Resumos
Discute-se a relação entre as noções freudianas de realidade material e realidade psíquica, procurando responder se essas duas noções podem ser compreendidas a partir de uma polarização. Com esse objetivo, foram analisados textos de Freud em que tal discussão é privilegiada. Conclui-se que a melhor maneira de conceber essa relação não é pela via de uma mera polarização ou oposição, e que realidade material e psíquica devem ser vistas como noções ao mesmo tempo equivalentes e distintas.
realidade material; realidade; psíquica; polarização; psicanálise
This paper discusses the relationship between the Freudian notions of material reality and psychical reality, attempting to answer if these two notions can be understood by means of a polarization. In order to do that, Freudian texts in which such a discussion is favored have been analyzed. It has been concluded that the best way of conceiving this relationship is not by means of a mere polarization or opposition, and that the material and psychical reality should be seen as notions which are at the same time equivalent and distinct.
material reality; psychical reality; polarization; psychoanalysis
ARTIGOS
A realidade "ora-psíquica-ora-material" em Freud1 1 Este trabalho reproduz e discute algumas das idéias apresentadas na dissertação de mestrado "Re-conhecimento da realidade na prática psicanalítica", defendida pela autora em novembro de 1999 na Universidade de Brasília.
The "now-psychical-now-material" reality in Freud
Estela Ribeiro Versiani
Doutoranda em Psicologia (UnB). Psicóloga. Rua Arruda Alvim 145/74. 05410-020 São Paulo SP. Tel. (11)3064-6759. erversiani@uol.com.br
RESUMO
Discute-se a relação entre as noções freudianas de realidade material e realidade psíquica, procurando responder se essas duas noções podem ser compreendidas a partir de uma polarização. Com esse objetivo, foram analisados textos de Freud em que tal discussão é privilegiada. Conclui-se que a melhor maneira de conceber essa relação não é pela via de uma mera polarização ou oposição, e que realidade material e psíquica devem ser vistas como noções ao mesmo tempo equivalentes e distintas.
Palavras-chave: realidade material, realidade psíquica, polarização, psicanálise.
ABSTRACT
This paper discusses the relationship between the Freudian notions of material reality and psychical reality, attempting to answer if these two notions can be understood by means of a polarization. In order to do that, Freudian texts in which such a discussion is favored have been analyzed. It has been concluded that the best way of conceiving this relationship is not by means of a mere polarization or opposition, and that the material and psychical reality should be seen as notions which are at the same time equivalent and distinct.
Keywords: material reality, psychical reality, polarization, psychoanalysis.
PARA INTRODUZIR
"Faz diferença se o que o paciente me relata aconteceu de fato ou não?" A partir da psicanálise, não é difícil chegar à resposta mais óbvia a esta pergunta algo como "Não, uma vez que no inconsciente a diferença entre realidade e fantasia é ignorada". Tal resposta, entretanto, parece trazer embutida uma desconsideração pela diferenciação entre duas realidades que de fato são distintas, nos permitindo suspeitar que a pergunta acima, aparentemente simplista, talvez mereça um pouco mais de atenção. E é justamente dessa suspeita que partiremos, procurando pensar a presença, na análise, tanto da realidade psíquica como da realidade material, assim como a relação entre essas duas noções freudianas.
A maneira como Freud aborda os conceitos de realidade material e realidade psíquica sugere um constante ir-e-vir de sua parte de uma posição em que enfatiza a importância da realidade psíquica e das fantasias na constituição da história do analisando para uma posição em que a realidade material aparece em primeiro plano. Em vez de atribuir essa aparente oscilação freudiana a um simples caso de indecisão de sua parte, podemos partir dela justamente para discutir a relação entre realidade material e psíquica, procurando compreender se a melhor maneira de concebê-la é de fato pela via de uma mera polarização ou oposição entre as duas realidades.
Levando isso em conta, o objetivo a seguir será o de colocar em discussão essa (não) polarização, considerando tanto a necessidade de Freud de introduzir o conceito de realidade psíquica e afirmar a importância das fantasias na constituição das neuroses como sua aparente relutância, em alguns momentos, em abandonar a importância da influência da realidade material. Com isso, estaremos nos perguntando sobre os ganhos advindos, para a psicanálise, da introdução da noção de realidade psíquica, ou seja, pensando de que forma essa noção contribuiu para a compreensão da realidade no contexto da psicanálise.
