Resumos
Pretende-se examinar o papel da analogia no pensamento freudiano, através de um período fértil e tumultuado do movimento psicanalítico, marcado pela intensificação das divergências entre Freud e seu dileto (Jung), e também pelo crescimento do movimento da psicanálise aplicada entre Freud e seus discípulos e pelo trabalho analítico daquele que é, talvez, o mais importante caso clínico escrito por Freud: o caso do Homem dos Lobos. Este período marca um imenso campo de debates clínicos e teóricos, entre os quais se inclui, sem dúvida, o problema da analogia na teoria e na clínica psicanalíticas.
psicanálise aplicada; analogia; teoria freudiana
This article intends to examine the role of analogy in the Freudian thought. With this in mind we will visit a very hectic and productive period in the psychoanalytical movement. This period was marked by the divergences between Freud and Jung, by the expansion of the applied psychoanalytical movement between Freud and his disciples, and by the analytical work of the Wolfman (which might be considered Freud's most important case). This period marks a huge field of clinical and theoretical debates, among which the problem of analogy in theory and in clinical psychoanalysis is undoubtedly included.
applied psychoanalysis; analogy; Freudian theory
ARTIGOS
Freud, Jung e o Homem dos Lobos: percalços da psicanálise aplicada* * Agradeço aos amigos Adriana Morettin e Marcelo Donatti pelas leituras e comentários.
Freud, Jung and the Wolfman: benefits of applied psychoanalysis
Paulo Endo
Pesquisador do Núcleo Psicanálise e Sociedade (PUC-SP). Doutorando. (IP-USP). Psicanalista. Rua Ricardo Severo 76 Perdizes. 05010-010 São Paulo SP. Tel. (11)3862-3912 / (11)3862-9859. pauloendo@uol.com.br
RESUMO
Pretende-se examinar o papel da analogia no pensamento freudiano, através de um período fértil e tumultuado do movimento psicanalítico, marcado pela intensificação das divergências entre Freud e seu dileto (Jung), e também pelo crescimento do movimento da psicanálise aplicada entre Freud e seus discípulos e pelo trabalho analítico daquele que é, talvez, o mais importante caso clínico escrito por Freud: o caso do Homem dos Lobos. Este período marca um imenso campo de debates clínicos e teóricos, entre os quais se inclui, sem dúvida, o problema da analogia na teoria e na clínica psicanalíticas.
Palavras-chave: psicanálise aplicada, analogia, teoria freudiana.
ABSTRACT
This article intends to examine the role of analogy in the Freudian thought. With this in mind we will visit a very hectic and productive period in the psychoanalytical movement. This period was marked by the divergences between Freud and Jung, by the expansion of the applied psychoanalytical movement between Freud and his disciples, and by the analytical work of the Wolfman (which might be considered Freud's most important case). This period marks a huge field of clinical and theoretical debates, among which the problem of analogy in theory and in clinical psychoanalysis is undoubtedly included.
Keywords: applied psychoanalysis, analogy, Freudian theory.
Este artigo deriva da permanente preocupação de Freud em resolver, aprofundar e esclarecer dissensões por meio de seus textos; o que nos permite reencontrar, nos rastros da divergência mais pessoal, revisões da teoria e do método psicanalíticos que resultam, invariavelmente, em reformulações fundamentais. Como é fartamente sabido, vários textos importantes de Freud têm, como um de seus propósitos, resolver divergências e mal-entendidos dentro e fora do movimento psicanalítico, onde a relação com C.G. Jung ocupa um espaço à parte. A tensão permanente que sempre acompanhou a relação de ambos fez deles pai e filho, como também inimigos atrozes, bem ao sabor de Totem e tabu que neste período era gestado por Freud.1 1 Jung, a pedido de Freud, acompanha as reflexões e o interesse de Freud pela religiosidade primária, dando inclusive sugestões e críticas ao texto Totem e tabu. "No entanto" diz Jung "é muito opressivo para mim se o senhor também se envolver nesta área (...) O senhor é um concorrente muito perigoso." Ver Gay (1988, p. 215-231). Foi Jung, justamente, aquele que engrossou as fileiras dos inimigos da psicanálise, colocando em xeque o principal pressuposto da teoria freudiana de onde tudo mais deriva: a sexualidade.
Seja como adversário, discípulo ou rival, o fato é que Jung sempre representou para a psicanálise fonte de valorosas inquietações, e além disso impunha, como inimigo que gradualmente se tornava, o retorno de Freud à técnica e à teoria psicanalíticas, desde os seus fundamentos. Difícil dizer se e quando o conceito de narcisismo seria formulado se não houvessem as Conferências de Fordham2 2 Conjunto de atividades realizadas por C.G Jung na Universidade de Fordham, Nova York, onde, pela primeira vez, Jung leva a cabo a dessexualização da psicanálise, ainda se autodenominando psicanalista. tornado públicas, em outro continente, as diferenças que passariam a marcar paulatina e gravemente a separação de ambos.
