Open-access “Zero nada, zero”: uns índios Guimarães Rosa, sua fala

“Zero nada, zero”: Indians Guimarães Rosa, his speech

RESUMO

Este artigo aborda a crônica “Uns índios (sua fala)”, publicada por Guimarães Rosa no jornal A manhã em 1954. Nessa crônica, o escritor relata o seu encontro, no estado de Mato Grosso, com índios Terenos - sua expedição a um “arranchamento de ‘dissidentes’” à procura de alguns segredos da surpreendente língua tariana. Como a crônica permite inferir, o fato de essa fala parecer ininteligível é um efeito da intervenção daquele que pretende catalogá-la ou capturá-la num dispositivo de escritura, e as identidades “índio” e “branco” são efeitos produzidos escrituralmente, assim como as distinções entre “civilização” e “barbárie”. Este artigo tentará evidenciar como essa crônica recolhe alguns dos aspectos que exigem reformular o famigerado caráter documental do corpus Guimarães Rosa, assim como modificar alguns dos pressupostos dos nossos instrumentos de leitura, geralmente cativos de um imperativo representacional.

Palavras-chave Guimarães Rosa; etnografia; documento; literatura latino-americana; literatura brasileira

RESUMEN

Este trabajo aborda la crónica “Uns índios (sua fala)”, publicada por Guimarães Rosa en el periódico A manhã en 1954. En esa crónica, el escritor relata su encuentro, en el estado de Mato Grosso, con indios Terenos, su expedición a un campamento indígena en busca de algunos secretos de la sorprendente lengua tariana. Como la crónica permite inferir, el que ese habla parezca ininteligible es un efecto de la intervención de aquel que quiere catalogarla o capturarla en un dispositivo de escritura, y las identidades “indio” y “blanco” son efectos producidos escrituralmente, así como las distinciones entre “civilización” y “barbarie”. Este trabajo intentará mostrar la manera en que esa crónica recoge algunos de los aspectos que exigen reformular el afamado carácter documental del corpus Guimarães Rosa, así como modificar algunos de los presupuestos de nuestros instrumentos de lectura, generalmente cautivos de un imperativo representacional.

Palabras claves Guimarães Rosa; etnografía; documento; literatura latinoamericana; literatura brasileña

ABSTRACT

This work examines the chronicle “Uns índios (sua fala)”, published by Guimarães Rosa in the journal A manhã (1954). In this chronicle, the writer recounts his encounter, in the state of Mato Grosso, with Tereno Indians, and his expedition to an indigenous camp in search of some secrets of the surprising Tariano language. As the chronicle implies, the seeming unintelligibility of the Tariano language is an effect of the intervention of those who want to catalog it or capture it in a writing device, and the "Indian" and "White" identities are effects produced in writing, as are the distinctions between "civilization" and "barbarism". This paper will attempt to demonstrate how this chronicle reflects some of the aspects that require reformulating the renowned documentary nature of the Guimarães Rosa corpus, as well as modifying some of the presuppositions of our reading instruments, which are generally held captive by a representational imperative.

Keywords Guimarães Rosa; ethnography; document; Latin American literature; Brazilian literature

“Entende-me: escrevo-te uma onomatopeia, convulsão da linguagem. Transmito-te não uma história mas apenas palavras que vivem do som. [...] Uso palavras soltas que são em si mesmas um dardo livre: ‘selvagens, bárbaros, nobres decadentes e marginais’. Isso te diz alguma coisa? A mim fala”. Clarice Lispector, Água viva, 1973.

“O O é um buraco não esburacado” Guimarães Rosa, Tutaméia, 1967.

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Gostaria de começar este trabalho compartilhando umas fotografias e algumas informações sobre a sua circunstância. Conformam a imagem de um Guimarães Rosa vaqueiro, que fez imenso sucesso de crítica e vendas.

Figuras 1-4
“VAQUEIRO DO SERTÃO DOS GERAIS. O escritor e diplomata João Guimarães Rosa (natural de Cordisburgo, zona pastoril de Minas) matou as saudades da terra, acompanhando uma boiada pelo percurso de 40 léguas”. (SILVA E SILVA, 1952:45-46)