Mais do que procurar uma resposta conclusiva para o fato de Freud aparentemente ter se negado a abrir mão da realidade material em momentos específicos de sua teorização e prática clínica, o propósito do presente trabalho é antes problematizar a relação entre realidade material e realidade psíquica, lançando a questão de se esses dois conceitos devem ser pensados como exclusivamente opostos um em relação ao outro.
Com esse objetivo em mente, foram escolhidos alguns textos de Freud em que tal ir-e-vir aparece de forma mais explícita seja por privilegiar uma ou outra das posições indicadas acima , sem a preocupação de fazer uma revisão exaustiva do uso que Freud faz das noções de realidade psíquica e realidade material em toda a sua obra. Não farei questão tampouco de seguir uma abordagem necessariamente cronológica desses textos, me permitindo assim também uma liberdade de ir-e-vir entre os trabalhos de Freud que me parecem contribuir de forma privilegiada para a discussão a ser levantada aqui.
A REALIDADE PSÍQUICA EM FREUD
O caso do Homem dos Lobos é particularmente representativo da discussão a respeito de uma certa oscilação de Freud entre a importância das fantasias e a da realidade material na constituição das neuroses. Nesse caso, fica claro seu esforço em estabelecer a realidade material2 2 Neste trabalho, o termo realidade material será usado para designar a realidade distinta da realidade psíquica, embora Freud também tenha, em alguns momentos, se utilizado de outros termos, como realidadeexterna e realidade factual. Não se discutirá se Freud quis dizer sempre a mesma coisa ao usar um dos três termos, uma vez que não constitui objetivo deste trabalho delimitar o conceito de realidade material. Assim, será designado realidade material tanto o que Freud chama de realidade material como o que chama de realidade externa e realidade factual, a não ser em frases que fazem referência a uma citação freudiana, nas quais se acompanhará Freud. da cena primária de seu paciente, anos depois de ter afirmado que as fantasias são suficientes para constituir sintomas neuróticos. Antes de discutir essas questões no caso do Homem dos Lobos, entretanto, serão feitas algumas referências à noção de realidade psíquica em Freud antes de 1914, ano em que escreveu o caso do Homem dos Lobos, publicado em 1918.
Na tão citada carta a Fliess, de 21 de setembro de 1897, Freud expressa pela primeira vez uma descrença em relação à sua teoria sobre a etiologia traumática das neuroses, que ele havia sustentado nos cinco anos anteriores. Com a célebre frase "não acredito mais na minha neurotica [teoria das neuroses]" (FREUD, 1892-99/1966, p. 259), Freud abre caminho para a possibilidade do abandono da teoria do trauma, assim como para o desenvolvimento da idéia de que a sedução não precisa ter ocorrido de fato para que desempenhe papel fundamental na organização libidinal do neurótico.
Apesar de essa carta ter sido escrita em 1897, Freud só explicitou publicamente sua mudança de opinião no artigo intitulado "Minha visão sobre o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses" (1906/1953). Antes disso, Freud havia feito apenas uma breve alusão à questão em seu "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1953). No segundo ensaio desse trabalho, ele se refere ao artigo "A etiologia da histeria", de 1896, no qual teria superestimado "a importância da sedução em comparação com os fatores de constituição sexual e de desenvolvimento" (FREUD, 1905/1953, p. 190). Continua dizendo que "obviamente a sedução não é necessária para despertar a vida sexual de uma criança; isso pode acontecer espontaneamente a partir de causas internas" (Idem, p. 190-1).
No artigo de 1906, Freud se propõe a acompanhar o desenvolvimento de sua teoria a respeito da importância etiológica do fator sexual nas neuroses, mostrando a maneira como a teoria evoluiu e as modificações pelas quais passou desde os primórdios da psicanálise. E a primeira modificação por ele citada diz respeito justamente ao abandono da teoria do trauma e à importância das fantasias na constituição de sintomas neuróticos. Segundo Freud (1906/1953), ele havia anteriormente (em suas publicações preliminares durante os anos de 1895 e 1896) "superestimado a freqüência de tais acontecimentos [seduções]" (p. 274). Continua em seguida:
"naquele período, eu era incapaz de distinguir com certeza entre falsificações feitas por histéricos em suas lembranças de infância e traços de acontecimentos reais. Desde então, aprendi a explicar várias fantasias de sedução como tentativas do sujeito de repelir lembranças de sua própria atividade sexual (masturbação infantil)." (FREUD, 1906/1953, p. 274)
Freud está dizendo que, ao se lembrar de algo em análise, o paciente poderá tanto estar se recordando de um acontecimento real como trazendo à tona uma fantasia ou "lembrança imaginária" (FREUD, 1906/1953, p. 274), como designará a fantasia logo em seguida. Assim, já está de alguma forma apresentando uma distinção, senão entre duas realidades, entre dois tipos de lembrança, uma calcada numa experiência real e outra desencadeada pela imaginação. Ao mesmo tempo, aponta para uma equivalência entre os dois tipos de experiência, pois tanto a fantasia como o acontecimento real podem aparecer em análise sob a mesma roupagem: a de uma lembrança infantil.
