Naffah Neto, 2019Naffah Neto, A. (2017). Veredas psicanalíticas à sombra de Winnicott. Novas Edições Acadêmicas.). Logo, é possível perceber o entrelaçamento da dimensão psique-soma que perpassa toda a obra winnicottiana.

No entanto, a fantasia, na acepção winnicottiana, também guarda uma dimensão psicopatológica. Em seu artigo “Sonho, fantasia e vida: caso clínico que descreve uma dissociação primária”, publicado no livro O brincar e a realidade (1971), Winnicott se dedica a pesquisar o tema especificamente, tecendo uma série de argumentações importantes nas quais tenta mostrar que a incapacidade de acessar a fantasia pode estar ligada à dissociação — e não à repressão.

Para tanto, o autor relata o caso de uma paciente que, enquanto partici-pava da brincadeira com outras pessoas, estava o tempo todo engajada numa fantasia. “Realmente vivia essa fantasia a partir de uma atividade mental dissociada” (Winnicott, 1971/2019, p. 56Winnicott, D. W. (2019). Sonho, fantasia e vida: caso clínico que descreve uma dissociação primária. In O brincar e a realidade. Ubu. (Trabalho original publicado em 1971).). Ele continua detalhadamente:

Essa parte dela que se tornou completamente dissociada nunca representou sua totalidade, e durante longos períodos seu mecanismo de defesa era viver nessa atividade fantasiosa, na qual podia observar a si mesma participando das brincadeiras de outras crianças, como se estivesse vendo outra pessoa do grupo infantil. (p. 56)

À medida que essa paciente crescia, ela foi sendo capaz de construir uma vida em que nada de concreto que acontecia em seu cotidiano era realmente relevante para ela. Com o passar do tempo, ela se tornou uma dessas muitas pessoas que se sentem como se não fossem seres humanos completos. Sem perceber, era como se outra vida ocorresse na parte de si mesma que estava dissociada. Em sentido oposto, isso significava que as suas experiências (que aconteciam na parte que brincava com as outras crianças) estavam “separadas” de sua parte principal — que vivia em uma sequência organizada de fantasias, em paralelo e funcionando como se fosse o “eu” central —, enquanto a parte que brincava lhe aparecia como um duplo dissociado: um outro.

Por meio desse relato clínico, notamos que em alguns casos patológicos a fantasia ocupa um lugar defensivo que o sujeito passa a habitar predominantemente, na tentativa de se refugiar do mundo externo — numa espécie de inversão, na qual a fantasia, ao invés de enriquecer a realidade, dela se dissocia e passa a substituí-la. Nesses casos, não há uma interação ativa entre as fantasias e o mundo real; ou seja, temos dois campos que não se comunicam e, por conseguinte, não se enriquecem. Trata-se de uma vida vivida na borda, pois essa dimensão dissociada da fantasia pode vir a constituir um refúgio psíquico de tipo esquizoide, usado como mecanismo de defesa contra o mundo real.

A fantasia somente ocupa um lugar saudável, para Winnicott, quando ela compõe o que ele denominou de “terceira área” ou de “espaço potencial”, que se forma justamente na época dos fenômenos transicionais. Nesse período, a presença da mãe começa a ser substituída, para o bebê, por objetos diversos: uma fralda, um ursinho de pelúcia etc. Esses “objetos transicionais”, além de realizarem a transição do mundo subjetivo para a criação/descoberta do mundo objetivo — como uma primeira “posse não eu” —, constituem um acesso primitivo ao universo simbólico: um objeto que representa o outro na sua ausência, por tempo determinado.

Nesse sentido, o que caracteriza o objeto transicional é a sua dupla inscrição: a fralda continua sendo fralda ou, pelo menos, um objeto não mãe (a realidade que começa a entrar no mundo subjetivo, pelas bordas), ao mesmo tempo em que representa — por uma espécie de procuração — a mãe, na sua ausência.

Com o advento da fase do uso do objeto e a diferenciação entre realidade e fantasia que se processam mais adiante, essa região intermediária entre mundo interno e mundo externo, será, então, constituída pela sobreposição entre fantasia e realidade, formando a terceira área ou espaço potencial — responsável pela inserção do bebê no mundo da cultura e dos símbolos. É somente nessa dimensão, a saber, um funcionamento sobreposto à realidade, que a fantasia pode ocupar um lugar saudável na vida, na concepção de Winnicott. A fantasia constitui, ao mesmo tempo, uma forma de elaboração imaginativa tardia — ferramenta indispensável à unidade psicossomática humana — e um método de recriação e/ou reinvenção da realidade (funcionando sobreposta a ela).

