RESUMO:
Introdução: A violência sofrida na adolescência resulta em sérios prejuízos e sofrimento para a sociedade. Este estudo objetivou caracterizar o perfil das violências, das vítimas e dos prováveis autores das violências perpetradas contra adolescentes, bem como descrever o percentual de municípios notificantes por unidade da Federação.
Métodos: Estudo transversal, realizado com dados de notificação de violência contra adolescentes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação referentes ao período de 2011 a 2017. A significância estatística das diferenças entre as proporções na comparação entre sexos foi testada com o qui-quadrado. Estimaram-se razões de proporção para os tipos de violência mais frequentes segundo variáveis selecionadas.
Resultados: As notificações foram procedentes de 75,4% dos municípios brasileiros. A violência física predominou no sexo masculino, na idade de 15 a 19 anos. A violência psicológica predominou no sexo feminino, entre 10 e 14 anos, quando praticada de forma repetitiva, no domicílio, por agressores familiares. A violência sexual prevaleceu no sexo feminino, entre 10 e 14 anos, nas raças/cores indígena, negra e amarela, quando perpetrada de forma repetitiva, no domicílio. A negligência predominou no sexo masculino, entre 10 e 14 anos, quando praticada de forma repetitiva, por agressores familiares.
Conclusões: Violências sexuais ocorreram preponderantemente no sexo feminino e geram consideráveis impactos negativos à saúde mental, física, sexual e reprodutiva. Violências comunitárias perpetradas com objetos perfurocortantes e arma de fogo tiveram destaque no sexo masculino e são fatores de risco significativos para a sobremortalidade masculina. Como os problemas são complexos, demandam atuação intersetorial para seu enfrentamento.
Palavras-chave: Violência; Saúde do adolescente; Agressão; Violência contra a mulher; Notificação de abuso
ABSTRACT:
Introduction: Violence experienced in adolescence results in serious damage and suffering to society. This study aims to characterize the profile of violence victims and likely perpetrators of violence against adolescents, as well as to describe the percentage of notifying municipalities according to the federation unit.
Methods: Cross-sectional study conducted with data on notification of violence against adolescents from the Information System for Notifiable Diseases, from 2011 to 2017. The chi-square test was used to assess the statistical significance of the differences between the proportions in the comparison between genders. Proportion ratios for the most frequent types of violence were estimated according to selected variables.
Results: The notifications came from 75.4% of all the Brazilian municipalities. Physical violence predominated among males, aged 15-19 years. Psychological violence was predominant among females, between 10 and 14 years old, when perpetrated repeatedly at home by family aggressors. Sexual violence prevailed among females, aged 10 to 14 years old, in the indigenous, black and yellow races/colors, when perpetrated repeatedly at home. Negligence was more common among males, between 10 and 14 years old, when perpetrated repeatedly by family aggressors.
Conclusions: Sexual violence occurred predominantly against females and generated significant negative impacts on mental, physical, sexual and reproductive health. Community violence, perpetrated with sharp objects and firearms, were prominent among males and are important risk factors for male over-mortality. Because the problems are complex, addressing them requires intersectoral actions.
Keywords: Violence; Adolescent health; Aggression; Violence against women; Mandatory reporting
INTRODUÇÃO
Adolescência é uma singular etapa formativa do desenvolvimento humano que exige atenção especial nas políticas, nos programas e nos planos nacionais de desenvolvimento1. Nesse período os indivíduos vivenciam novas experiências, e muitos comportamentos de proteção ou de risco começam ou consolidam-se, com mais exposição aos acidentes e às violências1,2,3,4,5.
A violência sofrida na adolescência pode resultar em sérias consequências físicas e psicossociais aos indivíduos e atingir diretamente a qualidade de vida6, com incapacidades, transtornos psíquicos7,8 e sofrimento para as famílias e a sociedade6,9. A violência interpessoal ocorrida nessa fase está associada a comportamentos sexuais de risco, desempenho escolar ruim e abuso de álcool e outras drogas, que por sua vez são fatores de risco para diversos problemas de saúde no decorrer da vida6,9,10,11. Quanto mais cedo acontece a exposição à violência e mais intensa ela é, maiores são os problemas dela decorrentes e maior é a probabilidade do envolvimento da vítima em futuros comportamentos violentos10. Destaca-se que a violência está associada a risco aumentado de depressão a partir da adolescência, especialmente entre mulheres, tendo em vista que no caso delas alguns tipos de violência, incluindo a vitimização sexual, aumentam acentuadamente no início da adolescência8.