É no "Projeto para uma psicologia científica", escrito em 1895, que Freud sugere pela primeira vez uma distinção entre dois tipos de realidade, que ele designa como "realidade externa" e "realidade do pensamento" (FREUD, 1895/1966, p. 373).
A noção de "realidade psíquica" (psychische Realität) propriamente dita só irá aparecer na última parte do capítulo VII da edição de 1909 de A interpretação dos sonhos. Conforme nos informa Strachey (em FREUD, 1900/1958, p. 620, nota 1), a frase em que o termo realidade psíquica aparece pela primeira vez foi inserida em A interpretação dos sonhos (1900/1958) em 1909 e modificada tanto em 1914 (quando Freud opôs realidade psíquica a realidade factual) como em 1919, quando tomou sua forma final:
"Se tomarmos os desejos inconscientes reduzidos à sua forma mais fundamental e verdadeira, teremos que concluir, sem dúvida, que a realidade psíquica é uma forma de existência particular que não deve ser confundida com a realidade material." (FREUD, 1900/1958, p. 620)
Em Totem e tabu (1913/1958), texto ao qual voltaremos mais adiante, Freud retoma a existência de dois tipos de realidade, que ele chama nesse trabalho de realidade factual e realidade psíquica. No quarto ensaio do texto, ao se referir ao sentimento de culpa dos neuróticos, Freud afirma o seguinte:
"O que está por trás do sentimento de culpa dos neuróticos são sempre realidades psíquicas e nunca factuais. O que caracteriza os neuróticos é que eles preferem a realidade psíquica à factual e reagem tão seriamente a pensamentos como as pessoas normais reagem a realidades." (FREUD, 1913/1958, p. 159)
Com essa frase, Freud privilegia, na constituição do sintoma neurótico, a influência da realidade psíquica, sugerindo ser esta maior do que a exercida pela realidade factual.
No terceiro ensaio, ao discorrer a respeito da "onipotência de pensamentos" dos neuróticos, diz que, nas neuroses, "o que determina a formação de sintomas é a realidade do pensamento e não da experiência" (FREUD, 1913/1958, p. 86). Com isso, Freud também está nos falando da importância da realidade psíquica retomando aqui, entretanto, o termo (realidade do pensamento) usado no "Projeto para uma psicologia científica" (1895/1966), como já foi indicado. É interessante que tais afirmações apareçam justamente num texto em que Freud insiste numa realidade material específica, a saber, a do "crime primordial", conforme será discutido adiante. No momento, entretanto, voltaremos a atenção ao caso do Homem dos Lobos.
A REALIDADE DA CENA PRIMÁRIA3 3 Algumas das idéias discutidas nesse item já foram abordadas em Versiani (1995).
Com o caso do Homem dos Lobos Freud se propõe a demonstrar a determinação infantil da neurose, que não se resume a uma característica particular desse caso específico, mas que nele se dá de maneira especialmente ilustrativa. Como o próprio Freud diz, o caso "estabelece, sem dúvida nenhuma, tal importância [a do fator infantil]", além de "se distinguir pela característica de que a neurose na vida adulta foi precedida por uma neurose na tenra infância" (FREUD, 1918/1955, p. 54). A presença dessa neurose infantil no Homem dos Lobos é importante porque, segundo Freud, prova que "experiências infantis por si sós estão em posição de produzir uma neurose" (Idem, ibidem).
Ao afirmar a importância do fator infantil na determinação da neurose, Freud deixa claro que tal posição o diferencia daqueles que "procuram as causas das neuroses quase que exclusivamente nos graves conflitos da vida adulta" (FREUD, 1918/1955, p. 49) e consideram que as cenas infantis do tipo das que são trazidas à luz pela análise de uma neurose "não são reproduções de acontecimentos reais" (Idem, ibidem), mas produtos da imaginação do adulto, tendo sua origem numa "tendência regressiva" e numa "rejeição das tarefas do presente" (Idem, ibidem).4 4 Embora Freud não cite nomes todas as vezes em que se refere nesse texto a seus "opositores", deixa claro em nota de rodapé no início de sua introdução que tem em mente "as re-interpretações deturpadas" (FREUD, 1918/1955, p. 7, nota 1) de Jung e Adler.