O homem das fotografias é “UM MESTRE DAS HISTÓRIAS DO FAROESTE BRASILEIRO [...] [com] barba de três dias, vermelhão de sol e requeimado ao mais pela poeira do sertão”. Note-se: está vestido de vaqueiro, pondo arreios na mula “Balalaica” (pois “QUEM é do sertão, de província pastoril, sabe sempre lidar com arreios”), descansando numa árvore, tocando uma boiada, acendendo um “pito” no tição. Em outras imagens, está “proseando” com os vaqueiros “de modo objetivo”, bebendo café no “coité” ao pé da trempe, perto da qual outro “vaqueiro” dorme com um revólver ou “berrante” ao alcance da mão, “por via das dúvidas” (SILVA E SILVA, 1952:44-47). As imagens são de uma série capturada na Bahia por Eugenio Silva1, com motivo de uma homenagem a Getulio Vargas em 1952, e foram publicadas na revista O Cruzeiro em 21 de junho do mesmo ano. Apesar disso, na reportagem que essas imagens ilustram, uma narrativa assinada por Alvares da Silva (acima reproduzi alguns trechos), nos conta outra coisa: diz que as fotos foram tomadas numa boiada de dez dias, uma aventura que começara com dezoito vaqueiros e terminara com somente oito - entre eles, e em lugar de destaque, “o Dr. Rosa” (50). Como é plausível, ao longo do seu desenvolvimento, a narrativa ganha ares de “viagem de descobrimento do Brasil” profundo, com clara definição do que são os “campos gerais” e as “veredas”; inclusive nos informa que, como a própria nação, a viagem se inicia com uma missa e tem peripécias notáveis: é viagem dura, “pelo percurso de 40 léguas, desde assim por baixo de Pirapora até as alturas de Araçaí” (45), há uma penosa travessia por uma espécie de Liso do Sussuarão, etc.

Figura 5
“PASSOU dez dias no lombo de ‘Balalaica’, mula esperta, danada de boa”. (SILVA E SILVA, 1952:45)

Nem Minas, nem vaqueiro, nem dez dias, portanto. É a Bahia, é Guimarães Rosa sendo conduzido fantasiado de vaqueiro por um dos mais problemáticos magnatas da comunicação brasileira, Assis Chateaubriand, o próprio dono da revista O Cruzeiro, no que parece tanto campanha getulista quanto trailer do Grande sertão: veredas. A reportagem divide espaço com anúncios sobre os novos utensílios de alumínio da Rochedo (com que “a dona de casa pode viver mais descançada”), sobre o Matte Ildefonso (que “custa menos” e é “mais gostoso”), sobre os modernos móveis funcionais da Zanine, com a nova Gillette azul, com o Creme Dental Nicotan (“especialmente para fumantes”), etc. Como antes disse, as imagens de cowboy fizeram um enorme sucesso e contribuíram para a criação de um mito de escritor que o próprio Guimarães Rosa ajudou a cultivar, pois ele estava precisamente criando esse mito, que para o César Aira de Nouvelles impressions Du Petit Maroc (1990-1991) deve ser a própria criação do escritor. De fato, se considerados alguns dos motivos elencados na reportagem de junho de 1952 para O Cruzeiro, ou o próprio fato de servir como modelo fotográfico, é fácil conjecturar nessa escrita, que conjuga texto e imagem, a participação do autor de Sagarana (1946). Para Aira, como para mim, o escritor performa o seu próprio mito, e isso se deixa ler como parte da sua escritura.

Antes dessa reportagem, em carta de 6 de novembro de 1945 - como em inúmeras correspondencias -, Rosa solicitava ao pai dele, o dono de armazém Florduardo Pinto Rosa, estórias e causos do sertão, e até anunciava “uma excursão proveitosa, que irei fazer de cadernos abertos e lápis em punho, para anotar tudo que possa valer, como fornecimento de côr local, pitoresco e exatidão documental, que são coisas muito importantes na literatura moderna”. (apudROSA, V., 2008:239)

Não é difícil constatar, na fortuna crítica, que dessa equação entre o pitoresco ou exótico e a exatidão documental, o segundo termo acabou vigorando muito mais nos estudos rosianos, nem que isso transcendeu na figura de um escritor “nativo” que, a cavalo e com uma caderneta amarrada ao pescoço, anotava minuciosamente palavras, acontecimentos, detalhes da natureza, da geografia, do clima, de culturas indígenas, qual um naturalista viajante do século XIX. Duas falas com entrevistadores estrangeiros dão conta do interesse de Guimarães Rosa por se promover como natural e testemunha autóctone do Hinterland. Resulta sintomático o fato de que sejam precisamente conversas com os críticos estrangeiros Günter Lorenz e Luis Harss, pois nas décadas de 50 e 60 esse mito exótico de escritor “provinciano” tinha boa demanda nas metrópoles da letra em que esses críticos exerciam2. Na entrevista a Lorenz (1965), de fato Rosa afirma ser um “homem do sertão” tão formado na diplomacia quanto no “trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas” (apudLORENZ, 2009:XXXVI). Luis Harss, por sua vez, em “João Guimarães Rosa, or the Third Bank of the River” (1969), surpreende a universalidade de Rosa em duas vertentes: uma, mítica ou mística, que descreve um católico, taoista e budista, que bebe de toda água, e uma espécie de etnógrafo, que faz um trabalho que “at every level is as much a product of exhaustive research as it is of direct observation. He is as bit of an archaeologist, anthropologist, entomologist, ornithologist, and general sage and wizard” (p.142).

