Resumos
A doença falciforme é a doença hereditária mais freqüente no nosso país. A hemoglobina S está presente em 4% a 6% da nossa população. Acredita-se que nasçam 3.500 crianças com doença falciforme por ano no Brasil. A doença falciforme tem sintomatologia muito variada com alta mortalidade e morbidade diretamente relacionada com a própria doença. A atenção integral descentralizada, multidisciplinar, humanizada, de qualidade e com ênfase no autocuidado pode modificar a história natural da doença reduzindo sua morbimortalidade. O presente artigo tem como objetivo mostra o autocuidado em doença falciforme em quatro fases distintas da pessoa afetada pela doença - criança, adolescência, gestante e adulto, ensinando as estratégias adequadas para tratar os diagnósticos de risco nestas diversas fases.
Doença falciforme; hemoglobinopatias; autocuidado
Sickle cell disease is the most common inherited disease in Brazil. Hemoglobin S is present in 4% a 6% of the population. We believe that 3.500 babies are born with sickle cell disease every year in Brazil. Sickle cell disease has a great clinical variability with high morbidity and mortality related to the disease. Comprehensive humanized decentralized multidisciplinary care focusing on self -care might change the natural history of the disease thereby reducing its morbimortality. The current article aims at discussing self-care in sickle cell disease during four distinct stages of the life of people affected by the disease - childhood, adolescence, pregnancy and adulthood, showing the corrects strategies to treat risks factors in these different phases.
Sickle cell disease; hemoglobinopathies; self care
ARTIGO ARTICLE
O autocuidado na doenca falciforme
Sickle cell disease and the self care
Paulo Ivo C. Araujo
Médico hematologista pediátrico do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Programa de Atenção Integral a Pessoa com Doença Falciforme da Secretaria de Estado de Sáude e Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Correspondência Correspondência: Paulo Ivo Cortez de Araújo R. Mariz e Barros 1021/504 - Tijuca 20270-004 - Rio de Janeiro-RJ - Brasil Fax: (21) 2264-6914 E-mail: picortez@gbl.com.br
RESUMO
A doença falciforme é a doença hereditária mais freqüente no nosso país. A hemoglobina S está presente em 4% a 6% da nossa população. Acredita-se que nasçam 3.500 crianças com doença falciforme por ano no Brasil. A doença falciforme tem sintomatologia muito variada com alta mortalidade e morbidade diretamente relacionada com a própria doença. A atenção integral descentralizada, multidisciplinar, humanizada, de qualidade e com ênfase no autocuidado pode modificar a história natural da doença reduzindo sua morbimortalidade. O presente artigo tem como objetivo mostra o autocuidado em doença falciforme em quatro fases distintas da pessoa afetada pela doença - criança, adolescência, gestante e adulto, ensinando as estratégias adequadas para tratar os diagnósticos de risco nestas diversas fases.
Palavras-chave: Doença falciforme; hemoglobinopatias; autocuidado.
ABSTRACT
Sickle cell disease is the most common inherited disease in Brazil. Hemoglobin S is present in 4% a 6% of the population. We believe that 3.500 babies are born with sickle cell disease every year in Brazil. Sickle cell disease has a great clinical variability with high morbidity and mortality related to the disease. Comprehensive humanized decentralized multidisciplinary care focusing on self -care might change the natural history of the disease thereby reducing its morbimortality. The current article aims at discussing self-care in sickle cell disease during four distinct stages of the life of people affected by the disease - childhood, adolescence, pregnancy and adulthood, showing the corrects strategies to treat risks factors in these different phases.
Key words: Sickle cell disease; hemoglobinopathies; self care.
Introdução
A doença falciforme é a alteração genética mais comum na nossa população e engloba um grupo de hemoglobinopatias herdadas, de elevada importância clínica e epidemiológica. Ela se traduz como anemia hemolítica hereditária do tipo autossômica recessiva com grande variabilidade clínica. A hemoglobina S (Hb. S) pode ocorrer em sua forma homozigota (anemia falciforme) ou associada a outra hemoglobina mutante (C, D, E) ou a defeitos quantitativos da produção das cadeias a e b da hemoglobina (síndromes talassêmicas).9 A Hb. S, quando em heterozigose com a hemoglobina A (Hb. A), é traduzida como traço falciforme.
Esta hemoglobina mutante está presente em 2% a 6 % da nossa população em geral, e 6% a 12% nos afrodescendentes.
