Resumos
OBJETIVO: Embora o uso de cocaína seja um problema significativo de saúde pública, há uma relativa escassez de dados científicos sobre as conseqüências neurocognitivas decorrentes da exposição à substância. MÉTODOS: Esse estudo avaliou a associação entre dependência de cocaína e crack e desempenho cognitivo. Uma ampla bateria de testes neuropsicológicos foi aplicada a 15 dependentes de cocaína, em abstinência por duas semanas, em tratamento em regime de internação, e em 15 sujeitos controles, não usuários de drogas, pareados por idade, sexo, escolaridade, nível sócio-econômico, lateralidade e QI. RESULTADOS: Os resultados preliminares mostraram significação estatística (p<0,05) em testes de atenção, fluência verbal, memória visual, memória verbal, capacidade de aprendizagem e funções executivas. CONCLUSÃO: Esses dados mostram evidências de que o abuso de cocaína está associado a déficits cognitivos, semelhantes aos que ocorrem em transtornos cognitivos, possivelmente relacionados a problemas em regiões cerebrais pré-frontais e temporais. O conhecimento dos danos neuropsicológicos específicos pode ser útil no planejamento de programas de prevenção e tratamento mais efetivo para abuso de cocaína/crack.
Cocaína crack; Abuso de substâncias; Cognição; Testes neuropsicológicos
OBJECTIVE: Although cocaine use is a significant public health problem, there is relative paucity of scientific data on long-term neurocognitive consequences of the exposure to the substance. METHODS: This study examined the association between crack cocaine dependence and neuropsychological performance. An extended battery of neuropsychological tests was administered to 15 abstinent cocaine abusers, inpatients in abstinence for two weeks, and 15 non-drug-using control subjects matched for age, gender, education, socio-economic status, handedness and IQ. RESULTS: The preliminary findings showed statistical significance (p<0,05) on differences of performance in attention, verbal fluency, verbal memory, visual memory, learning ability and executive functions. CONCLUSIONS: These results represent evidences that cocaine abuse is associated with decrements in cognitive functioning, similar to cognitive disorders associated to prefrontal and temporal brain impairments. Knowledge of specific cognitive deficits in cocaine abusers may be useful for designing more effective substance abuse prevention and treatment programs.
Crack cocaine; Substance-related disorders; Cognition; Neuropsychological tests
COMUNICAÇÃO BREVE
Alterações neuropsicológicas em dependentes de cocaína/crack internados: dados preliminares* * Dados desta pesquisa ("Neuropsychological impairment of cocaine dependent patients" e "Cocaine dependence impaired performance in a new neuropsychological battery sensitive to prefrontal functions FAB") foram apresentados no Sixty-Sixth Annual Scientific Meeting do College on Problems of Drug Dependence (CPDD) e NIDA International Fórum, realizados de 11 a 17 de Junho de 2004, em San Juan, Puerto Rico (USA).
Paulo J CunhaI; Sergio NicastriI, II; Luciana P GomesI; Renata M MoinoI; Marco A PelusoI
IGrupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA), Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)
IIPrograma de Álcool e Drogas (PAD) do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE)
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Paulo J Cunha Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA), Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP R. Dr. Ovídio Pires de Campos, nº 785 CEP 01060-970 São Paulo, SP Tel./Fax.: + 55 -11-3081-8060 / 3064-4973 E-mail: pjcunha@usp.br
RESUMO
OBJETIVO: Embora o uso de cocaína seja um problema significativo de saúde pública, há uma relativa escassez de dados científicos sobre as conseqüências neurocognitivas decorrentes da exposição à substância.
MÉTODOS: Esse estudo avaliou a associação entre dependência de cocaína e crack e desempenho cognitivo. Uma ampla bateria de testes neuropsicológicos foi aplicada a 15 dependentes de cocaína, em abstinência por duas semanas, em tratamento em regime de internação, e em 15 sujeitos controles, não usuários de drogas, pareados por idade, sexo, escolaridade, nível sócio-econômico, lateralidade e QI.
