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Editorial Especial

SARS, epidemiologia, mídia e democracia

Expedito J. A. Luna

Professor Assistente, Departamento de Medicina Social, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Dr. Cesário Mota Jr., 61 - 5º andar 01221-020 São Paulo, SP, Brasil expedito_luna@uol.com.br

A emergência da pandemia do HIV/aids, há duas décadas, veio questionar a visão otimista de um futuro no qual a humanidade estaria livre das doenças infecciosas, visão esta que seria o corolário da teoria da transição epidemiológica.

Além de apontar os limites da teoria da transição epidemiológica e abrir caminho para um novo paradigma, o da emergência e reemergência das doenças infecciosas, o surgimento da aids trouxe mais um elemento até então inédito: a participação das vítimas da epidemia, doentes, portadores e grupos por ela afetados, não apenas enquanto ativistas políticos na defesa dos seus direitos, mas também enquanto sujeitos ativos na produção do conhecimento e na implementação das intervenções de sua prevenção e controle. As experiências melhor sucedidas de controle e prevenção da epidemia de HIV/aids, tais como a da cidade de San Francisco (EUA), e aquelas de países como a Austrália, a Holanda e o Brasil, devem parte dos seus resultados ao envolvimento ativo da sociedade civil organizada.

Nestas duas décadas não foram poucos os exemplos da emergência e reemergência das doenças infeciosas. Sem nenhum esforço de memória, poderíamos lembrar os vírus Ebola e Lassa na África; as encefalites espongiformes na Europa; a febre do Nilo Ocidental na América do Norte; o cólera, a dengue, a reemergência da malária e da febre amarela, dentre outras, no Brasil1.

Agora, o mundo volta a sua atenção para a emergência de mais uma doença, a síndrome respiratória aguda grave, popularizada pela sigla em inglês SARS. De forma semelhante às outras pandemias de viroses respiratórias, como a gripe espanhola em 1918, a gripe asiática em 1957-58 e a gripe de Hong Kong em 1968, a SARS aparentemente origina-se da superpovoada região litorânea do sudeste chinês, onde supostamente humanos, suínos e aves viveriam próximos o suficiente para possibilitar que vírus respiratórios façam o chamado "salto" de espécies, gerando mutantes para os quais a espécie humana não teria imunidade individual ou grupal.

Dois aspectos merecem ser destacados no episódio da emergência da SARS. O primeiro deles é o papel desempenhado pela mídia, em especial a televisão e a Internet. Em seu afã por novidades cada vez mais chocantes e sensacionais, a mídia tem contribuído para a potencialização de problemas, muitas vezes restritos, e gerado situações de pânico na população. No final de 2001 e início de 2002, após a descoberta do envio de meia dúzia de cartas nos Estados Unidos, intencionalmente contendo aerossóis do bacilo do antraz, a cobertura sensacionalista da mídia contribuiu para transformar o episódio em pânico em escala mundial. Apenas na cidade de São Paulo, mais de mil denúncias de cartas contendo "um pó branco" tiveram de ser atendidas, levando a um notável desperdício de recursos do corpo de bombeiros, polícia, vigilância epidemiológica e laboratório de saúde pública. Agora, mais uma vez, o pânico da SARS parece ser maior do que a própria. Mesmo sem desconsiderar o potencial pandêmico da doença, faz-se necessário clamar por uma cobertura mais responsável de parte dos meios de comunicação de massas.

Por outro lado, a mídia também teve um papel decisivo em relação ao segundo aspecto de destaque na emergência da SARS. Trata-se do seu aspecto político. Graças à atuação das agências internacionais, notadamente da Organização Mundial da Saúde, e à repercussão de suas posições pela mídia, foi possível desmascarar a ditadura chinesa, em sua tentativa de censurar a epidemia. Não é de hoje que as ditaduras adotam postura semelhante. As razões para isso não parecem ser muito claras; talvez as epidemias sejam percebidas como sinais de fracasso dos regimes, ou talvez simplesmente como algo intolerável, uma vez que fogem ao seu controle. Nós brasileiros vivemos a nossa experiência, com a tentativa de censura da epidemia de doença meningocócica, de 1970 a 1975, tão bem descrita por Barata2; e da epidemia de febre amarela em Goiás e no Distrito Federal, em 1972/73, esta ainda não devidamente estudada. Voltando à SARS, a resposta da ditadura chinesa não poderia ter sido menos original: o encontro de bodes expiatórios, com a demissão do seu próprio ministro da saúde e ainda do prefeito da capital do país.

Alguns ensinamentos podemos extrair desses episódios. Um primeiro nos remete à própria definição e objetivos da nossa disciplina. Estudamos a distribuição das doenças nas populações humanas e tentamos identificar suas causas com o propósito de sobre elas intervir e de modificá-las, donde o nosso compromisso com a mudança social. Outro ainda, como nos demonstram os exemplos da aids nos países desenvolvidos e no Brasil, por um lado, e a SARS na China, por outro, é de que a população bem informada pode ser um parceiro fundamental para o sucesso das ações de prevenção e controle de doenças, e que o contrário disso tem também o efeito oposto. Daí deve derivar o nosso compromisso enquanto epidemiólogos, em especial daqueles entre nós responsáveis pela vigilância epidemiológica, com a democracia e a total transparência de nossas ações e informações. Por fim, na era da globalização, a necessidade de que busquemos uma parceria efetiva com a mídia, para que, num mundo sem censura, possamos manter os dois compromissos acima colocados.

São Paulo, maio de 2003

  • Endereço para correspondência
    Rua Dr. Cesário Mota Jr., 61 - 5º andar
    01221-020 São Paulo, SP, Brasil
  • 1
    Luna EJA. A emergência das doenças emergentes e as doenças infecciosas emergentes e reemergentes no Brasil.
    Rev Bras Epidemiol 2002; 5(3): 229-43.
  • 2
    Barata RCB.
    Meningite, uma doença sob censura? São Paulo: Cortez; 1988.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2003
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