Teriam os textos da metapsicologia a grandeza teórica que tiveram, se antes Freud não houvesse perdido seu discípulo mais querido, justamente por dissensões e divergências teóricas? Que elementos seriam subtraídos (ou adicionados) no caso do "Homem dos Lobos" sem o furor do conflito que fazia Freud perder de uma só vez Adler e Jung, justamente nos anos em que atendia Sergei Pankejeff? Qual História do movimento psicanalíticoFreud desejaria ter escrito neste período de turbulências domésticas? Perguntas sem respostas possíveis, mas importantes porque nos impelem a revisitar mais uma vez um trecho do movimento psicanalítico repleto de reentrâncias, dilemas e complexidades.
O trecho onde permaneceremos é o que desenha e projeta em amplitude o avanço da psicanálise e sua pertinência como conhecimento reconhecido em áreas distintas do saber. Momento este em que um movimento capitaneado pelo próprio Freud surge entre os psicanalistas: o movimento da psicanálise aplicada. A este respeito relembremos alguns fatos.
Em 1907 foi criada uma coleção de escritos intitulada "Escritos de psicanálise aplicada".3 3 Cf. PLON, M.: "A face oculta da análise leiga". na qual foram publicados trabalhos de Jung, Abraham, Pfister, Jones, Herminne von Hegg-Helmuth, além do estudo inaugural de Freud sobre a Gradiva de Jensen e, posteriormente, seu texto sobre "Uma lembrança Infantil de Leonardo da Vinci."4 4 Em geral, Freud trabalhava aplicando a psicanálise às biografias, estabelecendo analogias com a clínica, isto é, tratava o material biográfico como um caso clínico ou como disse Freud a respeito de Leonardo em carta a Jung de 11 de novembro de 1909: "Um espírito nobre, Leonardo da Vinci, tem posado regularmente para mim a fim de que o psicanalise um pouco"(MCGUIRE [org.], 1993, p. 281). Mais tarde, em 1914, Freud reproduzirá deste modo os objetivos da Associação Psicanalítica Internacional, fundada em 1910:
"Estudo e promoção da ciência psicanalítica fundada por Freud, tanto em sua qualidade de Psicologia pura como em sua aplicação à Medicina e às Ciências do Espírito, e mútuo apoio dos associados quanto à aquisição e difusão dos conhecimentos psicanalíticos." (FREUD, 1914/1981, p. 1.917)
Em 1912 é fundada a revista Imago, nome escolhido a dedo em homenagem a um romance suíço do mesmo nome, declarando, desde o início, a intenção da revista em discutir temas em outros âmbitos que não só os da psicanálise clínica, exercida para fins terapêuticos. Mais do que isto, proclamava em seu subtítulo: "revista para a aplicação da psicanálise às ciências do espírito". Embora esta iniciativa fosse ainda pautada por dúvidas e hesitações o que deixou o artigo sobre Moisés de Michelângelo com autoria anônima por dez anos sob a insistência de Freud em chamá-lo de "filho bastardo" para Freud, entretanto, o objetivo era claro: a psicanálise deveria caminhar na direção da conquista, da colonização de campos alheios a ela até então como, um dia, foi o campo das neuroses.
Em carta a Jung de 17 de outubro de 1909, Freud dirá:
"Folgo em saber que o senhor compartilha minha crença de que devemos conquistar por completo o campo da mitologia. Até agora temos apenas dois pioneiros: Abraham e Rank. Não há de ser fácil encontrá-los mas precisamos de homens para companhias mais longas." (MCGUIRE [org.], 1993, p. 276)
Numa série de cartas datadas entre 14/10/1909 e 30/11/1909, Freud e Jung discutem pontos relevantes da aplicação (ou conquista) da psicanálise a outras ciências. Tratava-se, para Freud, de "chamar à consciência os mitólogos", esclarecê-los à luz da psicanálise, fazê-los mais psicanalistas e não, obviamente, o contrário. Este interesse inicial, compartilhado por ambos, será a fenda que se alargará ao ponto da ruptura e que culminará naquilo que sob vários aspectos, todos fundamentais, podemos chamar da dessexualização da psicanálise proposta por Jung. Todavia, é interessante notar que aquilo que se constituiu como o pomo da discórdia já estava plantado em 1906 (ano do início das correspondências), como é possível observar numa carta de Jung em 5 de outubro de 1906:
"Quero dizer que sua terapia não parece depender apenas dos afetos liberados por ab-reação, mas também de certas relações (rapports) pessoais e acredito que a gênese da histeria, embora predominantemente sexual, não o seja exclusivamente." (MCGUIRE [org.], 1993, p.42)
Ao que Freud responderá de forma confiante em 7 de outubro de 1906:
"Seus escritos já me haviam sugerido que sua aceitação de minha psicologia não se estende a todos os meus pontos de vista sobre a histeria e o problema da sexualidade, mas me atrevo a esperar que, com o passar dos anos, o senhor chegue muito mais perto de mim do que julga possível atualmente." (MCGUIRE [org], 1993, p. 45)
Esta discreta "virulência" encontrará a sua plena expressão em 1912, ano em que a psicanálise, já consolidada, buscava a ampliação de seu campo; em outras palavras, a sua aplicação. Terá sido então no próprio seio do movimento psicanalítico, circunscrito pelas preocupações da aplicação da psicanálise, que tal divergência se inscreveu e onde os riscos conceituais, teórico e políticos desta passagem puderam se manifestar completamente. Creio que a divergência Freud/Jung representa para a psicanálise um período de extraordinária riqueza permitindo a Freud, entre outras coisas, reconhecer dolorosamente os riscos e as possíveis perdas desta transposição da psicanálise à cultura, que lhe parecia tão incontestável. Podemos reconhecer ali também aquilo que até hoje ocupa os psicanalistas e que se manifesta nas dificuldades conceituais e políticas inerentes a esta ultrapassagem. Freud não suspeitava que seu anseio de conquista pudesse colocar em xeque a teoria psicanalítica, mas o agravamento e a explicitação das divergências com Jung o demonstraram. Todavia, a psicanálise jamais se livrou completamente dos perigos inerentes à ampliação de seu campo, dificuldades, aliás, vividas no próprio âmbito das comunidades psicanalíticas; mas é verdade também que os inúmeros trabalhos que buscam rediscutir o raio da reflexão e da ação psicanalíticas para além do trabalho clínico strictu senso respondem totalmente a uma inspiração freudiana. É possível observarmos, então, após a publicação de Totem e tabu, esta inspiração ganhar em complexidade e ousadia em textos freudianos de caráter explicitamente social, como também veremos Freud recuar e voltar-se para o escopo da metapsicologia recolhendo daí mais e melhores instrumentos. E mesmo aí, nestes dois casos, veremos em efígie aquilo que representou perdas e rupturas dolorosas para o próprio Freud, mas também apuro conceitual, rigor e afirmação de pressupostos para a psicanálise.
FREUD E JUNG: O POMO DA DISCÓRDIA
Em carta de Jung de 11 de novembro de 1912, ele comunica a Freud o seu retorno dos EUA, onde desenvolveu, na Universidade de Fordham, Nova York, uma série de atividades pela "difusão do movimento". Ali, ele comenta rapidamente que:
"Naturalmente, também expressei certas opiniões minhas que se desviam das concepções existentes até agora, particularmente em relação à teoria da libido. Achei que a minha versão da Psicanálise conquistou a simpatia de muitas pessoas que, até o momento, estavam confusas com o problema da sexualidade na neurose." (MCGUIRE [org.], 1993, p. 521)
Sabemos que Freud já tinha em mãos o texto publicado em 1912 sobre as modificações de Jung na teoria da libido, mais tarde traduzido nas obras completas de Jung como "Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia". Em ríspida carta-resposta, Freud pede uma separata das conferências proferidas por Jung nos EUA, alegando que este longo ensaio de Jung sobre a libido não o havia esclarecido de forma suficiente. Dificilmente Jung poderia ter sido mais claro, mas Freud queria uma confirmação, uma nova prova cabal daquilo que ele parecia ainda não acreditar: a iminência da ruptura que se aproximava inexoravelmente.
Neste artigo, todo o esforço de Jung no que tange à libido é dessexualizá-la dando a ela o caráter de energia geral, não necessariamente sexual. Ao mesmo tempo, ele procura demonstrar que tal dessexualização da libido estaria no próprio Freud:
"Como a citação de Freud mostra, realmente sabemos muito pouco sobre a natureza dos instintos humanos e sua dinâmica psíquica para poder ousar atribuir a primazia a um único instinto. É mais prudente por isso, ao falarmos de Libido, entender com este termo um valor energético que pode transmitir-se a qualquer área, ao poder, à fome, ao ódio, à sexualidade, à religião, etc., sem ser necessariamente um instinto específico." (JUNG, 1952/1986, p. 124)5 5 Cabe esclarecer que o texto de Jung utilizado como referência será a última versão de 1952, e não o texto original publicado entre 1911/1912. Portanto, com eventuais modificações posteriores a que Freud não teve acesso. Creio manter-se, entretanto, o essencial da divergência.