Essa exatidão documental, como disse, vigorou poderosamente na crítica rosiana, com o acréscimo de uma transfiguração (ou recriação) literária propriamente moderna que críticos como Harss (1966) ou Emir Rodríguez Monegal (1966; 1972) se esforçaram por pensar, creio, no lastro de “O homem dos avessos” (1964)3 , texto fundador de Antonio Candido. De acordo com esse mito moderno, o escritor latino-americano seria um “nativo” que observa e escuta o real, o anota, o recria em formas simbólicas, e coloca essas formas em circulação num âmbito universal que muitas vezes é simplesmente internacional, a República das Letras. É tão ativa essa narrativa, que protocolos hegemônicos de leitura do latino-americano inclusive erigiram o epíteto “provinciano” como distintivo de valor em si mesmo4 − um “provinciano” que conseguiria atingir os centros metropolitanos da cultura através da representação super ou suprarregional da singularidade local em vias de modernização, enriquecendo dessa maneira o patrimônio universal, comum, da humanidade.

Entretanto, acredito que, quando assim se pensa, esquece-se que o real nunca deixa de não se escrever, e que ele não se sustenta sem o imaginário nem na ausência do simbólico. Esse provincianismo, como antes disse, é também uma performance. Isso quer dizer que o vaqueiro pode ser uma fantasia, mas também que o ficto pode ser potente no sentido de criar realidade. Para dizê-lo com uma fórmula de Tutaméia (1967): “Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois” (1968:149). Um furo nessa representação do escritor, uma interpelação punctual pode nos abrir a possibilidades que o exotismo regional-universalista pareceria impedir, pois o que nos olha nessas imagens -roupa e botas novas, cabelos devidamente penteados, mãos de escrevinhador - nada tem de estético, nem de belo, não advém de uma totalidade formal que algo nos comunica. Apenas dá conta de um toque, de um fora, de algo que, em lugar de se representar, se apresenta.

Apesar dessa interpelação punctual, as fotos que antes reproduzi alcançaram o status de “provas” originárias. Por isso estão nas páginas iniciais ou finais de edições dos livros de Guimarães Rosa pela José Olympio e pela Nova Fronteira, e por isso foram capas em edições estrangeiras, como a Feltrinelli de Milão (1964). A respeito dessas imagens, ao comentar a mesma excursão de 1952 onde foram capturadas, na biografia Relembramentos Vilma Guimarães Rosa nos fala de um “John Wayne gorducho [...] naquele entusiasmo de quem veste a fantasia certa”:

[...] a única vez em que meu pai visitou o sertão foi a convite do seu amigo [...] Assis Chateaubriand. Em Caldas do Cipó, na Bahia, formaram na “guarda vaqueira” que foi ao aeroporto receber outro amigo, o presidente Getúlio Vargas. [...] Todos vestidos a caráter, com roupas de vaqueiro.// Nas vésperas da viagem [...] [papai] recebera o traje de vaqueiro enviado pelo amigo e já o vestira:

−Venha a ver, Vilminha! Estou até parecendo o John Wayne! (2009:55)

Como sabemos, a fama do Rosa super-regionalista, aquele que é universal porque descreve tolstoianamente a sua aldeia, veio logo após a publicação de Sagarana (1946), e se estenderia longamente, até os trabalhos de Antonio Candido e Ángel Rama, e depois deles até hoje. No entanto, me parece, o próprio Rosa tentou deixar vestígios de uma falha no próprio aparato das representações, a língua ou a escritura: um furo necessário numa totalização precária apesar de imprescindível, um vazio ou esvaziamento na representação autônoma ou orgânica sem o qual inevitavelmente cairíamos no mais bárbaro etnocentrismo.

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Para mim, esse antídoto ou pharmakon está paradigmaticamente manifesto numa crônica contemporânea à reportagem de O Cruzeiro acima mencionada, intitulada “Uns índios (sua fala)”, e publicada por Guimarães Rosa no suplemento Letras e Artes do jornal A manhã, em 25 de maio de 19545. Na crônica, Rosa relata o seu encontro, no estado de Mato Grosso, com “Terenos, povo meridional dos Aruaks” -a sua expedição a um “arranchamento de ‘dissidentes’” à procura de alguns segredos da surpreendente língua tarena. O escritor, que transcreve em caracteres alfabéticos algumas palavras dessa língua, descreve brevemente as precárias condições da aldeia seminômade e finaliza declarando seu absoluto fracasso na tentativa de encontrar a lógica dessa fala. Como a crônica permite inferir, o fato de essa fala parecer ininteligível é um efeito da intervenção do letrado que pretende catalogá-la ou capturá-la num dispositivo de escritura concreto -a transcrição etnográfica. Isso, entretanto, não quer dizer que o escrito não produz efeitos: as identidades “índio” e “branco” são produzidas escrituralmente, tanto quanto as tradicionais distinções entre “civilização” e “barbárie”: “A notação, árdua, resultou arbitrária. Só para uma idéia. E, obvio, as palavras trazidas assim são remortas, sem velocidade, sem queimo. Mas, ainda quando, fere seu forte arrevêsso” (ROSA, 1970: 88-89).

