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Epidemiologia do transtorno obsessivo-compulsivo: uma revisão

Epidemiology of obsessive-compulsive disorder: a review

Resumos

Os inquéritos populacionais são importantes, pois amostras clínicas tendem a apresentar vieses de seleção. Aspectos sociodemográficos e relacionados à própria condição mórbida podem interferir na procura por tratamento. Pela natureza egodistônica do transtorno obsessivo-compulsivo, seus portadores tendem a ocultar o problema, podendo não procurar ou demorar a procurar tratamento. Porém, a maior parte do conhecimento atual sobre o transtorno obsessivo-compulsivo advém de amostras clínicas, que não representam a totalidade dos casos. Foi feita uma revisão convencional da literatura através do Medline, PsicoInfo e Lilacs de inquéritos populacionais sobre o transtorno obsessivo-compulsivo, cobrindo o período de 1980 a 2004, utilizando-se como palavras-chave "epidemiologia", "transtorno obsessivo-compulsivo", "inquéritos populacionais" e "prevalência". Estudos realizados em diferentes países indicam para o transtorno obsessivo-compulsivo uma prevalência atual em torno de 1,0% e ao longo da vida de 2,0 a 2,5%. Diferentemente de amostras clínicas, em quase todas as amostras populacionais há predomínio de mulheres e portadores que têm apenas obsessões. A freqüente comorbidade com outros transtornos mentais, particularmente depressão e outros transtornos ansiosos, repete-se em casos da população geral, que apresentam ainda uma associação com abuso de substâncias. Muitos portadores não estão em tratamento, particularmente os casos "puros". Indicadores de incapacitação funcional demonstram um considerável impacto negativo do transtorno obsessivo-compulsivo. É preciso melhorar o conhecimento da população e dos profissionais de saúde sobre os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo para aumentar a procura de atendimento, assim como a correta identificação e abordagem terapêutica deste grave problema de saúde.

Transtorno obsessivo-compulsivo; Transtorno obsessivo-compulsivo; Inquéritos de morbidade; Acesso aos serviços de saúde


Epidemiological surveys are important because clinical samples are subject of several selection biases. Sociodemographic factors and clinical aspects of the morbid condition itself influence help seeking behaviors. Due to the egodystonic nature of obsessive-compulsive disorder, sufferers tend to hide their symptoms and avoid or delay treatment seeking. However, most of our current knowledge about obsessive-compulsive disorder is based on clinical samples, which do not represent the totality of cases. A conventional Medline, PsychoInfo and Lilacs review of epidemiological studies on obsessive-compulsive disorder from 1980 to 2004 was conducted, using the following keywords: "epidemiology", "obsessive-compulsive disorder", "populational surveys" and "prevalence". Studies from different countries show an average point-prevalence of 1% and lifetime prevalence of 2-2.5% for obsessive-compulsive disorder. In contrast with clinical samples, most populational samples have a predominance of females and cases with only obsessions. The frequent comorbidity with other mental disorders, particularly depression and other anxiety disorders, has also been found in cases from the community, which have an association with substances misuse as well. Many sufferers are not been treated, particularly the "pure" cases. Indicators of functional incapacitation show a considerable negative impact of obsessive-compulsive disorder. It is necessary to increase the awareness about obsessive-compulsive disorder symptoms in the community and among health professionals, in order to increase help seeking, as well as the proper identification and treatment of this rather serious medical condition.

Obsessive-compulsive disorder; Obsessive-compulsive disorder; Morbidity survey; Health services accessibility


REVISÃO

Epidemiologia do transtorno obsessivo-compulsivo: uma revisão

Epidemiology of obsessive-compulsive disorder:a review

Albina Rodrigues Torres; Maria Cristina Pereira Lima

Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista (UNIFESP), Botucatu (SP), Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Albina Rodrigues Torres Departamento de Neurologia e Psiquiatria- FMB- UNESP Distrito de Rubião Jr. 18618-970 Botucatu, SP Fax: (14) 3815-5965 Fone (14) 3811-6260 E-mail: torresar@fmb.unesp.br