e mais adiante:
"Com isto voltamos a nossa hipótese de que não é o instinto sexual, mas uma energia em si indiferente que leva à formação de símbolos: luz, fogo, sol, etc. Assim, pela perda da função do real na esquizofrenia, não ocorre um aumento da sexualidade, mas um mundo de fantasia que apresenta traços arcaicos nítidos. (...) Para usar a comparação de Freud: atira-se com o arco e a flecha ao invés de armas de fogo. O desaparecimento das últimas aquisições da função do real (ou adaptação) é substituído, se o for, por um modo de adaptação mais primitivo. Já encontramos este princípio na doutrina das neuroses: uma adaptação falha é substituída por um modo de adaptação antigo, no caso, uma reativação regressiva(grifo meu) da imagem dos pais. Na neurose o produto substitutivo é uma fantasia de procedência e alcance individual, faltando aqueles traços arcaicos característicos da esquizofrenia." (JUNG, 1952/1973, p. 127)
Embora com aparente circunscrição ao campo das psicoses, veremos como Jung pretendia alastrar sua nova concepção numa carta a Freud de 17 de maio de 1912:
"Psicologicamente, a proibição do incesto não tem o significado que é preciso atribuir-lhe se se presume a existência de um desejo de incesto particularmente intenso. O significado etiológico da proibição do incesto deve ser diretamente comparado com o assim chamado trauma sexual, que habitualmente deve o seu papel etiológico apenas à reativação regressiva. O trauma é aparentemente importante ou real, e assim o é a proibição ou barreira do incesto, que, do ponto de vista psicanalítico, tomou o lugar do trauma sexual. Assim como cum grano salis, não importa se um trauma sexual realmente ocorreu ou não, ou foi uma simples fantasia, psicologicamente é secundário se existiu ou não a barreira do incesto, uma vez que é essencialmente uma questão de desenvolvimento posterior o problema do incesto transforma-se ou não num problema de evidente importância." (MCGUIRE [org.], 1993, p. 510)
É possível acompanhar a maneira como Jung, neste momento, através de sua concepção de arquétipos (implícita na idéia de reativação regressiva), elide de vez a experiência infantil, ou se quisermos a realidade da experiência infantil (leia-se o complexo de Édipo) como o momento fundamental da experiência sexual da criança, definidora de sua vida psíquica ulterior. O que Jung sustenta com a idéia de reativação regressiva é uma espécie de regressão radical para além da experiência individual do sujeito que se reportaria, em última instância, a uma experiência coletiva arcaica que, por sua vez, pode ser ativada pela experiência atual. A experiência edipiana perderia seu estatuto de experiência realmente vivida pela criança e passa ao campo das experiências coletivas arcaicas que gerariam então o incesto, como fato inventado pelo psiquismo.
A resposta de Freud em carta a Jung de 23 de maio de 1912 levanta novamente a questão da realidade em psicanálise, abandonada em 1897 e que será retomada com toda a força no Caso do Homem dos Lobos. Segue um trecho da carta:
"Na questão da libido, finalmente, vejo a que ponto a sua concepção difere da minha (estou me referindo, é claro, ao incesto, mas pensando nas suas anunciadas modificações no conceito de libido). O que não consigo ainda compreender é por que razão o senhor abandonou a concepção mais antiga, e que outra origem e motivação a proibição do incesto pode ter." (MCGUIRE [org.], 1993, p. 511)
Percebe-se que Freud, neste momento, ainda não havia entrado em contato com a segunda parte do artigo de Jung, publicada em 1912. A primeira parte, sem as considerações sobre a libido, já havia sido publicada em 1911.
Segue a resposta:
"Valorizo a sua carta pela advertência que contém e pela lembrança de meu primeiro grande erro, quando confundi fantasias com realidades. Serei cuidadoso e manterei os olhos abertos a cada passo.
Se agora, porém, deixarmos de lado a razão e sintonizarmos o aparelho com o prazer, confesso ter uma forte antipatia pela sua inovação. Primeiro o caráter regressivo da inovação. Creio que temos sustentado, até agora, que a ansiedade se origina na proibição do incesto; agora o senhor afirma, pelo contrário, que a proibição do incesto origina-se na ansiedade, o que é muito semelhante ao que foi dito antes da era da Psicanálise." (MCGUIRE, [org.], 1993, p. 511)
E ainda, na mesma carta, sobre a realidade do incesto e do complexo de Édipo:
"Em segundo lugar, por causa da semelhança desastrosa com um teorema de Adler, embora naturalmente eu não condene todas as invenções de Adler. Disse ele: 'a libido do incesto é arranjada', isto é, o neurótico não tem absolutamente desejo pela sua mãe, mas quer munir-se de um motivo para afugentar-se de si próprio; finge para si mesmo, portanto, que sua libido é tão monstruosa que não poupa nem mesmo a sua mãe. Isso ainda hoje me surpreende pela fantasia, baseada numa total incompreensão do inconsciente. Pelo que o senhor sugere, não tenho dúvidas de que a sua derivação da libido incestuosa será diferente. Existe porém uma certa semelhança." (MCGUIRE [org.], 1993, p. 511)
Vejamos a amplitude que alcança a divergência entre ambos. Os conceitos de realidade e fantasia exigirão, da parte de Freud, novo reposicionamento. Ante as oposições colocadas por Jung não será mais possível sustentar a indistinção completa entre fantasia e realidade tal como figura na carta 69 a Fliess. Aliás, o próprio Jung se remete ao período em que Freud afirma coisas como (...) "no inconsciente não há indicação de realidade, de modo que não se consegue distinguir a verdade e a ficção que é catexizada de afeto".6 6 Carta 69 de Freud a Fliess, datada de 21 de setembro de 1897. Este reposicionamento será levado adiante no caso do Homem dos Lobos, onde as discussões e a relevância da cena primária ocuparão um lugar central nas considerações metapsicológicas sobre o caso. A cena primária, então, como índice de realidade em que a interpretação psicanalítica, diante dos posicionamentos de Jung, encontraria guarida. Neste contexto, a cena primária torna-se a âncora que delimita o aspecto regressivo da libido, mantendo-o nos limites da experiência sexual do sujeito e aquém do ilimitado alcance do que Jung denominou de reativação regressiva da libido. Para Freud, a regressão visaria uma experiência sexual realmente vivida e nela estancaria, daí o seu caráter primário. Portanto, mesmo que em grande parte fantasiada, tais fantasias seriam construídas em torno de índices (barulhos, ruídos, movimentos observados na penumbra, etc.).7 7 Cf Jean Laplanche e J-B Pontalis, no verbete cena primária e Claude Le Guen em Prática do método psicanalítico. O que estava em questão neste momento era o caráter sexual da regressão como mecanismo de defesa e a possibilidade de rastreá-la, digamos assim, no âmbito das experiências sexuais do sujeito e não fora delas, onde Jung situava o coletivo. Este âmbito não poderia ser completamente definido nem pela realidade factual, nem pela rememoração literal, o que colocaria em xeque, nos dois casos, o estatuto pulsional da lembrança representado pelo fantasiar que se lhe impõe. Lá onde as marcas do desejo fazem soçobrar a literalidade, a fidedignidade e o caráter fatual de uma pretensa reconstituição idêntica do passado. Por outro lado, era impossível deixar sem resposta os posicionamentos de Jung, sustentando que, no limite, a própria experiência do complexo de Édipo seria inteiramente uma fantasia retroativa do paciente e quiçá do analista. Freud se movia com cautela no tabuleiro.