Algo que chama poderosamente a atenção nessa crônica de 1954 é o fato de que nela Guimarães Rosa parece trabalhar, e explorar, procedimento que Antonio Candido, tratando de Coelho Neto e da ficção brasileira regionalista, condenava como um “centauro estilístico”: a “injustificável dualidade” de notações usadas para transcrever a fala popular e a erudita. Na conferência em que Candido trata dessas modalidades de notação, intitulada “A literatura e a formação do homem” (1972), nos diz que a dualidade mencionada “não pode ser explicada senão por motivos de ideologia”, pois “a notação fonética rigorosa para a fala do rústico” o rebaixa, principalmente quando contrastada ao “critério aproximativo normal” usado para o narrador culto e urbano. Assim representadas essas variações, formula Candido, se incrementa “a distância erudita do autor, que quer ficar com o requinte gramatical e acadêmico, e confinar o personagem rústico, por meio de um ridículo patuá pseudo-realista, no nível infra-humano dos objetos pitorescos, exóticos para o homem culto da cidade” (Cf. 2002:87-88).

Para Candido, e lembremos o assunto da sua conferência, existiria uma “solução linguística adequada” cuja aplicação, ou não aplicação, faria um diferencial evidente entre um Regionalismo “humanizador” e um Regionalismo “reificador”. O primeiro elaboraria uma “representação humanizada”, o segundo uma “representação desumanizada do homem das culturas rurais” (p.88). Um paradigma dessa solução linguística adequada seria um precursor de Guimarães Rosa: o gauchesco Simões Lopes Neto, criador do narrador Blau Nunes em Contos gauchescos (1912), em que se fusionam os dois modos de notação, “dissolvendo de certo modo o homem culto no homem rústico [que] deixa de ser um ente separado e estranho, que o homem culto contempla, para tornar-se um homem realmente humano, cujo contacto humaniza o leitor” (CANDIDO, 2002: 89).

Evidentemente nessa leitura ressoa o “homem humano. Travessia” de Grande sertão: veredas. E ressoa de maneira coerente com uma tradição de leitura inaugurada pelo próprio Candido pois, como antes disse, foi no ensaio “O homem dos avessos” (1964) que se postulou um sistema de oposições dialéticas, e não dualistas (perceba-se), de que a obra de Rosa seria a síntese. Essa seria síntese entre “o mito e o logos; o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional” (1991: 309), uma espécie de fusão de contrários, um livro que seria entre “popular e erudito”, arcaico e moderno, claro e obscuro, artificial e espontâneo” (p.305). Essa síntese se desenvolveria com nome próprio na obra posterior do importantíssimo crítico brasileiro; se chamaria depois “super-regionalismo” (Cf. 1987, 2002), uma tendência literária que concentraria em si procedimentos e temáticas locais e universais6, (algo que, não longe de Candido, Ángel Rama denominaria em 1982 Transculturación narrativa) e cuja manifestação paradigmática seria justamente a ficção de Guimarães Rosa.

O nosso, entretanto, é um Rosa pouco confiante nos poderes humanizadores da letra. “Uns índios (sua fala)” leva ao extremo a dualidade discernida por Candido e nos permite pensar a diferença precisamente por um uso do dispositivo escritural que, não renunciando à exigência regionalista, vai além da síntese super-regionalista. Ou seja, a crônica rosiana nos permite sentir como a diferença não somente se escreve, mas também se excreve (Cf. NANCY, 2002), ou que “tôda língua são rastros de velho mistério” (ROSA, 1970: 90), ou que a língua é um arquivo de semelhanças imateriais ou extrassensíveis que reclama “ler o que nunca foi escrito” (Cf. BENJAMIN, 1971: 170).

Este é um Rosa que teremos que pensar ainda não domesticado ou ainda não civilizado, como quer o Silviano Santiago de Genealogia da ferocidade (2017). Isso justamente porque constitui a sua escritura não optando por uma síntese tranquilizadora, isto é, não optando por uma harmonização simbólica de conflitos históricos e vitais que estão muito longe de se superar. Acredito que por esse motivo não é muito frequente encontrar trabalhos acadêmicos sobre a crônica aqui estudada: ela não se encaixa satisfatoriamente no protocolo de leitura mais prestigioso, e isso porque mantém a dualidade de notações usadas para transcrever a fala popular e a fala erudita.

Como é evidente pela breve leitura de “Uns índios (sua fala)”, além dos frequentes neologismos rosianos, nesse texto se usa a notação fonética rigorosa para a fala tarena, enquanto um critério aproximativo normal se aplica nas intervenções do narrador “culto”. Desse modo, através de uma grafia convencional, o homem letrado e de classe superior aparece como detentor da integridade do discurso, enquanto a fala do índio parece confinada ao catálogo, um catálogo que traduz equivalências para facilitar a compreensão do leitor urbano.