A violência interpessoal é a terceira principal causa de morte entre adolescentes globalmente, embora sua proeminência varie de acordo com a região do mundo. Essa violência causa quase um terço de todas as mortes de adolescentes do sexo masculino em países de baixa ou média renda da região das Américas1,12. No Brasil, o homicídio representa a principal causa de morte de adolescentes e jovens entre 15 e 24 anos e afeta principalmente jovens negros, residentes nas periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos5,13. Globalmente, estima-se que uma em cada três adolescentes de 15 a 19 anos sofreu violência emocional, física, psicológica e/ou sexual perpetrada pelo marido ou parceiro12. Nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável constam objetivos e metas de ação global até 2030 que incluem indicadores relacionados ao enfrentamento às violências14.
No Brasil, a comunicação de violências praticadas contra adolescentes foi estabelecida como obrigatória por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)15, em 1990. No âmbito do setor saúde, a partir de 2011 a notificação de violências passou a integrar a lista nacional de notificação compulsória, universalizando a notificação a todos os serviços de saúde do país16,17,18. Nesse contexto, a notificação é importante instrumento de proteção e uma das dimensões da linha de cuidado para a atenção à saúde de adolescentes em situação de violência, que prevê também o acolhimento, o atendimento e o seguimento na rede de cuidados e de proteção social19.
Diante da gravidade social e epidemiológica da violência cometida contra adolescentes, estudos sobre tais agressões notificadas ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) poderão contribuir para ampliar o conhecimento relacionado às violências praticadas contra esse grupo populacional e orientar o delineamento de políticas públicas para a sua prevenção.
O objetivo deste trabalho foi caracterizar o perfil das violências, das vítimas e dos prováveis autores das violências perpetradas contra adolescentes, notificadas ao Sinan, no período de 2011 a 2017, bem como descrever o percentual de municípios notificantes de violências por unidade da Federação (UF).
MÉTODOS
DELINEAMENTO E POPULAÇÃO DE ESTUDO
Estudo transversal, realizado com dados de notificação de violência contra adolescentes referentes ao período de 2011 a 2017, no Brasil. Delimitaram-se como adolescentes aqueles com idade entre 10 e 19 anos, conforme a convenção elaborada pela Organização Mundial da Saúde3 e adotada pelo Ministério da Saúde brasileiro20.
FONTE DE DADOS
Os dados utilizados foram extraídos do Sinan, alimentado pela ficha de notificação individual de violência interpessoal/autoprovocada.
A notificação de violências contra adolescentes é obrigatória para ambos os sexos e para todos os estabelecimentos públicos e privados de saúde do país desde 201116. Destaca-se que em situação de suspeita ou identificação de violência contra adolescente os profissionais de saúde devem notificar o caso e comunicar os órgãos competentes, amparados pelo ECA16,19, independentemente da aceitação de familiares19.
VARIÁVEIS DO ESTUDO
Foi realizada a descrição dos casos de violência segundo as características sociodemográficas das vítimas: sexo (feminino, masculino), faixa etária (10 a 14 e 15 a 19 anos), raça/cor da pele (branca, negra [preta + parda], amarela, indígena), escolaridade (0 a 8 anos de estudo, 9 ou mais anos), presença de deficiência/transtorno (sim, não). Foram consideradas deficiências física, intelectual, visual e auditiva, transtornos mentais, transtornos de comportamento, além de outras deficiências e outros transtornos. Características das violências: histórico de repetição da violência (sim, não), local de ocorrência da violência (residência, via pública, escola, outros locais), lesão autoprovocada (sim, não), tipo de violência (física, sexual, psicológica, negligência, outros), meio usado na agressão (força corporal/espancamento, ameaça, envenenamento/intoxicação, objeto perfurocortante, arma de fogo, objeto contundente, enforcamento, objeto/substância quente, outros meios). Características do provável autor da violência: número de envolvidos (um, dois ou mais), sexo (feminino, masculino), vínculo com a vítima (familiares, amigos/conhecidos, desconhecidos, parceiros íntimos, outros vínculos), suspeita de consumo de bebida alcoólica pelo provável autor (sim, não). As variáveis tipo de violência e vínculo com a vítima permitem respostas múltiplas.