Sua resposta, demonstrada de maneira ampla no Homem dos Lobos, põe em discussão o método (re)construtivo da análise. Para isto foi necessário o retorno à clínica, à demonstração pari passu do trabalho e do método psicanalítico. De volta à poltrona e ao divã.
Evocando A interpretação dos sonhos e Lembranças encobridoras, Freud recolocará a problemática da fantasia e da realidade em outros termos. Esta dicotomia, tão cara à psicanálise, encontrará uma solução metodológica das mais interessantes, na medida em que aquilo que será (re)construído durante o processo de análise, serão sempre representações colocadas em marcha durante o trabalho das sessões. Outrossim, a peculiaridade do trabalho será possibilitar, em seu curso, o aparecimento das inumeráveis maneiras de recordar, deslocando o conteúdo recordado para um segundo plano. Freud explicita aqui o caráter do trabalho de análise diferenciando-o claramente de um trabalho de recordação dos fatos:
"Todo analista sabe muito bem e tem comprovado infinitas vezes que, em uma cura conduzida a bom termo, o paciente comunica multidões de recordações espontâneas de seus anos infantis, de cuja aparição ou melhor, talvez de cuja primeira aparição o médico não se sente, de modo algum, responsável, já que nunca orientou o enfermo com nenhuma tentativa de reconstrução em direção à tais conteúdos. Estas recordações, antes inconscientes, não têm sequer que ser verdadeiras; podem sê-las, porém muitas vezes foram deformadas contra a verdade e entremeados com elementos fantasiados, como acontece com as chamadas lembranças encobridoras, às quais se conservam espontaneamente. Quero dizer apenas que estas cenas, como a de nosso paciente, pertencentes a tão remota época infantil, com tal conteúdo e de tão extraordinária significação na história do caso, não são geralmente reproduzidas como recordação, senão que têm de ser adivinhadas construídas passo a passo e muito laboriosamente de uma soma de alusões e indícios." (FREUD, 1918/1981, p. 1.967)
Será este trabalho de reconstrução, e não de recordação factual o que caracterizará o trabalho de análise e o diferenciará de outros métodos. A reativação regressiva, tal como sugerida por Jung, lança o trabalho analítico para fora do campo onde este trabalho se faz possível, e sobretudo mantém intacta a busca "regressiva" pelo recordado. Esta busca, é bem verdade, não cumprirá o prometido, uma vez que este passado arcaico só será reencontrado analogamente, mantendo-se a hipótese de que um dia, em algum lugar, ele foi realmente vivido por outro ser humano de forma socialmente reconhecida. O próprio Jung reconhecerá esta impossibilidade, ao mesmo tempo eliminando-a como obstáculo, numa analogia entre a invenção do fogo e a fecundação da mãe (matéria): "Naturalmente nunca encontraremos provas reais para isto, mas é presumível que em algum lugar se conservaram vestígios destes primitivos exercícios preliminares à produção do fogo" (JUNG, 1952/1986, p. 147).
Tais analogias entre as dificuldades, repetições e soluções psíquicas encontradas pelo sujeito ante um obstáculo, uma dificuldade ou uma barreira atual serão atribuídas à extensa pesquisa que Jung levará a cabo no terreno das mitologias de diferentes povos em diferentes épocas. Interesse, como já vimos, compartilhado pelo próprio Freud. Portanto, esta aproximação entre conteúdos dos sonhos, dos delírios, das alucinações do paciente com as representações coletivas, como modo de compreensão dos conflitos em jogo, só pode ser levada adiante recorrendo a aproximações por semelhança: as analogias.
Ou como o próprio Jung dirá: "Alguma vez as experiências míticas foram originais, experiências numinosas primárias e quem não perder o ânimo da pesquisa poderá observar, ainda hoje, estas experiências subjetivas primárias"(JUNG, 1952/1986, p.144).
