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O conceito de repetição e sua importância para a teoria psicanalítica

Resumos

Tenta-se pensar algumas faces do conceito psicanalítico de repetição, tanto em sua dimensão teórica quanto clínica. Analisa-se, junto a Freud, a relação entre ela e outros conceitos clínicos como os de recordação, resistência, transferência e atuação. Por meio do pensamento lacaniano, indica-se o caráter fundamental deste termo para o saber psicanalítico, sua relação com os conceitos de Tiquê, de Autômaton, de objeto a e de cadeia de significantes, e sua aproximação com a "retomada " kierkegaardiana. E com Miller estuda-se o lugar da angústia como operador que produz uma desarticulação na amarração ordenada, exposta no fenômeno da repetição.

Repetição e rememoração; Angústia; retomada kierkegaardiana; cadeia de significantes; operação-redução


The concept of the repetition and its importance for psychoanalytical theory. This paper aims to think some faces of the psychoanalysis's concept of the repetition, in a clinical and theoretical dimension. We will analyze, along with Freud, the relation between this concept and other concepts as memory, resistance, transference and acting out. Through the Lacan's thought, we will indicate the basic character of this term to the psychoanalytic knowledge, its relation to it with the concepts of Tiquê, Autômaton, object a and chain of signifier, and its approach with the Kierkegaardian's term, retaken. With Miller we will think the place of the anguish as the operator who produces a disarticulation in the commanded knotting, displayed in the phenomenon of the repetition.

Repetition and recollection; anxiety; Kierkegaard's retaken; chain of signifier; operation-redution


ARTIGOS

O conceito de repetição e sua importância para a teoria psicanalítica

Leonardo Pinto de AlmeidaI; Raul Marcel Filgueiras AtallahII

IPsicólogo; mestre em psicologia pela Universidade Federal Fluminense; doutor em psicologia pela PUC-Rio, com estágio sanduíche no Centre de Recherche sur la Lecture Littéraire na Université de Reims Champagne-Ardenne (França). tazaime@hotmail.com

IIGraduado em psicologia pela UFRJ, mestre em psicologia pela UFF. raulatallah@gmail.com

RESUMO

Tenta-se pensar algumas faces do conceito psicanalítico de repetição, tanto em sua dimensão teórica quanto clínica. Analisa-se, junto a Freud, a relação entre ela e outros conceitos clínicos como os de recordação, resistência, transferência e atuação. Por meio do pensamento lacaniano, indica-se o caráter fundamental deste termo para o saber psicanalítico, sua relação com os conceitos de Tiquê, de Autômaton, de objeto a e de cadeia de significantes, e sua aproximação com a "retomada " kierkegaardiana. E com Miller estuda-se o lugar da angústia como operador que produz uma desarticulação na amarração ordenada, exposta no fenômeno da repetição.

Palavras-chave: Repetição e rememoração, Angústia, retomada kierkegaardiana, cadeia de significantes, operação-redução.

ABSTRACT

The concept of the repetition and its importance for psychoanalytical theory. This paper aims to think some faces of the psychoanalysis's concept of the repetition, in a clinical and theoretical dimension. We will analyze, along with Freud, the relation between this concept and other concepts as memory, resistance, transference and acting out. Through the Lacan's thought, we will indicate the basic character of this term to the psychoanalytic knowledge, its relation to it with the concepts of Tiquê, Autômaton, object a and chain of signifier, and its approach with the Kierkegaardian's term, retaken. With Miller we will think the place of the anguish as the operator who produces a disarticulation in the commanded knotting, displayed in the phenomenon of the repetition.

Keywords: Repetition and recollection, anxiety, Kierkegaard's retaken, chain of signifier, operation-redution.

INTRODUÇÃO

O inconsciente, a transferência, a pulsão e a repetição foram nomeados por Jacques Lacan como os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. O presente artigo tem como intuito abordar, estritamente, um dentre esses conceitos: a repetição.

Este conceito psicanalítico faz com que nos deparemos com questões tanto na dimensão teórica quanto na clínica. A problemática posta em relevo por ele nos faz indagar acerca de sua natureza e de sua relação com os fenômenos observáveis na prática clínica.

Seguindo algumas indicações contidas nas reflexões lacanianas acerca do tema em questão, objetivamos fazer uma reflexão que atravessa algumas faces do conceito psicanalítico da repetição.

Intentamos, assim, pensar esse conceito por meio do arcabouço teórico indicado tanto por Freud, principalmente, em Recordar, repetir e elaborar e, em Além do princípio do prazer, quanto por Jacques Lacan, em seus Seminários 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, e 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

Ao expor, em Recordar, repetir e elaborar, a dimensão clínica da repetição encontrada em sua prática, Freud contrapõe a repetição, observada na prática propriamente psicanalítica, à recordação, objeto de trabalho do período em que se utilizava da hipnose como modelo de tratamento.

Nesse texto de 1914, Freud caracteriza a repetição, marcando sua relação com outros conceitos de extrema importância para a clínica psicanalítica: a transferência, a resistência e a atuação.

Em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan comenta esse texto freudiano, apontando algumas especificações da repetição. Podemos frisar ainda que, neste seminário, ele, utilizando-se de Aristóteles, constrói dois conceitos para pensar a repetição: a Tiquê e o Autômaton. O primeiro refere-se ao encontro com o real, enquanto que o último à insistência dos signos. Nesse mesmo seminário, Lacan indica a proximidade dos conceitos kierkegaardiano (Gjentagelsen) e freudiano (Wiederholung), pois ambos demandam o novo.