RESULTADOS: Os resultados preliminares mostraram significação estatística (p<0,05) em testes de atenção, fluência verbal, memória visual, memória verbal, capacidade de aprendizagem e funções executivas.
CONCLUSÃO: Esses dados mostram evidências de que o abuso de cocaína está associado a déficits cognitivos, semelhantes aos que ocorrem em transtornos cognitivos, possivelmente relacionados a problemas em regiões cerebrais pré-frontais e temporais. O conhecimento dos danos neuropsicológicos específicos pode ser útil no planejamento de programas de prevenção e tratamento mais efetivo para abuso de cocaína/crack.
Descritores: Cocaína crack. Abuso de substâncias. Cognição. Testes neuropsicológicos.
Introdução
O abuso de cocaína/crack está associado a inúmeros problemas de ordem física, psiquiátrica e social. No mundo, estima-se que 14 milhões de pessoas façam uso abusivo de cocaína.1 No Brasil, de acordo com o I Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas, realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), constatou-se que 7,2% dos indivíduos do sexo masculino, entre 25 e 34 anos de idade, já usaram a droga,2 e dados epidemiológicos recentes mostram que o uso de cocaína/crack vem crescendo nos últimos anos entre os estudantes do ensino médio e fundamental,3 bem como entre os pacientes que procuram atendimento nas clínicas especializadas.4
Embora determinadas complicações neurológicas possam ocorrer em associação com o consumo de cocaína/crack, não parece haver um consenso entre os pesquisadores quanto aos déficits cognitivos decorrentes do uso da droga.5,6 Desta forma, um melhor conhecimento sobre essas questões poderá contribuir para o desenvolvimento de programas de prevenção e tratamentos mais adequados para dependentes de cocaína/crack, uma vez que estes envolvem abordagens cognitivo-comportamentais.7
O objetivo do presente estudo foi avaliar o desempenho neuropsicológico de indivíduos dependentes de cocaína/crack, durante a segunda semana de abstinência.
Amostra e métodos
Trata-se de um estudo transversal, envolvendo 30 indivíduos, divididos em dois grupos: um de dependentes de cocaína/crack (n=15) e o outro, de voluntários normais (n=15), recrutados na comunidade. Os dependentes químicos encontravam-se em programas especializados de tratamento (internação) no Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria da FMUSP e na Associação Promocional Oração e Trabalho (APOT), de Campinas, SP. Os grupos foram pareados em variáveis que poderiam alterar os resultados dos testes neuropsicológicos: idade, gênero, escolaridade, nível sócio-econômico e lateralidade. Os critérios de exclusão da pesquisa foram: problemas significativos no nascimento ou no desenvolvimento psicomotor; outros diagnósticos psiquiátricos do eixo I do DSM-IV (APA, 1994); uso de medicação psiquiátrica; história de traumatismo crânio-encefálico ou problemas neurológicos; problemas médicos que comprometessem de alguma forma o sistema nervoso central; transtorno de aprendizagem.
Os indivíduos foram encaminhados para uma entrevista inicial, a fim de obter-se o consentimento esclarecido em relação ao projeto e, posteriormente, submetidos à bateria neuropsicológica, sendo que, para os dependentes de cocaína/crack, a aplicação foi feita durante a segunda semana de abstinência à droga.
Foram avaliadas as seguintes áreas do funcionamento cognitivo: atenção (Trail Making Test TMT, Stroop Color Word Test SCWT, Dígitos Diretos DD e Dígitos Indiretos DI, WMS-R),8 memória (Memória Lógica ML I e II WMS-R, Reprodução Visual RV I e II WMS-R e Recuperação da Rey-Osterrieth Complex Figure ROCF),8 aprendizagem (Buschke Selective Reminding Test BSRT),8 funções executivas (Wisconsin Card Sorting Test WCST 8 e Frontal Assessment Battery FAB 9), funções viso-espaciais (Cópia da ROCF e Cubos WAIS-R),8 linguagem (Vocabulário WAIS-R, Controlled Oral Word Association Test COWAT e Boston Naming Test BNT)8 e funções intelectuais (WAIS-R).8
Quanto à análise estatística, as comparações entre as variáveis foram feitas por meio de testes t de Student para amostras independentes (variáveis contínuas) ou pelo teste exato de Fisher (variáveis categóricas). O nível de significância estatística foi a = 0,05 e todos os testes foram bicaudais.