ANÁLISE DOS DADOS
A significância estatística das diferenças entre as proporções na comparação entre sexos foi testada com o qui-quadrado, com o nível de significância de 5%. Estimaram-se razões de proporção (RP) e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) para os tipos de violência mais frequentes segundo variáveis selecionadas. Foi calculado também o percentual de municípios notificantes de violências por UF nos anos de 2011 e 2017.
ASPECTOS ÉTICOS
A base de dados nacional que subsidiou este estudo foi obtida no portal eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde21. Foram acessados os dados definitivos correspondentes a cada uma das UFs brasileiras nos anos de 2011 a 2017. Por tratar-se de estudo com dados secundários sem identificação, o projeto desta pesquisa foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, em conformidade com as diretrizes da Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510 de 2016.
RESULTADOS
No período de 2011 a 2017, foram notificados 1.429.931 casos de violência interpessoal ou autoprovocada. Desse total, 374.673 (26,2%) corresponderam a notificações de violências contra adolescentes.
No ano de 2011 foram notificados 28.792 casos de violência contra adolescentes e, em 2017, 79.914 casos, o que corresponde a aumento de 177,6% no número de notificações. Elas foram procedentes de 4.202 municípios notificantes, equivalendo a 75,4% dos municípios brasileiros.
Em 2011 apenas duas UFs (Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul) apresentavam porcentagem de municípios notificantes superior a 50%, ou seja, municípios que apresentavam pelo menos uma notificação de violência contra adolescentes no ano. Em 2017, 17 UFs apresentavam porcentagem de municípios notificantes superior a 50%, e, entre esses, Roraima, Acre, Minas Gerais, Amazonas e Rio de Janeiro contavam com porcentagem superior a 80%. Entre as 10 UFs que apresentavam porcentagem de municípios notificantes inferior a 50% em 2017, oito delas (Paraíba, Sergipe, Piauí, Rio Grande do Norte, Maranhão, Bahia, Alagoas, Ceará) situam-se na Região Nordeste.
As características sociodemográficas dos adolescentes em situação de violência encontram-se detalhadas na Tabela 1. Do total de casos notificados, 65,2% referiam-se ao sexo feminino. A média de idade foi de 15,2 anos. A maior parte (60,3%) tinha entre 15 e 19 anos, 54,9% eram da raça/cor negra, 68,6% haviam concluído até oito anos de estudo e 7,9% possuíam alguma deficiência ou algum transtorno.
Foi observado que 39,9% dos eventos tiveram caráter de repetição e 56,9% ocorreram na residência. As mulheres foram vítimas de violência de repetição e de violência no domicílio em maior proporção do que os homens. As lesões autoprovocadas corresponderam a 18,5% das notificações e ocorreram em maior proporção, entre as mulheres. Os tipos de violência mais notificados foram: física (64,7%), sexual (24,7%), psicológica (24,5%) e negligência/abandono (12,2%). Violência sexual e psicológica tiveram maior frequência entre as mulheres, enquanto violência física e negligência/abandono foram mais frequentes entre os homens (Tabela 2). Os meios mais utilizados para efetivar as agressões foram força corporal (45,4%) e ameaça (15,5%), com distribuição proporcional superior entre as mulheres. Também foram relatados como meios de agressão objeto perfurocortante (10,3%), arma de fogo (9,0%), com frequência maior entre os homens, e envenenamento, mais frequente entre as mulheres (resultados não apresentados em tabela).
A avaliação das características do provável autor da violência mostrou que em 73,1% das notificações houve envolvimento de um autor e que entre as mulheres foi maior a proporção dessas agressões perpetradas por apenas um agressor. Em 66,5% dos casos o agressor era do sexo masculino e, em relação ao vínculo com a vítima, eram familiares (28,7%), amigos/conhecidos (23,9%), pessoas desconhecidas (19,4%), parceiros íntimos (16,4%). Houve diferença na distribuição dos agressores segundo o sexo da vítima: as mulheres foram violentadas mais frequentemente por parceiros íntimos do que os homens, que por sua vez foram vítimas de familiares, de amigos/conhecidos e de pessoas desconhecidas em maior proporção do que as mulheres. A suspeita de que o agressor tenha consumido bebida alcoólica foi apontada por 28,5% das vítimas (Tabela 3).
