RESUMO
Objetivo: compreender os efeitos que práticas dialógicas têm na participação social e autonomia de pessoas com mais de 60 anos, bem como na maneira que enfrentam a própria velhice.
Métodos: fundamentado na análise dialógica do discurso, esse estudo, de caráter qualitativo, considera a linguagem como trabalho que organiza e dá sentido às ações humanas. Assim, durante um ano, após promover encontros semanais de 90 minutos, voltados a práticas orais, de leitura e de escrita, relacionadas às histórias de vida, participantes idosos responderam a uma entrevista semiestruturada.
Resultados: os seus enunciados permitem afirmar que as atividades dialógicas tiveram efeitos positivos sobre a participação social e a autonomia, gerando-lhes: a) mais confiança e liberdade para usar a linguagem; b) fortalecimento e segurança para tomadas de decisões; c) mais possibilidade para o enfrentamento da velhice; d) além do aumento da autoestima.
Conclusão: pôde-se concluir, sem generalizações, que um trabalho pautado em práticas dialógicas viabiliza a promoção de uma velhice ativa, participativa e com qualidade de vida.
Descritores: Envelhecimento; Participação Social; Autonomia Pessoal; Linguagem
ABSTRACT
Purpose: to understand the effects that dialogical practices can have on the social participation and autonomy of people over 60 years old, as well as the way they face their own aging.
Methods: this qualitative study was based on the dialogical discourse analysis, which considers language as the practice that organizes and signifies human actions. Thus, after dialogical practices developed during weekly meetings of 90 minutes, focused on oral, reading and writing activities related to elderly people´s life stories, the aged participants responded to a semi-structured interview.
Results: the results allowed verifying that dialogical activities had positive effects on elderly people´s social participation and autonomy, so, they could have: a) more confidence and freedom to use the language; b) strength and reassurance to make decisions; c) more possibility to cope with aging; d) enhancement of their self-esteem and self-worth.
Conclusion: it can be concluded that activities based on dialogical practices can promote an active, participatory aging, with a better quality of life.
Keywords: Aging; Social Participation; Personal Autonomy; Language
Introdução
O envelhecimento é um processo heterogêneo e progressivo que acompanha a existência de todo ser vivo. No humano, esse processo não se ajusta em função de uma simples relação natural entre a biologia e a biografia. Contrariando tal posição reducionista, estudos indicam que o envelhecimento de cada ser humano, além de aspectos orgânicos, depende de fatores culturais, socioeconômicos, educacionais, laborais, entre outros, os quais são interdependentes e estabelecem vínculos com a história singular de cada pessoa1.
Contudo, embora não seja possível definir uma idade única capaz de designar uma pessoa como idosa, de um ponto de vista legal, a Organização Mundial da Saúde2 indica que a velhice se inicia aos 65 anos de idade, em países estáveis economicamente, e aos 60 anos, em países mais pobres e com maior vulnerabilidade social. Com esse referencial cronológico, a base da pirâmide etária, composta por crianças e jovens, vem estreitando-se, enquanto que o seu topo, formado por pessoas com mais de 60 anos, está alargando-se, culminando com o envelhecimento demográfico mundial3.
Nesse contexto, a América Latina passa por um período de profunda transformação, caracterizada pelo acelerado envelhecimento da população e por desigualdades socioeconômicas e educacionais, que se refletem fortemente durante a velhice. Em geral, essas desigualdades denunciam desvantagens sociais acumuladas ao longo da vida eincidem no estado de saúde e na autonomia dos mais velhos. A conscientização dessas desvantagens tem contribuído com o desenvolvimento de legislações que compartilham a vocação de transversalizar as necessidades específicas desse segmento populacional, inserindo-o no conjunto de ações públicas e legislações intersetoriais4.