Resultados
Não houve diferenças estatisticamente significantes entre pacientes e controles em termos de idade, gênero, escolaridade e nível sócio-econômico. Os pacientes dependentes de cocaína/crack, em média, começaram a usar a droga aos 18,41 anos, e o tempo médio de uso da droga foi de 10,30 anos, sendo que os pacientes consumiam a substância, em média, por cinco dias a cada semana. Embora todos os indivíduos incluídos neste estudo já tivessem usado álcool, a maioria dos pacientes (66,6%) bebeu pouco ou nem ingeriu bebidas alcoólicas durante o mês precedente à internação.
Quanto aos resultados dos testes neuropsicológicos (Tabela 1), em capacidade de atenção, por exemplo, o desempenho dos dependentes de cocaína/crack esteve significativamente rebaixado nas provas DD e DI (WMS-R).
Com relação às funções executivas, os pacientes obtiveram pior performance na FAB e, em linguagem, produziram menos palavras iniciadas pelas letras F, A e S, no COWAT.8
Nas funções mnemônicas, houve diferença na capacidade de recuperação visual, sendo que os pacientes apresentaram dificuldade maior na recordação de figuras após 30 minutos, tanto no teste RV II (WMS-R) como na memória da ROCF.8
Em memória e aprendizagem verbal, os dependentes de cocaína/crack obtiveram escores também inferiores aos controles, com significância estatística (p<0.05) nos itens Recuperação total, Long-Term Retrieval (LTR), Long-Term Storage (LTS), Consistent Long-Term Retrieval (CLTR), Randomic Long-Term Retrieval (RLTR), Reminder e Recuperação após 15 minutos no BSRT.8
O Quociente Intelectual (QI) estimado dos dependentes de cocaína/crack não se mostrou estatisticamente diferente do encontrado no grupo de voluntários normais (p>0.05).
Discussão
Nesta investigação, a avaliação da capacidade de atenção evidenciou diferenças no desempenho entre dependentes de cocaína/crack e controles normais, o que tem sido freqüentemente observado em abusadores e dependentes desta droga.10 Entretanto, após uma revisão sobre o assunto, Horner5 afirmou que ainda não há consistência quanto à constatação de déficits de atenção em dependentes de cocaína/crack, devido principalmente a diferentes metodologias aplicadas e falta de estudos mais controlados. São necessárias mais pesquisas, a fim de se clarificar a natureza e gravidade dos déficits de atenção associados à cocaína, uma vez que eles têm implicação clínica direta no tratamento.7,10 Alterações na capacidade de reter e manipular informações na mente (atenção e working memory), por exemplo, como as encontradas nas provas DD e DI (WMS-R), estão relacionadas a uma pior aderência ao tratamento.11
Foram detectadas alterações no desempenho dos pacientes dependentes de cocaína/crack nos testes de funções executivas, presentes na FAB.9 Estudos recentes têm observado alterações pré-frontais em dependentes de cocaína/crack, relacionadas a déficits na tomada de decisões destes indivíduos12 e às bases neurobiológicas das dependências químicas.13
Os resultados do presente estudo revelaram diferenças estatisticamente significantes nos testes de fluência verbal fonológica (letras F, A e S),8 evidenciando déficits significativos de expressão verbal. Embora tais alterações já tenham sido observadas em estudos prévios,10 a questão ainda se encontra pendente na literatura, uma vez que algumas pesquisas chegaram a encontrar fluência verbal melhor em dependentes desta droga.14 A hipótese para isto é a provável falha dos estudos quanto à inclusão de pacientes ambulatoriais, que poderiam estar sob efeito da substância, considerando que a intoxicação pela cocaína/crack poderia estimular a produção verbal destes pacientes.