Dados oriundos da triagem neonatal nos estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro mostram uma prevalência de traço falciforme de 1:21 nascidos vivos e de doença falciforme de 1:1.200 nascimentos. Na Bahia, esta incidência é maior e atinge 1:650 na doença e 1:15 nos portadores de heterozigose assintomáticos. Com base nestes dados, acreditamos que nasçam, por ano, no nosso país, cerca de 3.500 crianças novas com doença falciforme e 200.000 portadores de traço falciforme. Tal cenário permite, indubitavelmente, tratar desta patologia como problema de saúde pública.
A doença falciforme afeta todo o sistema circulatório e pode causar a morte ou seqüelas irreversíveis nos mais diversos órgãos do organismo humano.
A pessoa com doença falciforme, na sua imensa maioria, além de pertencer às camadas desfavorecidas economicamente, são submetidas rotineiramente aos efeitos do racismo institucional ainda tão cristalizado na nossa sociedade e que muitas vezes dificulta o acesso e a qualidade da atenção integral dispensada a essas pessoas.1,6 Isto leva à maior vulnerabilidade e conseqüentemente a maior risco de intercorrências que podem ser fatais e seqüelantes. Daí a necessidade, por toda sua vida, do apoio das mais diversas especialidades médicas e de outros profissionais da área da saúde, considerando eventos mórbidos altamente prevalentes como: infecções pulmonares freqüentes, infarto cerebral, seqüestro esplênico, crises de dor, entre outras.
O diagnóstico precoce através da triagem neonatal e a inclusão das pessoas com diagnóstico num programa de Atenção integral podem mudar a história natural da doença no nosso país. Esta integralidade é composta pela assistência multiprofissional com foco no cliente, descentralizada, com ações organizadas e de eficácia comprovada na prevenção, integrada ao modelo SUS, humanizada, com abordagem holística e na filosofia do desenvolvimento do auto-cuidado.
A educação em saúde
A definição de saúde vem sendo aperfeiçoada a cada momento. Hoje, a definição mais holística é o bem-estar biopsicossocial cultural e espiritual, evidenciando a importância dos fatores culturais e da religiosidade como influenciadores na qualidade de vida de uma pessoa. Em 1997, Minayo afirmou que "Saúde e Doença são concepções construídas a partir de acontecimentos culturais, historicamente determinados sob diferentes formas, em diferentes sociedades e não apenas efeitos biológicos". A Organização Pan-americana da Saúde (Opas), em 2004, definiu a Saúde como uma questão de segurança humana e comunitária possibilitando a governabilidade, que deve ser processada através da união dos poderes federal, estadual e municipal aliados à atores sociais como empresas privadas e indivíduos da sociedade, e portanto uma questão de direitos humanos, formação de cidadania e por fim um bem público global.
O SUS atualmente é dividido em três grandes níveis de atenção:
Atenção primária onde está inserida a atenção básica como o diagnóstico precoce e os cuidados de acompanhamento de rotina além dos cuidados preventivos como a educação em saúde e a filosofia do autocuidado, estes últimos incluídos nos principais objetivos do programa de saúde da família .
Atenção secundária com os serviços de emergência e cuidados intensivos.
Atenção terciária com os cuidados altamente especializados, restaurador, reabilitação e os cuidados domiciliares.
A educação é um processo que atualmente vem ganhando espaço da área da saúde. Segundo Rezende, em 1986, a educação é um instrumento de transformação social, de reformulação de hábitos, aceitação de novos valores e que estimula a criatividade. Artur da Távola é mais incisivo quando define a educação como um processo rico e enriquecedor, pois contém o germe da crítica, reflexão e consciência. Para ser efetivo o processo de educação, a linguagem a ser utilizada deve ser sem ruídos, isto é, devem ser levados em consideração fatores sociais, econômicos, religiosos e comportamentais, como crenças, atitudes e valores.
Os principais objetivos da educação em saúde para doença falciforme são:
Permitir o empoderamento do cliente do conhecimento do profissional de saúde sobre a doença falciforme, contribuindo para a formação de opinião favorável ao desenvolvimento, possibilitando a tomada de decisões clinicas valorizando a saúde - promover o autocuidado.
Dismistificar a doença falciforme banalizando o seu conhecimento
Criar a consciência da necessidade de mudança social, econômica e cultural, para superar os problemas de saúde
Permitir o desenvolvimento da cidadania
O desenvolvimento do autocuidado pode permitir a aquisição do hábito e, em última análise, participar das etapas de transformação do indivíduo descritas por Haynes & Mattheus, em 1974. O indivíduo, ao adquirir um hábito positivo em relação à sua doença, sai do status de desinformação e, dependendo do próprio desejo de querer mudar ou agir, ele pode, além de se informar, se interessar, se envolver e, finalmente, tornar-se atuante no processo de transformação. Isto pode mudar a história da doença na população afetada.