No Brasil, a Política Nacional do Idoso assegura direitos sociais às pessoas com mais de 60 anos, ressaltando a necessidade da criação de condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade. Dessa forma, propõe-se a enfrentar um dos maiores desafios da atualidade brasileira, na medida em que se preocupa em assegurar que o idoso se mantenha ativo em uma sociedade acostumada a associar velhice à incapacidade e à inércia5. Também, a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI) foi promulgada com a finalidade de recuperar, manter e promover a autonomia e a independência dos idosos, ressaltando o engajamento comunitário desses sujeitos como um dos pilares capazes de diminuir preconceitos relacionados à idade6.
Nessa direção, tais políticas púbicas valorizam a criação de um ambiente social favorável ao envelhecimento ativo, com vistas a promover a qualidade de vida de pessoas idosas, por meio de acesso universal aos serviços públicos de saúde e à consideração dos determinantes sociais. Ressaltam uma conceituação ampla de saúde que, independentemente da presença ou da ausência de doenças, diz respeito à autonomia e à independência, ou seja, à capacidade de as pessoas mais velhas tomarem decisões, da valorização das suas identidades, do direito de irem e virem livremente e da possibilidade de construírem melhores condições de vida pessoal e coletiva7.
No âmbito da Promoção da Saúde, convém esclarecer que práticas com a linguagem desempenham papel preponderante no processo de envelhecimento ativo, na medida em que a linguagem, enquanto atividade interacional, é essencial para garantir a contínua participação de pessoas idosas junto à comunidade em que estão inseridas8. A linguagem é um trabalho intersubjetivo que organiza e dá sentido às ações humanas, permitindo reflexões, ressignificações, tomadas de decisões e, ao mesmo tempo, promovendo mudanças na forma de cada pessoa se relacionar com ela própria e com outros ao seu redor9.
Dessa forma, se de um ponto de vista da atenção e do cuidado, a Promoção da Saúde é vista como uma estratégia de produção de saúde que se desenvolve por meio da escuta e acolhimento de histórias e condições de vida, o trabalho com linguagem é fundamental. Pois, de acordo com Bakhtin9, a linguagem, enquanto atividade dialógica, está vinculada com a vida, imersa em interlocuções que revelam e organizam conteúdos vivenciais em todos os ciclos da existência humana. É por meio da linguagem, entendida sob uma ótica dialógica, que qualquer interação humana, incluindo aquela estabelecida entre pesquisador e sujeito pesquisado pode gerar outras possibilidades de reflexões para ambos, fazendo circular a palavra e promovendo a autoria do que é dito e vivido8.
Métodos
O estudo em tela vincula-se a um programa de extensão universitária e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de uma Universidade situada no Sul do Brasil, aprovada pelo comitê de ética 102/208. Assim, atendendo aos critérios de tal comitê, todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e esclarecido (TCLE), sendo informados que sua participação era livre e que a desistência do trabalho podia ocorrer a qualquer momento, sem prejuízos ou justificativas.
Trata-se de pesquisa qualitativa, pautada em uma perspectiva dialógica do discurso, nos termos da filosofia da linguagem de Mikhail Bakthin9, a qual considera que os significados são coletivamente construídos, explorando o perfil singular dos sujeitos que fazem parte de uma dada comunidade.
Sob a perspectiva dialógica, um estudo de cunho qualitativoentende que os seus participantes se constituem nas relações sociais e, desse modo, as suas produções discursivas só fazem sentidoem função dosvínculos que estabelecem com outros discursos10. Assim, ultrapassando posições de neutralidade11, investigadores e participantes interagem, reelaborando posicionamentos e a maneira de conceber a si próprios e as circunstâncias que fazem parte de sua história. Uma vez que os enunciados não são neutros, mas produzem efeitos de sentido nos integrantes do diálogo, a análise qualitativa de caráter dialógico, afasta-se de uma ótica que enxerga os participantes como meros informantes, cujas produções discursivas seriam simples locuções transparentes, independentes do contexto enunciativo em que foram elaboradas. Ao contrário, a análise dialógica dos enunciados considera a situação concreta em que os textos se realizam, tendo em vista seu caráter social mais amplo12.
