Resumos
Apresenta-se o conceito literatura da urgência para definir o tipo de escrita realizado sob estados de emergência, situações-limite: no caso específico de Lima Barreto, serve de base para a análise do Diário do hospício produzido pelo autor em 1919-20, quando esteve internado no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro. Demonstra-se como esta literatura nasceu contaminada pela loucura e pela rotina no manicômio, sendo simultaneamente uma escrita de si criada para defender o eu acuado ante a instituição e um documento de valor histórico capaz de denunciar, pelo viés do paciente, minúcias do dia-a-dia psiquiátrico normalmente ausentes da literatura oficial do hospício.
literatura; loucura; urgência
Le concept de littérature d'urgence est présenté pour définir un genre d'écriture qui se crée dans un état d'urgence, une situation-limite: dans le cas spécifique de Lima Barreto, nous l'avons utilisé pour l'analyse de Diário do hospício (Journal de l'asile d'aliénés), tenu par l'auteur en 1919-20, pendant une période d'enfermement à l'Hospital Nacional dos Alienados de Rio de Janeiro. On y montre comment cette littérature est née déjà contaminé par la folie et par la routine de l'hôpital psychiatrique; c'est une écriture de soi créée pour protéger un ego menacé face à l'institution, tout en étant un document historique capable de dénoncer, du point de vue de l'interné, des détails de la routine psychiatrique qui ne sont jamais présents dans la littérature officielle de l'asile.
littérature; folie; urgence
The concept of literature of urgency is introduced to define a type of writing produced in some kind of emergency, in situations that are really close to the edge: in Lima Barreto's specific case this is the basis to the analysis of Diário do hospício (Hospice's diary) written by the author in 1919-20, while he was a patient in Hospital Nacional dos Alienados, in Rio de Janeiro, Brazil. It demonstrates how this literature has appeared already contaminated by insanity and by the hospital's routine, constituting simultaneously a self-writing (l'écriture de soi, Foucault's concept) created to defend a trapped ego dealing with the institution and a document of historical value that accuses, from de the patient's point of view, details of the psychiatric routine normally absent from the hospice's official literature.
literature; madness; urgency
A loucura e a urgência da escrita
Luciana Hidalgo* * Luciana Hidalgo é doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atualmente com Bolsa de Pós-Doutorado da FAPERJ, na mesma universidade. É autora do livro Arthur Bispo do Rosário - O senhor do labirinto (Rocco, 1996), agraciado com o prêmio Jabuti em 1997. Trabalhou como jornalista no Prosa & Verso, do jornal O Globo, acumulando artigos em diversas publicações. Foi editora da revista Gesto, publicação de ensaios sobre o tema corpo nas áreas de literatura, filosofia etc.
RESUMO
Apresenta-se o conceito literatura da urgência para definir o tipo de escrita realizado sob estados de emergência, situações-limite: no caso específico de Lima Barreto, serve de base para a análise do Diário do hospício produzido pelo autor em 1919-20, quando esteve internado no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro. Demonstra-se como esta literatura nasceu contaminada pela loucura e pela rotina no manicômio, sendo simultaneamente uma escrita de si criada para defender o eu acuado ante a instituição e um documento de valor histórico capaz de denunciar, pelo viés do paciente, minúcias do dia-a-dia psiquiátrico normalmente ausentes da literatura oficial do hospício.
Palavras-chave: literatura; loucura; urgência.
ABSTRACT
The concept of literature of urgency is introduced to define a type of writing produced in some kind of emergency, in situations that are really close to the edge: in Lima Barreto's specific case this is the basis to the analysis of Diário do hospício (Hospice's diary) written by the author in 1919-20, while he was a patient in Hospital Nacional dos Alienados, in Rio de Janeiro, Brazil. It demonstrates how this literature has appeared already contaminated by insanity and by the hospital's routine, constituting simultaneously a self-writing (l'écriture de soi, Foucault's concept) created to defend a trapped ego dealing with the institution and a document of historical value that accuses, from de the patient's point of view, details of the psychiatric routine normally absent from the hospice's official literature.
Key words: literature; madness; urgency.
RÉSUMÉ
Le concept de littérature d'urgence est présenté pour définir un genre d'écriture qui se crée dans un état d'urgence, une situation-limite: dans le cas spécifique de Lima Barreto, nous l'avons utilisé pour l'analyse de Diário do hospício (Journal de l'asile d'aliénés), tenu par l'auteur en 1919-20, pendant une période d'enfermement à l'Hospital Nacional dos Alienados de Rio de Janeiro. On y montre comment cette littérature est née déjà contaminé par la folie et par la routine de l'hôpital psychiatrique; c'est une écriture de soi créée pour protéger un ego menacé face à l'institution, tout en étant un document historique capable de dénoncer, du point de vue de l'interné, des détails de la routine psychiatrique qui ne sont jamais présents dans la littérature officielle de l'asile.