Autocuidado na doença falciforme
Abordaremos o autocuidado na doença falciforme em quatro fases diversas: criança, adolescente, gestante e no adulto.
Autocuidado na criança
Com o diagnóstico precoce através da triagem neonatal, a assistência multiprofissional deve ser iniciada já nos primeiros meses de vida. À medida que cresce, a criança e sua família devem ser preparadas para o autocuidado. Esta assistência multiprofissional deve ser humanizada.
Entende-se por humanização, além de uma ambiente confortável para esta assistência, o acolhimento da pessoa com doença falciforme pelo profissional da saúde sem preconceitos, estigmas, escutando suas dúvidas e dificuldades e permitindo o diálogo através da democratização da linguagem utilizando formas acessíveis para esta população.1,6
Os diagnósticos de risco para esta idade são:
Déficit de conhecimento sobre a doença e tratamento
Risco para desenvolver a dor
O momento da dor
Risco para crescimento e desenvolvimento alterados
Risco para infecção
Déficit de conhecimento sobre a doença e tratamento
Pelo grande desconhecimento imposto pela invisibilidade estabelecida pelo racismo institucional na nossa sociedade, a população assistida ignora aspectos sobre a doença importantes para a prevenção e dismistificação da doença.6,7 O caráter hereditário, não infeccioso, crônico e incurável são aspectos mal elaborados pela população afetada. A importância do diagnóstico precoce, da inclusão em um programa de atenção integral tão logo seja estabelecido o diagnóstico são aspectos que, quando obedecidos, podem diminuir em muito a morbidade e mortalidade.7
As estratégias que podem ser utilizadas para minimizar este diagnóstico de risco estão intimamente relacionadas com a educação em saúde familiar e popular.
Desenvolver ações educativas sistematizadas para as crianças e suas famílias, sobre a doença, triagem neonatal, sinais e sintomas que demandam atenção médica, hábitos saudáveis, vacinações especiais, medidas preventivas e profiláticas, entre outros aspectos, podem melhorar o nível de conhecimento sobre a doença e suas nuances e assim incrementar a adesão ao tratamento, aspecto de vital importância no controle da doença.
As ações podem ser desenvolvidas de forma individual, como consultas especializadas por profissionais da saúde com conhecimento sobre estes aspectos, ou em grupos, como em salas de esperas de ambulatórios e consultórios ou em reuniões comunitárias nas comunidades aonde residem as pessoas acometidas pela doença. Tais tarefas podem ser realizadas por profissionais de nível superior, como enfermeiros ou médicos, e por profissionais de nível médio, como agentes comunitários de saúde devidamente capacitados pelo primeiro grupo e com sua supervisão contínua.
A crise de seqüestro esplênico ainda é uma causa importante de mortalidade na infância e, portanto, a educação em saúde dos pais/cuidadores através do ensino da palpação do baço como método de prevenção deste tipo de crise pode ser crucial na redução da mortalidade. (Figura 1)
O resultado destas estratégias é a família gerenciando de forma adequada a doença e o tratamento na atenção básica.
Risco para desenvolver a dor
A crise de dor é a causa mais freqüente de procura das pessoas com doença falciforme aos serviços de emergência. Portanto, investir no desenvolvimento do autocuidado através da educação em saúde deve ser prioridade na nossa atenção integral.
A educação em saúde deve abranger ensinamentos para a família sobre as razões da dor, seus fatores predisponentes, suas formas de prevenção e tratamento. Devemos ensinar também o reconhecimento dos sinais de dor, como tumefação de pés e mãos, distensão abdominal, etc, sinais precoces de infecção, como febre, rubor, etc.2 Discutir a importância das mudanças bruscas de temperatura como fator desencadeante de dor e, portanto, trabalhar vestimentas adequadas conforme a temperatura e a estação do ano. O resultado destas estratégias é uma criança com menos episódios de dores.
Promover outras terapias não farmacológicas, como massagens, compressas quentes, respiração ritmica e imaginação orientada como possíveis no tratamento coadjuvante da dor.2
Risco para a dor (quando já presente)
No momento da dor, a pessoa afetada imbui de diversos sentimentos muitas vezes desapercebidos pelo profissional que está promovendo a assistência de emergência. Estes sentimentos podem prejudicar em muito a relação profissional de saúde e paciente e, conseqüentemente o resultado do tratamento adequado.2 Portanto, entender estes sentimentos deve ser a primeira fase de uma assistência de qualidade. E quais os sentimentos que afloram uma pessoa com dor? A depressão, insônia, improdutividade, hostilidade, inapetência, impaciência, irritabilidade, inatividade, ansiedade e descrença do tratamento são alguns destes sentimentos e que permearão todo o tratamento .
