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Sangue seguro: mito ou realidade?

Safe blood: myth or reality?

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Sangue seguro: mito ou realidade?

Safe blood: myth or reality?

Evaldo S. A. AraújoI; Antonio A. BaroneII

IDivisão de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do HC-FMUSP/LIM47 - Laboratório e Ambulatório de Hepatites Virais

IIProfessor Titular do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP/SP

Correspondência Correspondência: Evaldo S.A. Araújo Instituto de Medicina Tropical II - LIM47 Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar nº 500 Sala 12 Cerqueira Cesar - 05403-000 São Paulo-SP - Brasil Tel./Fax: 55 11 30851601 E-mail: evaldostanislau@uol.com.br

Ao receptor e ao prescritor de uma hemoterapia interessa, e é essencial, que esse ato seja isento de riscos e completamente seguro. Vivenciamos uma epidemia de hepatite C, exemplo recente e dramático do impacto da transmissão de um agente infeccioso, então desconhecido, por meio da transfusão de sangue. A adoção de medidas de triagem laboratorial efetivas transformou essa realidade. Hoje, o risco de aquisição de uma hepatite viral após um a transfusão é virtualmente zero. O impacto na Saúde e nos aspectos farmaco-econômicos de uma triagem efetiva contra o VHC dificilmente será superado por qualquer outra medida terapêutica, o que dimensiona o valor dessa prática. Portanto, é justo e pertinente que se deseje o mesmo elevado grau de segurança para todos os agentes infecciosos potencialmente transmissíveis. Porém, a pergunta que se faz é: isso é possível? E se possível, é exeqüível? Necessário?

Por mais que novas tecnologias sejam desenvolvidas, a descoberta de novos agentes infecciosos e a reemergência de velhas ameaças constituem um desafio contínuo que impedem um sangue 100% seguro.1 As ameaças infecciosas se dividem em seis categorias principais, apresentadas na Tabela 1. Nos Estados Unidos, utilizando inclusive metodologia biomolecular para alguns patógenos, o risco de aquisição de infecção transfusional para agentes selecionados é de um em 2.135.000 para o HIV-1, zero para HIV-2, um em 1.935.000 para o VHC, um em 205-488.000 para o VHB e zero para o Vírus da Febre do Oeste do Nilo.2 Um complemento à triagem pré-transfusional seria a utilização de métodos físicos e químicos de redução de patógenos. Entretanto, a interferência com a integridade de componentes do sangue e mesmo novos agentes infecciosos restrigem a sua utilização a determinados componentes do sangue, como plaquetas, seguramente utilizadas na recente epidemia do vírus Chikungunya na Ile de La Réunion.3

No presente número da RBHH, a questão da transmissão da dengue por transfusão é debatida. Manifestam-se por carta os Drs. Levi e Wendel4 em relação à proposta de implantação de triagem laboratorial por método de ELISA que detecte o antígeno NS1 do vírus da dengue, feita em correspondência prévia pelo Dr. Ferreira Ramos.5 Argumentam, em síntese, que a despeito de elevada e crescente prevalência da dengue no Brasil e determinadas regiões do mundo, os relatos de dengue transfusional seriam extremamente raros, além de dúbios na qualidade científica da informação. Defendem a avaliação de estratégias sazonais e regionais para detecção de amostras virêmicas. Discutem se a detecção de viremia, de fato, representa um risco para transmissão - além da potencial interferência do processamento dos componentes do sangue na viabilidade viral - e se o método proposto, ELISA para NS1, seria o método de melhor desempenho em nosso meio, considerando a sensibilidade e especificidade na população de doadores. Por fim, refletem se o incentivo ao combate do vetor não seria a melhor opção a se seguir. Dr. Ramos contra-argumenta no sentido de que existem, sim, relatos de transmissão transfusional da dengue, sendo essa ocorrência possivelmente subnotificada, e que as condições climáticas globais tornam o ambiente cada vez mais propício para a perpetuação do vetor e dificultam as estratégias de efetivo combate ao mesmo, incluindo uma alteração na sazonalidade da apresentação. Por fim, tece considerações sobre o argumento financeiro versus as dificuldades de controle do vetor, defendendo que haveria uma vantagem para a implantação de um método de seleção seguramente efetivo na triagem de amostras virêmicas, em que pese custos, ante a redução ainda maior dos riscos transfusionais e maior segurança de todos. Ambos missivistas reconhecem o mérito da discussão e conclamam a um debate científico sobre o tema, cabendo definir a oportunidade de implantação daquilo que for decidido.