Mots-clés: littérature; folie; urgence.
Diário do hospício, de Lima Barreto, constitui uma narrativa-limite, escrita em decorrência de uma situação-limite. Trata-se de um relato íntimo pontuado por impressões, confissões e inconfidências, escrito pelo autor durante o período da sua segunda internação no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, de 25 de dezembro de 1919 a 2 de fevereiro de 1920. Ao compor um diário com descrições minuciosas da rotina psiquiátrica e com críticas às relações de poder no manicômio, Lima produziu um raro documento da história da psiquiatria no Brasil. Por constituir um utilitário de inestimável valor na estratégia de sobrevivência à instituição, esta escrita do extremo, anti-institucional por excelência, inscreve-se na idéia de literatura da urgência - esta que se formula como uma escrita detonada pela emergência da auto-expressão, de um eu extraviado no limite vida-morte, empenhado em lidar literariamente com a situação emergencial.
Lima Barreto deu ainda outra função para Diário do hospício: o de esboço para o romance autobiográfico que escreveria posteriormente, pós-trauma, pós-internação - O cemitério dos vivos. Ao dar ao hospital psiquiátrico o epíteto de cemitério dos vivos, concentrou no termo parte da história da loucura, já apontando para a proximidade loucura-morte que Michel Foucault evidenciaria décadas mais tarde. Em História da loucura na Idade Clássica, o filósofo mostrou como o tema da morte, que imperou no mundo ocidental até a segunda metade do século XV, foi substituído, nos últimos anos desse mesmo século, pela loucura, no lugar que era do vazio da existência: "(...) agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em ensinar aos homens que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em que a loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte."*1 *1 (FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1995: 16. )
Os loucos assumiram o lugar dos leprosos na exclusão social, exatamente quando a lepra começou a sumir do universo medieval e do seu imaginário. Na mesma margem destinada aos loucos, enfileiraram-se, nos séculos subseqüentes, portadores de doenças venéreas, pobres, vagabundos e presidiários - hordas de mortos-vivos, cidadãos incapazes de gerir a própria sobrevivência. A associação era clara: a loucura denunciava a morte em vida, o fim, considerado "o advento de uma noite na qual mergulha a velha razão do mundo".*2 *2 (Ibidem: 22.) Nos séculos XVII e XVIII, a Europa deu início à prática da internação como forma de isolamento dos a-sociais. A medicina apropriou-se da insanidade a partir do século XIX, época em que Pinel e Esquirol consolidaram a psiquiatria para tratar alienados.
Ao ser internado nas primeiras duas décadas do século XX, sob o diagnóstico de alcoolismo, Lima Barreto recebeu essa penosa herança, estilhaçada em rótulos. Afinal, o escritor era o ponto de interseção dos clichês do hospício: pobre, mulato, bêbado, a-social. Agravava a sua condição a ascendência negra num período conturbado da psiquiatria no país, quando germinavam entre especialistas brasileiros as noções de eugenia importadas da intelectualidade européia do início do século XX - o que culminaria com a fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental, para a qual os não-brancos seriam dotados de tendências psíquicas supostamente lesivas a uma idealizada raça brasileira.
Nesse contexto, pode-se pensar que o autor escreveu Diário do hospício para não enlouquecer, ou simplesmente optou por "escrever para não morrer",*3 *3 (BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987: 90. ) como enunciou Maurice Blanchot. O diário exacerba um ceticismo que muitas vezes beirou o niilismo e flertou com a morte. Primeiramente, o escritor confessou: "Vejo a vida torva e sem saída".*4 *4 (BARRETO, Lima. Diário do hospício / O cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1993: 50. ) Posteriormente, afirmou: "Suicidou-se no pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia tão belo como o de hoje."*5 *5 (Ibidem: 51.)
A experiência no hospício levou Lima ao espaço dialético em que vida e morte se fundem. O diário reflete a explanação de defesa de um réu isolado diante do tribunal social, provavelmente em busca de uma auto-absolvição. Na condição de interno, o escritor não era ouvido em suas indagações existenciais. Neste grande vazio, a proximidade de uma loucura equivalente à morte desfiou a memória e configurou um discurso de si que tem explicação no seguinte enunciado de Blanchot:
[...] não se pode escrever se não se permanece senhor de si perante a morte, se não se estabeleceram com ela relações de soberania. [...] Por que a morte? Porque ela é o extremo. Quem dispõe dela, dispõe extremamente de si, está ligado a tudo o que pode, é integralmente poder.*6 *6 (BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987: 87. )
Sob este prisma, o dramaturgo, ator e poeta francês Antonin Artaud viveu igualmente o extremo da proximidade com a morte, experimentando um estado de soberania diante dela - conseqüentemente, diante de si - ao dispor da escrita como artifício de resistência durante os nove anos de internação em hospícios na França. Ele escreveu sete volumes de diário durante a internação em Rodez. Diagnosticado como esquizofrênico, alternando fases lúcidas e outras marcadas por um contato quase nulo com a realidade, Artaud distancia-se bastante de Lima Barreto no prognóstico médico, já que o autor brasileiro nunca apresentou quadro psiquiátrico, apenas alcoolismo num grau muito avançado, o que lhe provocava alucinações. A uni-los, a literatura da urgência, uma tentativa de resgate da identidade que se consolidou como inscrição capaz de ir além das técnicas de controle corporal no hospital psiquiátrico. No caso específico dos esquizofrênicos, funcionou como ferramenta útil na tentativa de compreensão de si, na recuperação de um eu radicalmente partido, de um pensamento cindido - para usar expressão próxima à etimologia da esquizofrenia (do grego, alma fendida).