A versão francesa mais recente deste texto de Sören Kierkegaard, traduzida por Nelly Viallaneix, aponta como melhor tradução de Gjentagelsen a expressão la reprise, que poderíamos verter para o português como a retomada.

Para pensarmos acerca da repetição, devemos também refletir sobre sua gênese, na cadeia de significantes e sua relação com o pequeno a. Como a repetição se dá? Observamos que o pequeno a é o motor da cadeia de significantes, fazendo-a prosseguir em seu movimento repetitivo.

O lugar da angústia também é de extrema relevância, pois através das marcações, intervenções e cortes produzidos em análise, observa-se uma produção de angústia no analisando. Esse acontecimento psíquico aponta para outro caminho, proporcionando ao analisando uma possibilidade de se desvencilhar de algumas de suas repetições. Para refletirmos sobre a dimensão clínica desse acontecimento, utilizaremos a teoria de Jacques Allain-Milller contidas em O osso de uma análise, no qual este, para pensar a prática psicanalítica, aponta determinados conceitos capazes de dinamizar e desamarrar alguns entraves clínicos referentes ao conceito de repetição em uma análise.

Com isso, o presente artigo pretende pensar algumas faces do conceito psicanalítico da repetição: 1) sua dimensão clínica, vista pela ótica freudiana apontada em Recordar, repetir elaborar, comumente relacionada à problemática estritamente ligada aos conceitos de recordação, resistência, transferência e atuação; 2) sua importância como conceito fundamental, sob a ótica lacaniana; 3) sua relação com os conceitos da Tiquê e do Autômaton; 4) sua aproximação com o conceito kierkegaardiano da Gjentagelsen); 5) sua relação com o objeto a, e conseqüentemente, com a cadeia de significantes; e 6) o lugar da angústia como operador que produz uma desarticulação na amarração ordenada, exposta no fenômeno da repetição.

RECORDAR VERSUS REPETIR

Em Recordar, repetir elaborar, Freud (1914/1996) nos apresenta seu trabalho clínico com extrema precisão. Aponta as diferenças operacionais dos dois modos de tratamento experimentados por ele em sua prática, que proporcionaram a gênese da psicanálise: a hipnose e a clínica propriamente analítica, fundada nas associações livres.

Ele salienta que, na primeira fase de seu trabalho, utilizava a catarse e a hipnose no tratamento psicoterápico. O modo operacional desta terapêutica se baseava na recordação e na ab-reação. "Nesses tratamentos hipnóticos, o processo de recordar assumia forma muito simples. O paciente colocava-se de volta numa situação anterior, que parecia nunca confundir com a atual, e fornecia um relato dos processos mentais a ela pertencentes " (FREUD,1914/1996, p.163-164).

Podemos demonstrar com esse trecho do texto freudiano a relação intrínseca entre a prática hipnótica e a recordação, caracterizando uma reprodução — como frisa Lacan, no Seminário 11 — a reprodução de uma situação anterior. Ou seja, reprodução, recordação e rememoração se apresentam, aqui, como sinônimos do mesmo acontecimento psíquico observado na prática hipnótica.

"Em sua primeira fase — a da catarse de Breuer — ela consistia em focalizar diretamente o momento em que o sintoma se formava, e em esforçar-se persistentemente por reproduzir os processos mentais envolvidos nessa situação, a fim de dirigir-lhes a descarga ao longo do caminho da atividade consciente " (idem, p.163).

Recordar e ab-reagir eram as metas dessa dita primeira fase, pois a reprodução dos componentes psíquicos relacionados diretamente ao sintoma proporcionava uma descarga de fundo terapêutico.

A descoberta do fenômeno da resistência faz com que Freud repense sua clínica. Ele abandona a hipnose em favor de uma nova concepção para sua prática, fundada na regra das associações livres — regra que receberá, posteriormente, o título de fundamental para o exercício da clínica psicanalítica.

A relação entre a resistência e esse segundo modelo mostra o seguinte: "A resistência deveria ser contornada pelo trabalho da interpretação e por dar a conhecer os resultados desta ao paciente " (idem, idem).

Em contraposição ao tratamento hipnótico e sua relação com a recordação, a técnica dita psicanalítica está intrinsecamente ligada à repetição.

"Sob a nova técnica, muito pouco, e com freqüência nada resta deste deliciosamente calmo curso de acontecimentos. Há certos casos que se comportam como aqueles sob a técnica hipnótica até certo ponto e só mais tarde deixam de fazê-lo, mas outros se conduzem diferentemente desde o início. Se nos limitarmos a este segundo tipo, a fim de salientar a diferença, podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e recalcou, mas o expressa pela atuação ou o atua (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo " (idem, p.165).

Vemos aí que a recordação está do lado da lembrança daquilo que pode ser lembrado, enquanto que a repetição está do lado da atuação movida por componentes psíquicos recalcados que se atualizam na análise. Repete-se, ou atua-se, aquilo que não pode ser lembrado. A análise marca a existência disto que não é perceptível pelo analisando, fazendo com que este se dê conta dos acontecimentos que o tomam enquanto sujeito.