Até aqui teríamos apenas uma reprodução rosiana da prática escritural infame que Candido denuncia como “representação desumanizada”, mas a operação - inoperante - de Guimarães Rosa não se esgota nessa notação dualista. Em determinado momento da narrativa, inverte a grafia por um instante, e avistamos algo como um furo ou vazio operado pela própria escritura, ainda que isso não aconteça no nível da representação. Talvez seja mais certeiro pensar que este é um acontecimento de escritura no sentido da disposição de uma certa ordem. É isso que a crônica rosiana foca quando o narrador nos conta seus esforços de catalogação entre os informantes nativos da língua tarena, concretamente neste trecho, que peço seja lido com extrema atenção aos seus detalhes.

Enquanto podia, entretive-me também com um grupo: Re-pi-pí (“o cipó”), I-li-hú, Mó-o-tchó, Pi-têu, E-me-a-ka-uê, e Bertulino Divino Quaauagas. Eu fazia perguntas a um - como é isso em língua terena? Como é aquilo? - e ele se esforçava em ensinar-me; mas os outros o caçoavam - Na-kó-i-kó? Na-kó-i-kó? (- “Como é que vamos? Como é que vamos?” - K’mok’wam’mo? - quer dizer - Como é que Você se sai desta?...) (ROSA, 1970: 89)

Quando se lê isto que acabo de citar, e singularmente o destaque em itálico, se é obrigado a reler esse “(sua fala)” que aparece entre parênteses no título da crônica. Entre parênteses quer dizer num lugar convencionalmente “não essencial”, um desvio, uma invisibilidade com pronome possessivo determinado, que curiosamente se contrasta com “Uns índios”, um substantivo plural à vista e precedido por um pronome indeterminado. Alguma coisa está invertida nesse título, pois aqueles que até o momento sempre foram representados e paradoxalmente invisibilizados em virtude da mesma representação, foram os índios. E é aos letrados - aqueles que fabricaram e fabricam as representações (ao menos desde o indianismo romântico, com alguns antecedentes neoclássicos) - que o título parece apontar quando indica “sua fala”. “Sua fala, a sua, de você que lê este texto”, pois os leitores rosianos são cultos, visíveis, falantes e urbanos, e não índios. Fora dos parênteses, esses letrados ocuparam historicamente a posição de sujeitos a respeito dos objetos representados (sejam índios ou “homens rústicos”, sejam sertanejos, negros ou jagunços), estiveram desde sempre do lado da chamada “humanidade” que “humaniza” outros através da representação.

A inversão de notações ou grafias se efetua quando o narrador escreve esse “K’mo-k’wam’mo?” que está no trecho acima transcrito e tende a passar despercebido. O narrador-transcriptor-escritor que encarna o próprio Guimarães Rosa põe esse “K’mo-k’wam’mo?” logo depois da sua tradução, isto é, aplica sobre a língua brasileira um expediente escritural que antes estava usando para transcrever a fala dos tarenos, assim:

frio - kás-sa-tí onça - sí-i-ní peixe - khó-é rio - khú-uê-ó Deus - í-khái-van’n-u-kê cobra - kóe-ch’o-oé passarinho - hê-o-pen’n-o (h aspirado) (ROSA, 1970:88)

Perceba-se que o narrador “trapaceia” quanto aos critérios de notação que usa, pois o que deveria estar escrito assim:

Como é que vamos? - Na-kó-i-kó?

Está, de fato, traçado assim:

Como é que vamos? - K’mok’wam’mo?

Isto é, o que deveria ser a transcrição de uma fala, segundo um critério aproximativo normal, colocada em equivalência com a sua notação fonética em outra língua, agora é uma equivalência entre as duas notações, normal e fonética, da mesma frase na mesma língua. É frase em português brasileiro equivalendo com a sua tradução para português brasileiro, mas grafada de acordo com um critério dualista de notação: “K’mok’wam’mo?”= “Como é que vamos?”. É como se Rosa tivesse trazido o dualismo denunciado por Candido ao interior da própria norma culta.

Depois dessa troca minúscula de critérios que torna patuá a própria língua nacional e após mais alguns ensaios de catalogação, a crônica finaliza declarando seu absoluto fracasso na tentativa de encontrar a lógica da fala tarena:

Tôda língua são rastros de velho mistério. [...] Nenhum[a palavra] - diziam-me - significava mais coisa nenhuma, fugida pelos fundos da lógica. Zero nada, zero. Eu não podia deixar lá minha cabeça, sòzinha especulando. Na-kó i-kó?. Uma tristeza. (ROSA, 1970: 90)

Como o leitor sabe, “Na-kó i-kó?” equivale a “K’mo-k’wam’mo?”, que é o mesmo que “Como é que vamos?”. A tristeza do narrador contrasta também com o riso dos índios diante da tentativa de tradução e catalogação. Não é que a língua não funciona: é o homem civilizado que falha na tentativa de sistematizá-la, inclusive por uma insuficiência ou um excesso do instrumento, ou da técnica usada. Daí a tristeza, daí o ridículo, daí a repetição na linha final desse “Na-kó i-kó?”.