A literatura da urgência estrutura-se numa espécie de desdobramento da escrita de si, realizada sob estado de emergência. Michel Foucault formulou o conceito escrita de si no contexto de uma série de estudos sobre as artes de si nas civilizações grega e romana. Partindo de uma démarche filosófica que investigava as relações entre subjetividade e verdade, o autor pesquisou a relevância do cuidado de si na cultura greco-romana, mostrando como esta questão atravessou toda a reflexão moral, desde os primeiros diálogos platônicos até grandes textos do estoicismo tardio. A ética deste cuidado consistia em objetivos definidos: retirar-se, viver consigo mesmo, bastar-se, fruir consigo. Entre os gregos, sobretudo, o indivíduo deveria ocupar-se de si antes de alcançar efetivamente o exercício da liberdade. O cuidado em questão constituía uma forma de auto-conhecimento, questão essencial na Antigüidade.
A escrita de si surgiu como uma das formas de exercícios de si sobre si, uma prática ascética que transcendia a idéia de renúncia moral e compreendia a tentativa de se elaborar, se transformar e alcançar um certo modo de ser. Nesse sentido, Sêneca aconselhava a conjugação leitura-escrita, enquanto Epicteto associava a escrita pessoal à meditação. Plutarco, por sua vez, detectou uma função éthopoiéthique: a escrita como uma espécie de operadora da transformação da verdade em éthos. Estes tipos de escrita constam de documentos dos séculos I e II estudados por Foucault e possuem duas finalidades distintas, sendo classificados como hypomnêmata e correspondência. Enfatizam-se aqui os hypomnêmata: termo utilizado para designar livros contábeis, registros e cadernos pessoais que serviam de ajuda-memória, ou guias de conduta na cultura greco-romana. Continham citações, fragmentos de obras, exemplos e ações testemunhados pelo autor, bem como pensamentos, argumentos e meios de se lutar contra um defeito ou uma adversidade.
Diário do hospício possuiu multifunções para Lima Barreto, entre as quais a de escrita de si inserida no exercício do cuidado de si. O autor conjugou elementos dispersos e fragmentados que remetiam invariavelmente a ele mesmo: descrições do hospício, com suas hierarquias e rotinas - e a sua inserção nesse contexto; reclamações quanto à inadaptação ao cotidiano do hospício; revolta pela internação à sua revelia; auto-análise: fracassos, problemas familiares; críticas à sociedade como sistema (hipocrisia, sistema de pistolões, desigualdades, discriminações), que guardam coerência em relação às que constam das crônicas e romances de sua autoria; auto-confissões; desabafos existenciais; teorias sobre a loucura; teorias sobre a literatura; citações de autores diletos; anotações de informações tão simples como o número de telefone de um amigo editor etc. Curiosamente Lima cita Plutarco inúmeras vezes no diário das mais variadas formas, sendo que numa das notas esparsas cumpre exatamente a função dos hypomnêmata: capta o já-dito, ao transcrever uma frase extraída de uma obra lida: "Dizia Catão, segundo Plutarco, que os sábios tiram mais ensinamentos dos loucos que estes deles, porque os sábios evitam os erros nos quais caem os loucos, enquanto estes últimos não imitam os bons exemplos daqueles. V(ida) de Plutarco, página 178, 2v."*7 *7 (BARRETO, Lima. Diário do hospício / O cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1993: 80. )
Lima inicia Diário do hospício sob efeito do trauma da internação, sendo as suas anotações um dos meios com que lidou com o choque. O primeiro parágrafo do diário é um esforço de auto-convencimento da internação: em 4 de janeiro de 1920 (a data está inscrita na página, indicando que há uma intenção inicial de sistematização do diário em datas, posteriormente abandonada), Lima escreve que se encontra internado no hospício desde 25 de dezembro de 1919, tendo ali chegado pelas mãos da polícia. Em seguida, dá o seu depoimento sobre o primeiro golpe de desconstrução de si pela instituição:
Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. [...] Deram-me uma caneca de mate e, logo em seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de capim com uma manta pobre, muito conhecida de toda a nossa pobreza e miséria.*8 *8 (Ibidem: 23.)