Ao que parece, tudo se passa como se a psique, através de um mecanismo analógico, regredindo retroativamente, perscrutasse o inconsciente e se ancorasse em "estruturas idênticas, universais da psique" (JUNG, 1952/1986, p. 145). Necessariamente, então, a energia libidinal, não sexual, se desloca por semelhança que é o que lhe possibilita pousar tanto na mãe como objeto de desejo quanto nos cultos à mãe terra como fornecedora de alimento (Cf. JUNG, 1952/1986, p. 146). É este ritmo analógico que confere à libido o caráter de energia geral.8 8 É importante notar que o mesmo modelo analógico de interpretação atingirá em cheio o caráter sexual da libido, ao mesmo tempo que permitirá o surgimento de conceitos centrais na psicologia analítica, como os de arquétipos e inconsciente coletivo. No primeiro caso Jung comenta a respeito da regressão:
O recurso às analogias, especialmente quando aplicado ao fenômeno social, representa com freqüência, no pensamento freudiano, um calcanhar-de-aquiles, uma mácula do método e um sinal de fraqueza e falta de rigor, ao qual os próprios psicanalistas têm de retornar muitas vezes para criticar, corrigir, melhorar. Em Jung, como já vimos, o pensamento analógico assumirá um caráter nuclear ao próprio método. Conceitos centrais na psicologia analítica, como a noção de arquétipos e inconsciente coletivo, por exemplo, são totalmente tributários do conceito de libido como energia geral, portanto dessexualizada, que se deslocaria por "estruturas idênticas" e se alojaria em objetos análogos.
Daí, algumas questões importantes se colocam: o pensamento freudiano, ao buscar solucionar a passagem do social ao coletivo por similitude, não estaria incorrendo no mesmo erro, sinal de uma certa "fragilidade epistemológica"?9 9 Ver Michel Plon (1999), em que o papel da analogia na teorização freudiana é discutido. Ali ele sugere que o dualismo, presente na obra freudiana, é o que impele às soluções analógicas frente a determinados problemas metapsicológicos. A analogia, portanto, como um recurso anterior ao advento da psicanálise aplicada. Ou ainda, não estaria a analogia estruturando o próprio método e a teoria psicanalítica antes mesmo das pretensões "aplicativas" de Freud e seus seguidores?
Uma primeira resposta genérica à primeira questão é certamente sim, não há dúvida de que a analogia é um recurso recorrente na obra freudiana quando o assunto é o fenômeno social, isto desde Totem e tabu.10 10 Ver Mezan (1985), especialmente todo o capítulo 4, em que a solução analógica no pensamento freudiano, em especial na passagem ao social, é devidamente problematizada. Quanto à segunda questão, creio que ainda é preciso discuti-la muito; pois uma coisa é admitir o recurso analógico no esteio de certas figuras, metáforas, histórias que Freud cria para superar momentaneamente certos problemas de entendimento da teoria psicanalítica ou do entendimento da aplicação da teoria; outra coisa é assumir que a metapsicologia em si mesma se escora nos analogismos no engendramento do seu campo conceitual, o que seria refletido no método de trabalho da psicanálise. Como nosso propósito é não perder de vista a controvérsia Freud e Jung, tentando extrair algo mais dela, optaremos por experimentar uma das respostas possíveis a este conjunto de problemas. Discutiremos o debate clínico apresentado por Freud noCaso do Homem dos Lobos, que também é parte daquele conjunto de textos fundamentais da obra freudiana que tem entre suas preocupações responder às críticas de Jung. Neste caso, procuraremos no método (re)construtivo, proposto por Freud, uma alternativa ao método analógico; nosso objetivo é fazer frente às críticas quase invencíveis (e salutares) à psicanálise, que atribuem a Freud o uso de simplórias soluções analógicas ante problemas metodológicos e metapsicológicos complexos.
O ANALÓGICO, O RECONSTRUÍDO E O FENÔMENO SOCIAL
A analogia nos instrui a perceber no jogo analógico um recurso do psiquismo, mais precisamente das defesas inconscientes e de seus mecanismos. Freud assinalou, em várias ocasiões,11 11 Muitas passagens da obra freudiana apresentam com total clareza estas observações de Freud acerca do psiquismo e sua função analógica, observações que contribuem na definição de conceitos fundamentais como condensação, deslocamento, formações mistas, identificação, etc.; segue um exemplo bem preciso do que digo extraído de A interpretação dos sonhos: Apenas uma das relações lógicas a da analogia, coincidência ou contato aparece acomodável aos mecanismos da formação onírica, podendo assim ser representada no sonho por meios muito mais numerosos e diversos do que nenhuma outra. As coincidências ou analogias existentes nos sonhos constituem os primeiros pontos de apoio, e uma parte nada insignificante da elaboração onírica consiste em criar novas coincidências deste gênero quando as existências não podem passar ao sonho por opor-se a isto a resistência da censura." (1900/1981, p. 541) sua relevância central que a lupa psicanalítica revela.
Donde podermos, com alguma imprecisão, dizer que o sintoma é uma invenção psíquica análoga ao conflito. O psiquismo força e inventa analogias e a associação livre, a interpretação do sonho e da fantasia, a análise dos atos falhos e a leitura do campo transferencial são recursos do método que possibilitam reencontrar, num emaranhado de analogias que o psiquismo inventa e reinventa, o conflito psíquico em estado de repetição.