Se analisamos textos como Formação da literatura brasileira (1957) ou Iniciação à literatura brasileira (1999), notaremos quão pouca afinidade há entre o pensamento do sistema literário, o próprio dispositivo representacional, e esses índios. Por esse motivo, é importante ver o esvaziamento operado por Rosa na crônica “Uns índios (sua fala)”, pois esse O não esburacado problematiza ou abala a ordem do discurso, ou melhor dizendo, o discurso como ordem.

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Lembro aqui o Foucault de As palavras e as coisas (1966), quando disse que as taxonomias chinesas de Borges inquietam a ordem que permite “manter juntas” coisas e palavras. São heterotopias que emaranham a distinção entre isto e aquilo e nos põem diante de uma experiência bruta (ou nua) da ordem; isto é, nos mostram que a ordem está e que nós estamos nela, que todo a priori é histórico. Bem, não me parece exagero afirmar que esses exercícios rosianos de notação que até aqui vim mostrando são também taxonomias heterotópicas, e nos evidenciam uma ordem muito naturalizada entre nós ao menos desde o Romantismo.

O Regionalismo, sabemos, é uma espécie de avatar secularizado do Romantismo, como as próprias noções de “sistema” ou “formação”. A nossa história da ordem, assim, corresponde à descendência do Romantismo, aquilo mesmo que Foucault denomina episteme moderna (Cf. 1987), e que coincide de maneira geral com o surgimento do Liberalismo, que é o próprio marco de inteligibilidade da noção “Homem” e, portanto, com o nascimento da prática governamental biopolítica (Cf. FOUCAULT, 2008). É nesse quadro que se constroem os imperativos da nossa imaginação pública, nossos a prioris humanistas. É no Romantismo (com manifestações neoclássicas precursoras) que se constitui o modelo da Literatura Brasileira como Sistema, se aceitamos o ensinamento de Antonio Candido. E, com o alargamento biopolítico de finais do século XIX, teremos a consequente amplificação dos dispositivos de controle desse centauro empírico e transcendental que chamamos de “homem” - dispositivos que na fase regionalista, com o adendo evolucionista-positivista, conduziram um processo que teve seu paradigma no massacre de Canudos, e que hoje continua vivo na devastação neoliberal da Amazônia.

Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe, em El absoluto literário (1978), evidenciam como o Romantismo europeu constituiu o sistema literário como um Sistema-Sujeito: a união do sujeito e do objeto num Eu absoluto, possível sem dúvida pela mediação de uma Obra em que a vontade sistemática se coaduna com sua realização orgânica. É na obra e pela obra que o sujeito se encontra com seus objetos, e se constitui como uma consciência-de-si em curso, com uma história, com um fim sempre projetivo, uma finalidade-sem-fim. O fato de que essa vontade seja uma vontade de sistema traz implícito que o sujeito está em obra, em processo de criação, e que a humanidade está em processo análogo, pois ela está em formação (como a própria nação alemã, em conformação entre os séculos XVIII e XIX). “Humanidade” para o Romantismo, de acordo com Nancy e Lacoue-Labarthe, equivale à “formação” (Bildung). O Bildungsroman coerentemente narra a estória de uma formação, é sua lei do gênero, e nessa estória é fundamental a formação do juízo estético, uma parte essencial da “cultura social” de acordo com a lógica dessa ordem, assim como é essencial o conhecimento científico aplicado sobre arte e natureza. A experiência, destarte, é também essencial, o contato direto com as obras ou com os viventes, pois é precisamente a era pós-kantiana do que Foucault denomina “a ilusão antropológica”, uma pretensão ocidental de acesso “natural” ao “fundamental” de um povo. De acordo com essa ilusão, um povo pode ser representado, ou capturado, num dispositivo de catalogação ou interpretação, numa configuração significante que pode ser compartilhada e reconhecida quanto à sua significação orgânica7 (Cf. NANCY e LACOUE-LABARTHE, 2012).

Lembremos que para Candido haveria um Regionalismo com sentido “humanizador” à medida que desse voz ao “homem rústico”, dissolvendo nele o homem culto, e que o contato com essa voz humanizaria inclusive o leitor. A tradição sistemática/orgânica manifesta a necessidade absoluta da experiência e da escuta diretas, prévias à sistematização, mas essa escuta está desde sempre negada dentro da própria escuta. A experiência está negada dentro desse modelo de experiência porque, partindo do pressuposto de que o interlocutor é alguém que tem uma humanidade ainda não realizada ou que tem um conhecimento defeituoso, há uma porção de coisas que nunca poderão ser escutadas. Isso, inclusive, porque o modelo do critério, do caráter e, finalmente, do sujeito ou do homem, é o próprio intelectual - erigido desde o Romantismo como paradigma do Sujeito-Obra: autoconstituinte, automimético, autoformado (Cf. NANCY e LACOUE-LABARTHE, 2012: 483). Precisamente essa monumentalidade do sujeito e da obra faz com que em Iniciação à literatura brasileira (1999) se nos fale dos índios mexicanos e peruanos como possuidores de “formas culturais superiores”, enquanto que sobre o Brasil se diz que é “país primitivo, povoado por indígenas na Idade da Pedra” (1999: 11-12). Essa ponderação se mostra sensível em relação a pirâmides e aquedutos, mas parece indiferente ao extrativismo cultural que desde sempre se exerceu sobre os habitantes das selvas. Como parece evidente hoje, com a ajuda de narrativas como El abrazo de la serpiente (Ciro Guerra, 2015), esse extrativismo predatório é um dado da nossa fundação, e adquire novo sentido com a reviravolta que a era da informação instala, e que se manifesta em grandes corporações tentando extrair desses índios “da idade de Pedra” conhecimentos cada vez mais lucrativos.