A dor é um sintoma difícil de ser avaliado e, portanto, como instrumento de avaliação da dor e também da analgesia podemos utilizar as escalas analógicas de dor. Esta avaliação deve ser regular, pois poderá auxiliar na elaboração de um protocolo individualizado do tratamento da dor.2 Não podemos esquecer que a dor é o quinto sinal vital e a sua ausência é um indicador de qualidade no cuidado em saúde.
Devemos incentivar a família no auxílio das tarefas diárias destes pacientes assim como estimular o seu repouso que pode ser de muito valor.
Algumas regras devem ser lembradas aos familiares e que podem fazer parte do cotidiano destes pacientes, como o controle na administração regular dos analgésicos prescritos, redução dos estímulos estressantes como frio, ruídos e luz, terapias não farmacológicas, já anteriormente descritas, e muito carinho e compreensão intradomiciliar.
O resultado destas estratégias é a redução do número e da duração dos episódios de dores.
Risco para crescimento e desenvolvimento alterados
As crianças com doença falciforme têm seu crescimento e desenvolvimento retardados intimamente relacionados com a doença de base. Estas crianças, apesar de se alimentarem quantitativa e qualitativamente bem, o crescimento é prejudicado em virtude da baixa oxigenação que a hemoglobina S impõe. Isto acaba induzindo a família à superproteção, impedindo o desenvolvimento da independência das crianças durante seu processo de vida.
Monitorizar o crescimento e o desenvolvimento da criança, esclarecer sobre as limitações e atrasos desta vertente na doença falciforme, orientar quanto à alimentação e hidratação, trabalhar padrões de atividade física e exercícios, respeitando a limitação pessoal e, por fim, estabelecer estratégias familiares e comunitárias que evitem a superproteção e estimulem a independência são ações que podem ser desenvolvidas.
O resultado disto é uma criança independente, feliz e com crescimento e desenvolvimento adequados para a sua fase de vida e sua doença de base.
Risco para infecção
Estas crianças, por conta da doença de base, são 400 vezes mais propensas a episódios de infecção que podem evoluir muito rapidamente para a morte. A infecção é a primeira causa de mortalidade infantil na doença falciforme.9
Portanto, é fundamental estabelecer ações e estratégias para que as famílias ou cuidadores possam detectar precocemente sinais de infecção e procurar assistência médica de qualidade. São eles: febre, diarréia, vômitos, prostração etc. As crianças com menos de 5 anos devem ter prioridade e têm mais risco que as maiores.9
Outra forma de melhorar estes altos índices de mortalidade é monitorizar a vacinação, seja aquela preconizada para todas as crianças pelo Ministério da Saúde, seja as especiais disponíveis nos Centro de Referência de Imunobiológicos Especiais.
O resultado disto é a vacinação completa, a criança com doença falciforme livre de infecção e, por fim, a redução da mortalidade deste segmento por infecção.
Autocuidado no adolescente
A partir do momento em que a criança atinge a idade da adolescência e que a filosofia do autocuidado foi trabalhada por toda a infância, o maior desafio é manter a adesão do jovem ao regime terapêutico e às praticas de autocuidado. Nesta fase, a crise de identidade do adolescente; assim como a dificuldade de relacionamento dele com seus pais podem dificultar a adesão ao tratamento.
Os diagnósticos de risco para esta idade são:
Risco para distúrbio do autoconceito, da auto-imagem e da auto-estima
Risco para a integridade da pele prejudicada
Risco para mobilidade física prejudicada
Risco para infecção
Risco para distúrbio do autoconceito, da auto-imagem e da auto-estima
O retardo do desenvolvimento e do crescimento promovido pela doença falciforme permite ao adolescente sofrer ações preconceituosas e, muitas vezes, estigmatizadas, promovendo a segregação social principalmente no ambiente escolar. Tais conseqüências podem somente majorar aquelas que já são impostas pelo desconhecimento do profissional da área da educação sobre a doença e pelo racismo institucional ainda muito presente no nosso cotidiano.
Estes jovens se sentem ainda infantilizados, inferiores na sua maturação sexual em relação aos seus colegas de turma e, muitas vezes, são segregados e submetidos a apelidos jocosos que levarão a distúrbio da auto-estima.