Embora reconheça a existência de uma corrente regressiva da libido no processo de formação da neurose, Freud destaca a influência decisiva das experiências infantis nesse processo. Com o objetivo de demonstrar essa influência, procura, no caso do Homem dos Lobos, apontar os eventos infantis que contribuíram para o desenvolvimento de sua neurose.
Durante grande parte da análise do Homem dos Lobos, o que está em questão é a cena primária, que teria sido vivenciada por ele com um ano e meio de idade. O sonho dos lobos, aos quatro anos, é considerado por Freud como a ressignificação mais importante da cena, uma vez que a partir desse sonho o Homem dos Lobos teria "compreendido o processo [da cena primária], assim como seu significado" (FREUD, 1918/1955).5 5 Como diz Freud em nota de rodapé ao texto, o paciente "recebeu as impressões quando tinha um ano e meio; sua compreensão delas foi adiada, mas se tornou possível na época do sonho devido a seu desenvolvimento e suas excitações e pesquisas sexuais" (FREUD, 1918/1955, p. 37, nota 6). Seriam ressignificações como essa que teriam produzido seqüelas no desenvolvimento libidinal do paciente.
No que diz respeito à realidade da cena primária, o próprio Freud levanta algumas dúvidas, questionando se seu paciente teria de fato observado o coito dos pais ou apenas fantasiado a cena. Para essa questão, oferece mais de uma resposta.
Em 1914, quando Freud redigiu a maior parte do caso, a hipótese de que a cena teria ocorrido de fato é a única apresentada, o que nos leva a pensar ser essa a sua crença por ocasião do tratamento. Segundo o relato de Freud, a cena primária não chega a ser recordada por seu paciente, que, entretanto, participa de sua construção no processo analítico. Ao final, Freud chega a descrever a cena em seus mínimos detalhes, com a aceitação do Homem dos Lobos.
Antes de publicar a exposição e a discussão do caso, entretanto, Freud adicionou duas passagens ao trabalho, nas quais oferece duas outras explicações. Na primeira delas, apresenta a idéia de que o Homem dos Lobos não precisa ter de fato observado uma relação sexual entre seus pais, mas que pode ter presenciado o coito entre animais, "que ele depois deslocou para seus pais, como que inferindo que eles procediam da mesma maneira" (FREUD, 1918/1955, p. 57).
Com essa sugestão, o que parece a princípio é que Freud está aqui privilegiando a fantasia, uma vez que abre mão da realidade material da cena primária, sugerindo que ela pode ter sido apenas "inferida". Mais adiante nessa mesma passagem, inclusive, ao se referir à freqüência com que a cena primária aparece na clínica sob a forma de um coitus a tergo, afirma que, nesses casos, não devemos duvidar de que estejamos "lidando apenas com uma fantasia, invariavelmente provocada, talvez, por uma observação de coito entre animais" (FREUD, 1918/1955, p. 59).
Fica claro também que Freud relaciona a fantasia da cena primária a uma observação material anterior, que serviria como "cena provocadora" dessa fantasia. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que mostra a força de uma fantasia, Freud não deixa de lado a influência da realidade material. Como chamam a atenção Laplanche e Pontalis (1993), apesar de reconhecer que a cena primária pode ter sido fantasiada pelo Homem dos Lobos, Freud "sustenta com não menor insistência que a percepção, pelo menos, forneceu indícios, que mais não seja através de uma copulação de cães..." (p. 49).
De qualquer forma, Freud termina essa primeira passagem adicional sem nos dar um veredicto final sobre a realidade da cena primária, nos remetendo inclusive a uma de suas conferências introdutórias em que trata do assunto.
Na segunda passagem, Freud afirma não ser muito importante chegar a uma conclusão decisiva em relação à realidade da cena primária do Homem dos Lobos, argumentando em seguida que, de uma maneira geral, mesmo que a cena primária não faça parte da herança ontogenética de seu paciente, ela certamente faz parte de sua herança filogenética: "Estas cenas de observação da relação sexual dos pais, de sedução na infância e de ameaça de castração são indiscutivelmente (...) uma herança filogenética, mas podem, com a mesma facilidade, ser adquiridas por meio da experiência pessoal" (FREUD, 1918/1955, p. 97). Assim, mesmo que o Homem dos Lobos não tenha de fato presenciado uma relação sexual entre seus pais, ele pode ter "recorrido" a sua herança filogenética para incrementar sua ontogênese. Como diz Freud, "o que encontramos na pré-história das neuroses é que uma criança se apodera dessa experiência filogenética onde sua própria experiência lhe falta" (Idem, ibidem).