Winnicott converge, pois, com Manoel de Barros (2005)Barros, M. (2005). Memórias inventadas para crianças. Planeta Jovem., quando este último afirma: “Tudo o que eu não invento é falso” (p. 5).

Algumas palavras finais

Recentemente, as nossas pesquisas em psicanálise têm se voltado para essa temática que envolve a comparação de linhagens teóricas. Certamente, esse é um trabalho hercúleo, que exige uma quantidade imensurável de leituras e um estudo aprofundado. Nossa proposta não consiste em exaltar as descobertas de determinado autor, enquanto desvalorizamos as do outro. Longe disso, pretendemos apenas demonstrar o quanto a psicanálise é uma ciência ampla e aberta a infinitas possibilidades — desde que tratada com rigor e ética

Encerrar-se em uma única escola de pensamento10 10 Antigamente, falava-se em ‘escolas de psicanálise’. Por exemplo: escola inglesa e escola francesa. Hoje, essa expressão já caiu em desuso e preferimos usar o termo ‘matrizes’ ou ‘linhagens’ psicanalíticas. Sobre essa questão, ver o livro O tronco e os ramos: estudos e história da psicanálise, de Renato Mezan (2014). representa certo dogmatismo que caminha na direção oposta da nossa disciplina, que sempre foi aberta ao desconhecido e às possibilidades de investigação — ainda que alguns analistas defendam o oposto disso, fazendo da psicanálise uma espécie de “doutrinação”, que era tudo o que Freud mais temia, aliás.

Melanie Klein foi genial ao formular a sua teoria sobre as fantasias inconscientes, desbloqueando as passagens que estavam obstruídas para a extensão da clínica psicanalítica, voltada ao atendimento de pacientes psicóticos e borderline. No entanto, antes de prosseguirmos, cabe retornarmos ao 17 começo do nosso artigo.

Afirmamos: “é imprescindível compreendermos que todos esses fe-nômenos acontecem na esfera intrapsíquica. Isto é: incidem dentro da psique da criança, sendo fruto de suas projeções e introjeções”.

Elisa Cintra (2022)Cintra, E. M. U. (2022). Onde vivem as pulsões e seus destinos. In L. Fulgencio, & D. Gurfinkel (Orgs.), Relações e objeto na psicanálise: ontem e hoje. Blucher, porém, nos revela uma outra face da teoria kleiniana, ampliando a dimensão do seu sentido. Para Cintra, as fantasias inconscientes são representantes psíquicos dos instintos (pulsões). Klein, por sua vez, afirma que as fantasias darão figurabilidade a todos os processos físicos e psíquicos — conforme a tese de Figueiredo (2009)Figueiredo, L. C. (2009). As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. Escuta.: “Nada do que ocorre no corpo e na mente deixa de estar de alguma forma associado a esta atividade inconsciente e criativa do fantasiar” (p. 25).

Dessa forma, podemos presumir que o conceito kleiniano de fantasia circula entre as dimensões do soma e da psique, manifestando o poder imaginativo do corpo, pois conforme o indivíduo projeta aspectos do seu psiquismo na realidade externa, essa mesma realidade é alterada e introjetada a partir dessas projeções. Existe, assim, um processo de comunicação, ou melhor, de relação. Logo, saímos da esfera exclusivamente intrapsíquica e adentramos a área intersubjetiva.

Se voltarmos ao clássico trabalho de Susan Isaacs (1952/1969)Isaacs, S. (1969). A natureza e a função da fantasia. In M. Klein, P. Heimann, S. Isaacs, & J. Rivière. Os progressos da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1952)., “A natureza e a função da fantasia”, veremos como os transtornos alimentares, as fobias, os sintomas histéricos, as dores somáticas, enfim, todas as alterações do corpo têm uma determinação psíquica a partir de uma fantasia inconsciente. Pois bem, “as fantasias estabelecem uma relação de mediação entre mundo externo e mundo interno, entre as esferas da realidade psíquica e da realidade social” (Cintra, 2022, p. 74; itálicos nossos). Apesar de essa definição não ter sido reconhecida literalmente por Klein, somos nós, nos dias de hoje, que podemos compreender esse fenômeno a partir das nossas leituras e implicações — isso é pesquisa, diga-se de passagem.