Por outro lado, as transformações presentes no corpo destes jovens não ocorrem na mesma velocidade que nos seus amigos da mesma idade. O aparecimento de pêlos pubianos, a mudança da voz, o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários, como a telarca, a primeira menstruação e outras alterações, são muitas vezes retardados levando a distúrbio da auto-imagem.
O reconhecimento de que este jovem tem uma doença crônica e que deverá aprender a conviver com ela, percebendo que muitas vezes esta doença poderá trazer conseqüências na sua vida produtiva, escolar, social, etc, pode levar a distúrbios do auto-conceito.
Como estratégias para minimizar estes efeitos é fundamental que o profissional de saúde permita o empoderamento destes jovens sobre dúvidas do retardo do crescimento e desenvolvimento sexual através de um diálogo aberto aonde possam ser expostas todas as ansiedades destes adolescentes, estabelecendo assim uma relação afetuosa de confiança entre ele e o profissional de saúde responsável pela qualidade da sua assistência. Manter um canal para verbalização de sentimento e dúvidas sobre a expressão da doença no corpo do jovem e suas conseqüências na socialização é uma estratégia muito interessante.
Este diálogo permitirá ao jovem maior participação nas decisões no cuidado de sua saúde através da pactuação das responsabilidades do seu tratamento com seu médico e/ou enfermeira. Assim teremos melhores resultados nos esquemas de analgesias, mais ênfase nos sinais precoces de crises álgicas e melhor adesão ao regime terapêutico.
Por fim, explicar ou criar um instrumento de esclarecimento para os profissionais da área da educação sobre a doença, suas alterações e as conseqüências no dia-a-dia para estas pessoas afetadas minimizando assim o desconhecimento destes profissionais sobre a doença falciforme.
O resultado disto é um jovem independente, participante ativo na terapia e produtivo na comunidade.
Risco para a integridade da pele prejudicada
Nesta fase, a perfusão tissular já se encontra prejudicada e, portanto, mais propenso a desenvolvimento de úlceras de pernas.9 O local mais freqüentemente acometido é a região maleolar externa.9 Estratégias devem ser estabelecidas para que este risco seja minorizado.
A educação em saúde deve priorizar a hidratação da pele com estratégias da comunidade, hidratantes naturais ou cosmetológicos. Deve ser ensinado que, sistematicamente, a pele, principalmente das pernas nas regiões maleolares, deve ser examinada para detectar possíveis portas de entradas para úlceras de pernas.
O uso de repelentes e inseticidas para diminuir a possibilidade de picadas de insetos e, quando ocorrer, evitar coçar para não escarificar, pode também prevenir o aparecimento destas úlceras.
O trauma também pode ser fator de risco para desenvolvimento de úlceras. O uso sistemático de sapatos e/ou tênis de cano alto com o concomitante uso de meias de algodão macias podem evitar a ocorrência de lesões nestas regiões.
O resultado desta estratégia é o jovem com pele hidratada e íntegra.
Risco para mobilidade física prejudicada
Os esportes vêm sendo utilizados com um importante instrumento de inserção social principalmente da população de baixo nível socioeconômico. Programas governamentais vêm cada vez mais estimulando a inclusão da população adolescente em projetos de esportes, principalmente coletivos, como uma forma de retirar ou impedir este jovem de entrar na marginalidade.
A doença falciforme, por si só, pode criar limitações à prática destes esportes. Como alternativa, alguns autores vêm estabelecendo estratégias que possam permitir certo grau de inserção no mundo dos esportes, porém somente como instrumento de convívio e inserção social.
É fundamental a discussão através de diálogo aberto com os adolescentes sobre o limite da prática desportiva, obedecendo à limitação pessoal de cada um e, portanto, sendo proibidos os exercícios extenuantes. Além disto, a manutenção de uma boa hidratação durante a prática do esporte, evitar choques térmicos, principalmente nos esportes aquáticos, privilegiar os exercícios de alongamento e de flexibilidade, e a prática de esporte de contato com segurança são outras normas a serem seguidas.
O resultado destas ações é o jovem com amplitude de movimentos, desenvolvimento adequado e integrado à sociedade.
Risco para infecção
Como na criança, os adolescentes também estão mais predispostos a maiores índices de infecção; portanto, além da monitorização das vacinas anteriormente já descritas, é fundamental o ensinamento, não só à família e cuidadores mas também ao jovem, os sinais precoces de infecção. Torna-se importante o envolvimento do jovem com o conhecimento e com as estratégias para prevenir intercorrências da sua doença. Com isso, a adesão ao autocuidado pode ser mais efetiva.