Nessa direção, cabe esclarecer que os participantes do presente estudo são idosos que fizeram parte de um programa de extensão universitária, denominada Oficina da Linguagem, cuja atenção volta-se à promoção de saúde de pessoas com mais de 60 anos de idade. Essa Oficina busca integrar um trabalho de promoção da linguagem, por meio de práticas dialógicas relacionadas à oralidade, à leitura e à escrita. Ele está organizado a partir de encontros, nos quais os idosos discutem temas do próprio interesse: brincadeiras de infância, trabalhos formais e informais que desenvolveram ao longo da vida, músicas e imagens fotográficas que marcaram suas histórias e memórias, entre outros. Os encontros têm duração de noventa minutos cada e ocorrem na própria Universidade onde se efetivou a atividade extensionista, todas as quartas-feiras, juntamente com estudantes e pesquisadores envolvidos com a temática do envelhecimento e da velhice.
Especificamente durante o ano de 2016, os integrantes idosos da Oficina participaram de várias atividades interacionais, realizaram leituras de textos diversos, com assuntos relacionados à qualidade de vida e ao envelhecimento ativo. A leitura desses textos desencadeou, durante o primeiro semestre, diálogos entre os idosos, os acadêmicos e as pesquisadoras. Nesse processo dialógico, todos os envolvidos interagiam oralmente frente a posicionamentos conflitantes, questionavam e ressignificavam sentidos cristalizados sobre a velhice, a saúde, a autonomia e a participação social de pessoas com mais de 60 anos.
No segundo semestre de 2016, depois das práticas com a leitura, os participantes idosos produziram textos, estruturados em função de relatos de experiências pessoais, envolvendo o envelhecimento e os projetos futuros de cada um. Eles narravam partes de suas histórias e os demais integrantes da Oficina ouviam e faziam comentários. Na sequência, cada um escreveu seu relato e leu aos outros, que questionaram, apontaram lacunas, deram sugestões, gerando questões sobre aspectos formais e discursivos dos textos elaborados.
As questões, acolhidas pelos integrantes, fundamentaram a reelaboração pessoal das produções textuais. Por fim, após o trabalho de escrita e reescrita, o texto de cada participante idoso foi transformado em um capítulo de livro. Assim, tomando a perspectiva dialógica como referencial nesse trabalho, uma vez que a linguagem, como atividade simbólica, promove a reorganização contínua da história de cada pessoa, os participantes se autorizaram a escrever seus relatos pessoais, publicando nas redes sociais um e-book, intitulado “Dê trela para a velhice”.
Depois de finalizados os trabalhos, em novembro de 2016, os idosos foram convidados a responder individualmente e oralmente a uma entrevista semi-estruturada. Essa entrevista, além de questões voltadas ao perfil socioetário, foi composta por indagações que visavam compreender o papel que ações interlocutivas, pautadas em uma ótica dialógica da linguagem, pode desempenhar na promoção da autonomia e do enfrentamento da velhice, no processo de envelhecimento ativo. Quanto aos critérios de inclusão, cabe esclarecer que, para participar da pesquisa, era preciso ter mais de 60 anos e ter integrado a Oficina da Linguagem durante todo ano de 2016, independentemente de apresentarem queixas e comorbidades.
As entrevistas foram gravadas pelo aparelho Lenovo K5, sendo posteriormente transcritas e analisadas. A unidade de análise do estudo foi a própria atividade dialógica desencadeada durante a entrevista, que corresponde a uma situação interacional semioticamente mediada, de acordo com a perspectiva dialógica que embasa o presente estudo. Essa entrevista, entendida como um gênero do discurso, foi tomada como enunciado concreto, pertencente a uma cadeia discursiva que gera respostas, ou seja, atitudes responsivas nos participantes do diálogo: pessoas idosas e pesquisadores. Por isso, as questões norteadoras, que organizaram o próprio diálogo entre os participantes, estão configuradas na explicitação dos eixos apresentados nos resultados. Tais questões antecedem as respostas elaboradas pelas pessoas idosas, sendo possível considerar o contexto discursivo, no qual os seus relatos foram produzidos, conforme explicitado na sequência.