Há uma ressalva que deve ser feita aqui: a resistência é o conceito que proporciona a mudança de método clínico e é ela que serve de pivô para diferenciar concepções terapêuticas distintas dentro do método psicanalítico. "Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação (acting out) (repetição) substituirá o recordar, pois o recordar ideal do que foi esquecido, que ocorre na hipnose, corresponde a um estado no qual a resistência foi posta completamente de lado " (idem, p.166).

A transferência, segundo Freud, também tem uma relação direta com a repetição, pois esta é "uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual " (idem, idem). Como já foi dito, a repetição se apresenta na análise como uma força que atualiza componentes psíquicos que antes não podiam ser recordados. Ela faz convergir acontecimentos que são observáveis fora da sessão, com os relacionados diretamente à sua transferência com o analista.

Ao assinalar a relação entre a repetição, a transferência e a resistência, Freud observa alguns pontos de extrema importância: 1) há uma relação estreita entre esses três acontecimentos psíquicos; 2) quanto mais hostil se torna a transferência, menos se recorda e mais se repete; 3) a repetição é determinada pela ocorrência da resistência; 4) a repetição é uma força atual, contrapondo-se à recordação, que marca um acontecimento bem definido do passado.

Falando do surgimento da 'neurose de transferência', ele marca a importância das intervenções do analista para o advento da mudança no caminho das repetições do analisando. Para que isso ocorra com o paciente, Freud afirma que se deve 'superar as resistências'. Mas o que isso quer dizer: superar as resistências? Ele responde: o analista deve "revelar a resistência que nunca é reconhecida pelo paciente, e familiarizá-lo com ela " (FREUD, 1914/1996, p.170). Como podemos produzir essa familiarização com as resistências, se o paciente não as consegue reconhecer? Talvez pudéssemos pensar que a angústia, como operador de estranheza frente aos próprios componentes psíquicos manifestos na repetição, proporcionaria o movimento de (re)familiarização das resistências, dando andamento à análise.

Nesse momento, Freud se vale de um conceito tão importante quanto a repetição e a recordação: o de elaboração. A elaboração seria uma forma de lidar com a resistência, proveniente da repetição não simbolizada. Ao repetir por atuação, o paciente rememora eventos e reproduz situações não mediadas pela linguagem. Ao ser capaz de simbolizar um evento ocorrido por atuação, o analisante tornaria consciente, ou racionalizaria, seu comportamento diante do analista, dando a ele a capacidade de elaborar a lembrança, ou a repetição, de forma simbólica, mais propícia a ser articulada com outras idéias inconscientes. Esse fato justifica a interpretação das resistências como um método de simbolizar a atuação como recordação. Freud demonstra a preocupação em manter a repetição dentro da esfera psíquica, esforçando-se para que o paciente não atuasse, não repetisse mecanicamente sua neurose sem antes refletir sobre suas ações.

REPETIÇÃO, UM CONCEITO FUNDAMENTAL

Comentando Recordar, repetir elaborar, Lacan observa a relação da repetição (Wiederholung) com a rememoração (Erinnerung), porém esta ocorre até o limite do real. Ou seja, rememorar seria repetir num eixo, onde algo de não representável no aparelho psíquico faria com que o ato de evocar uma memória deixasse furos, ou lacunas, não preenchíveis pelo universo simbólico do sujeito. Esse furo, ao constituir o universo subjetivo do sujeito, faz de sua fala algo nunca acabado. A rememoração seria, então, uma construção feita por uma retomada de fragmentos mnêmicos, que no real produzem um desfile dos significantes. Com isso podemos dizer que a recordação difere do fenômeno da repetição. Sobre essa diferença, Lacan afirma: "nessa ocasião, eu lhes mostro que, nos textos de Freud, repetição não é reprodução. Jamais qualquer oscilação sobre este ponto — Wiederholen não é Reproduzieren. Reproduzir é o que se acreditava poder fazer no tempo das grandes experiências de catarse " (LACAN, 1988, p.52).

Para Lacan, a repetição está ligada ao objeto a, que retorna como auto-idêntico. Este objeto é o elemento excluído da cadeia de significantes, porém é em torno dele que ela gira. Ele é o motor da cadeia que a faz repetir.

"A repetição envolve algo de que, por mais que se tente, não se consegue lembrar.

O pensamento não consegue encontrá-lo: O que é isso? Isso é o que está excluído da cadeia significante, mas em torno de que cadeia gira. O analisando dá voltas e mais voltas numa tentativa de articular o que parece estar em questão, mas não consegue localizá-lo, a menos que o analista aponte o caminho. " (FINK s.d., p. 241)

Esse comentário de Fink acerca do Seminário 11 ressalta a importância das intervenções do analista para que ocorra uma mudança na seqüência das repetições observadas na torrente discursiva, que toma o analisando, na prática das associações livres. Este comentário indica a mesma intuição freudiana ligada ao conceito de elaboração observada no texto de 1914.

Neste caso, Lacan demonstra que as relações objetais apontam para o desejo como falta estrutural do sujeito, que o lança na repetição por contingência psíquica. O objeto a é um conceito fundamental na obra lacaniana por indicar que a repetição é estrutural à própria dinâmica das relações objetais do sujeito. O que se repete, na concepção lacaniana, é o próprio furo na linguagem, sua transcendência original ao objeto em si; o que se repete, portanto, é a falta a ser, que faz mover os significantes dentro de uma cadeia associativa. A repetição, assim entendida, nos diz sobre sua capacidade de fazer funcionar o simbólico, de dar ao desejo seu mote original, de fazer do desejo motor da capacidade dos sujeitos de se conectarem e reconectarem a objetos. A alienação do sujeito na linguagem é o que se repete. É da impossibilidade de significar o desejo, de dar a ele um valor último, que faz do desejo algo que sempre retorna como furo a-significante, fazendo da coisa em si algo impossível de ser decodificado.