Nesta fase da vida torna-se necessária também a abordagem das formas de prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e da discussão da gravidez precoce nas adolescentes através da disseminação do uso de preservativos masculinos e femininos.
Neste item, o resultado é o jovem sem sinais de infecção e com vacinação completa.
Autocuidado na gestante
A doença falciforme não é impeditiva da gravidez, contudo, pelo seu potencial de gravidade, a gestação em pessoas com doença falciforme é considerada de alto risco e, portanto, a gestante e o feto necessitam de atenção muito especial.8
Os diagnósticos de risco para esta fase da mulher com doença falciforme são:
Medo e déficit de conhecimento sobre a fisiopatologia da gravidez na doença falciforme
Intolerância à atividade
Risco para infecção (urinária e respiratória )
Medo e déficit de conhecimento sobre a fisiopatologia da gravidez na doença dalciforme
A mulher com doença falciforme e grávida tem inúmeras inseguranças e desconhecimento sobre esta fase de sua vida e, portanto, não está preparada para enfrentar a dimensão clínica da doença.8 Além disto, normalmente o seu companheiro não tem a doença, o que pode dificultar em muito a compreensão sobre a patologia, suas conseqüências na gestação e as suas possíveis limitações. A gravidez, às vezes, é pouco compartilhada pelo pai da criança e isto pode levar a aumento do nível de conflito entre o casal nesta fase.
As intercorrências clínicas nesta fase podem ser graves e criam dificuldades principalmente com relação à viabilidade da gravidez. O desconhecimento da maioria dos profissionais de saúde sobre a gestação na doença falciforme e qual a melhor abordagem permite que estes agravamentos possam se concretizar.
A principal forma de prevenir este diagnóstico de risco é instruir sistematizadamente as gestantes sobre o desenvolvimento da gestação e do seu papel ativo, sua família e principalmente do companheiro no monitoramento do desenvolvimento, suas dificuldades e intercorrências.
Faz-se necessário que o profissional de saúde propicie à gestante a verbalização das suas expectativas, medos e inseguranças, além de preparar a gestante para o parto natural sem dor, assim como para a amamentação. Deve ensinar as técnicas de relaxamento muscular e de enfrentamento de estresse, permitindo assim aumentar a confiança da gestante no parto natural e exercícios de flexibilidade e força muscular, muito importantes na hora do parto.
A adesão ao acompanhamento pré-natal com obstetra, hematologista e hemoterapeuta deve ser encorajada, pois permite qualidade na assistência e promove redução de intercorrências que podem inviabilizar a gestação.
Por fim, não deve ser esquecida a importância da realização da triagem neonatal após o nascimento como forma de diagnóstico precoce de portador heterozigoto.
O resultado destas estratégias é a gestante participante ativa, monitorando o desenvolvimento, expressando confiança, satisfação com as técnicas aprendidas e sensibilizada para o parto natural e amamentação.
Intolerância à atividade
A mulher com doença falciforme habitualmente participa no orçamento domiciliar através do seu trabalho e, portanto, é impossível a interrupção das suas atividades profissionais durante a gestação com risco de prejuízo para a qualidade de vida da família.8 Entretanto, é fundamental saber que a doença falciforme associada à gestação pode tornar a mulher mais intolerante às atividades diárias sejam profissionais ou domésticas.
Como estratégias a serem estabelecidas, através da educação em saúde, para minimizar esta intolerância, pontuamos: escalonar ou priorizar as atividades do dia, sugerir pausas no trabalho para descanso durante o dia, e orientar para que a gestante trabalhe no seu próprio ritmo. Com relação aos trabalhos domésticos, conversar com o resto da família (companheiro por ex.) da gestante sobre a importância da sua cooperação nas atividades diárias, desonerando-a e permitindo que ela se adapte ao ritmo de atividades que obedeça seus limites.
Por fim, incentivar uma alimentação adequada do ponto de vista qualitativo e quantitativo e de regularidade de refeições. Em virtude de, na maioria das vezes, estarmos tratando de população de nível socioeconômico mais desfavorável, faz-se mister que sejam utilizadas fontes de alimentos economicamente mais acessíveis e presentes em fartura na comunidade, utilizando as tradições regionais e os alimentos de época.
Ao compreender estas estratégias o resultado é a gestante realizando as suas atividades cotidianas.