O trecho conjuga descrição realista e denúncia da homogeneização do vestuário (o uniforme do manicômio), que teria como objetivo apagar qualquer marca de subjetividade. Uma vez enquadrado na lida do asilo, devidamente uniformizado (apesar de faltarem-lhe calçados), Lima - àquela altura autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá - foi provisoriamente destituído da identidade pregressa. De escritor passou a paciente; de jornalista a alcoólatra. Apesar da perda do status de intelectual, manteve a escrita como exercício, como reação ao processo de institucionalização do sujeito. Emerge daí uma hipótese: o diário seria, exclusivamente, uma decorrência da internação, daí ser inevitavelmente infectado pela rotina do hospício, reunindo fragmentos de um eu desapropriado, em contato diário com a fragmentação de diversos eus rendidos a delírios, cada qual imerso em sua insanidade privada.
O diário pode ser lido como o esforço de reconstrução de fragmentos do eu, organização de delírios (alcoólicos) e pensamentos, entre outras finalidades. Um dos pontos que se pretende ressaltar é a multifuncionalidade de Diário do hospício, isto é, desta escrita que a priori se diferencia no estudo da literatura por sua vocação, justamente, institucional (por ser produzida dentro de uma instituição, em situação de cárcere/internação), mas que se traduz dialeticamente como antídoto à instituição. Se Plutarco acreditou na escrita como transformadora da verdade em éthos, Lima utilizou o diário como medicamento, o meio pelo qual seria possível remediar-se da rotina no hospital psiquiátrico e alcançar um modo de ser privado, solitário, não-coletivo. Aos olhos da psiquiatria brasileira, contudo, esta escrita representaria mais uma espécie de placebo.
O escritor reuniu os mais variados tipos de narrativas, atribuindo-lhes funções diversificadas eficientes: confissão de si e evocação do não-dito em busca de uma redenção, senão religiosa, social; registros de leituras, referências a autores, bem como pensamentos, argumentos e meios de se lidar com a adversidade (a internação no hospício). Diário do hospício possuiu ainda uma outra função, diferente dos hypomnêmata: a do diário íntimo, tal como o gênero surgiu no século XIX, afirmando-se como corpus de confissões, intimidades; um espaço para expressão e afirmação do eu, que transforma o autor em personagem, alternando auto-mitificação e auto-depreciação.
O diário deixa transparecer uma das preocupações primordiais do escritor: a compreensão do motivo da internação e da sua condição de vida ante a hierarquia do poder no manicômio. Para tanto, o autor descreve o Hospital Nacional dos Alienados, critica os médicos, busca pistas. O eu está no epicentro de toda a descrição, e o relato do ambiente psiquiátrico a princípio não possui outra finalidade a não ser a contextualização da sua desgraça em meio ao cenário da loucura.
Voltei ao pátio. Que cousa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. [...] Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quantos anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei por que não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. [...] Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações. Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do Hospício. Creio que ele não gostou.*9 *9 (Ibidem: 24-25.)
Percebe-se a sensação de estranhamento do escritor num ambiente, paradoxalmente, muito familiar na infância e adolescência. O pai de Lima, João Henriques de Lima Barreto, ex-tipógrafo, trabalhou como almoxarife e administrador das Colônias de Alienados da Ilha do Governador durante onze anos, habitando na própria área do hospício, conforme o antigo sistema de colônia. Neste período, Lima freqüentou o manicômio, na condição de filho de um administrador, que corresponde a um cargo de razoável posição na hierarquia da instituição. Órfão de mãe desde os seis anos, o autor tinha apenas dez quando se viu obrigado a passar os finais de semana em casa, isto é, no hospício, após cumprir semana de estudos num colégio particular, às custas do padrinho, o Visconde de Ouro Preto. A habitação no domínio da loucura só foi interrompida quando o pai enlouqueceu, sendo precocemente aposentado, levando a família a morar no Engenho Novo. Ou seja, a loucura se avizinhou da casa durante quase três quartos da vida do escritor.
Este parêntese biográfico serve de suporte à compreensão da conflituosa relação de familiaridade e estranhamento demonstrada no diário. O convívio com loucos era-lhe próximo, mas a loucura permanecia um mistério, sobretudo devido ao exemplo paterno: o pai passou de administrador do hospício a paciente. Percebe-se a grande dificuldade de Lima situar-se na hierarquia do Hospital Nacional dos Alienados, já que, na pirâmide do poder das colônias da Ilha do Governador, detinha condição privilegiada, como se imunizado contra a doença mental e a indigência da instituição. A posição de filho de um administrador rendia-lhe, de início, privilégio na prática e segurança (psicológica) na teoria. Quando o pai sofreu surto psicótico sem retorno, esta autoconfiança se abalou, provocando uma sensação de insegurança devidamente registrada no diário.