Resultados
Inicialmente, convémrelatar que a presente pesquisa contou com a participação de sete pessoas, sendo seis mulheres e um homem, reconhecidos pelos seguintes nomes fictícios: Afrodite, Artêmis, Zeus, Héstia, Hera, Deméter e Atena. Eles são identificados com nomes de deuses do Olimpo, fazendo alusão à influência que a civilização e o pensamento grego exerceram sobre o mundo ocidental, da mesma forma que os idosos influenciam as novas gerações.
Os resultados do estudo estão organizados em 3 partes. A primeira apresenta o perfil socioeducativo dos participantes. Na sequência, a segunda e a terceira parte representam, de acordo com uma ótica dialógica da linguagem, dois eixos de análise que se voltam a aspectos relacionados à autonomia e ao enfrentamento da velhice, respectivamente, tendo em vista o papel que ações interlocutivas podem desempenhar na promoção da saúde no processo de envelhecimento.
Perfil dos Participantes da Pesquisa
No que se refere à caracterização dos participantes, o perfil sociodemográfico dos mesmos, levando em conta fatores relacionadosà idade, gênero, estado civil, renda e nível de escolaridade, está apresentado logo abaixo.
Hera é uma mulher de 85 anos de idade, viúva e aposentada. Ele recebe dois salários mínimos ao mês. Reside sozinha, convivecomvizinhos e com colegas degrupos que participa. Concluiuo ensino superior.
Héstia é uma mulher de 62 anos de idade, casada, aposentada e recebe um salário mínimo, reside com marido e filho. Convive com netos e irmãos. Ela concluiu o ensino médio.
Afrodite é uma mulher de 66 anos de idade, divorciada, aposentada, reside sozinha. Convive com a mãe, irmãos, filhos, netos, familiares e amigos. Ela concluiu o ensino superior.
Deméter é uma mulherde 65 anos de idade, viúva, aposentada, reside com o filho. Ela não chegou a completar o ensino fundamental.
Atena é uma mulherde 85 anos, solteira, aposentada com um salário mínimo. Reside com uma filha e duas netas, convive com vizinhos e amigos. Atena nunca frequentou escola.
Artêmis é uma mulherde 67 anos de idade, casada, aposentada. Ela reside com o marido, convive com o filho, vizinhos e familiares. Seu nível de escolaridade corresponde ao ensino médio incompleto.
Zeus é um homemde 66 anos, casado, aposentado com dois salários mínimos.Reside com a esposa e uma filha. Ele cursou até 2º ano do ensino fundamental.
Primeiro eixo: a influência da Oficina da Linguagem sobre a autonomia e tomada de decisão
Esse eixo busca ressaltar o papel que ações dialógicas podem desempenhar, especificamente, na promoção da autonomia, durante a velhice. Para compreender se a Oficina da Linguagem tem exercido influência na autonomia e nas tomadas de decisões dos participantes, foram elaboradas as seguintes questões: 1) “Você entende que sua participação na Oficina da Linguagem influencia a sua autonomia?Sim?Não?Porque?”; 2) “A participação na Oficina da Linguagem tem influenciado as suas tomadas de decisões? Se sim, quais decisões?”.
Na sequencia, é possível acompanhar as respostas dadas sobre autonomia e tomada de decisão pelos participantes da Oficina de Linguagem.
Hera: [...] Sim! Por exemplo, é da escrita, às vezes eu tinha receio de escrever alguma coisa, e a Oficina me deu uma certa liberdade, me libertou desses preconceitos ou coisas semelhantes.
Héstia: Influenciou, por que eu acho que eu tinha autonomia, mas hoje eu tenho mais segurança para tomar as decisões, eu aprendi mais...foi um fortalecimento para a minha vontade, aflorou meu potencial que estava meio guardado lá... é mais fácil agora eu ir botando para fora as coisas, as minhas vontades. Muitas coisas que eu não fazia, eu faço agora.[....].