Risco para infecção (urinária e respiratória)
A gestação é um fator predisponente para infecção urinária em qualquer mulher, nas com doença falciforme esta predisposição aumenta várias vezes.9 Devemos incentivar a hidratação e higiene íntima como formas de diminuir a bacteriúria assintomática, muitas vezes existente nestas pessoas. Além disto, é fundamental ensinar à gestante os sinais precoces de infecção, orientando para que procure atendimento médico rapidamente tão logo apareçam sinais sugestivos de intercorrências infecciosas e clínicas.
O resultado é gestante sem infecção e sem intercorrências.
Autocuidado no adulto
O adulto que foi devidamente sensibilizado durante toda a sua infância e adolescência sobre a importância do autocuidado na prevenção de intercorrências clínicas, na melhoria da qualidade de vida e na longevidade, é uma pessoa que invariavelmente terá maior adesão ao tratamento. Entretanto, em virtude da filosofia do autocuidado ser uma estratégia muito recente, o grande desafio é levar a pessoa adulta a assumir as medidas preventivas, os hábitos saudáveis e identificar precocemente as intercorrências clínicas.
Os diagnósticos de risco para o adulto são:
Risco para infecção
Perfusão tissular alterada (renal entre outras)
Dor
Risco para integridade da pele prejudicada
Risco para a paternidade ou maternidade alterada
Risco para infecção
Em virtude da maior possibilidade de infecções, principalmente as graves, faz-se necessário monitorizar as vacinas garantindo a vacinação para todos, além de ensinar a identificar precocemente os sinais de infecções para pronta assistência.
Orientar os pacientes a praticar exercícios respiratórios domiciliares, como fisioterapia respiratória durante processo de vaso-oclusão, pode prevenir o aparecimento de síndrome torácica aguda, intercorrência respiratória muito grave e de alta mortalidade no adulto. Mostrar como cuidar da higiene pessoal, boa alimentação e boa hidratação e abordagem das doenças sexualmente transmissíveis e suas formas de prevenção devem fazer parte também de estratégias positivas.
Perfusão tissular alterada (renal, entre outras)
O dano crônico dos órgãos nobres que ocorre em decorrência das crises vaso-oclusivas crônicas permite que a perfusão destes órgãos fique prejudicada, podendo levar estes pacientes a intercorrências clínicas crônicas como hepatopatias, hipertensão arterial, insuficiência renal, etc.9
As estratégias a serem utilizadas através da educação em saúde, que podem de alguma forma minimizar tais alterações, são: orientar as pessoas a ingerir líquidos abundantemente (dois litros/dia) promovendo uma boa hidratação e forçando boa diurese, realizar exames de urina periodicamente, esvaziar freqüentemente a bexiga evitando assim maior risco de priapismo e observar sinais de alterações neurológica e pulmonar.
Dor
A dor, nesta fase, é a principal causa de procura aos serviços de emergências. Portanto, o autocuidado na prevenção do aparecimento da dor faz-se muito importante.2
O comprometimento das atividades profissionais, domésticas e sociais em virtude do aparecimento da crise álgica leva a pessoa com doença falciforme a um sentimento de revolta e impotência frente a uma doença muitas vezes incapacitante.
Ensinar a identificar e controlar os fatores predisponentes como mudanças bruscas de temperatura, estresse, infecções, exercícios extremos, ingestão de bebidas alcoólicas, etc, podem ser utilizadas na educação em saúde para diminuir o número de crises álgicas. Durante o episódio de dor mostrar e utilizar protocolos individualizados pactuados com os pacientes, com medicamentos potentes, de forma regular e baseado na gravidade da crise. Explicar o uso de práticas complementares para o controle efetivo da dor.
No período intercrítico permitir a discussão com o paciente do esquema de analgesia utilizado durante a crise para que, após análise crítica de ambos (profissional e paciente), o protocolo possa ser ajustado para melhor eficácia da analgesia proposta.
O resultado destas estratégias é o adulto sem episódios de dores ou com crises leves e breves.
Risco para a integridade da pele prejudicada
Nesta fase da vida, a perfusão tissular está mais prejudicada e, portanto, o aparecimento de úlceras de perna é mais freqüente do que na adolescência.9 Tais intercorrências podem levar a problemas de inserção social e profissional graves, com segregação do paciente que já se encontra em situação social vulnerável.
As portas de entradas mais freqüentes são picadas de insetos e traumatismo local com escoriações.9 Como medidas educativas devemos estimular nossos pacientes a minimizar a possibilidade de impedir o aparecimento das lesões desencadeadoras das úlceras através das seguintes estratégias: orientar a examinar a pele diariamente, usar repelentes de insetos, manter a pele hidratada e protegida, utilizar calçados de cano alto com meias e evitar coçar as possíveis picadas de insetos.