A transcrição etnográfica, assim, é propriamente uma ordenação biopolítica, e a questão diferencial está em saber enunciar essa ordenação ou em ignorá-la. A différance (com a), nos diz Derrida (1968), se escreve ou se lê, mas nem sempre se escuta nem se fala; portanto, também é gesto, é traço, vestígio. Uma mesma linha, o dispositivo escritural, se desdobra em linhas de força, em linhas de enunciação, em linhas de visibilidade, em linhas de fratura e em linhas de subjetivação8. Como escutar a différance? A resposta é sinestésica: a diferença se escuta quando se vê ou quando se lê.

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Com isso, retorno à crônica “Uns índios (sua fala)”, e ao problema da notação. Para a maioria dos leitores desse texto, a proposição “K’mo-k’wam’mo?” passa despercebida -isso porque o leitor acredita ser mais uma transcrição fonética de palavras da língua tarena, e porque não se sente competente para sabê-la ler. No entanto, como antes mostrei, o que acontece é uma espécie de inversão do jogo e da ordem dos signos. O que era transcrito usando um critério de notação aproximativa com a “norma”, se transcreve agora usando um critério fonético. O texto não somente fala sobre a exclusão, mas ele mesmo aliena os leitores da sua língua “materna”. Isso quer dizer que o dispositivo da transcrição ou da tradução etnográfica nada tem de inocente ou de neutral. A identidade está no traçado, na notação, no instrumento de inscrição: o “bárbaro” é uma produção escritural, ele sai da ponta do lápis do etnógrafo “civilizado”.

Por outra parte, a crônica também nos deixa ver o riso dos índios. Com esse “Na-kó i-kó?” eles estão rindo do narrador, daquele que quer catalogar a sua fala numa caderneta. Aí temos uma agência própria dos informantes: a crônica não doa a eles a posição de sujeitos, pois essa posição já era ocupada por eles desde antes do encontro, por isso fazem do etnógrafo amador um objeto de riso9. A partir desse riso, intuímos que os informantes podem estar passando ao etnógrafo informações equívocas, parciais, ou atribuindo arbitrariamente sentidos às palavras pelas que são perguntados. O que a ponta do lápis traça sobre o papel, assim, não é somente uma produção de barbárie, mas também vestígios de subjetivação daqueles que o dispositivo quereria capturar. Dessa maneira, não é somente que o “homem rústico” pode ser representado arbitrariamente, mas que eles mesmos, elas mesmas exercem a arbitrariedade e o arbítrio e, longe de simplesmente passivos, mesmo na indigência, não são simples objetos para um sujeito.

Acredito que a isso se refere Didi-Huberman quando nos diz que nunca se pode “falar por” ou “em nome” dos povos, mas sempre “escrever com” os povos (Cf. 2014ª; b). A isso se refere Werner Hamacher quando pensa uma filologia outra, uma filofilia que é afeto pela linguagem como afeto: autoafeição em outro de si mesmo; prima poesia e amor, desejo, prece (Cf. 2011). A algo como isso remete James Clifford (2008) quando concebe o texto etnográfico como o produto de uma colaboração entre o etnógrafo e seus informantes.

“Quando escrevo, não pen so na literatura: penso em capturar coisas vivas”, declarou Guimarães Rosa a Arnaldo Saraiva na sua última entrevista, em 24 de novembro de 1966. Mas como fazer isso sem ser um John Wayne da escritura? Uma escritura não é tanatopolítica quando desloca a pretensão representacional sem abandoná-la, fazendo do significante totalizador um significante vazio, um zero nada, zero. Esse tipo de escritura não se pretende uma “captura” do outro no dispositivo da letra, pois há sempre a possibilidade de que o outro faça um uso da linguagem em todas as suas potencialidades. Pode estar sendo irônico, pode estar mentindo, pode estar distorcendo informações ou transmitindo falsos achados, pode ser ambivalente e, ao mesmo tempo, falando a verdade, etc. Escutar também é questão política: quem escuta pode ouvir errado, entender pouco, não entender nada; pode não ouvir verdades, dar margem ao equívoco. É impossível que quem escuta não capte equívocos, ou que os equívocos ou informações mal escutadas não façam algum sentido, inclusive um sentido que se torne tradição: disso trata “La busca de Averroes” (1949) de Borges; disso trata “O recado do morro” (1956) de Guimarães Rosa.