Diferentemente dos analogismos da psique, o método psicanalítico não opera por analogias, caso contrário o método não faria mais do que repetir ao infinito o modus operandi das defesas. O método analítico trabalha pela via de um procedimento denominado, desde cedo, por Freud, de construção. Este método supõe que será o recém-construído o evento próprio ao trabalho de uma análise; portanto aquilo que acabou de nascer e não tem, na experiência do sujeito, nenhum análogo. As razões pelas quais um lobo, uma borboleta ou um cavalo se tornam análogos do pai só poderão ser descritas e compreendidas através da análise da desrazão (inconsciente) que uma análise deve ajudar a construir.
A analogia na psicanálise, creio, faz parte da lógica do sintoma e não da lógica do método; sendo, entretanto, o método que evidenciará esta lógica, invisível a olho nu.
Mas não seriam a associação livre, a transferência, a interpretação dos sonhos, recursos do método psicanalítico que supõe o analógico? Sem dúvida, mas para evidenciar o modo de funcionamento psíquico inconsciente, revelando ao paciente as artimanhas singulares de engendramento destas similitudes onde o próprio sintoma funciona como um análogo do conflito. Reconhecer relações de semelhança entre conteúdos aparentemente díspares naquilo que o paciente nos diz não constitui senão o ponto de partida e o sinal de um mecanismo de defesa inconsciente, ainda a ser elucidado. A questão obviamente nunca é respondida enquanto se permanece no "isto representa aquilo", ou "isto é semelhante àquilo outro"; mas sim quando torna-se possível responder como e por quais caminhos tal semelhança foi estabelecida, caminhos estes que determinam, ao mesmo tempo, um novo fato psíquico: o sintoma. Deste modo é possível dizer que, no limite (e rigorosamente falando), o conteúdo analógico é semelhante a tudo e a nada, e portanto não se esgota em nenhum pareamento preciso, mas freqüentemente insiste para muito além de sua relação de conteúdo, ativado pelo conflito em jogo.
Assim se o jogo analógico parece simples em sua versão conteúdo (lobo = pai = analista = etc.), é de outro lado infinitamente complexo em sua construção singular e inédita.
O método construtivo, exemplarmente demonstrado por Freud no caso do Homem dos Lobos, nos remete ao trabalho que, de certo modo, se opõe ao mecanismo de construção por similitude. Como disse uma vez Serge Viderman (1990, p. 213) "há troça nesta troca"; onde a troca, a substituição, o deslocamento, relançam, via analogia, o conflito para além do alcance da consciência.
Enquanto o analista observa os desdobramentos, as artimanhas e os subterfúgios extraordinários do trabalho psíquico inconsciente, reconhece também que há algo neste campo de forças, gerador de repetições em inúmeras formas variáveis, que pode ser transformado através do trabalho analítico em benefício do bem-estar do paciente. As sucessivas analogias, componentes do sintoma e portanto representantes do conflito, tanto podem permitir o mapeamento cada vez mais claro do conflito em jogo quanto escamoteá-lo completamente. À luz do método psicanalítico, tal como podemos acompanhar no Homem dos Lobos, é possível reconhecer que novas e inéditas passagens (tanto da história do paciente quanto da história da teoria) são sugeridas por Freud a fim de romper sucessivamente com a evidência superficial fornecida pelas analogias extraídas das associações do próprio paciente. Cria-se desta maneira um novo circuito onde a teoria pode operar, facilitando novas construções interpretativas. Isto fica bem evidenciado quando Freud pede ao leitor, do caso do Homem dos Lobos, apesar de todas as objeções possíveis, que aceite "provisoriamente a realidade da cena"(FREUD, 1918/1981, p.1.960). Trata-se da cena primária (termo introduzido pela primeira vez num texto de Freud, segundo Strachey). Com a sua proposição Freud busca uma nova inflexão, um novo vértice capaz de alterar as possibilidades de interpretação do caso. Trata-se da introdução de um novo elemento teórico que, mesmo atraindo uma série de outros problemas metodológicos,12 12 Remeto o leitor ao livro de Claude Le Guen (1991), Prática do método psicanalítico, especialmente ao capítulo V, em que tais problemas (e soluções) são trabalhados com agudeza e profundidade. permitirá realizar outras e novas interpretações durante o trabalho de análise. Freud sabe das críticas que sobrevirão a este pedido de aceitação provisória e os assume por completo; aproveitando para argumentar aí, em sua defesa, contra as possíveis acusações do papel sugestionador do analista durante a análise. Seu argumento evocará aquelas experiências mais específicas do processo e do método analítico, onde se inscrevem as construções:
"É claro que o analista que ouve esta reprovação, evocará, para sua tranqüilidade, quão pouco a pouco vai tomando corpo a construção daquela fantasia supostamente inspirada por ele ao enfermo, quão independente do estímulo médico demonstrou-se em muitos pontos sua conformação, como, a partir de uma certa fase do tratamento, pareceu convergir tudo até ela, como, na síntese, emanaram delas os mais diversos e singulares efeitos e como, naquela única hipótese, encontraram sua solução os grandes e pequenos problemas e singularidades da história da enfermidade, e poderá constatar que não se reconhece penetração suficiente para descobrir um acontecimento que, por si só, possa preencher todas estas condições. Porém, tampouco esta alegação fará algum efeito aos contraditores, que não viveram por si mesmos a análise." (FREUD, 1918/1981, p. 1.968)
Elementos que Freud conclui, um tanto tristemente, só poderem ser constatados durante a experiência de análise; razão pela qual o texto do caso do Homem dos Lobos ser dirigido, não aos adversários, não aos iniciantes, mas aos pares. Este aspecto do método analítico, que depende das sucessivas confirmações a posteriori, continuamente refeitas, se opõem então, de modo claro, à idéia presente nas considerações junguianas que indicam e mantém a "atualidade e a regressão"(Cf. FREUD, 1918/1981, p. 1.968) como dois pólos invariantes e tensionadores dos processos psíquicos e portanto do trabalho. Uma de suas conseqüências será a defesa da analogia como fundamento do próprio método. Da realidade atual, via regressão, ao passado (arquetípico); de analogia em analogia até que o significado estanque num significante primevo e originário. Freud deixará claro que junto a este vetor "tenho deixado lugar suficiente para uma segunda influência progressiva que atua partindo das impressões infantis, mostra o caminho à libido que se retira da vida e torna compreensível a infância, inexplicável de outro modo"(FREUD, 1918/1981, p. 1.969).