A Tabela 4 apresenta a proporção e a RP dos tipos de violência mais notificados segundo características selecionadas. A violência física foi significativamente superior na raça/cor indígena (RP = 1,15), negra (RP = 1,03) e amarela (RP = 1,03) e quando havia suspeita de ingestão de bebida alcoólica pelo agressor (RP = 1,21). Ela foi significativamente inferior no sexo feminino (RP = 0,75), na idade de 10 a 14 anos (RP = 0,65), na violência de repetição (RP = 0,83), quando ocorrida na residência (RP = 0,73) e quando praticada por agressores familiares (RP = 0,70).
A violência psicológica foi significativamente superior no sexo feminino (RP = 1,73), no grupo com idade de 10 a 14 anos (RP = 1,19), quando perpetrada de forma repetitiva (RP = 1,68), no domicílio (RP = 1,40), por agressores familiares (RP = 1,16) e com suspeita de ingestão de bebida alcoólica pelo agressor (RP = 1,33). Ela foi significativamente inferior no grupo de negros (RP = 0,96) em comparação ao de brancos.
A violência sexual foi seis vezes mais frequente no sexo feminino (RP = 6,20), três vezes mais no grupo com idade de 10 a 14 anos (RP = 3,11), mais frequente na raça/cor indígena (RP = 1,40), negra (RP = 1,38) e amarela (RP = 1,28), quando perpetrada de forma repetitiva (RP = 1,39), no domicílio (RP = 1,34) e quando havia suspeita de ingestão de bebida alcoólica pelo agressor (RP = 1,08). Ela foi perpetrada por familiares em proporção significativamente inferior em relação aos não familiares (RP = 0,63).
A negligência predominou no grupo com idade de 10 a 14 anos (RP = 2,23), quando perpetrada de forma repetitiva (RP = 1,47), no domicílio (RP = 1,12), praticada por familiares (RP = 14,48). Ela foi significativamente inferior no sexo feminino (RP = 0,58), na raça/cor negra (RP = 0,84), amarela (RP = 0,78), indígena (RP = 0,36) e quando havia suspeita de ingestão de bebida alcoólica pelo agressor (RP = 0,89).
DISCUSSÃO
As notificações de violências no setor saúde contribuem para a análise epidemiológica dos casos e fornecem subsídios para a organização dos serviços e o delineamento das políticas públicas de saúde. Ademais, a comunicação dos casos aos conselhos tutelares atende o propósito de acionar a rede de proteção social aos adolescentes16,22. Nesse contexto, a ampliação do número de notificações e do número de municípios notificantes, no período de 2011 a 2017, vai ao encontro das estratégias de enfrentamento à violência contra adolescentes no Brasil.
Apesar do aumento do número de municípios notificantes, a ampliação ocorreu de forma desigual entre UFs e regiões. Esse resultado indica a necessidade de delineamento de políticas púbicas e estratégias específicas para ampliar a cobertura das notificações nos distintos territórios brasileiros, tendo em vista as diferentes realidades regionais.
Nesse contexto, a subnotificação existente nos serviços de saúde apresenta-se como uma limitação deste estudo. Não se podem considerar as notificações o conjunto das violências perpetradas contra os adolescentes, mas sim uma aproximação ao problema ou um diagnóstico com base nos casos de pessoas em situação de violência que procuraram o serviço de saúde e tiveram acesso a ele e cujos casos foram notificados pelos profissionais que atuam nas unidades/nos serviços notificadores17. Sabe-se que esses profissionais encontram dificuldades no registro das notificações pela dificuldade de diagnosticar as situações de violência em queixas difusas, pela recusa em lidar com a violência como problema de saúde, pela acumulação de atividades e falta de tempo no processo de trabalho, pelo constrangimento que a abordagem a esses casos pode causar, pelo medo de retaliação e de exposição da atuação profissional e pela falta de capacitação23,24. Cabe salientar que nem todo caso de violência gera lesões passíveis de assistência nos serviços de saúde25. Ademais, diferentes estados e municípios podem apresentar níveis distintos de cobertura do sistema de vigilância das violências, o que gera diferenças na capacidade de registro das violências17.