O que parece é que, assim como acontece com sua primeira explicação alternativa, Freud não deixa, com essa explicação filogenética, de se apoiar numa realidade material, uma vez que, segundo ele, as fantasias originárias de hoje já foram "acontecimentos reais nos tempos primevos da família humana" (FREUD, 1916-17/1961, p. 371). Dessa forma, "crianças em suas fantasias estão simplesmente preenchendo as lacunas na verdade individual com a verdade pré-histórica" (Idem, ibidem).
Com essa segunda explicação, portanto, Freud repete a posição que foi apontada acima: não abre mão da influência da realidade material, embora destaque a dimensão da fantasia na determinação do desenvolvimento libidinal de seu paciente. Como comenta Nelson Coelho Júnior (1995a), em livro que discute o conceito de realidade na obra freudiana, "por mais conveniente que pudesse ser a solução de todo o problema da etiologia das neuroses através das fantasias inconscientes, Freud não parece disposto a abrir mão da realidade material como um fator determinante" (p. 93).
Apesar de as duas alternativas oferecidas por Freud levantarem a possibilidade de a cena primária do Homem dos Lobos ter sido uma fantasia (individual e/ou originária), a impressão que se tem ao ler o caso é que Freud prefere acreditar na realidade material dessa cena. Concordo com Laplanche e Pontalis (1993), quando comentam que "impressiona vivamente a convicção apaixonada que impele Freud, como um detetive que fareja uma boa pista, a estabelecer a realidade da cena, reconstituindo-a em seus menores detalhes"(p. 46-7). Estaria Freud, portanto, mais de quinze anos depois, ainda resistindo a deixar de acreditar em sua neurotica?
Especificamente em relação a esse caso, é possível pensar que, menos do que um retorno à sua antiga teoria do trauma, o que move Freud a procurar estabelecer a realidade material da cena primária de seu paciente é sua divergência teórica em relação a Jung. Como se, ao defender a realidade material de uma cena que provocou efeitos decisivos na constituição libidinal do Homem dos Lobos, ele estivesse dando mais força à sua argumentação a favor da determinação infantil da neurose (e conseqüentemente à refutação da concepção junguiana), que, como vimos, era um de seus principais objetivos ao publicar o caso.
Mais do que propor uma razão convincente para o fato de Freud ter relutado em abrir mão da realidade material, entretanto, o objetivo ao me referir ao caso do Homem dos Lobos foi justamente poder chegar a essa questão, apontando assim um aparente "retrocesso" de Freud no que diz respeito à capacidade das fantasias de produzirem sintomas neuróticos.6 6 Em sua discussão do caso, Freud chega em determinado momento a afirmar que "a velha teoria do trauma das neuroses, que afinal foi construída a partir de impressões obtidas na prática psicanalítica, tinha de repente vindo para a frente novamente" (FREUD, 1918/1955, p. 95). Apontar para em seguida pôr em dúvida, pois a discussão desse caso por Freud mostra menos um retrocesso do que impede que a introdução da noção de realidade psíquica seja vista como levando necessariamente a um desprezo pela realidade material. Além disso, permite conceber essas duas realidades como mais próximas uma da outra do que o abandono da teoria da sedução a princípio deixaria pensar. No contexto do presente trabalho, portanto, a posição que Freud assume nesse caso é interessante por me parecer fornecer subsídios para que possamos pensar a relação entre realidade material e realidade psíquica como uma relação que não seja exclusivamente de oposição.
Já estou esboçando aqui uma resposta à questão de compreender (ou não) realidade material e realidade psíquica enquanto dois pólos opostos. No momento, entretanto, interromperemos a discussão dessa idéia, que será retomada adiante, e nos voltaremos para Totem e tabu, com o objetivo de destacar algumas questões que esse trabalho traz em relação à aparente oscilação freudiana entre a primazia da realidade psíquica e a importância dada à realidade material de determinados acontecimentos.
"NO INÍCIO ERA O ATO"7 7 Freud encerra Totem e tabu com esta frase, retirada de Fausto, de Goethe.