Afrodite: Porque a gente vê que a gente pode. Por que eu acho que estou envelhecendo, mas estou melhorando. Eu nunca digo não para nada, mesmo que eu não sei, eu procuro ir atrás e saber, e eu acho que é influência da Oficina da Linguagem, por que a gente ouve muitas histórias e coloca no nosso cotidiano para melhorar a nossa vida.
Deméter: Sim, bastante. Às vezes eu faço algo meio repentino, daí eu penso: não!!! Vou fazer que nem no grupo da Oficina da Linguagem. Tem que pensar, tomar uma decisão.Eu fiquei mais comportada, eu escuto, aprendi a escutar, não estou bem daquilo, mas estou aprendendo.
Atena: [...] Quando eu cheguei à Oficina de Linguagem eu não falava, eu tinha vergonha e agora, não, eu falo!
Artêmis: Sim! Por que a gente sentevalorizada.Por que há uma troca de experiência mesmo, da gente, idoso com vocês, jovens. É uma troca de sabedoria eu acho.
Zeus: Sim, mudou. Conhecimento. Minha comunicação. Eu era muito tímido, hoje estou mais solto.
Síntese da influência de ações dialógicas sobre a autonomia/tomada de decisão dos idosos, participantes da Oficina da Linguagem
Segundo eixo: a influência da Oficina da Linguagem no enfrentamento da velhice
Este eixo busca compreender a influência que atividades dialógicas, produzidas durante os encontros da Oficina da Linguagem, pode ter na maneira como os idosos concebem e enfrentam a própria velhice. Para tanto, foram elaboradas as seguintes questões: 1) “A sua participação na Oficina de Linguagem influenciou sua maneira de enfrentar a velhice? 2) Se sim, o que mudou na sua maneira de enfrentar a velhice? 2) Se não, Porque?”.
As respostas elaboradas a tais questões foram transcritas e estão apresentadas na sequência.
Afrodite: Sim, o contato com pessoas..., as trocas de experiência te deixam melhor, muda seu jeito de ver a vida.
Artêmis: Sim, o convívio com outras pessoas melhora a auto estima, te dá mais segurança para conversar, mudei meu estilo de vida, antes ficava em casa isolada, aqui aprendi muito.
Zeus: Sim, perdi minha timidez, mudei minha forma de me comunicar, ouço mais as pessoas, foi uma experiência maravilhosa, mudou meu jeito até com os familiares, antes ficava isolado em casa.
Héstia: Sim, sempre fui muito ativa, mas aqui aprendi a olhar mais para dentro de mim, melhorou minha estima...agora que estou velha.
Hera: Sim, aqui abre os horizontes, há trocas entre as pessoas, se aprende muito e se ensina também, o fato de ouvir e ser ouvido principalmente pra quem tem problemas de audição levanta a estima, mudou a minha vida.
Deméter: Sim, antes tinha medo de falar, ficava calada, isolada, aqui fui acolhida, aprendi a me respeitar e valorizar, agora dou minha opinião sempre que quero.
Atena: Sim e não, porque já pensava desta forma só reforçou mais o que pensava, precisamos nos aceitar e sentir valorizadas, antes eu falava muito, mas não ouvia muito os outros, agora aprendi a ouvir e dar minha opinião, respeitando as outras opiniões.
Discussão
Em relação à caracterização dos participantes, é possível observar predominância do gênero feminino. Tal fenômeno pode estar relacionado ao que vem sendo chamado de feminização da velhice, tendo em vista que as mulheres vivem mais do que os homens em quase todos os lugares do mundo2.