RESUMO

Os inquéritos populacionais são importantes, pois amostras clínicas tendem a apresentar vieses de seleção. Aspectos sociodemográficos e relacionados à própria condição mórbida podem interferir na procura por tratamento. Pela natureza egodistônica do transtorno obsessivo-compulsivo, seus portadores tendem a ocultar o problema, podendo não procurar ou demorar a procurar tratamento. Porém, a maior parte do conhecimento atual sobre o transtorno obsessivo-compulsivo advém de amostras clínicas, que não representam a totalidade dos casos. Foi feita uma revisão convencional da literatura através do Medline, PsicoInfo e Lilacs de inquéritos populacionais sobre o transtorno obsessivo-compulsivo, cobrindo o período de 1980 a 2004, utilizando-se como palavras-chave "epidemiologia", "transtorno obsessivo-compulsivo", "inquéritos populacionais" e "prevalência". Estudos realizados em diferentes países indicam para o transtorno obsessivo-compulsivo uma prevalência atual em torno de 1,0% e ao longo da vida de 2,0 a 2,5%. Diferentemente de amostras clínicas, em quase todas as amostras populacionais há predomínio de mulheres e portadores que têm apenas obsessões. A freqüente comorbidade com outros transtornos mentais, particularmente depressão e outros transtornos ansiosos, repete-se em casos da população geral, que apresentam ainda uma associação com abuso de substâncias. Muitos portadores não estão em tratamento, particularmente os casos "puros". Indicadores de incapacitação funcional demonstram um considerável impacto negativo do transtorno obsessivo-compulsivo. É preciso melhorar o conhecimento da população e dos profissionais de saúde sobre os sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo para aumentar a procura de atendimento, assim como a correta identificação e abordagem terapêutica deste grave problema de saúde.

Descritores: Transtorno obsessivo-compulsivo/epidemiologia; Transtorno obsessivo-compulsivo/psicologia; Inquéritos de morbidade; Acesso aos serviços de saúde

ABSTRACT

Epidemiological surveys are important because clinical samples are subject of several selection biases. Sociodemographic factors and clinical aspects of the morbid condition itself influence help seeking behaviors. Due to the egodystonic nature of obsessive-compulsive disorder, sufferers tend to hide their symptoms and avoid or delay treatment seeking. However, most of our current knowledge about obsessive-compulsive disorder is based on clinical samples, which do not represent the totality of cases. A conventional Medline, PsychoInfo and Lilacs review of epidemiological studies on obsessive-compulsive disorder from 1980 to 2004 was conducted, using the following keywords: "epidemiology", "obsessive-compulsive disorder", "populational surveys" and "prevalence". Studies from different countries show an average point-prevalence of 1% and lifetime prevalence of 2-2.5% for obsessive-compulsive disorder. In contrast with clinical samples, most populational samples have a predominance of females and cases with only obsessions. The frequent comorbidity with other mental disorders, particularly depression and other anxiety disorders, has also been found in cases from the community, which have an association with substances misuse as well. Many sufferers are not been treated, particularly the "pure" cases. Indicators of functional incapacitation show a considerable negative impact of obsessive-compulsive disorder. It is necessary to increase the awareness about obsessive-compulsive disorder symptoms in the community and among health professionals, in order to increase help seeking, as well as the proper identification and treatment of this rather serious medical condition.

Keywords: Obsessive-compulsive disorder/epidemiology; Obsessive-compulsive disorder/psychology; Morbidity survey; Health services accessibility

Introdução

A investigação epidemiológica é de fundamental importância em Psiquiatria, uma vez que amostras clínicas tendem a apresentar vieses de seleção. Mesmo quando há oferta adequada de serviços de saúde, vários fatores podem interferir na procura por tratamento, desde aspectos sociodemográficos (sexo, idade, situação conjugal e ocupacional, grau de escolaridade, nível socioeconômico, procedência rural ou urbana) até aqueles relacionados à própria condição mórbida (duração, tipo de sintomatologia, gravidade, grau de incapacitação e de crítica, presença de transtornos comórbidos, etc). Levantamentos populacionais dão a oportunidade de se estudar não apenas os casos atendidos em serviços de saúde, mas também aqueles identificados na comunidade, muitas vezes consideravelmente diferentes dos indivíduos que estão sendo tratados. Assim, os estudos populacionais possibilitam descrever a freqüência e a distribuição dos transtornos na comunidade, estudar sua história natural e identificar possíveis fatores de risco, além de ajudarem na avaliação da necessidade de serviços de saúde.1