Risco para a paternidade ou maternidade alterada
Por ser uma doença hereditária, as pessoas com doença falciforme acham que irão "passar" sua doença para seus filhos e, portanto, o seu direito reprodutivo fica abalado.4,5 Em virtude do desconhecimento, a mulher, principalmente, acha que sua doença é impeditiva da gravidez. Portanto, em virtude destas questões, o direito de cidadania de constituir família pode ficar extremamente prejudicado.
Cabe aos profissionais de saúde esclarecer estas questões, explicando que a doença falciforme não é impeditiva da gravidez, que o seu diagnóstico pode ser realizado através da triagem neonatal e que, quando precoce, pode permitir que a criança seja incluída num programa de atenção integral com medidas profiláticas, autocuidado, educação em saúde, etc.
A orientação e a informação genética devem ser oferecidas ao casal e toda sua família. Esta orientação pode ser realizada por profissional da saúde devidamente capacitado. Não deve ser diretiva, devem ser levados em consideração aspectos sociais, raciais, e realizado com habilidade de comunicação, permitindo assim uma orientação de qualidade. Deve-se respeitar a autonomia, privacidade, a justiça e a igualdade.3,4,5
O resultado destas estratégias é o adulto vivendo o seu direito pleno de cidadania de constituir família e seu direito reprodutivo atendido.
Conclusões
O papel do profissional de saúde que irá trabalhar a filosofia do autocuidado com o cliente/família com doença falciforme é diagnosticar e tratar as respostas ou as reações da clientela à doença falciforme e seu tratamento, avaliando os resultados no sentido do bem-estar e da saúde.
Estes profissionais devem permitir o empoderamento do seu cliente sobre os aspectos clínicos e terapêuticos da doença falciforme, desenvolver o espírito crítico no cliente e na família sobre a qualidade do seu trabalho, favorecer a qualidade de vida e longevidade de seu cliente, estimular a prática do direito de cidadania desta população assistida, resgatar parte de uma grande dívida com a população afrodescendente do nosso país, e assim SER FELIZ.
Recebido: 09/04/2007
Aceito: 15/05/2007
O tema apresentado e o convite aos autores constam da pauta elaborada pelo co-editor, prof. Rodolfo Delfini Cançado.
Avaliação: Co-editor e um revisor externo.
Publicado após revisão e concordância do editor.
Conflito de interesse: não declarado.
- 1. Oliveira F. Uma reflexão sobre a saúde da população negra. Silva J M. Religiões Afro-brasileiras e Saúde. 1Ş ed. São Luis - Maranhão 2003.52-73.
- 2. Benjamin LJ, Dampier CD, Jacox AK, Odesina V. Phoenix, Shapiro, B, Strafford M et al Guideline for the management of acute and chronic pain in sickle cell disease. APS Clinical Practice Guidelines series, nş 1. 1999.
- 3. Jesus JA, Araujo PIC, Queiroz ERS, Ferreira SMB, Medeiros HA. Manual de Orientação e Informação Genética em Doença Falciforme da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Vol 1. nş 01/2002. Rio de Janeiro.
- 4. Diniz D, Guedes C. Anemia falciforme: um problema nosso. Uma abordagem bioética sobre a nova genética. Cadernos de Saúde Publica. 2003;19(6):1761-70.
- 5. Diniz D, Guedes C. Educando para a Genética: anemia falciforme e políticas de saúde no Brasil. Diniz D. Admirável Nova Genética: Bioética e Sociedade 1Ş ed. Brasília. 2005. p. 141-180.
- 6. Santos NB. As Políticas Públicas e a Questão Racial - Organização Ashoka Empreendedores Sociais e Takano Cidadania. Racismos Contemporâneos - 1Ş ed. Rio de Janeiro. 2003, p. 111-117.
- 7. Kikuchi BA. Diáspora africana e anemia falciforme - Organização Ashoka Empreendedores Sociais e Takano Cidadania. Racismos Contemporâneos - 1Ş ed. Rio de Janeiro. 2003, p. 127-165.
- 8. Oliveira F. Saúde da mulher negra. Oliveira F. Oficinas Mulher Negra e Saúde - Manual. 1Ş ed. Belo Horizonte. 1998. p 89-128.
- 9. National Institutes of Health, National Heart, Lung and Blood Institute, Division of Blood Diseases and Resources. The Management of Sickle Cell Disease. NIH Publication nş 02-2117, 4Ş ed. 2002.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Jan 2008 -
Data do Fascículo
Set 2007
Histórico
-
Aceito
15 Maio 2007 -
Recebido
09 Abr 2007