Em um estudo recente feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística13 foi observado que as mulheres representam 55,8% da população idosa, no Brasil.Essa predominância vem sendo explicada, dentre outros fatores, pela menor prevalência de tabagismo e de etilismo, menos exposição a riscos, como por exemplo, o fato de as mulheres viverem mais tempo no espaço doméstico do que os homens, o que as protege de eventos violentos14. Também, por procurarem mais recorrentemente os serviços de saúde, alcançando diagnósticos mais precocemente, as mulheres têm maiores possibilidades de cura de doenças15.
No que se refere à escolarização, pode-se constatar que há diferenças significativas em relação aos níveis de escolaridade dos participantes: uma idosa é alfabetizada, mas não é escolarizada; uma possui ensino fundamental incompleto e outra o ensino médio incompleto; um homem e uma mulher contam com o ensino médio completo; e duas idosas concluíram o ensino superior. Os níveis mais restritos de escolarização podem ser justificados pelas próprias condições do sistema educacional brasileiro, nas décadas de 1940 e 1950, que beneficiava residentes em centros urbanos. Naquele momento, o Brasil, que tinha uma economia agrícola, contava com um expressivo número de crianças em idade escolar vivendo na zona rural. Em decorrência disso, aquelas crianças cresceram e tornaram-se pessoas idosas com níveis mais restritos de escolarização16.
Além disso, a população analfabeta,no maior país da América do Sul, é majoritariamente composta por pessoas idosas, especialmente, do gênero feminino. Isso porque, até meados do século XX, havia menos oportunidade de acesso à escola para as mulheres, que eram educadas para serem esposas e mães, responsáveis pelos afazeres familiares e domésticos16. No que se refere à convivência, a maioria dos sujeitos pesquisados convivem com a família, sendo que apenas duas idosas residem sozinhas. De qualquer forma, cabe ressaltar que a relação familiar é um importante espaço de convivência e aprendizagem,que pode promover relações de afeto entre o idoso e seus entes familiares17.
Quanto ao primeiro eixo, que aborda a influência da Oficina da Linguagem na autonomia e nas tomadas de decisões de idosos, os integrantes desta pesquisa relataram, em seus discursos, que a partir da participação em tal Oficina, sentem-se mais seguros e com maior liberdade para escrever,como também para tomar decisões, falar e escutar os outros.Os relatos de Atena e de Zeus, por exemplo, indicam que, antes de participarem da Oficina da Linguagem, sentiam-setímidos e inseguros para falar.
Esses relatos afirmama relevância de atividades dialógicas grupais na promoção da segurança e da autonomia de pessoas idosas, sobretudo, no quese refere à interação por meio da linguagem oral e escrita.Ou seja, atividades voltadas às produções orais, como desenvolvido na Oficina da Linguagem, sãocapazes de promover autonomia das pessoas idosas, proporcionando-lhes novas situações discursivas, as quais valorizam suas opiniões e experiências,ampliando suas possibilidades de participação social.Neste ponto, convém ressaltarque a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa6 indica que a autonomia reflete as ações dos sujeitos ao longo da vida, devendo ser garantida na velhice, para que o idoso participe ativamente de ações que lhe são direcionadas na comunidade em que vive.
Os integrantes desse estudo também relataram que as atividades dialógicas desenvolvidas naOficinafortaleceramsuas opiniões, levando-osa reconhecer suas potencialidades, bem como a influência que suas histórias de vida têm sobre os outros. Os discursos de Héstia e de Afroditeapontam que, ao participarem de atividades mediadas por práticas interacionais, perceberam fortalecimento desuas vontades, além da melhoria da qualidade de vida. Seus relatos mostram que a partir da relaçãoestabelecida com as outras pessoas que faziam parte do trabalho, passaram a ter uma noção mais benéfica sobre o próprio envelhecer, desfazendo preconceitos e viabilizando uma velhice mais digna, autônoma e saudável.