Em Totem e tabu (1913/1958), Freud apresenta uma tentativa de, por meio da psicanálise, reconstituir a origem da civilização, ou seja, explicar a história da cultura do ponto de vista da psicanálise. A idéia defendida na obra é que a civilização teria sido fundada a partir de um ato, a saber, um assassinato pré-histórico, e que, assim, tanto a organização social em geral como as restrições morais e a religião em particular teriam suas raízes em um "ato criminoso memorável" (FREUD, 1913/1958, p. 142), que é como Freud se refere a esse crime imaginado por ele.
É no quarto e último ensaio desse extenso trabalho que Freud descreve a fundação da civilização. Para isso, se utiliza de questões relativas ao totem (já abordadas nos ensaios anteriores), de algumas teorias antropológicas (como a hipótese da refeição totêmica, inicialmente descrita por Robertson Smith) e da teoria da horda primitiva formulada por Darwin. De acordo com Freud, essa horda teria se caracterizado pela presença de um macho tirânico e dominador, que conservaria para si todas as fêmeas e expulsaria pela força os machos mais fracos, privando-os de satisfação sexual. O seguinte desfecho é então proposto:
"Um dia, os irmãos que haviam sido expulsos se reuniram, mataram e devoraram seu pai, pondo fim assim à existência da horda paterna. Unidos, tiveram a coragem de fazer e conseguiram levar a cabo o que individualmente lhes teria sido impossível. (...) Tratando-se de selvagens canibais, era natural que devorassem sua vítima além de matá-la. O pai primevo e violento havia sido seguramente o modelo invejado e temido de cada um dos membros da associação fraternal, e, ao devorá-lo, identificavam-se com ele e se apropriavam de uma parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria então uma repetição comemorativa deste ato criminoso e memorável, que constituiu o ponto de partida de tantas coisas da organização social, das restrições morais e da religião." (FREUD, 1913/1958, p. 141-2)
Com o assassinato do pai sendo tomado por Freud como fundador da civilização, portanto, fica explícita a sua posição de conceber num ato a origem de um sistema social.
Embora esse texto seja um dos primeiros, conforme já foi apontado, em que a distinção entre realidade psíquica e a aqui chamada realidade factual é explicitada, Freud sempre defendeu a realidade material do "ato criminoso memorável". Isso apesar de ele próprio ter feito a ressalva, na parte final de seu trabalho, de que apenas a fantasia do crime teria sido suficiente para "produzir a reação moral que criou o totemismo e o tabu" (Idem, p. 160) e que, dessa maneira, "evitaríamos a necessidade de derivar a origem de nosso legado cultural do qual nos sentimos, merecidamente, tão orgulhosos de um crime horrendo, repulsivo a todos os nossos sentimentos" (Idem, ibidem).
Novamente, o fato de Freud insistir numa realidade material ao lado da ênfase no mesmo texto na importância da realidade psíquica não me parece um simples caso de indecisão ou de "retrocesso" de sua parte, mas sim uma evidência de que realidade material e psíquica convivem juntas uma com a outra, não se tratando de uma das realidades precisar "dar lugar" à outra. Aliás, o próprio Freud, em um dos últimos parágrafos de Totem e tabu, fornece argumentos que sustentam essa idéia.
Ao se referir aos neuróticos obsessivos "curvados sobre o peso de uma moralidade excessiva" (FREUD, 1913/1958, p. 160), Freud afirma que não seria correto dizer que eles "estão se defendendo apenas contra a realidade psíquica e estão se punindo por impulsos que foram apenas sentidos" (Idem, p. 160-1). Pois, segundo Freud,
"a realidade histórica também tem uma participação no assunto. (...) Cada um desses indivíduos excessivamente virtuosos passou por um período malvado em sua infância uma fase de perversão que foi o precursor e a condição prévia do período posterior de moralidade excessiva." (FREUD, 1913/1958, p. 161)
Freud sugere então uma analogia entre a neurose obsessiva e os homens primitivos, propondo que, também no caso deles, "a realidade psíquica (...) coincidiu no início com a realidade factual: os homens primitivos de fato fizeram o que toda a evidência mostra que eles pretendiam fazer" (FREUD, 1913/1958, p. 161). Argumenta em seguida que, enquanto nos neuróticos o pensamento substitui o ato, no homem primitivo é como se o ato substituísse o pensamento. E Freud dá o seguinte desfecho à sua obra: "E é por isso que, sem reivindicar nenhum julgamento decisivo, penso que, no caso diante de nós, podemos assumir seguramente que 'no início era o Ato'" (Idem, ibidem).
