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Desafios na qualidade de heparinas
Challenges in the quality of heparin
Newton Andréo Filho
Fármacêutico-bioquímico. Professor/Coordenador do Curso de Farmácia - Universidade de Sorocaba-SP
Correspondência Correspondência: Newton Andréo Filho Universidade de Sorocaba - Campus Cidade Universitária Rodovia Raposo Tavares, km 92,5 Bloco C, 4º andar (coordenação) 18023-000 - Sorocaba-SP - Brasil E-mail: andreonf@yahoo.com; newton.andreo@prof.uniso.br
A heparina é um heteropolissacarídeo, do tipo glicosaminoglicano, de estrutura complexa, composta por sequências alternadas de resíduos sulfatados de ácido urônico e α-D-glucosamina ligados por ligação α e β.1-3 Devido à complexidade de sua estrutura primária, possui peso molecular altamente variável (3.000 a 30.000 Daltons),1 o mesmo podendo ser dito sobre suas propriedades físico-químicas e atividade biológica.
A heparina é utilizada há mais de 50 anos na terapêutica como agente anticoagulante e antitrombótico. Está presente em uma grande variedade de tecidos animais, sendo obtida principalmente destas fontes. Entre os agentes terapêuticos de origem natural, é o segundo mais utilizado no mundo, sendo superado apenas pela insulina.2
Atualmente, grande parte da heparina utilizada é isolada da mucosa intestinal de suínos, e secundariamente do tecido pulmonar bovino. O processo de isolamento envolve hidrólise da mucosa seguida pela extração de heparina. O método envolve a hidrólise de uma mistura aquosa de mucosa com enzimas proteolíticas sob aquecimento, seguida pela adsorção dos poliânions sulfatados para uma resina de troca iônica, sendo estes posteriormente recuperados. Durante o isolamento, as cadeias glicosaminoglicanas tornam-se levemente degradadas, produzindo mistura heterogênea de fragmentos com diferentes massas moleculares e propriedades biológicas. Além dos materiais citados, outros são utilizados a fim de estabilizar o meio de reação, podendo, ao final do processo, figurar no produto final como contaminantes.3
Outro detalhe importante na produção de heparina diz respeito ao rendimento do processo e localização das unidades produtoras. O conteúdo de mucosa no meio aquoso é muito reduzido e, consequentemente, grandes quantidades de tecido necessitam ser processadas. Neste sentido, por razões econômicas, os lotes são processados em grandes tanques (50 m3 ou maiores), sendo mantidos sob temperatura e agitação vigorosa por mais de 24 horas. Ainda, a localização das empresas produtoras, normalmente distantes dos locais de criação ou abate dos animais, são outro fator complicador na produção, uma vez que a mucosa coletada deve ser transportada por grandes distâncias, por vezes em condições pouco adequadas, resultando em um material de baixa qualidade para o futuro processamento(US Patent 6232093 - Process for the production of heparin. Disponível em < http://www.patentstorm.us/patents/6232093/description.html>, acesso em: 14 jun 2009.)
Hoje, muito se avançou na produção de heparina através de processos que permitem a obtenção de frações de peso molecular melhor definido e com menor nível de contaminação. Atualmente são preparadas heparinas de baixo peso molecular por despolimerização controlada das cadeias convencionais de glicosaminoglicana, obtendo-se produtos com massas moleculares entre 4.000 e 6.000 Daltons, com manutenção da eficácia antitrombótica e com menos complicações hemorrágicas e possibilidade de redução da frequência de administração.
Entretanto, apesar dos avanços em sua produção, existem relatos sobre problemas na eficácia terapêutica das heparinas e seus efeitos adversos, entre eles a trombocitopenia induzida pela heparina (TIH) e reações imunogênicas, o que põe em dúvida a qualidade dos produtos existentes no mercado e a intercambialidade dos mesmos.2,3
Ficam claros, deste modo, os desafios para a extração e purificação desta biomolécula para sua utilização na elaboração de medicamentos que atendam aos padrões de qualidade atualmente exigidos, relativos tanto às características físico-químicas e de identidade e pureza do ativo, quanto à sua atividade biológica. Tais exigências suscitam questões junto aos profissionais que atuam em controle de qualidade, seja em companhias farmacêuticas ou instituições acadêmicas de ensino e pesquisa, relativas à utilização de metodologias analíticas mais sensíveis em identificar pequenas variações estruturais e de atividade, a fim de que se possa caracterizar de modo mais preciso a constituição global de uma determinada especialidade farmacêutica à base de heparina e sua exata potência para a atividade biológica pretendida.