Vale mencionar, porém, que o The new dictionary of kleinian thought (Spillius et al., 2011Spillius, E. et al. (2011). The New Dictionary of Kleinian Thought. Routledge.) propõe, entre as definições centrais do vocábulo fantasia, a seguinte proposição que se entrelaça perfeitamente com as hipóteses precedentes:

Em seus trabalhos com crianças, Klein descobriu que suas fantasias [das crianças] estavam especialmente preocupadas com os seus próprios corpos e com suas crenças sobre os corpos de seus pais e o relacionamento entre eles. A maneira como as fantasias podem ser usadas por uma criança para explicar experiências corporais foi bem descrita por Robert Hinshelwood, que observa que uma fantasia envolve a crença na atividade de objetos internos concretamente sentidos. (Spillius et al., 2011, p. 24;Spillius, E. et al. (2011). The New Dictionary of Kleinian Thought. Routledge. tradução nossa)

Anos depois, encontramos em Winnicott as noções de elaboração imaginativa do corpo e de criatividade primária, que, com base nesse pressuposto, poderiam ser encaradas como conceitos herdeiros da noção de fantasia em Klein — embora o autor aponte abertamente para a interação entre psiquismo e ambiente, de um modo muito mais explícito, partindo da noção de experiência e inserindo o advento da fantasia no processo de amadurecimento humano, ao longo do tempo.

Paralelo a isso, constatamos sem muitas dificuldades que a noção de elaboração imaginativa das funções corporais, postulada por Winnicott, assinala formas muito mais rudimentares e primitivas de elaboração do que a fantasia — tal como Klein a define —, atentando para uma compreensão da imaturidade do bebê, ausente na concepção kleiniana. Podemos dizer que, inicialmente, a elaboração imaginativa é tão primitiva que apenas imprime um sentido geral de suficiência ou insuficiência às experiências corporais. Ou seja, uma sensação de saciedade ou não saciedade na amamentação; uma sensação de segurança ou insegurança no colo da mãe etc. É somente bem mais tarde, quando o bebê adquiriu maturidade para criar/descobrir a existência do mundo objetivo, que a fantasia pode ser criada como algo distinto da percepção — aí sim, guardando maior semelhança com o conceito de Klein.

É correto afirmar, porém, que a ideia de um constante fantasiar inconsciente da experiência vivida é uma tese tão germinativa, que funcionou como um “embrião” capaz de gerar, em todos os autores posteriores, um convite ao trabalho de amadurecimento das ideias existentes.

Isso posto, fica nítida a influência de Melanie Klein sobre o pensamento de Winnicott. De modo análogo, é perceptível notar o quanto os dois se afastam em vários aspectos: 1) na ênfase kleiniana na constitucionalidade das fantasias, como manifestações diretas dos instintos; 2) no lugar que a fantasia ocupa no léxico kleiniano como ferramenta mor, que medeia tudo com tudo desde o absoluto início, enquanto, para Winnicott, a fantasia passa a existir a partir da fase do uso do objeto e, somente depois, uma sobreposição entre fantasia e realidade vem formar a terceira zona, tendo por função 19 mediar as relações entre o mundo interno e mundo externo; 3) na ênfase, posta por Klein, no papel da fantasia e das projeções/introjeções como atividades de constituição da psique, substituídas, no vocabulário winnicottiano, pela importância outorgada ao ambiente como sustentação do processo de amadurecimento, na constituição do psique-soma.

Tais itens foram enumerados apenas à guisa de exemplos mais explícitos e direcionados ao nosso debate em questão.

A relação de troca e interação, encontrada quando analisamos, especificamente, o conceito de “fantasia”, pode ser aplicada no diálogo entre esses dois grandes autores, de forma geral. É isso que faz as suas ideias permanecerem vivas, permitindo o enriquecimento do nosso ser e fazer clínico.

Por fim, cabe salientar que não concordamos com a noção de suplementaridade teórica, isto é, Klein e Winnicott não se suplementam, mas se aproximam e se afastam em diversos aspectos. Acreditamos em pontos de partida diferentes, gerando teorias e clínicas também diferentes (portanto, preferimos pensar em matrizes epistemológicas singulares). A nosso ver, cada linhagem psicanalítica abre um universo próprio de investigação, com ferramentas teóricas e clínicas próprias, irredutíveis às características de outras linhagens. Estamos nos referindo, aqui, a campos de investigação que caminham de modo independente — embora tudo seja psicanálise. Trata-se, pois, de tramas que podem se cruzar de maneira frutífera, desde que sejamos maduros para enfrentar os impasses sem reduzi-los a meras argumentações infantis.

Afinal, não seriam essas as maiores riquezas de uma psicanálise sempre em construção?