No que se refere ao transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), este tende a ser um quadro secreto, em função da habitual preservação da crítica e conseqüente vergonha do portador em relação aos sintomas.1-2 Alguns sequer sabem que se trata de uma condição médica tratável3 e muitos procuram ocultar os sintomas mesmo de familiares próximos. Outros temem que, ao falar de seus medos, eles de fato se realizem; ou ainda, no caso de obsessões sexuais ou agressivas, temem ser considerados loucos ou perigosos e hospitalizados ou mesmo presos.2 O medo de contaminação ou de outros estímulos obsessivos pode também estar por trás da evitação de serviços de saúde.4 De fato, estudos clínicos mostram que os portadores demoram em média de 6 a 17 anos até procurarem e obterem tratamento adequado para seu problema.1,5-9

A associação do TOC com outros transtornos psiquiátricos também merece investigações epidemiológicas cuidadosas. A comorbidade com transtornos depressivos e ansiosos, por exemplo, é a regra em amostras clínicas,10 podendo influir de modo relevante na busca por tratamento.9,11 Acredita-se que, em geral, quanto maior o número de comorbidades, maior a interferência dos sintomas nas atividades diárias, pior a qualidade de vida e maior a probabilidade de se buscar tratamento.8 Uma exceção seria a associação com abuso de substâncias, que pode diminuir as chances de o indivíduo procurar serviços de saúde.12

Em um estudo sobre incidência de TOC, Nestadt et al constataram que, apesar de a maioria dos casos ter procurado tratamento para seus problemas emocionais, nenhum havia procurado ajuda para os sintomas obsessivo-compulsivos (OC), mas sim para ansiedade, estresse, sintomas depressivos, uso de substâncias ou problemas de relacionamento.13 Assim, sintomas OC seriam sub-relatados mesmo no contexto clínico.

Apesar dos aspectos discutidos, até recentemente nosso conhecimento a respeito da prevalência e das características clínicas e demográficas do TOC baseava-se quase exclusivamente em amostras clínicas,14 que de modo algum representam a totalidade dos portadores. Na verdade, há anos o TOC vem sendo descrito como uma doença oculta,8 possivelmente escapando à atenção ou, pelo menos, tendo menor prioridade para a maioria dos epidemiologistas.15 Com isto, até o início da década de 80, o TOC era considerado um quadro extremamente raro,16 mas tal noção advinha de casos que procuravam tratamento. Segundo Grabe et al, em 1953 Rudin descreveu uma prevalência de 0,05%, ou seja, apenas aproximadamente cinco casos para cada 10.000 habitantes ao longo da vida e esta estimativa predominou durante décadas.17

Outro aspecto notável do TOC, observado em amostras clínicas, é a consistência da apresentação fenomenológica nos vários países estudados, com sintomas muito semelhantes e um número limitado de obsessões e compulsões, mesmo em culturas extremamente diferentes, como EUA, Israel, Finlândia, Canadá, África, Coréia, Nova Zelândia, Porto Rico e Brasil.16,18-19

Objetivo

Fazer uma revisão convencional da literatura a respeito de estudos epidemiológicos sobre o TOC publicados em português e inglês.

Métodos

Foi feita uma busca computadorizada de artigos foi feita pelos sistemas Medline, PsicoInfo e Lilacs, cobrindo o período de 1980 a 2004, utilizando-se como palavras-chave "epidemiologia", "transtorno obsessivo-compulsivo", "inquéritos populacionais" e "prevalência" ("epidemiology", "obsessive-compulsive disorder", "populational surveys", "prevalence"). Outros artigos completos ou resumos de congressos citados nas publicações encontradas e considerados relevantes também foram consultados e incluídos.

Resultados e discussão

1. Estudos populacionais de prevalência do TOC

Inquéritos transversais geram estimativas de prevalência populacionais relativas a certo período de tempo (ex.: última semana, mês, ano ou vida toda), sendo mais precisos quanto mais pontuais. A metodologia desses estudos pode ser dividida em duas fases: aqueles baseados exclusivamente no julgamento clínico dos avaliadores e os mais recentes, que utilizam instrumentos estruturados ou semi-estruturados para o estabelecimento do diagnóstico. Segundo Bebbington, o primeiro estudo populacional sobre TOC foi conduzido por Roth e Luton em 1942, no Tennesse (EUA), com uma amostra de 1.700 pessoas, indicando uma taxa de 0,3% e o segundo, realizado por Brunetti, em 1977, na França, obteve uma taxa de 1,0%.20 Mais recentemente, foram realizados 14 estudos populacionais internacionais utilizando-se o Present State Examination (PSE-9) e o programa computacional CATEGO que, por ter critérios hierárquicos diagnósticos muito rígidos – que excluem, por exemplo, o diagnóstico de TOC na presença de sintomas depressivos – permitiram ao todo a identificação de apenas um caso de TOC.20