REALIDADE "ORA-PSÍQUICA-ORA-MATERIAL"
Com as afirmações citadas antes, me parece que Freud aproxima a realidade material da realidade psíquica, no sentido de que, no caso dos neuróticos, por exemplo, para falar de realidade psíquica, ele precisou fazer referência à realidade material como se a realidade psíquica não pudesse ser compreendida por si só. Penso que essa abordagem despolariza de certa forma a questão, permitindo que concebamos a realidade do neurótico não como uma realidade psíquica que ofusca totalmente sua realidade material, mas como uma realidade que inclui a psíquica e, ao mesmo tempo, a material.
Lembro aqui de sugestão feita por Celes (1996) de que dizer que o analista oscila entre teoria e clínica não descreve de maneira adequada o que de fato acontece, na medida em que "não é o caso de 'ora uma', 'ora outra', mas algo mais próximo de 'ora uma e a outra também' ou (...) poderíamos escrever a palavra composta 'ora-uma-ora-outra', como se nos fosse exigido mudar de posição a cada momento" (p. 88). Brincando com essa idéia em relação ao analisando, podemos dizer que a realidade que ele traz em suas associações não é "ora realidade material" e "ora realidade psíquica", mas sim uma realidade "ora-psíquica-ora-material".
A conferência citada por Freud no caso do Homem dos Lobos como uma referência para a discussão a respeito da cena primária nos fornece mais alguns elementos para pensarmos essa realidade "ora-psíquica-ora-material". A conferência em questão é a XXIII, intitulada "Os caminhos para a formação de sintomas" (1916-17/1961), em que Freud aborda sua "equação etiológica da neurose" (p. 362), segundo a qual o que causaria uma neurose seriam tanto experiências acidentais (traumáticas) do adulto como uma disposição devido à fixação da libido. Essa disposição, por sua vez, se formaria a partir de uma combinação da constituição sexual do neurótico com suas experiências infantis.
E, no que diz respeito a essas experiências infantis às quais a libido se fixa, Freud lembra que elas nem sempre são verdadeiras. Em suas próprias palavras, "as experiências infantis construídas ou recordadas em análise são por vezes indisputavelmente falsas e por outras, com certeza, corretas, e, na maior parte dos casos, compostas de verdades e falsidades" (FREUD, 1916-17/1961, p. 367). Em seguida, Freud mostra como isso se dá devido a uma negligência, por parte do neurótico, da distinção entre realidade e fantasia e propõe que, enquanto analistas, devemos "igualar fantasia e realidade e não nos preocupar inicialmente se as experiências infantis sendo examinadas são de um tipo ou de outro" (Idem, p. 368). Pois as fantasias "possuem, em contraste com a realidade material, realidade psíquica, e nós aprendemos gradualmente a compreender que no mundo das neuroses é arealidade psíquica que é o tipo decisivo [de realidade]" (Idem, ibidem).
Freud aqui está defendendo um domínio da realidade psíquica na neurose e assim, a princípio, explicitando uma diferença entre as duas realidades, pois dizer que a realidade psíquica é que é a "decisiva" faz pensar que há uma outra realidade que seria "menos decisiva", a realidade material. Mas, além disso, ele chama a atenção para o fato de que o procedimento ideal numa análise, pelo menos inicialmente, seria o de não procurar diferenciar fantasia de realidade e, assim, "igualar realidade material e psíquica". Realidade psíquica e realidade material, então, aparecem como distintas, mas também como equivalentes, uma vez que as duas são realidades ou têm valor de realidade.
Assim, do ponto de vista do analisando que, ao associar, nos traz suas experiências (materiais e fantasiosas), um evento que possui realidade material pode ao mesmo tempo possuir realidade psíquica. Ao sugerir isso, estou propondo entender realidade psíquica não (apenas) como o oposto de realidade material, mas como uma noção mais ampla, que se refere à qualidade daquilo que tem "relevância psíquica".
Não importa portanto se o que é construído ou recordado em análise é realidade material ou fantasia, já que o que é determinante no que diz respeito à organização libidinal do analisando é o que tem "relevância psíquica". E um acontecimento que seja psiquicamente relevante para o analisando possuirá realidade psíquica. Vista dessa maneira, a realidade psíquica deixa de ser apenas aquilo que não possui realidade material e passa a poder incluí-la, uma vez que um determinado acontecimento pode ter realidade material e, ao mesmo tempo, realidade psíquica. Conseqüentemente, faz sentido dizer que, na neurose, a realidade psíquica é que é a realidade decisiva, sem que isso implique descartar a realidade material, já que esta pode estar inserida na dimensão da realidade psíquica.