  • 1
    Trabalho realizado com o financiamento concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
  • 2
    Levando em consideração as citações dos textos kleinianos em língua portuguesa que utili zaremos aqui, e para não ter de ficar corrigindo a tradução do termo o tempo todo, manteremos o vocábulo “fantasia” ao longo do texto, para nos referirmos ao conceito de Klein. No entanto, a diferença no sentido semântico (grafias com ph e f) deve ser considerada conforme a citação do trabalho de Prado (2021).
  • 3
    Como um artesão que cria um vaso ou uma escultura, a partir de suas percepções corporais. Aliás, toda e qualquer produção humana apresenta traços somáticos (embora fundamentalmente inconscientes).
  • 4
    É importante destacar que Klein não discorda de Freud quanto ao início do complexo de Édipo nos moldes em que o autor o delineia. Ela apenas nos dirá que os conflitos edipianos irão ocorrer muito antes do prazo estipulado por ele, mas o seu auge como um fenômeno ambivalente, determinante da sexualidade genital, acontecerá no mesmo período assinalado por Freud (por volta dos 4 ou 5 anos). O complexo edipiano precoce tem a ver com a equivalência simbólica originária entre “seio” e “pênis”, criando já desde muito cedo uma triangulação que envolve mãe e pai como objetos parciais, diante dos ciúmes e rivalidades infantis.
  • 5
    Existem, ainda hoje, intensas discórdias sobre qual é a melhor tradução para o conceito freudiano de Trieb. Desde a proposta lacaniana de um novo termo: pulsion, como tradução de Trieb, a fim de distingui-lo do outro termo alemão usado por Freud: Instinkt, muito se tem discutido a respeito. No Brasil, em que pese o fato de a maioria dos autores ter optado pelo termo “pulsão”, seguindo os franceses, há tradutores de Freud, como Paulo César de Souza, que vem traduzindo as Obras Completas para a Companhia das Letras, que julga que o texto freudiano original não permite a distinção clara entre Trieb e Instinkt, optando por uma tradução única dos dois termos: “instinto”. Sem querer tomar, aqui, qualquer partido nessa polêmica (já que não temos competência para tanto), estamos usando o termo “instinto”, apenas para cotejar com as traduções de Paulo César de Souza (referência de nossas citações), além da predominância do vocábulo na linhagem inglesa da psicanálise.
  • 6
    Todos esses textos podem ser facilmente encontrados no livro “Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos”. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. In S. Freud, Obras incompletas de S. Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
  • 7
    Preferimos utilizar este termo ao invés da palavra ‘mãe’. É importante lembrar que a obra de um autor sempre deve ser considerada dentro do contexto social, cultural e histórico que cor-responde ao período de sua criação. Na época de Winnicott, era comum as mães exercerem esses cuidados primários aos seus filhos. Entretanto, atualmente, a configuração das famílias mudou significativamente e essa função passou a ser exercida não apenas pela mãe, mas também por outras pessoas.
  • 8
    Como mencionado anteriormente, para Winnicott, no início da vida, o Id (impulsos instintivos) é externo ao Eu do bebê, precisando ser experienciado por ele através de um processo que o autor chamou de “elaboração imaginativa das funções corporais”. Mas essa função processa-se, somente, se for sustentada pelos cuidados maternos (holding) e pelo manuseio (handling) indispensável aos tratos iniciais do infante: as trocas, o banho, as massagens nos momentos de dor e desconforto etc.
  • 9
    Mantemos a palavra de língua portuguesa grafada com hífen, como a inglesa, por entender que, para Winnicott, psique e soma não se reduzem um ao outro, possuem identidades distintas, embora atinjam uma unidade funcional nos casos saudáveis.
  • 10
    Antigamente, falava-se em ‘escolas de psicanálise’. Por exemplo: escola inglesa e escola francesa. Hoje, essa expressão já caiu em desuso e preferimos usar o termo ‘matrizes’ ou ‘linhagens’ psicanalíticas. Sobre essa questão, ver o livro O tronco e os ramos: estudos e história da psicanálise, de Renato Mezan (2014)Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos: estudos de história da psicanálise. Companhia das Letras..

Referências

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  • Frreud, S. (2011a). O Eu e o Id. In Obras completas (v. 16; Paulo César de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923).
  • Freud, S. (2011b). A dissolução do complexo de Édipo. In Obras completas (v. 16; Paulo César de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924).
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  • Freud, S. (2015). As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. In Obras completas (v. 8; Paulo César de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1908).
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2023
  • Revisado
    05 Set 2023
  • Aceito
    13 Jan 2024
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