Pode-se pensar em Diário do hospício como saída de emergência à abstinência, substituto da bebida - uma espécie de amortecimento dos conflitos e sintomas que poderiam conduzi-lo para fora da posição de refém daquela situação. De qualquer forma, destaca-se uma insatisfação consigo bastante insistente em diários íntimos. Nota-se que as suas questões, das ontológicas às mundanas, acabavam por remeter a si mesmo, a uma auto-avaliação. Ao citar a loucura do pai e questionar o impacto moral deste acontecimento, Lima centrava-se no entendimento da sua loucura, da fragilidade que o conduzira ao alcoolismo, levando-o ao hospício. Ao narrar o encontro com o psiquiatra Henrique Roxo, grande autoridade do asilo, o autor posicionou-se com poder de crítica excepcional para um paciente recém-chegado. Mostrou que guardava a moral, a lucidez, a ironia. No entanto, o primeiro encontro com um psiquiatra no domínio manicomial renderia conseqüência desastrosa:
Chamou-me o bragantino e levou-me pelos corredores e pátios até ao Hospício propriamente. Aí é que percebi que ficava e onde, na secção, na de indigentes, aquela em que a imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é formidável. O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é de uma pobreza sem-par.*10 *10 (Ibidem: 25.)
Lima foi encaminhado à seção de indigentes, a casta mais baixa e humilhante da instituição, destinada aos pobres, sem recursos. Diante desta manobra da psiquiatria, o autor confirmou o seu complexo social, tema de outros escritos. A descrição reforça a classificação de a-social, imperativa na história da loucura. Lima Barreto, jornalista, escritor, intelectual, funcionário público, era tragado pelas engrenagens do poder na instituição, ou do micropoder, como conceituou Foucault e como explica Roberto Machado na introdução de Microfísica do poder:
[...] o poder intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos - seu corpo - e se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micropoder ou subpoder; há procedimentos técnicos de poder que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo - gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos.*11 *11 (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. MACHADO, Roberto (org.). Rio de Janeiro: Graal, 1988: XII. )
Diário do hospício representou a reação ao micropoder, ao controle, à padronização de gestos e, sobretudo, de discursos, ou seja, a situações normalizadoras obviamente agravadas no domínio do hospício. Lima criou um espaço para o discurso de si em uma situação de vida regulada por horários, hábitos coletivos, pessoas não escolhidas por ele para o convívio, sob a repressão de uma medicina que muitas vezes abusou da crença em sua onisciência e onipotência. Construiu uma narrativa em meio a uma sociedade onde a disciplina era o grande instrumento do poder, composta, segundo Foucault, por "métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade".*12 *12 (Ibidem: XVII.)
Lima quebrou o círculo docilidade-utilidade, impondo a sua subjetividade em uma instituição reguladora e de dominação de loucos, utilizando para este objetivo a escrita de si, porém com um dispositivo de emergência que, em última instância, remetia à literatura - a literatura da urgência. Uma breve incursão etimológica explica a opção pelo termo: derivado do latim urgentia, alude a uma literatura que se faz necessária, em caráter emergencial, sendo criada exclusivamente para fazer frente a uma situação determinada. O termo urgência remete imediatamente ao sinônimo emergência, que possui ampla significação: situação crítica; acontecimento perigoso ou fortuito; incidente. Na área médica, a palavra ganha acepção de tonalidade mais grave: situação mórbida inesperada, e que requer tratamento imediato.
Diário do hospício insere-se na idéia de literatura da urgência sob diversos desses aspectos. Constitui-se de escritos produzidos durante a internação de Lima no manicômio, aí embutida toda a carga de delito, preconceito e aprisionamento. Desta experiência traumática não se pode eximir o caráter de imprevisto, de incidente na trajetória de um alcoólatra sem diagnóstico psiquiátrico, necessitado, porém, de tratamento médico imediato para os delírios provocados pelo alcoolismo e para a degeneração física decorrente do vício.
Na época, o ingresso do escritor no hospício com o aval da família, que o encarcerou sob a égide do Estado sem possibilidade de recurso e integralmente dependente da psiquiatria para diagnóstico, tratamento e alta, configurou uma situação-limite que o levou ao extremo da condição emergencial: a vivência no círculo vicioso vida-loucura-morte, sendo a escrita um artifício de função dialética. A literatura da urgência era uma conseqüência imediata da situação-limite vivida pelo autor. Por se tratar de uma experiência radical imposta por um poder externo, esta escrita continha um tom claramente reativo, endereçada ao complô de familiares e poderes institucionais autorizados a encarcerá-lo. Desta forma, consistiu de uma tentativa de auto-compreensão, diante de si e de seus detratores.