A maior quantidade de notificação de violência entre as mulheres pode estar relacionada, para além da vitimização mais frequente de mulheres especialmente no que diz respeito às violências sexuais26,27,28, psicológicas e praticadas pelos parceiros íntimos no ambiente domiciliar6,29, a fatores como maior procura das mulheres por atendimento de saúde em relação aos homens30 e, consequentemente, maior captação da violências entre elas.
Em relação à maior proporção de vítimas de raça/cor negra, é relevante destacar que adolescentes e jovens negros são mais submetidos a desigualdades sociais e situações de insegurança e mais expostos às violências em comparação aos brancos5,13,31,32,33.
As mulheres foram vítimas de violência de repetição em maior proporção do que os homens. Estudos descrevem que os episódios de violência contra mulheres são crônicos e tendem a tornar-se progressivamente mais graves34. Essa violência cometida de forma repetitiva tem significativas repercussões sobre o adoecimento ou o sofrimento mental das mulheres e contribuem para maior procura delas pelos serviços de saúde em comparação aos homens34,35.
A residência e a via pública destacaram-se como locais de ocorrência das violências, assim como o observado em outros trabalhos6,11,31,36,37. A violência praticada nas residências revela que os agressores são da família ou têm livre acesso ao domicílio11,29,37. Essa situação se opõe à concepção do lar como local seguro, fonte de desenvolvimento para crianças e adolescentes37.
As mulheres foram vítimas de violência no domicílio em maior proporção do que os homens. A violência sofrida por elas tem nos pais, no namorado ou no companheiro da mãe os principais autores da agressão6,29, cometida comumente no ambiente doméstico. Entre os homens, a violência praticada na via pública ocorreu praticamente na mesma proporção que a violência domiciliar. A elevada proporção da violência entre os homens na via pública por desconhecidos está relacionada à maior exposição a riscos nos espaços públicos do que as mulheres6,38.
As lesões autoprovocadas corresponderam a 18,5% das notificações e ocorreram em maior proporção entre as mulheres. Esse resultado vai ao encontro de estudo realizado em serviços sentinelas de urgência e emergência nas capitais brasileiras, que apontou maior chance de atendimento de mulheres por essa causa39. A vulnerabilidade dos adolescentes e jovens brasileiros ao suicídio ocorre de modo crescente, sustentado e com alto impacto, fato que requer o delineamento de políticas púbicas e estratégias voltadas para o enfrentamento ao problema nesse grupo populacional40.
A violência física foi predominante no sexo masculino, no grupo com idade de 15 a 19 anos, quando perpetrada fora do domicílio e quando os agressores não eram familiares, resultados que vão ao encontro dos achados de inquérito realizado em serviços de urgência nas capitais brasileiras6. As lesões decorrentes de violências comunitárias, um importante problema de saúde pública especialmente entre adolescentes e adultos jovens do sexo masculino, são apontadas na literatura como fatores de risco para a sobremortalidade masculina6,38,41,42.
A elevada notificação da violência física observada neste e em outros estudos pode ser justificada pela presença de marcas corporais visíveis que facilitam a identificação, o que pode não ocorrer em outras formas de violência, que requerem investigação mais minuciosa para identificação1,11,43.
A violência sexual foi mais frequente no sexo feminino e no grupo com idade de 10 a 14 anos, o que está de acordo com a literatura26,27,28. A maior vitimização no sexo feminino reforça as evidências de desigualdades expressas nas relações de gênero de uma sociedade sexista, que legitima a preservação de suposta supremacia masculina e coloca as mulheres em situação de risco para a vitimização por violência27,28,44. Além disso, vale destacar que quanto menor a idade da vítima, maiores são as consequências desse tipo de violência, que acarreta consideráveis prejuízos psicológicos e físicos que irão acompanhá-la ao longo da vida27,28,45.
Ademais, sabe-se que a real prevalência dos abusos sexuais ainda é pouco conhecida e acredita-se que o índice de subnotificação seja muito alto11,46 e decorrente de fatores como o constrangimento da vítima, o receio de humilhação, bem como o medo da falta de compreensão dos familiares, dos amigos e das autoridades11.