O estudo americano Epidemiological Catchment Area (ECA), com uma amostra de cerca de 20.000 pessoas, realizado no início dos anos 80 utilizando-se do Diagnostic Interview Schedule (DIS), segundo critérios do DSM-III,21 mudou radicalmente a noção do TOC como uma doença rara ao obter uma taxa de prevalência ao longo da vida entre 1,9% e 3,3% nas cinco regiões avaliadas.5,16,22 Este estudo forneceu informações surpreendentes sobre a epidemiologia e comorbidade do TOC, indicando que este era 25 a 60 vezes mais comum do que se supunha até então,5,23 com uma prevalência média nos cinco locais de 1,6% em seis meses e 2,6% na vida. O TOC foi o quarto transtorno mais freqüente, depois apenas das fobias, abuso de substâncias e depressão.16,22-23 A prevalência média em um mês foi de 1,3% (1,1% entre os homens e 1,5% entre as mulheres), com predomínio em faixas etárias mais jovens, pessoas separadas e com menor nível socioeconômico.24-25

Posteriormente, levantamentos epidemiológicos em vários outros países, utilizando o mesmo instrumento de avaliação, encontraram taxas semelhantes (entre 0,7% e 2,1% em seis meses e 1,9% e 3,1% na vida), chamando a atenção para uma possível "epidemia oculta".15,26

Weissman et al27 uniformizaram e sumarizaram os achados de sete levantamentos epidemiológicos internacionais realizados com o DIS segundo critérios do DSM-III,21 obtendo taxas de prevalência que variaram de 0,7% a 2,5% ao longo da vida. Os achados são bastante consistentes, excetuando-se Taiwan, onde as prevalências foram mais baixas para todos os transtornos estudados.14,27 A maioria desses levantamentos apontou uma predominância de obsessões puras, enquanto em Munique e Taiwan houve mais obsessões e compulsões associadas e, na Coréia, um predomínio de compulsões isoladas. Os transtornos comórbidos mais comuns foram depressão maior e outros transtornos de ansiedade, com os seguintes valores de razão de prevalência, respectivamente: EUA (6,9 e 5,8), Edmonton (3,8 e 12,3), Porto Rico (4,4 e 14,8), Munique (13,5 e 15,6), Taiwan (10,9 e 6,5), Coréia (4,8 e 5,8) e Nova Zelândia (5,1 e 8,9).27 Evidenciaram-se, a partir desses estudos, outras características do TOC na comunidade, como início precoce, tendência a cronicidade, leve predominância no sexo feminino e pico de incidência em faixas etárias mais baixas.20

Em 1993, realizou-se, na Grã Bretanha, o primeiro British National Survey of Psychiatric Morbidity,28 levantamento com uma amostragem aleatória de aproximadamente 10.000 adultos. Diferentemente do estudo americano ECA, restrito a cinco centros, foi baseado em amostra de representatividade nacional. As taxas de prevalência do TOC, obtidas através da versão revista da Clinical Interview Schedule (CIS-R)29-30 e critérios diagnósticos da CID-1031 foram de 1,0% nos homens e 1,5% nas mulheres. Foi maior a prevalência entre pessoas separadas ou divorciadas, desempregadas ou economicamente inativas e que moravam sozinhas.