Esta influência progressiva, de caráter singular, que carrega imensas dificuldades de generalização e transmissão, constituem, grosseiramente falando, o campo próprio do trabalho analítico, onde ele se executa. Neste campo, a analogia menos esclarece do que encobre, sendo por isto mesmo mais aparência sinuosa do conflito em jogo, do que o caminho de um esclarecimento cabal e sem equívocos.
A meu ver, este reconhecimento da diferença, bastante fundamental do papel da analogia no debate entre Freud e Jung e no contexto da psicanálise aplicada, deixa em aberto o debate sobre a distância entre o discurso psicanalítico sobre a sociedade e o trabalho e o método psicanalíticos. Debate que o caso do Homem dos Lobos representa tão bem, propondo uma senda que podemos chamar de construtiva. É claro que não se trata aqui de nenhuma discussão homologadora sobre os diferentes usos da psicanálise, mas da relevância em se transpor direta e analogamente conceitos, observações e constatações clínicas para a compreensão de fenômenos sociais os mais diversos. Sem os esclarecimentos advindos deste debate, certos usos da psicanálise, convenhamos, não se diferenciam muito, por exemplo, da comparação entre as guerras e a divisão celular; entre a ascensão do nazismo e o nascimento e a morte das estrelas; entre o feudalismo e o complexo de castração. Tais explanações têm (quando muito) um caráter didático e explicativo, faltando-lhe a legitimação metodológica que permite compreender como se chega ao estabelecimento destas relações e similitudes, por vezes tão bizarras. Seriam os inúmeros trabalhos realizados dentro de uma verdadeira práxis psicanalítica, permanentemente reconstruída, ainda que muitas vezes longe dos consultórios, incapazes de fornecer no âmbito da própria clínica, problemas conceituais relevantes que transformem ao mesmo tempo nossos instrumentos teóricos e nossa compreensão dos fenômenos sociais sobre os quais muitos psicanalistas trabalham há tanto tempo?
Neste sentido, penso que uma das grandes vantagens de retomar as controvérsias entre Freud e Jung (e aí reler o Homem dos Lobos), é acompanhar este retorno de Freud à clínica, no momento em que os fenômenos sociais cresciam em interesse entre os psicanalistas, para rediscutir o método, além de (por que não?), voltar a responder, discutir e divergir das tentativas junguianas em articular o coletivo e o individual.
A essência e a herança deste conflito e destas dificuldades prevalecem até hoje nas inúmeras tentativas de pensar o social a partir do sexual; passagem onde, a meu ver, reside a coerência e a substância do pensamento freudiano e, certamente, uma das grandes questões para a psicanálise nesta virada de século.
BIBLIOGRAFIA
Recebido em 30/7/2000. Aceito em 12/2/2001.
"A conseqüência disto é que os fenômenos daí decorrentes têm em si o caráter de ato sexual, mas não são atos sexuais reais. Assim também a produção de fogo é apenas a analogia de um ato sexual, assim como este é freqüentemente usado na linguagem corrente como analogia de atividades completamente diversas. A fase pré-sexual da primeira infância, à qual a regressão retorna, caracteriza-se por numerosas possibilidades de aplicação, porque a libido ali readquire sua polivalência indiferenciada original (Jung, 1952/1973, p. 145).
No segundo caso, Jung observará a respeito de uma imagem narrada por seu paciente: "Esta observação não ficou isolada: naturalmente não se trata de idéias hereditárias, e sim de uma predisposição inata para a criação de fantasias paralelas, de estruturas idênticas, universais da psique que mais tarde chamei de inconsciente coletivo. Dei a estas estruturas o nome de arquétipos"(JUNG, 1952/1973, p. 145).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Maio 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2001
Histórico
-
Recebido
30 Jul 2000 -
Aceito
12 Fev 2001