A violência psicológica foi mais frequente no sexo feminino e quando perpetrada de forma crônica. Essa violência, por conta de sua característica de subjetividade e de diferentes expressões, é de difícil registro. Em geral faz parte do contexto de outas formas de violência, é exercida de forma crônica e pode cursar sérios prejuízos ao desenvolvimento cognitivo e psicossocial de crianças e adolescentes, comprometendo a saúde emocional11,43,47.
A negligência e o abandono foram mais frequentes quando praticados de forma crônica, no ambiente domiciliar e quando os agressores eram familiares, o que está de acordo com trabalho publicado com dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes na população infantojuvenil43, e a maior proporção foi observada no sexo masculino43,48. Esse tipo de violência é de difícil definição e necessita de elementos fundamentais para identificação, como os contextos de pobreza, isolamento, privação social e outras carências presentes na história de vida dos pais e das vítimas37,43. Esses fatores, relacionados à violência estrutural perpetrada historicamente contra milhões de famílias brasileiras, dificultam julgamento mais preciso entre a prática abusiva e a impossibilidade de prover os requisitos para o desenvolvimento de crianças e adolescentes49.
A maior proporção de envenenamento observada entre as adolescentes pode estar relacionada ao fato de que entre as mulheres, em especial as adolescentes e adultas jovens50, as tentativas de suicídio são realizadas pelo método de mais fácil acesso, como os agentes tóxicos39,50.
As armas de fogo e os objetos perfurocortantes foram meios de agressão mais utilizados contra adolescentes do sexo masculino e corroboram a literatura nacional51,52,53,54, que aponta o predomínio dessas agressões em adultos jovens e adolescentes. É relevante destacar que, globalmente, 48% dos homicídios são cometidos com arma de fogo e 27% com objetos perfurocortantes, como facas. Nos países de baixa e média renda na região das Américas as mortes por armas de fogo respondem por 75% de todos os homicídios, enquanto os perpetrados por objetos perfurocortantes respondem por 16%55. A ausência de armas de fogo nos ambientes doméstico e comunitário é a medida mais confiável e eficaz para prevenir o suicídio, o homicídio e as lesões não intencionais por armas de fogo em crianças e adolescentes12,56.
A maior parte dos casos de violência foi causada por agressores do sexo masculino. É importante destacar que a constituição da identidade masculina, hegemonicamente caracterizada pela força, pela competição e pelo machismo, potencializa a associação entre o masculino e a violência51,57 e aprisiona os homens na condição de vítimas e autores57. A superação desse problema requer a implementação e o fortalecimento de inciativas que promovam profunda reflexão sobre os valores, as formas de socialização e a construção das identidades masculina e feminina nas sociedades atuais, pautadas no estabelecimento de relações mais equitativas dos homens com seus pares e com o sexo oposto51.
Em relação ao uso de bebida alcoólica pelo agressor, é necessário destacar que no Brasil parte da violência tem sido associada, além dos determinantes sociais e culturais, ao uso indevido de álcool, às drogas ilícitas e à vasta disponibilidade de armas de fogo38. O consumo de álcool é fomentador significativo de situações violentas12,58,59, tanto sob o ponto de vista do agressor quanto o da vítima58.
Os achados deste trabalho apontam que nas notificações de violências contra adolescentes predominam os tipos intrafamiliar e comunitário, com forte caráter crônico. Como o problema é complexo e demanda a atuação de diversos setores para seu enfrentamento, a saúde precisa atuar em rede, de forma articulada, para que sejam oferecidos os efetivos encaminhamentos intra e intersetoriais.
Preocupa o fato de as violências sexuais serem a segunda natureza mais presente nas notificações em adolescentes do sexo feminino. Em razão de seus impactos negativos na saúde mental, física, sexual e reprodutiva, especial atenção deve ser oferecida aos profissionais e serviços habilitados para essa assistência, a fim de que garantam a atenção humanizada e integral.
Ademais, é relevante uma estrutura de apoio e proteção aos profissionais que realizam a notificação de violências, assim como capacitação permanente sobre o tema. Por fim, a viabilização de ferramentas que facilitem e qualifiquem o processo de notificação, como um sistema on-line, pode ser relevante para aprimoramento da notificação enquanto importante dimensão da linha de cuidado.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Jul 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
18 Out 2019 -
Revisado
20 Dez 2019 -
Aceito
09 Jan 2020