Ao aproximar dessa forma realidade material e psíquica, não estou querendo propor uma indistinção entre os dois termos, sugerindo que em análise tudo é da ordem da realidade psíquica, não cabendo nenhum tipo de diferenciação entre as formas de realidade. Realidade material e realidade psíquica são equivalentes no sentido de que ambas possuem um valor de realidade, o que não quer dizer que não sejam também distintas.
No início deste trabalho me referi ao ganho, para a psicanálise, da introdução do conceito de realidade psíquica. Penso que tal ganho tenha ficado claro na exposição feita até aqui: dando ao psíquico valor de realidade, Freud situa as fantasias em pé de igualdade com a realidade material, privilegiando, inclusive, em alguns momentos, a influência delas na determinação das neuroses.
O que talvez não fique tão claro, por vezes, seja o risco de perda que a introdução da dimensão da realidade psíquica comporta. Pois privilegiar o psíquico, as fantasias, pode levar a um movimento de colocar todo o material que aparece em análise num mesmo plano, evitando diferenciações, e ignorando, por assim dizer, a influência da realidade material. Uma leitura desse tipo do texto freudiano pode contribuir para que uma importante dimensão da clínica se perca, com a realidade psíquica passando a ofuscar a material. E, nas palavras de Coelho Júnior (1995b), em artigo que discute as noções freudianas de realidade psíquica e material, "Freud jamais admitiu a solução subjetivista de que a única realidade existente é aquela que ele denominou de psíquica" (p. 5).
Assim, para evitar que percamos, com essa "solução subjetivista", a influência da dimensão da realidade material, é importante que, além da equivalência, tenhamos em mente a diferenciação entre os dois tipos de realidade. Dessa forma, numa análise, não está tudo no mesmo plano, uma vez que estão presentes elementos da realidade psíquica e da material.
A QUESTÃO DA (NÃO) POLARIZAÇÃO
Penso que a discussão feita até aqui nos permite concluir que realidade material e psíquica não podem ser entendidas como conceitos opostos e excludentes. Com isso estamos indo ao encontro de posição defendida por Celes (2000), que chama a atenção, em trabalho que aborda o par "realidade e representação", para a "inconveniência e impropriedade de se pensar as questões psicanalíticas segundo o princípio de oposições de entidades ou de dualidades" (CELES, 2000, p. 67-8). Ainda segundo esse autor, a psicanálise nos ensina justamente que "os opostos, as dualidades e oposições não se excluem" (Idem, p. 72). Assim, realidade material e realidade psíquica não se excluem, pois, como foi mostrado, as duas dimensões se relacionam de tal forma que ultrapassam uma simples oposição e envolvem superposições, coincidências e relações ocasionais de "apoio" (na medida em que se pode pensar com Freud que uma fantasia tem sua origem, ou se apóia, num elemento da realidade material, por exemplo).
Luís Claudio Figueiredo (1999), em livro que discute a questão do dualismopulsional em Além do princípio do prazer de Freud, também alerta para o fascínio de pensar tanto as pulsões como outros conceitos freudianos a partir de um dualismo que ele considera simplificador, lembrando que "longe de um dualismo simples, (...) há em Freud uma notável complexidade" (p. 34). E é justamente ao encontro dessa complexidade que penso que a leitura de Freud nos traz, no que diz respeito às noções de realidade material e realidade psíquica. Como vimos, as elaborações freudianas apontam para uma problematização da relação entre as duas noções, que ultrapassa uma relação de mera oposição.
Não tenho a pretensão de, com este trabalho, ter dado nenhuma palavra final à maneira de pensar a relação entre realidade material e psíquica, mas apenas apontado algumas dificuldades decorrentes de conceber essa relação como uma simples oposição. Além disso, procurei indicar possíveis modos alternativos de abordá-la, uma vez que, voltando a Figueiredo (1999), "o que Freud nos exige é o prodígio de conceber relações entre elementos conceituais que não são nem exclusivamente opostos nem exclusivamente aliados, nem exclusivamente primeiros e originais nem segundos e derivados uns em relação aos outros" (p. 44).
BIBLIOGRAFIA
Recebido em 12/3/2001. Aceito em 30/5/2001.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Maio 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2001
Histórico
-
Recebido
12 Mar 2001 -
Aceito
30 Maio 2001