Foram ainda encontrados déficits de memória visual tardia (após 30 minutos) nos dependentes de cocaína/crack, tanto em RV II (WMS-R) como na Recuperação da ROCF.8 Além disso, o BSRT8 evidenciou falhas na consistência da recuperação de memória e aprendizado verbal nos dependentes, sugerindo que estes pacientes apresentam problemas no armazenamento de novas informações verbais, possivelmente associadas a alterações funcionais de lobos frontal e temporal.8 Estudos têm demonstrado que a cocaína atua e promove alterações em regiões hipocampais, modificando o mecanismo de Long-Term Potentiation (LTP), envolvido no processo de formação de novas memórias.15 A diminuição na disponibilidade de dopamina e serotonina nestas áreas, durante a abstinência, tem sido associada com déficits de aprendizado e memória. Resultados semelhantes quanto aos déficits de memória e aprendizagem já foram descritos na literatura internacional,10 e estas alterações podem prejudicar significativamente a capacidade do paciente incorporar estratégias necessárias para a prevenção de recaídas.7,10
Este estudo foi capaz de detectar déficits neuropsicológicos descritos na literatura, como nas áreas de atenção, linguagem, memória, aprendizagem e funções executivas. Apesar do cuidado no delineamento dos critérios de inclusão e exclusão dos participantes, utilização de grupo controle pareado e controle da abstinência (regime de internação), há limitações nesta pesquisa. A primeira consiste no tamanho relativamente ainda restrito da amostra. A segunda,refere-se à necessidade de um controle mais rigoroso quanto à existência de sintomas neuropsiquiátricos que possam influenciar os resultados. Por exemplo, acredita-se que a análise quanto à presença prévia do diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), em cada um dos participantes, poderá fornecer mais evidências quanto à causalidade das alterações encontradas. Outra informação que deve ser mais bem investigada é a presença e gravidade de sintomas depressivos e ansiosos nos indivíduos. Além disso, o próprio delineamento do estudo, do tipo transversal, impede a visualização prospectiva dos déficits cognitivos aqui encontrados e se eles persistem ou não no decorrer da abstinência.
Estes dados realçam a importância da realização de mais estudos nessa área, envolvendo amostras maiores, controle ainda mais rígido das variáveis que possam influenciar os resultados e acompanhamento monitorado dos indivíduos.
Conclusões
Os resultados preliminares desta investigação mostraram prejuízos neurocognitivos em dependentes de cocaína/crack quando comparados a indivíduos normais. Foram encontradas alterações em testes de atenção, fluência verbal, memória visual, memória verbal, capacidade de aprendizagem e funções executivas. Estes dados mostram evidências de que o abuso de cocaína está associado a déficits neuropsicológicos significativos, semelhantes aos que ocorrem em transtornos cognitivos, possivelmente relacionados a problemas em regiões cerebrais pré-frontais e temporais. O conhecimento de danos neuropsicológicos específicos pode ser útil no planejamento de programas de prevenção e tratamento mais efetivos para abuso de cocaína/crack.
Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Arthur G. Andrade, Dr. André Malbergier, Dra. Sandra Scivoletto, Dr. Danilo Baltieri, Dr. Phillip Ribeiro e Dr. Guilherme Focchi (GREA-IPq-HC-FMUSP); ao Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do IPq-HC-FMUSP; ao Dr. Ronaldo R Laranjeira, da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) da Escola Paulista de Medicina (EPM/UNIFESP); a Dra. Laura Fracasso e Pe. Haroldo J Rahm, da Associação Promocional Oração e Trabalho - APOT (Campinas/SP, Brasil); a Dra. Karen I Bolla, do Departamento de Neurologia da Johns Hopkins University; ao National Institute on Drug Abuse (NIDA), National Institutes of Health (NIH), USA (NIDA International Program), pelo Travel Award (Paulo J Cunha).
Financiamento: Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. Auxílio Pesquisa: Processo nº 00/12081-5.
Recebido em 10.02.2003
Aceito em 04.11.2003
Pesquisa realizada no Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA), Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e na Comunidade Terapêutica da Associação Promocional Oração e Trabalho APOT (Campinas-SP).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Out 2004 -
Data do Fascículo
Jun 2004
Histórico
-
Recebido
10 Fev 2003 -
Aceito
04 Nov 2003