TIQUÊ E AUTÔMATON

No capítulo V do Seminário 11, Lacan retoma dois conceitos contidos no pensamento aristotélico — a Tiquê e o Autômaton — para refletir acerca da problemática da repetição e sua relação com o real. "Toda a história da descoberta por Freud da repetição como função só se define com mostrar assim a relação do pensamento com o real " (LACAN, 1988, p.52).

O Autômaton seria a insistência dos signos. Ele se caracteriza pelo automatismo inconsciente da cadeia de significantes, marcando, sob a dominância do princípio do prazer, o retorno, a volta insistente dos signos.

Já a Tiquê indica um além do Autômaton, um mais-além-do-princípio-do-prazer. Ele é o encontro com o real em Lacan.

"Nós a traduzimos por encontro com o real. O real está para além do Autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer. O real é o que vige sempre por trás do Autômaton, e do qual é evidente, em toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida. " (LACAN, 1988, p.56)

Este conceito marcaria bem o que se quer dizer com a repetição. A repetição não é reprodução, nem recordação, muito menos o retorno dos signos, nomeado aqui de Autômaton.

"Assim, não há como confundir a repetição nem com o retorno dos signos, nem com a reprodução, ou a modulação pela conduta de uma espécie de rememoração agida. A repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está sempre velado na análise, por causa da identificação da repetição com a transferência na conceitualização dos analistas. " (LACAN, 1988, p.56)

Bruce Fink, ao comentar este capítulo do Seminário 11, pensa acerca da relação entre estes dois conceitos e o real.

"O real aqui é o nível da causalidade, o nível daquilo que interrompe o funcionamento tranqüilo do Autômaton, da seriação automática, sujeita à lei dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao passo que os pensamentos do analisando estão destinados a perder sempre o alvo do real, conseguindo apenas circular ou gravitar em torno dele, a interpretação analítica pode atingir a causa, levando o analisando a um encontro com o real: a Tiquê. O encontro com o real não está situado no nível do pensamento, mas no nível em que a 'fala oracular' produz não-senso, aquilo que não pode ser pensamento. " (FINK, s.d., p.241-242)

O encontro com o real, assinalado aqui, nos mostra a produção do novo pela repetição da Tiquê do encontro com o nonsense que força um novo sentido, que desloca a serialização do Autômaton e das leis do significante. Esse encontro com o não-sentido da fala, assim entendido, nos remete a pensar a clínica psicanalítica como um espaço onde o novo se produz. Neste caso, o pensamento cristalizado das fantasias individuais é lançado de encontro com a possibilidade de ressignificação e elaboração dos fantasmas que perseguem o sujeito dentro de sua subjetividade constituída pela falta a ser. Ao ir de encontro com essa falta original, ao realizar a capacidade de desviar das cristalizações significantes, o sujeito em análise poderá ir de encontro à vida, cada vez mais livre para criar novas formas de interpretar e significar suas angústias existenciais.

Para Lacan, o real demarca seu lugar por meio dos acontecimentos psíquicos que vão do trauma à fantasia. O trauma persiste, em seu surgimento, apontando para um encontro desvelado com o real. Enquanto que a fantasia mascara o real, para manter uma 'calmaria' no aparato psíquico. A angústia produzida nas sessões analíticas proporciona ao analisando um encontro quase traumático com o real de sua condição de sujeito atravessado pela linguagem.

GJENTAGELSEN E WIEDERHOLUNG

Ainda no capítulo V do Seminário 11, Lacan comenta o texto "Gjentagelsen ", de Sören Kierkegaard, "o mais agudo dos questionadores da alma humana antes de Freud " (LACAN, 1988, p.62), para analisar a semelhança entre a repetição (Gjentagelsen) vista por este, e a conceitualização (Wiederholung) de Freud. Ambos apontam para a repetição sendo marcada pelo advento do novo.

A referida novela kierkegaardiana foi editada em 16 de outubro de 1843. Neste "texto ", assinado com o pseudônimo de Constantin Constantius, Kierkegaard expõe sua concepção de repetição que se embate com a dialética hegeliana, representada pela "mediação ". Segundo este autor, a "(...) mediação é um nome estrangeiro. Pelo contrário, a Gjentagelsen é uma palavra bem dinamarquesa e eu felicito a língua dinamarquesa por este termo filosófico " (KIERKEGAARD, 1990, p.87).

Nelly Viallaneix, tradutora francesa dessa novela, nos explica o motivo de sua escolha pela tradução de Gjentagelsen por La reprise ao invés de La répétition — como o antigo tradutor P.H. Tisseau. E ressalta que:

"mais comumente, o termo 'repetição' evoca a similitude na reprodução da palavra ou do gesto, a esclerose do hábito, 'o mesmo no mesmo'. Ao contrário, a retomada kierkegaardiana no sentido espiritual, existencial, é um segundo começo, uma vida nova, esta nova criatura, reconciliada ('a reconciliação é a retomada sensu eminentori'); é sempre eu, o mesmo, entretanto sempre outro, a cada instante. " (VIALLANEIX, 1990, p.57)

O prefixo Gjen significa 'de novo' e a segunda parte da palavra é um substantivo forjado sobre o verbo at tage que significa 'tomar', por isso a melhor maneira de a traduzir seria reprise, ou em português, retomada. Kierkegaard utilizou-se desse termo para evitar qualquer referência à palavra latina repetição, por esta assinalar o "mesmo no mesmo ", enquanto a Gjentagelsen marca o surgimento do novo.