Os manuscritos realizavam uma reconstituição de si que, para ser completa, incluiu, de forma mais ampla, a reflexão sobre um trecho tortuoso da história da loucura: a prática da internação de indivíduos que acolhiam em si variados rótulos não-encaixáveis no mito da felicidade social (segundo Foucault). Esta escrita do extremo funcionava como forma de transcendência de um cotidiano que massacraria o autor caso lhe fosse negado o direito à experiência literária.
A princípio pode-se pensar que grandes escritores da história da literatura escreveram por urgência, no mínimo por angústia, um dos norteadores de boa parte da história das artes. A literatura da urgência, no entanto, vai além nesse preceito, ao delimitar o momento exato da escrita como emergência, reação à situação-limite, diferentemente do escritor que escreve no dia-a-dia comum, sem limitações que o impeçam de se libertar de uma situação opressora. Desta forma, a angústia e outras emoções/idéias que geram a literatura em condições normais de vida pairam como nota de fundo, onipresentes, permanentes, inspirando um questionamento da existência como um todo.
A literatura da urgência, por outro lado, refere-se unicamente ao estado que atira o sujeito ao risco, à fronteira limítrofe com a morte - seja por meio da loucura, de uma doença terminal, de uma situação de cárcere ou de outros tipos de experiências radicais determinantes de uma específica produção literária. Não por acaso a sentença-chave do autor foi escrita no diário do manicômio: "Ah! A Literatura, ou me mata ou me dá o que peço dela".*13 *13 (BARRETO, Lima. Diário do hospício / O cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1993: 24.)
A literatura ou a morte: qual a saída? Provavelmente, esta escrita que se estabeleceu como saída de emergência, antídoto ímpar. Uma escrita que encontrou o seu lugar entre os dois extremos, a literatura (vida) e a morte, servindo ao autor como suporte para o desabafo, a expiação da angústia, até que criasse novamente condição para o fazer literário regular, sem as marcações incidentais da máquina psiquiátrica na condução diária do corpo.
Eram observações-reflexos da realidade abrupta, escritos em jorros e fragmentos, como se pode apreender da leitura dos manuscritos: textos escritos a lápis em papéis improvisados (alguns reaproveitados, com textos aleatórios no verso) com caligrafia de difícil compreensão, compondo uma apresentação estética que reforça a emergência de Diário do hospício - o que não impede que esta literatura da urgência apresente qualidade em diversos trechos, afinal, o paciente que escrevia era também e principalmente autor:
Dia de São Sebastião. Um dia feio, nevoento. Olho a Baía de Botafogo, cheio de tristeza. Não acho tão bela como sempre achei. Os longes dos Órgãos não se vêem; estão mergulhados em névoa. As montanhas de Niterói estão sem o cobalto de sempre; e as manchas dos cortes e chanfraduras nelas aparecem como chagas. O casario está mergulhado, confuso, não se desenha bem no horizonte. Tudo é triste. O céu muito baixo, cheio de fuligem, fumaça. O Pão de Açúcar está emoldurado de nuvens brancas, parecem abaixar do cume. (...) Um grande transatlântico sai. Vai vagaroso, vai para o mar largo, que se estende pelas cinco partes do mundo, beija-lhes e morde-lhes a praia. Corre perigo, mas está solto, entre dous infinitos; como diz o poeta: o mar e o céu.*14 *14 (Ibidem: 59-60.)
Em Diário do hospício, o eu que embutia provisoriamente a função de interno e de escritor dava o norte, era onipresente, ampliando questões pessoais para compor uma observação do coletivo, que resultaria num documento histórico de grande importância para a compreensão do hoje ultrapassado sistema manicomial. A descrição realista do dia-a-dia dos pacientes, funcionários e médicos numa comunidade artificialmente construída em torno do tratamento da loucura constituiu, afinal, um exemplar de literatura não-oficial da psiquiatria, contendo informações e sutilezas freqüentemente ausentes dos prontuários médicos. Era a medicina, em toda a sua autoridade e com o peso cientificista da época, vista e criticada pelo olhar do interno; um interno desapropriado da cidadania, em posição desprivilegiada, com o corpo compulsoriamente detido e inserido no processo homogeneizador de quereres e poderes.
Diário do hospício era, portanto, a inversão total da idéia do panóptico. Basta lembrar que este complexo mecanismo de poder foi inventado pelo jurista inglês Jeremy Bentham no final do século XVIII justamente para centralizar o olhar e o controle sobre os corpos em instituições. Os grandes projetos de reorganização das prisões européias no século XIX baseavam-se nesse modelo que, devido à sua arquitetura, permitia o controle total dos internos, fossem loucos, doentes, condenados, operários ou estudantes. Devido a um efeito de luz e contraluz, era possível vigiar não só os corpos concretos, mas suas silhuetas.