O National Comorbidity Survey,32 o maior estudo epidemiológico representativo de toda população americana, que utilizou critérios do DSM-III-R33 a partir de uma versão modificada da CIDI (Composite International Diagnostic Interview) – instrumento derivado da DIS –, não incluiu o TOC entre os transtornos avaliados. Assim, infelizmente, não há dados disponíveis sobre prevalência e comorbidade do TOC deste importante levantamento.20

Stein et al avaliaram, por pesquisa telefônica, a prevalência de TOC em 2.261 pessoas no Canadá, obtendo inicialmente uma prevalência no mês de 3,1%, segundo critérios do DSM-IV,34 que caiu para 1,1% (incluindo os casos subclínicos) em reavaliação clínica, sugerindo que a real prevalência é menor do que apontam estudos realizados por entrevistadores leigos.26 Segundo estes autores, avaliadores sem formação em saúde mental tendem a rotular erroneamente preocupações normais como obsessivas e superestimar o grau de interferência e sofrimento pelos sintomas. Também Nestadt et al avaliaram 810 adultos em Baltimore (EUA), num segundo estágio do ECA (após o rastreamento inicial feito por entrevistadores leigos), encontrando sintomas OC em 1,5% deles, mas uma prevalência estimada de TOC de apenas 0,3%.3 Para esses autores, os valores são menores do que o esperado possivelmente porque, pelos critérios do DSM-III,21 a co-ocorrência de depressão maior e esquizofrenia é critério de exclusão para o diagnóstico.

Entre 1994 e 1997, foi feito um inquérito epidemiológico em Oslo, Noruega,35 utilizando-se a CIDI e critérios do DSM-III-R.33 Obteve-se uma prevalência anual do TOC de 0,7% (0,3% dos homens e 1,0% das mulheres) e na vida de 1,6% (0,7% dos homens e 2,3% das mulheres). Um levantamento conduzido no norte da Alemanha,17 através da CIDI adaptada a critérios do DSM-IV,34 obteve uma prevalência anual e na vida de 0,4% e 0,5%, respectivamente, enquanto TOC subclínico ocorreu em 1,6% e 2% da população. A razão entre mulheres e homens encontrada foi de 5,7 no TOC clínico e 1,2 no subclínico. Mesmo os quadros subclínicos associaram-se a um considerável grau de prejuízo no funcionamento psicossocial. Um estudo populacional de Santiago do Chile,36 utilizando a mesma metodologia do levantamento britânico de 1993,28 encontrou uma prevalência-ponto (atual) de 1,3% de TOC através da Clinical Interview Schedule-Revised (CIS-R), sendo 1,4% entre os homens e 1,1% entre as mulheres. Na Holanda, obteve-se uma prevalência na vida de 0,9% através da CIDI.37 Outro estudo epidemiológico, conduzido no Irã, em 2001,38 com pessoas acima de 18 anos, obteve uma prevalência de TOC na vida de 1,8%, sendo 0,7% entre os homens e 2,8% entre as mulheres, com declínio nas taxas após 50 anos de idade. Inquérito conduzido na província de Konya, na Turquia,39 com a CIDI, mostrou prevalência de 3,0% para TOC no ano anterior, repetindo-se, ainda que sem significância estatística, a maior proporção de casos entre mulheres (3,3% contra 2,5% nos homens).

Em 2000, foi feito um novo inquérito na Grã Bretanha, o British National Survey of Psychiatric Morbidity,40 no qual foram entrevistados 8.580 adultos moradores de residências particulares na Inglaterra, Escócia e País de Gales. Os transtornos neuróticos foram avaliados através da CIS-R,29-30 de acordo com a CID-10.31 Identificaram-se 114 casos de TOC (74 mulheres), uma prevalência de 1,1% na última semana (IC 95% 0,9%-1,3%). Como em outros estudos, a maioria dos casos (55%) tinha apenas obsessões, as comorbidades foram freqüentes (62% tinham outros transtornos neuróticos associados), predominando episódio depressivo (37%), seguido de transtorno de ansiedade generalizada (31%), agorafobia ou pânico (22%), fobia social (17%) e fobia específica (15%). Portadores de TOC apresentaram mais dependência de álcool (20%) do que os outros neuróticos (12%), mas o nível de dependência de outras drogas não diferiu significativamente (13% versus 7,8%). Curiosamente, dependência de drogas em geral e de maconha em particular foram mais comuns em casos de TOC "puro" do que naqueles com comorbidade. O TOC associou-se a um maior grau de incapacitação social e ocupacional do que outras neuroses (menos casados, mais freqüentemente morando sozinhos, desempregados e com renda baixa), mesmo com nível de escolaridade semelhante. Um quarto dos casos já havia tentado suicídio ao menos uma vez na vida. Embora não tenha havido diferenças em relação a indicadores de incapacitação entre casos com e sem comorbidade, os últimos estavam recebendo significativamente menos tratamento do que os primeiros (14% versus 56%, p < 0,001). Constatou-se, portanto, que os casos que estão sendo tratados em geral têm alguma comorbidade e podem não estar revelando suas obsessões e compulsões, já que apenas uma minoria estava recebendo abordagens terapêuticas consideradas específicas (só 2% estavam recebendo inibidores de recaptação de serotonina e 5% terapia cognitivo-comportamental).41