A história de amor expressa por esse texto tem como ponto de Arquimedes as seguintes questões levantadas por Kierkegaard no primeiro parágrafo: "Uma repetição é possível? Que significação ela teria? Uma coisa ganha ou perde ao se repetir? " (KIERKEGAARD, 1990, p.66). Estas questões atravessam toda novela. A trama é tecida entre quatro personagens: Constatin Constantius, um rapaz, uma moça e Jó.

Constatin Constantius conta que um rapaz se apaixonou por uma moça, mas sofrendo por se ver incapacitado de tornar-se esposo, ou melhor, de concretizar seu amor, lhe pede conselho de como agir. Constantius diz a este jovem para desvencilhar-se dessa relação a que se submetia para, assim, retomá-la de modo diferente, ou melhor, precipitar a perda para repetir o amor. Mesmo recusando tal conselho, o jovem acaba por cumpri-lo. O efeito dessa ruptura tornou-o não um esposo, e sim um poeta.

Essa história se divide em dois capítulos: no primeiro, Constantin Constantius relata a história de amor acima referida e resolve ele próprio experienciar a repetição, voltando a Berlim para verificar se ela seria possível. Ele faz a 'mesma' viagem. Faz o roteiro idêntico à vez anterior que foi a cidade de Berlim: o mesmo trem, o mesmo quarto, o mesmo teatro, a mesma peça. Entretanto, não consegue vivenciar a mesma experiência, pois não era o mesmo que antes, nem os lugares eram os mesmos, muito menos seus sentimentos vivenciados neste instante da novela. Por isso, a resposta encontrada por ele foi negativa. Nesta parte da história, trata-se de uma falsa repetição (a repetição do mesmo).

O segundo capítulo recebe o mesmo nome do livro, por tratar diretamente da repetição em questão: a repetição diferencial, a retomada. Por isso, a referência à história de Jó é encontrada nas cartas do jovem a seu confidente. Isto porque, segundo as palavras do jovem: "Jó é abençoado e recebeu tudo em dobro — isto se chama uma repetição. " (KIERKEGAARD, 1990, p.156). Na história de Jó, vemos a impossibilidade da repetição do mesmo. Ela trata da retomada propriamente dita pois havendo, por provação de Deus, perdido tudo que tinha, Jó foi depois premiado com o dobro. Só que esse dobro não é nem uma soma do que ele tinha com mais um pouco, nem o mesmo. Seu prêmio dado por Deus é o novo.

Podemos dizer que a natureza da repetição kierkegaardiana é a diferença que emana desse ato criador no seio da existência. Repete-se, porém com diferença, como a busca do objeto amoroso em Freud. Lacan, assim, os compara:

"não mais que em Kierkegaard, não se trata em Freud de nenhuma repetição que se assente ao natural, de nenhum retorno da necessidade. O retorno da necessidade visa o consumo posto a serviço do apetite. A repetição demanda o novo. " (LACAN, 1988, p.62)

Na psicanálise, a questão da repetição engendra um paradoxo: "o que caracteriza a repetição é não ser de todo uma repetição. (...) [Ela] envolve sempre o fracasso de reencontrar, de fazer surgir das Ding (a Coisa), como dizia Freud, o traço unário, como o diria Lacan " (KAUFMANN, 1996, p.448). Ou melhor, ela se dá justamente pela impossibilidade de alcançar o ponto original pelo desejo. O homem repete-se (em ato) na busca do objeto perdido da primeira experiência de satisfação.

Assim, podemos vislumbrar o motivo categórico da referência ao termo kierkegaardiano Gjentagelsen utilizado por Lacan com o intuito de se apropriar dele no discurso psicanalítico, discurso sem dúvida de outra ordem. A repetição do objeto amoroso é uma espécie de retomada sobre o ponto original mítico da primeira satisfação, proporcionando, desta maneira, o aparecimento inevitável do novo.

WIEDERHOLUNGSZWANG E A CADEIA DE SIGNIFICANTES

Para Lacan, as duas referências freudianas básicas acerca do conceito de repetição são os textos intitulados "Além do princípio do prazer " e "Recordar, repetir elaborar ".

Freud discorre neste último texto sobre a cena analítica em que o analisando está impedido de recordar o que esqueceu e recalcou, expressando-o por meio da ação repetida. Como já vimos, ele também pensa a relação da repetição com a transferência e a resistência.

"Aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar e repete sob as condições de resistência. Podemos agora perguntar o que é que ele de fato repete ou atua (acts out). A resposta é que repete tudo o que já avançou a partir das fontes do recalcado para sua personalidade manifesta — suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. " (FREUD, 1914/1996, p.167)

Vemos, neste texto, que a prática psicanalítica possui de fato um débito com a repetição, pois ela se dá no decorrer do tratamento analítico. Isso não quer dizer que ela vise à repetição, porém, é sobre a repetição que o trabalho analítico se debruça.