Neste sentido, o artigo original "Avaliação biológica de potência e caracterização físico-química de heparinas não fracionadas",4 publicado neste número da Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, é contribuição significativa para as discussões sobre ensaios de qualidade para heparinas e seus derivados, uma vez que faz uso sistemático de diferentes metodologias para a caracterização de 13 diferentes amostras de heparina, sendo cinco matérias-primas e oito especialidades farmacêuticas, visando a harmonização dos resultados obtidos para avaliação da qualidade de produtos existentes no mercado no que tange à sua atividade biológica, além das características de identidade e pureza. O estudo aplica metodologias distintas para avaliação da potência das heparinas, sendo uma delas um método alternativo, mais comumente utilizado para avaliação de heparinas de baixo peso molecular.
Neste trabalho, os autores verificaram diferença significativa entre os métodos de análise de potência, tanto para matérias-primas quanto produtos acabados, demonstrando a necessidade de combinação dos resultados dos diferentes métodos de análise para determinação da potência das heparinas. Ainda, verificaram que o ensaio cromogênico para anti-fator IIa mostrou-se reprodutível e possível de correlacionar com os demais ensaios aplicados, demonstrando a possibilidade de ser utilizado como mais uma ferramenta para análise da qualidade do fármaco em questão.
A relevância deste trabalho fica demonstrada quando consideram-se os questionamentos a respeito da qualidade das heparinas disponíveis no mercado mundial, frente aos acontecimentos ao final de 2007 e início de 2008. Nesta época, a agência americana, Food and Drug Administration (FDA), divulgou que, ao final do ano de 2007, foram reportados cerca de 350 casos de efeitos adversos devido ao uso de heparina nos Estados Unidos.
Já no início de 2009, a United States Pharmacopeia, publicou um informativo relatando a ocorrência de duzentas mortes em todo o mundo em razão da adulteração de heparinas com condroitina supersulfatada, e indicando as providências tomadas, através da proposição de metodologias de controle de qualidade para avaliação de potência, identidade e pureza. Tais metodologias encontram-se disponíveis para consulta e, em parte, são as mesmas utilizadas no artigo de Dalmora e col.4 publicado neste periódico.
Em sintonia com o problema de adulteração por condroitina supersulfatada em heparinas, o referido artigo também relata ter encontrado amostras que possuíam este contaminante, capaz de gerar efeitos colaterais e falsear resultados nos ensaios convencionais para o controle da qualidade de heparina.
O problema recente de quebra de confiança, relativo à qualidade da heparina, traz à tona a necessidade de maior cuidado nos processos de extração e purificação de fármacos de origem natural, assim como na produção dos respectivos medicamentos. Não resta dúvida que, mesmo com o grande desenvolvimento tecnológico disponível nos dias de hoje, tais processos carecem de aprimoramento e constante vigilância, a fim de gerar produtos de qualidade. Da mesma forma, deve ser constante a busca por metodologias analíticas que permitam avaliar, com rigor, a qualidade dos mesmos. Cabe aos órgãos regulamentadores, exigir e fiscalizar que sejam implantadas melhorias nos processos produtivos e de controle, contribuindo assim para produção de medicamentos mais seguros e eficazes.
Recebido: 21/06/2009
Aceito: 30/06/2009
Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.
- 1. Vaccari SF, Júnior LB, Masiero SMK, Fronza M, Dalmora SL. Avaliação comparativa da atividade biológica de heparinas não-fracionadas em produtos farmacêuticos. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2003;25(2):103-10.
- 2. Melo EI, Pereira MS, Cunha RS, Sá MPL, Mourão PAS. Controle da qualidade das preparações de heparina disponíveis no Brasil: implicações na cirurgia cardiovascular. Rev Bras Cir Cardiovasc; 2008; 23(2):169-74.
- 3. Longhi F, Laks D, Kalil NGN. Trombocitopenia induzida por heparina. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2003;25(2):103-10.
- 4. Dalmora SL, Souto RB, Silva LM, Lana AD, Schutkoski R, Vaccari SF. Biological potency evaluation and physicochemical characterization of unfractionated heparins. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2009; 31(5):326-332.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2009 -
Data do Fascículo
2009