Para Foucault, realizar a história dos espaços desvelaria a história dos poderes, já que o controle encontrava-se inscrito na arquitetura. Por isto, ele resgatou a idéia-base da invenção de Bentham para concluir: estar na mira do olhar de um inspetor significava perder a capacidade de fazer o mal e quase perder o pensamento de querê-lo, ou seja, não poder e não querer. Embora a arquitetura do prédio do Hospital Nacional dos Alienados não se ajustasse ao modelo panóptico de vigilância, nota-se, pelos estatutos de sua inauguração, o mesmo tipo de preocupação com a vigília permanente dos ocupantes, de seus corpos. Lima Barreto pôde e quis inverter o processo perverso do controle no hospício, ao escapar da vigilância para escrever o que bem entendesse no espaço branco do papel - este espaço infinito, autônomo, intocado pela psiquiatria. Não há indício de que os manuscritos fossem lidos por funcionários, tampouco pelo alienista que, a certa altura, começou a ceder o próprio gabinete para Lima escrever.
O autor realizou um importante inventário do Hospital Nacional dos Alienados em Diário do hospício, complementado em O cemitério dos vivos. Trata-se do parecer do dominado sobre o dominador - um diagnóstico às avessas. Talvez a característica mais particular dessa escrita do hospício seja, justamente, a lucidez, já que 24 horas depois da internação regredia o efeito das alucinações alcoólicas. A acuidade e a boa orientação no domínio do asilo certamente contribuíram para a clareza, objetividade e qualidade estética de vários trechos do relato. Há descrições muito bem delineadas, por vezes bem-humoradas, sobre pacientes: "Acompanhava-me uma espécie de interno, que tinha uma cara bovina, apesar do pince-nez."*15 *15 (Ibidem: 25.) Ou: "Um maluco, vendo-me passar com um livro debaixo do braço, quando ia para o refeitório, disse: - Isto aqui está virando colégio."*16 *16 (Ibidem: 87.)
Em diversas observações sobre o manicômio, o tom era sarcástico, o que enriquecia a crônica. Mais uma vez, o pessoal ganhava ares universais. Lima era um observador atuante, não-passivo, da história. Do ponto de vista do paciente pobre e mulato inicialmente admitido na seção de indigentes, posteriormente transferido para a seção Calmeil, onde ficava a biblioteca do hospício, Lima denunciava a injustiça e revelava como a hierarquia social externa havia sido transposta para a instituição, dotada de um sistema de classes bastante rígido, dividido entre gratuitos (indigentes) e não-indigentes (pensionistas). A ascensão do autor no sistema hierárquico-manicomial só foi possibilitada pela amizade com funcionários amigos do pai. Nem pelos méritos literários tampouco por suas posses obteria sucesso na empreitada.
Em Diário do hospício o eu era o ponto de partida para uma reflexão sobre a loucura realizada de dentro, pelo olhar do paciente:
Todas essas explicações da origem da loucura me parecem absolutamente pueris. Todo o problema de origem é sempre insolúvel; mas não queria já que determinassem a origem, sem explicação; mas que tratassem e curassem as mais simples formas. Até hoje tudo tem sido em vão, tudo tem sido experimentado; e os doutores mundanos ainda gritam nas salas diante das moças embasbacadas, mostrando os colos e os brilhantes, que a ciência tudo pode.*17 *17 (Ibidem: 39-40.)
O trecho do diário revela o caráter inédito da experiência do autor no hospital psiquiátrico: o eu deixava a queixa, o desabafo, a escrita como defesa do meio delirante, para ir além. A busca da compreensão da loucura, se já era (é) tarefa árdua para a psiquiatria, consistiu objetivo hercúleo para um interno diluído na massa de ritos manicomiais. Lima, no entanto, levou-o adiante, numa tentativa de entendimento racional. Entre dezenas de loucos, procurava uma característica comum a todos. Porém, dada a diversidade de manifestações, concluía tratar-se de casos individuais, não-rotuláveis em dogmas cientificistas. Ao contrário da psiquiatria, Lima, ao conviver com pacientes de igual para igual, enxergava tão-somente o indivíduo, as características pessoais. No diário, anotou: "A impossibilidade em que se está de fazer uma generalização sobre qualquer aspecto da loucura. As classificações, como todas as classificações, são precárias [...]."*18 *18 (Ibidem: 92.)
Lima fez o anti-elogio da loucura. Atingiu a carne: a dor, o sofrimento, a impossibilidade de qualquer iniciativa de romantizar a loucura, partindo da forma como se apresentava ao seu olhar, dia após dia, caso após caso. O a-social alardeou: o sistema psiquiátrico era medieval, baseado no "seqüestro", na desapropriação do sujeito pelo Estado. A loucura continuaria, para ele, um "mistério", algo "incompreensível", um poder maior do que a própria morte. Por esta razão, provavelmente, na ânsia de compreendê-la, romances como Recordações do escrivão Isaías Caminha e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá contêm trechos que tocam no assunto. O fato de a loucura, exposta das mais variadas formas, cruzar a obra de Lima desde o começo supõe uma pré-condição para a literatura da urgência - espasmos desta surgiram antes mesmo da internação, por meio de informações, atonias que já desvelavam uma melancolia excessiva em certos personagens e indicavam uma preocupação com o tema. Esta urgência alcança o ápice, obviamente, na composição do personagem Policarpo Quaresma, o louco quixotesco que fez a aproximação loucura-morte esgarçar o limite ao protagonizar o triste fim. Lima perpetuaria essa tendência em O cemitério dos vivos, ao inventar um personagem fictício, Vicente Mascarenhas, para contar a sua própria experiência no manicômio, unindo elementos autobiográficos e ficcionais.