Em Além do princípio do prazer, Freud (1920/1996) indaga-se sobre o problema da predominância ou não do princípio do prazer sobre a vida psíquica. Este é entendido aqui como o princípio psíquico que visa à redução de tensão que tem, comumente, ocorrência na dinâmica do aparato psíquico. Esta redução equivale à produção do prazer ou à evitação do desprazer, isto é, à diminuição de excitação no psiquismo.

"Decidimos relacionar o prazer e o desprazer à quantidade de excitação, presente na mente, mas que não se encontra de maneira alguma 'vinculada', e relacioná-los de tal modo, que o desprazer corresponda a um aumento na quantidade de excitação, e o prazer, a uma diminuição. " (FREUD, 1920/1996, p.17-18)

Este texto tem como questão primordial a indagação freudiana acerca da dominância deste princípio no aparelho mental. Freud depara-se, neste ponto, com a compulsão à repetição, Wiederholungszwang, tendo como fontes de inferência a neurose traumática, os sonhos de angústia, os de castigo e a brincadeira das crianças.

Partindo da observação da brincadeira de uma criança, o fort-da,1 1 Esta brincadeira observada por Freud em uma criança de, aproximadamente, um ano e meio, descrita pelos pais como 'bom menino', marca uma compulsão à repetição. O fort-da é retratado como um jogo que tem como temática primordial o desaparecimento e o retorno dos objetos. Ele caracteriza um controle da ida-e-vinda dos objetos. Foi observado que a criança o imprimia quando sua mãe saía de casa. A criança, ao jogar um carretel, dizia óóóó que Freud e a mãe associaram ao fort alemão (ir embora), e quando o carretel retornava dizia alegremente da (aí) (Cf. Freud, 1920/1996, cap. II). Freud indica que a compulsão à repetição, atuada neste caso, estaria a serviço de um controle fantasístico da situação desagradável proporcionada pela saída da mãe, velando, assim, a angústia.

"Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto. (...) Isso constitui prova convincente de que, mesmo sob a dominância do princípio de prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser rememorado e elaborado na mente. " (FREUD, 1920/1996, p.28)

No capítulo III deste artigo, ele retoma a sua análise da relação entre os conceitos de resistência, de repetição e de transferência. "O paciente não pode recordar a totalidade do que nela se acha recalcado, e o que não lhe é possível recordar pode ser exatamente a parte essencial " (FREUD, 1920/1996, p.29). Remonta-se, assim, à discussão contida no texto de 1914, acerca da problemática que relaciona a atuação, ou a impossibilidade de recordar, com o fenômeno da repetição contida na transferência observada na prática analítica.

"É obrigado a repetir o material recalcado como se fosse uma experiência contemporânea, em vez de, como o médico preferiria ver, recordá-lo como algo pertencente ao passado. Essas reproduções, que surgem com tal exatidão indesejada, sempre têm como tema alguma parte da vida sexual infantil, isto é, do complexo de Édipo, e de seus derivativos, e são invariavelmente atuadas (acted out) na esfera da transferência, da relação do paciente com o médico. Quando as coisas atingem essa etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi então substituída por outra nova, pela 'neurose de transferência'. O médico empenha-se por manter essa neurose de transferência dentro dos limites mais restritos; forçar tanto quanto possível o canal da memória, e permitir que surja como repetição o mínimo possível. (...) Deve fazê-lo reexperimentar alguma parte de sua vida esquecida, mas deve também cuidar, por outro lado, que o paciente retenha certo grau de alheamento, que lhe permitirá, a despeito de tudo, reconhecer que aquilo que parece ser realidade é, na verdade, apenas reflexo de um passado esquecido. " (FREUD, 1920/1996, p.29-30)

Nesse trecho de 1920, Freud assinala que a repetição e a atuação surgidas nas sessões analíticas, como acontecimentos psíquicos, trazem as marcas daquilo que foi recalcado e esquecido de um passado cingido pelo complexo de Édipo, ou melhor, imprimido por suas relações estabelecidas em sua infância esquecida. A repetição é uma força de atualização desses componentes, e a análise tem como objetivo apontar para que essas atualizações sejam metabolizadas psiquicamente.

Essa reflexão freudiana remete-nos à teoria lacaniana da cadeia de significantes. Para Lacan, a compulsão à repetição (Wiederholungszwang) representa "a insistência da cadeia de significantes " (KAUFMANN, 1996, p.451). O sujeito seria o produto desta cadeia (da articulação entre dois significantes) e o objeto causa a seria o elemento que proporcionaria o movimento da cadeia, ou a própria compulsão à repetição, pois não há identidade entre significantes.

O objeto a estaria no lugar da não-resposta, do não-representável que, por sua vez, proporciona o movimento da produção discursiva. "É a natureza não representacional do real que acarreta a repetição, exigindo que o sujeito volte ao lugar do objeto perdido, da satisfação perdida " (FINK, s.d., p.244). Só se repete o novo, porque esta retomada é dada sobre este ponto não representável.

Segundo Nasio, o objeto a é o excedente da rede de significantes.