Os dados aqui encontrados estão em concordância com estudoqualitativo realizado em Cajazeiras, no nordeste brasileiro com 60 idosos, o qual mostra que atividades interacionais permitem melhoria da confiança pessoal e da qualidade de vida, proporcionando maior participação social na velhice18. Nessa mesma direção, outra pesquisa realizada no Sul do Brasil, ressalta que interlocutores idosos, participantes de práticas dialógicas, referem perceber mais claramente a necessidade de trocar experiências, de falar, ouvir, defender pontos de vista e contrapor opiniões, ampliando seus conhecimentos e desmistificando posições cristalizadas e estigmatizadas sobre o envelhecimento 19.
O segundo eixo concerne a influência ou não que as atividades dialógicas tiveram na maneira de os idosos enfrentarem a própria velhice.A partir dos enunciados produzidos pelos participantes, é possível entender que sim, que os idosos percebem tais influências como sendo positivas na velhice, propiciando troca de experiências, possibilidades de ouvir e de ser ouvido, autovalorização, respeito ao outro e maior participação social, a qual, em contrapartida minimiza o isolamento. Tais aspectos estão em conformidade com outra pesquisa realizada com idosos, cujos resultados indicaram que atividades significativas com a oralidade, com a leitura e com a escrita proporcionaram aos idosos mais confiança e liberdade para falar, ler e escrever, relatando maior segurança, autoestima e respeito próprio8.
Estudo sobre a influência de atividades grupais no processo de envelhecimento revela que é por meio da participação em grupos que o idoso tem a possiblidade de construir novos laços e novas formas de compartilhar seu aprendizado e sua história de vida com outros sujeitos20. Os relatos de Afrodite, Zeus e Hera também fazem essa revelação. Pois, para eles, as trocas de experiência, propiciadas pelas atividades dialógicas, transformaram a maneira de perceberem a própria vida, melhorando as possibilidades de se relacionarem com os outros.
Uma pesquisa sobre convivência em grupos relata que o envolvimento grupal traz benefícios aos seus integrantes idosos, pois contribui significativamente com a ressignificação de suas histórias pessoais, superação de dificuldades cotidianas, desenvolvimento de atitudes saudáveis, resgatando do sentido de bem estar, pertencimento e de utilidade diante dos outros21. Os relatos de Artêmis e de Zeus indicam claramente que antes de participarem da Oficina da Linguagem ficavam isolados em casa e com a própria estima rebaixada. São relatos que indicam que o trabalho dialógico grupal propiciou mudanças, inclusive, na relação com familiares, anunciando a importância da participação de idosos em atividadesinterpessoais, capazes de promover maior participação social e compartilhamento de conteúdos vivenciais.
Considerações Finais
A presente pesquisa indica que atividades dialógicas produziram efeitos relevantes na promoção da autonomiade pessoas idosas, participantes de uma Oficina de Linguagem. Essas experiências geraram mais confiança, mais liberdade para falar, fortalecimento das próprias vontades, além de maior participação social e segurança nas tomadas de decisões. Assim, é possível entender, que umtrabalho com e pela a linguagem, pautado em práticas dialógicas, pode ter papel preponderante para efetivação da Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, na medida em que gera benefícios relacionados à melhoria da interação socioverbal, maior possibilidade para o enfrentamento da velhice, além do aumento da autoestima e da autovalorização.
Convém ponderar que os resultados desta pesquisa não permitem generalizações, pois refletem produções discursivas elaboradas por pessoas situadas em uma determinada comunidade, que se propuseram a participar de atividades significativas com a linguagem e com o outro, por um tempo específico. Entretanto, ela pode servir como referência aos profissionais que prestam assistência à pessoa idosa, para que possam atuar no sentido de considerar as produções discursivas do idoso, promovendo a sua autonomia e o poder de decisão que ele deve ter sobre a sua vida pessoal e social, conforme propõem as Políticas Públicas votadas a esse segmento populacional. Por fim, cabe ressaltar que as constatações deste estudo sugerem a necessidade de realização de pesquisas sobre a temática abordada, tendo em vista a escassez de estudosnacionais e internacionais que abordem o papel das relações dialógicas no processo de envelhecimento ativo.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Nov 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
10 Set 2019 -
Aceito
07 Out 2019