Bem mais escassos são os inquéritos epidemiológicos sobre TOC na infância e adolescência. O estudo mais abrangente e representativo foi provavelmente realizado também na Grã Bretanha, em 1999, com 10.438 participantes entre 5 e 15 anos, que encontrou uma prevalência de TOC de 0,25%.42 Observou-se um aumento progressivo da prevalência com o aumento da idade (64% dos 25 casos tinham entre 13 e 15 anos), 52% eram meninos, 76% tinham algum outro diagnóstico comórbido e os casos de TOC tinham níveis socioeconômico e intelectual mais baixos do que os demais participantes.42

Um aspecto interessante é que estudos epidemiológicos não vêm confirmando alguns achados sobre pacientes com TOC baseados em amostras clínicas, como a observação de que estes tinham, em geral, melhor nível socioeconômico e nível de inteligência acima da média. A prevalência aproximadamente igual entre os gêneros na idade adulta em estudos clínicos também difere de dados populacionais, nos quais, em geral, predominam as mulheres.14,43 É possível que existam na comunidade mais mulheres do que homens com TOC leve, que não procuram tratamento. Além disso, enquanto a maioria dos pacientes em tratamento (70% ou mais) apresenta obsessões e compulsões, em média apenas um terço dos casos na comunidade apresenta ambos os fenômenos associados, predominando as obsessões puras.5-6,14,27,41 Tais contrastes indicam prováveis vieses de seleção dos casos que procuram ou obtém tratamento, ou seja, que certos portadores de TOC estão subutilizando os serviços de saúde.

Outro aspecto relevante identificado em estudos epidemiológicos e pouco descrito em estudos clínicos refere-se à comorbidade com abuso e dependência de álcool e drogas. Iniciando-se, em geral, após a instalação do TOC, os problemas por uso de substâncias, que chegam a um quarto ou um terço dos casos, podem representar uma tentativa de automedicação por parte de portadores que não buscam tratamento específico.5-6,41 Como já mencionado, muitos pacientes com TOC podem ainda estar sendo tratados, mas não especificamente dos sintomas OC e sim de sintomas de transtornos associados ou problemas de estresse de vida em geral5,13 Por outro lado, inquéritos populacionais vêm confirmando os seguintes dados obtidos com pacientes clínicos: o curso do TOC é em geral crônico, seus portadores tendem a se casar com menos freqüência1 e este é um transtorno com muitas comorbidades, particularmente com depressão e outros transtornos de ansiedade.10,44-45

No Brasil, o Estudo Multicêntrico de Morbidade Psiquiátrica,46 encontrou uma prevalência de TOC na vida de 0,9% e 0,5% entre homens e mulheres de Brasília, e de 1,7% e 2,5% em Porto Alegre, por critérios do DSM-III,21 não tendo sido possível estabelecer a prevalência em São Paulo. Posteriormente, Andrade et al, utilizando a CIDI em inquérito conduzido em uma parte da cidade de São Paulo, estimaram em 0,3% a prevalência ao longo da vida, sendo 0,4% entre homens e 0,3% entre mulheres.47 Estes dois estudos são insuficientes para se ter uma dimensão precisa do TOC na população brasileira e estudos mais abrangentes e representativos ainda são muito necessários.

2. Dificuldades dos estudos epidemiológicos de TOC

Apesar da reconhecida importância, não são poucas as dificuldades de se avaliar o TOC em estudos populacionais. Como não se trata de um quadro muito freqüente, apenas grandes levantamentos são capazes de obter número suficiente para permitir conclusões, principalmente em relação a subgrupos de portadores. Estudos populacionais representativos de grande porte são extremamente dispendiosos e necessitam ser muito bem planejados e executados por entrevistadores leigos treinados por meio de instrumentos diagnósticos estruturados. Nenhum instrumento de avaliação foi ainda especificamente validado para o diagnóstico do TOC, exatamente pelo número insuficiente de casos identificados, mesmo em grandes inquéritos.48