"O sistema, portanto, precisa de dois fatores para ter consistência: um elemento (S1) e, depois, um produto eliminado (a). O significante externo S1 é homogêneo ao conjunto significante, sua relação lhe é simbólica; inversamente, o produto residual, a, de natureza real, é heterogêneo ao conjunto significante. " (NASIO, 1993, p.96)

O significante-mestre (S1) estaria no lugar do imperativo, de onde a cadeia tem seu início, de uma fala paterna, por exemplo; os S2 seriam as conseqüências do imperativo percebido como motor de questionamento e de atualizações na esfera psíquica; a relação que se dá entre os significantes produz o sujeito barrado atravessado pela linguagem; e o objeto a é aquele que insiste como auto-idêntico sobre a cadeia proporcionando a impossibilidade de equivalência entre os significantes, poder-se-ia dizer, grosso modo, que ele é o índice da incompletude.

Essa heterogeneidade de a constitui o motor da cadeia engendrada na retomada dos significantes. Quando o discurso toca o real, produz-se o novo. Em uma análise, a repetição indica o paradoxo da transferência. O espaço analítico pode ser entendido, desta forma, como um campo aberto à diferença, quando a repetição funciona na medida que impulsiona o novo — neste caso, o desfile dos significantes que constituem o sujeito. Ainda que o novo seja a repetição de algo do passado, resgatado pela memória do paciente, entendemos que essas imagens do passado são resgatadas em um tempo diferente, em outro momento, e destorcido pelas impressões do momento presente, fazendo-as sempre atuais. O paradoxo que insiste na análise é exatamente aquele em que coloca, lado a lado, dentro do processo transferencial, a resistência como impedimento ao processo analítico, como atuação e silêncio, e ao mesmo tempo como o grande motor analítico, ao lançar luzes sobre o caminho que percorre o desejo em sua constituição subjetiva. Se na transferência o sujeito corre o risco de agravar seus sintomas, esse agravamento é justamente o que vai apontar as fantasias mais profundas a serem analisadas.

No amor transferencial, por exemplo, as repetições maciças, para a figura do analista das representações mentais do desejo, podem indicar não apenas o caminho a ser seguido pela interpretação, como pode fazer com que por meio desse amor surja uma relação sustentadora da análise, a relação de suposto saber. Mesmo que o analisante transporte para a figura do analista seus desejos, também transporta as idealizações e simbolizações, representando, no campo analítico, suas cristalizações dentro das relações objetais.

Ao interpretar essas cristalizações, ou intervir sobre elas, o analista é capaz de catalisar o processo de ressignificação das relações objetais fixadas em uma forma dura, fazendo com que o discurso do novo possa emergir. Essa demanda pelo novo, típico da atividade simbólica do sujeito, é o que permite a ressignificação e o abandono por parte do sujeito de significantes mestres, que regem de forma dura seu campo subjetivo, para deixar seguir o desfile dos significantes, capazes de constituir novas formas subjetivas, que pela própria natureza da linguagem a que ela se refere, não cessa de se constituir.

OPERAÇÃO-REDUÇÃO, MECANISMOS PARA A PRÁTICA ANALÍTICA

Nesse ponto de nossa discussão, tomemos a explanação de Jacques Alain-Miller (1998) acerca da clínica psicanalítica encontrada em O osso de uma análise, seminário proferido no VIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, na Bahia, para que melhor pensemos a relação da repetição com essa concepção de clínica.

Comentando um poema de Carlos Drummond de Andrade — aquele que diz 'no meio do caminho tinha uma pedra' —, Miller aproxima esta imagem ao caminho da análise, caminho da fala, em que o obstáculo que se apresenta a todo ser falante é o pequeno a. Este é a pedra no meio do caminho, o osso, o obstáculo.

"Alguém vem à análise, o acolhemos sem preconceitos, sem pressupostos, sem saber, sem memória, o acolhemos no início do seu caminho de fala conosco. No entanto, ele veio porque tropeçou no seu caminho, porque há para ele um osso, uma pedra no seu caminho. Nós o convidamos a falar, e o que nos orienta em nossa escuta é que há, no caminho da sua fala, um osso. Antecipamos — talvez seja a única antecipação a que possamos nos permitir — que sua fala vai girar em torno desse osso, em espiral, circunscrevendo cada vez mais perto, até, se posso dizer, esculpir o osso. " (MILLER, 1998, p.39)

O paciente vem à análise, pois achou um obstáculo no seu caminho. "Meu modo de ser que até hoje funcionou muito bem, malogrou quando tropecei nesta pedra. Como sofro, tudo por causa de uma pedra. " Frases como esta poderíamos escutar em nossa prática. Esse tropeção produziu uma inquietação, para não dizer angústia, que o impulsionou a procurar tratamento. O caminho de sua fala vai deparar-se constantemente com essa pedra, com aquilo que o faz tropeçar. A repetição está intimamente ligada a essa pedra e esse obstáculo faz com que esta se atualize na análise.

Neste seminário, Miller nos apresenta o conceito de "operação-redução ". Este instrumento é utilizado, por ele, para apontar a especificação do trabalho analítico. Para apresentá-lo, ele contrapõe aquilo a que chama 'amplificação significante' à operação-redução.

A amplificação significante é caracterizada por esta fala que se amplifica, se prolifera, num dizer abundante. No dia-a-dia, nossa fala é abundante, recheada de floreios, de excessos que visam a produzir um dizer belo: essa é a essência da retórica. Uma conversa entre amigos, numa mesa de bar, exemplifica esta característica discursiva: a fala prolifera, se dissemina por inúmeros caminhos sem responsabilidade, tendo apenas a artimanha de uma estética do falar como seu instrumento.