Muito antes de Diário do hospício, Lima Barreto sobrecarregou a sua obra de um eu pleno de urgências, demasiado transparente para críticos mais ferrenhos que, sobretudo em sua época, censuraram o excesso de vida em sua arte. Isto quer dizer que sua existência refletiu-se na experiência literária de forma radical, o que pode ser flagrado, de forma mais ou menos acentuada, dependendo do protagonista, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e O cemitério dos vivos. Os quatro romances focam intelectuais que, cada qual em sua individualidade, eram freqüentemente autodidatas, dedicados a uma crítica contundente do país e do mundo, realizada com explícita autonomia. Mal assimilados pelo sistema vigente das letras, acabavam condenados ao anonimato, em maior ou menor grau. Nenhum deles, bem como o seu autor, encaixava-se no papel do intelectual convencional. Pelo contrário, alimentavam uma utópica forma de pensamento, à margem das convenções literárias. Em comum, trazem variados dados autobiográficos do escritor.
A literatura da urgência estabelecida por Lima no domínio da loucura nada mais foi do que a expressão da urgência de si, de um eu que sempre extrapolou padrões: intelectuais, sociais e literários. Ao ignorar fronteiras entre verdade e ficção, o autor trafegou entre os gêneros sem cerimônia nem respeito a cânones, como se a emergência da sua condição tudo consentisse. Esta literatura não camuflava o peso das questões pessoais; pelo contrário, provocava uma repetição de si que tocava traumas, individuais e/ou nacionais, provavelmente na tentativa desesperada, idealista, de resolvê-los - o que, para parte da crítica, soou como artifício trôpego, mal-acabado.
Daí a literatura da urgência revelar-se invariavelmente auto-referente e repetitiva: no centro do desconforto no hospício, Lima recorria ao próprio, enfrentava-o - em suas idiossincrasias - e se deixava imbuir do entorno para, num primeiro momento, pseudomimetizá-lo; em seguida, criticá-lo, desfazê-lo, delatá-lo. Dedicado a um intricado - e diário - equilíbrio entre a fantasia e a concretude cotidiana, o alto ideal literário e a sociedade brasileira da Belle Époque, o escritor usou parte da sua obra literária para a redenção de si. Obteve sucesso ao escandalizar a sociedade/intelectualidade de sua época com a recusa a vivê-las em suas convenções. Contrapôs a sua utopia, o sonho de um mundo mais justo e harmônico, sem desigualdades sócio-raciais, ao incompatível mundo em que viveu. Esta utopia podia não ser, em si, vestígio de loucura, se mantida em sigilo; o idealismo, desde que clandestino, pessoal, não feria a sociedade (vide Policarpo Quaresma). No entanto, o a-social mal-comportado, pobre, negro, bêbado, íntimo da loucura, não se calaria, explicitá-lo-ia, faria os mundos colidirem.
Lima Barreto travou o grande combate: dizer o indizível, o que a princípio não se poderia dizer, dado o caráter socialmente inaceitável do seu conteúdo. Por isso a literatura da urgência é, sobretudo, o espaço da expressão do indizível - eis, justamente, a relevância deste tipo de escrita no amplo estudo da literatura. Assim, compreende-se melhor o desespero do autor ao rasgar o suporte da literatura ficcional, danificar a sua moldura (a ilusão da ficção, a interdição da união vida-obra), numa procura desesperada por novas formas de expressão. A literatura da urgência, dada a situação crítica, não comporta a encenação pressuposta pelo jogo ficcional. Por isto nasce como literatura conspurcada, respingada pelo exagero, pela verdade - a (ilusão da) verdade da loucura?
Recebido em 01/06/2008
Aprovado em 30/06/2008
- *1 (FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1995: 16.
- *3 (BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987: 90.
- *4 (BARRETO, Lima. Diário do hospício / O cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1993: 50.
- *6 (BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987: 87.
- *7 (BARRETO, Lima. Diário do hospício / O cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1993: 80.
- *11 (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. MACHADO, Roberto (org.). Rio de Janeiro: Graal, 1988: XII.
- *13 (BARRETO, Lima. Diário do hospício / O cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1993: 24.)
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Fev 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
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Aceito
30 Jun 2008 -
Recebido
01 Jun 2008