Entrevistadores leigos podem ter dificuldades em diferenciar obsessões e compulsões do TOC de preocupações normais ou atos compulsivos sem significado clínico, que fazem parte da vida psíquica de todos, tendendo a superestimar o sofrimento e as limitações associados.16,26 Obsessões e compulsões não são exclusivas do TOC, podendo ocorrer em diversos outros transtornos mentais, como nas depressões, demências e esquizofrenias, por exemplo. Além disso, a co-ocorrência de outros transtornos é extremamente freqüente, dificultando ainda mais o diagnóstico. O TOC é também um quadro muito heterogêneo do ponto de vista sintomatológico, com inúmeras possibilidades de apresentação clínica, mesmo tendo um conjunto mais típico de manifestações. Finalmente, como já discutido, pelo caráter egodistônico do problema, mesmo a investigação direta não garante que o portador admita sua existência, ocultando-o por constrangimento. Instrumentos de autopreenchimento podem minimizar este fato, mas é improvável que o anulem por completo, além de serem de utilização inviável em pessoas de baixa escolaridade. A comparação entre os estudos comunitários já feitos também é tarefa complexa, pela variedade de instrumentos utilizados, critérios diagnósticos e períodos de abrangência.

Conclusões

Estima-se que, entre adultos, o TOC tenha uma prevalência atual em torno de 1,0% e de 2,0% a 2,5% ao longo da vida, em diferentes partes do mundo. Enquanto a maioria dos estudos epidemiológicos aponta uma ocorrência predominante em mulheres e de casos com apenas obsessões, nas amostras clínicas observa-se um número semelhante de homens e mulheres, e a maioria dos casos com obsessões e compulsões associadas. Assim, pacientes puramente obsessivos e do sexo feminino podem estar utilizando menos os serviços de saúde. Por outro lado, a alta comorbidade do TOC com outros transtornos psiquiátricos vem sendo a regra também em amostras comunitárias.

O inquérito britânico de 2000 apontou ainda um número considerável de indivíduos com TOC, principalmente homens, que apresentam comorbidade com dependência de álcool (20%) e um número preocupante de portadores que já apresentaram tentativas de suicídio (26%). Demonstrou ainda que muitos casos, particularmente aqueles sem comorbidade com outros transtornos "neuróticos", não estão recebendo tratamento, apesar de apresentarem indicadores de incapacitação – inclusive comportamentos suicidas – semelhantes aos casos comórbidos. Os pacientes com comorbidades podem estar sendo tratados de sintomas associados ao TOC e este estar permanecendo como uma condição oculta mesmo nos serviços de saúde, uma vez que poucos estavam recebendo tratamentos especificamente indicados para o controle do problema.

É necessário, portanto, aprimorar a formação de profissionais de saúde, inclusive de serviços de atenção primária, preparando-os e estimulando-os para a investigação ativa de sintomas OC, particularmente em pacientes com queixas ansiosas e depressivas. Alguns portadores, mais do sexo masculino, podem estar utilizando álcool e drogas na busca de aliviar os sintomas, em vez de procurar ajuda profissional. Podem também estar nos serviços de saúde, mas sendo tratados dos problemas relacionados ao uso de substâncias, com a sintomatologia do TOC não identificada, o que pode contribuir para recaídas e piorar o prognóstico, prolongando o sofrimento e os prejuízos socioocupacionais associados.

Maior divulgação na comunidade de informações acerca dos sintomas do TOC e seu tratamento parece ser também de grande importância no sentido de esclarecer a população de que se trata de um problema de saúde sério, mas tratável com abordagens específicas. Com isso, deve-se conseguir melhorar a identificação, diminuir a vergonha e o isolamento associados ao problema e incentivar as pessoas a procurarem tratamento. Evidentemente, a oferta adequada de profissionais e serviços de saúde capacitados para esse atendimento é fundamental para garantir de fato a diminuição do impacto negativo do TOC na qualidade de vida dos portadores.

Financiamento: Inexistente

Conflito de interesses: Inexistente

Recebido: 17 de Janeiro de 2005

Aceito: 20 de Abril de 2005

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    Albina Rodrigues Torres
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Set 2005

    Histórico

    • Recebido
      17 Jan 2005
    • Aceito
      20 Abr 2005
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