Entretanto, em nossa prática, escutamos pacientes que se utilizam, pelo menos em alguns momentos de sua análise, de certos vetores da amplificação significante. Miller exemplifica quatro características dessas amplificações observáveis: 1) aquele paciente que quer lembrar tudo, estando sua fala a serviço da memória; 2) aquele que quer contar tudo que lhe acontece durante o dia, estando sua fala a serviço do evento; 3) aquele que explica tudo, estando sua fala a serviço da razão; 4) aquele que possui uma fala munida de uma opacidade quase oracular, este é o discurso a serviço do mistério Esses quatro tipos malogram em seus objetivos, pois seu discurso prolifera além do que o tempo de uma sessão pode comportar.

Miller observa que a psicanálise tem, como modo operacional, a operação-redução, pois o bem-dizer analítico visa à redução, à redução a uma questão, à redução ao osso, ao obstáculo, que se encontra no meio do caminho do ser falante. É como se a psicanálise visasse a um afunilamento, que vai do dizer abundante ao dizer reduzido a uma questão, na qual o analisando deve-se encontrar implicado no trabalho de sua análise.

Este modo operacional possui três mecanismos: a repetição, a convergência e a evitação. No primeiro mecanismo, a repetição, observa-se uma espécie de redução a uma constante, pois ao se utilizar a regra analítica, o sujeito é conduzido a repetir: "Temos a idéia de um mesmo lugar que é ocupado por personagens diferentes " (MILLER, 1998, p.46).

A convergência se dá quando observamos que o discurso do analisando tende a apontar para uma questão, "um enunciado essencial " (MILLER, 1998, p.48). Miller diz que o analisando pode ser levado por sua torrente discursiva a esse ponto de convergência. Entretanto, há casos em que a interpretação do analista produz esse encontro. Encontro com o significante-mestre, "o significante mestre do destino do sujeito " (MILLER, 1998, p.50).

O terceiro mecanismo é o da evitação, que marca aquilo que é impossível de se apresentar no discurso do analisando. "Em todos os casos há elementos que não aparecem, elementos cuja evitação se repete " (MILLER, 1998, p.65).

Esse trabalho de Miller nos ajudou a esclarecer a dinâmica clínica e sua relação com a repetição: esta tem ocorrência sobre a pedra no caminho do ser falante. Repete-se, devido à existência e à insistência desta pedra, esta pedra no meio caminho, esta pedra no sapato: o objeto a.

Na prática analítica, pode-se observar a constante presença da repetição. Ela se dá em atos, em atualizações. Porém, para que nossos pacientes se desamarrem das repetições que se mostram como uma pedra no caminho de sua fala, é mister apontarmos a importância das marcações, intervenções, interpretações, cortes que geram, no sujeito, certa estranheza, certa angústia, fazendo-o ver a pedra por outro prisma.

CONCLUSÃO

À guisa de conclusão, gostaríamos de frisar um ponto: o fenômeno da repetição caracteriza a prática analítica, em detrimento da recordação, tão essencial ao modelo de tratamento hipnótico. A repetição produz o novo, pois o que se repete é o elemento excluído da cadeia, elemento que impossibilita a identificação entre os significantes, sendo assim o motor que impõe o movimento e a repetição à cadeia. Ou melhor, o que repete é o impossível de se dizer, o impossível de ser recordado.

Essa repetição caracteriza um paradoxo, ou uma má nomeação, pois ela produz não a mesmidade como se poderia pensar, mas, sim, a novidade. Ela marca uma retomada (para tomar aqui emprestado a conceitualização kierkegaardiana) sobre o ponto inalcançável, não representável: o objeto a.

As marcações, construções, intervenções — instrumentos da prática clínica — apontam para um possível desvencilhamento do analisando para com a amarração ordenada, observada no fenômeno da repetição.

A angústia surge, neste ponto, como um mecanismo operador de estranheza do sujeito para com seu próprio discurso, fazendo-o relacionar-se diferentemente com suas repetições.

A psicanálise não visa à repetição, porém seu trabalho se dá sobre os componentes contidos nesse fenômeno observado nas sessões analíticas. O objeto visado por sua prática é a elaboração, espécie de movimento da interpretação que faz das repetições motivos de reprodução e metabolização psíquica.

Recebido em 7/8/2007. Aprovado em 25/10/2007.

  • FINK, B. (s.d.). "A causa real da repetição ", in: Para ler o Seminário 11 Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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  • (1914). "Recordar, repetir e elaborar ", v. XII, p.161-171.
  • (1920). "Além do princípio do prazer ", v. XVIII, p.13-75.
  • KAUFMANN, P. & cols. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise, o legado de Freud e Lacan Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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  • LACAN, J. (1988). O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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  • NASIO, J. D. (1993). Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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    Esta brincadeira observada por Freud em uma criança de, aproximadamente, um ano e meio, descrita pelos pais como 'bom menino', marca uma compulsão à repetição. O
    fort-da é retratado como um jogo que tem como temática primordial o desaparecimento e o retorno dos objetos. Ele caracteriza um controle da ida-e-vinda dos objetos. Foi observado que a criança o imprimia quando sua mãe saía de casa. A criança, ao jogar um carretel, dizia óóóó que Freud e a mãe associaram ao
    fort alemão (ir embora), e quando o carretel retornava dizia alegremente
    da (aí) (Cf. Freud, 1920/1996, cap. II).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      07 Ago 2007
    • Aceito
      25 Out 2007
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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