Pois bem, como infectologistas, temos vivenciado a dengue em todos os seus matizes. De fato, é uma questão de primeira ordem e o debate iniciado é pertinente. Seria-nos impossível opinar sem que possamos incorrer em inexatidão. Assim, recorremos à Literatura. Inicialmente devemos ressaltar que a viremia da dengue é um fenômeno breve (em média de cinco dias) e que o quadro clínico, quando presente, se inicia um dia após o começo da viremia.6 Portanto, a possibilidade de um indivíduo fazer uma doação em um período de incubação nos parece remota. Tal fato se corrobora em nos-so meio, como ocorreu no período de fevereiro a abril de 2003 entre 4.858 doadores no Brasil - cidade de São Paulo e Grande São Paulo; período epidêmico. A utilização de um método molecular para detecção do RNA viral encontrou apenas três pacientes virêmicos (0,04% das amostras).7 Em que pese se tratar de uma região de melhor condição de desenvolvimento, a epidemia de dengue na cidade de São Paulo ocorreu e a região metropolitana foi bastante afetada. Portanto, para esse período epidêmico que mimetiza (embora não se iguale) regiões de maior prevalência da dengue, a viremia entre doadores deve ser considerada modesta. A mesma metodologia aplicada a todas as doações realizadas em Porto Rico, no período de setembro a dezembro de 2005, evidenciou 0,07% das amostras com RNA viral, o que permite estimar que para cada 1.000 doações, uma seja positiva para o vírus da dengue, valor semelhante ao encontrado para a Febre do Oeste do Nilo nos Estados Unidos.6 Nesse estudo não foi possível contatar os receptores do sangue contaminado para saber se desenvolveram dengue, ou não. Portanto, permanecem a exigüidade de relatos sobre transmissão por transfusão da dengue. Além disso, persistem as dúvidas sobre a gravidade potencial das formas adquiridas por transfusão, uma vez que relatos da transmissão da dengue em imunossuprimidos - receptores de órgãos - mostram formas clínicas mais brandas, em que pese o fato do risco potencial de uma re-exposição a outro sorotipo potencializar o risco de formas hemorrágicas.8 Pelo todo, acreditamos que a triagem laboratorial da viremia entre doadores seja factível. Se aplicável, caberá às autoridades definir. Não acreditamos, entretanto, que o risco de transmissão transfusional da dengue, no atual contexto epidemiológico brasileiro, seja de magnitude suficiente para a implementação de uma triagem laboratorial sistemática entre os doadores de sangue. Além disso, as técnicas de fracionamento e inativação de ameaças infecciosas entre os componentes do sangue são medidas que devem ser consideradas para minimizar ao máximo o risco transfusional associado a dengue e outros patógenos veiculados por sangue.

Recebido: 30/09/2008

Aceito: 30/09/2008

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor

  • 1. Mushahwar IS. Verses, viruses, and the vulnerability of the blood supply in industrialized countries. J Med Virol. 2007;79(8):1229-37.
  • 2. Stramer SL. Current risks of transfusion-transmitted agents, a review. Arch Pathol Lab Med. 2007;131(5):702-7.
  • 3. Solheim BG. Pathogen reduction of blood components. Transfus Apher Sci. 2008;39(1):75-82.
  • 4. Wendel S, Levi JE. Dengue em doadores de sangue. Necessitamos de triagem laboratorial no Brasil? Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2008;30(5):417-418.
  • 5. Ramos EF. Sobre a transmissão transfusional da febre Dengue. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2008;30(5):418-420.
  • 6. Mohammed H, Linnen M, Muñoz-Jordán JL et al Dengue vírus in blood donations, Puerto Rico, 2005. Transfusion. 2008;48(7):1348-54.
  • 7. Linnen JM, Vinelli E, Sabino EC et al Dengue viremia in blood donors from Honduras, Brazil, and Australia. Transfusion, 2008;48(7):1355-62.
  • 8. Bianco C. Dengue and Chikungunya viruses in blood donations: risks to the blood supply? Transfusion. 2008;48(7):1279-81.
  • Correspondência:

    Evaldo S.A. Araújo
    Instituto de Medicina Tropical II - LIM47
    Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar nº 500 Sala 12
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Dez 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008
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