Oswald de Andrade, em prefácio inédito de Serafim Ponte Grande (1926), escreveu algo que parece uma fórmula rigorosa de partilha do sensível: “A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”. Isso pode querer dizer que em toda transmissão (seja filosófica, histórica, antropológica, científica, etc.) há um momento de analfabetismo, que pode ser escutado, visualizado e aproveitado. Uma transmissão errática, sabemos, não é somente uma prisão, pois a ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação (DERRIDA, 1995, p. 232). Essa é a aventura seminal do traço, e por isso Oswald propunha em A crise da filosofia messiânica (1950) a criação de uma ciência do vestígio errático. Pelo mesmo motivo, Raúl Antelo, em conferência10 que também aborda “Uns índios (sua fala)”, nos propõe “A escuta selvagem” (2017), uma forma de arquifilologia que se constitui como uma alternativa ao Sistema humanista, pois não se pode entregar uma proliferação intempestiva (a própria imaginação) aos cuidados de uma formação orgânica11.

Errar entre o som e o sentido, na ambivalência entre a série semiótica e a série semântica, entre o que se vê e o que se lê, pode também ser escutar ou ver a vida, abrir a sensibilidade ao equívoco que pode não ter sentido, mas sim fazer sentido. É assim que Rosa não se reduz a um John Wayne da letra: não aderindo à inclusão-exclusiva que sequestra a vida em prol da sua inserção sistemática ou humanista, falando e escrevendo com os infames e não somente sobre eles. Essa demanda pode ser rastreada no corpus rosiano sem muitas dificuldades. Eu a escuto, e a vejo, por exemplo, nos signos que abrem e fecham Grande sertão: veredas (1956), signos visíveis e escrevíveis (por um doutor, por exemplo), mas não faláveis ou escutáveis: -, ∞. Está também na situação narrativa que sempre retorna na ficção de Rosa, em textos como o próprio Grande sertão: veredas, “Meu tio o iauaretê”, ou “O espelho”, em que um travessão introduz a fala de alguém escutado por outrem invisível, alguém que, como nós, escuta - ou seja, lê - e escreve a sua escuta, de maneira ambivalente e não isenta de intervenções arbitrárias. Escuto e vejo essa demanda na notação dualista e ambivalente de “Uns índios (sua fala)”.

Ser capaz de arbitrariedade e arbítrio também pode ser fazer um uso totalmente performático da identidade. O índio pode performar de índio, como Guimarães Rosa performava às vezes um cowboy, às vezes um rato de biblioteca, às vezes um diplomata de gravatinha borboleta. Eduardo Viveiros de Castro, recentemente, em Os involuntários da pátria: elogio do subdesenvolvimento (2017), explicava que “devir-índio” é uso estratégico da identidade, se toma e se deixa, “tudo é e não é”, e que isso salva vidas12. Esse uso estratégico da identidade de fato entra no pensamento contemporâneo como uma alternativa para, apesar de uma desconfiança imprescindível na totalidade e na identidade “dadas”, não renunciar a devires estratégicos de totalização ou de identificação. Isso está, por exemplo, na noção de “regionalismos críticos” teorizada por Butler e Spivak (2009); está na noção de “significante totalizador vazio” de Ernesto Laclau (2005); está no “entre-lugar”, no “homossexualismo astucioso” e no “cosmopolitismo do pobre” de Silviano Santiago (1978; 2008).

Dizer “povo” não equivale a reduzir o que esse significante nomeia a uma essência ou a uma substância, nem sobredeterminá-lo às suas origens. Não deixar esse significante disponível para a sua apropriação pelo mercado ou pelos seus avatares governamentais ou policiais, mas fazer dele um uso estratégico face a lutas simbólicas concretas: essa parece a exigência escutada pelo Didi-Huberman de Pueblos expuestos, pueblos figurantes (2014). Também me parece ser a exigência escutada e traçada pelo singular Regionalismo de Guimarães Rosa, que se define por uma renúncia ao protocolo que faz do regional sempre o objeto de um sujeito universal.

Talvez seja imperativo modificar os nossos instrumentos de leitura. Não somente porque o modelo representacional da formação foi há tempos cooptado pelo neoliberalismo13, mas porque o aturdito14, isto é, o propriamente escritural, neste momento em que se conspira violentamente contra qualquer tentativa de conversação latino-americana, pode nos abrir à escuta efetiva de uma dimensão comunitária inédita - e inaudita.

Para mim, essa escuta selvagem tem um de seus paradigmas em Guimarães Rosa, um homem-jaguar que ostenta não somente uma caderneta de campo, mas também uma gravatinha-borboleta.

Paulo Leminski escreveu em Catatau (1975) que os naturalistas europeus “deviam pôr o Brasil inteiro num alfinete sob o vidro” (2004: 42). Dado que compartilhamos uma história catastrófica e que de fato a catalogação moderna “fixou” toda América Latina sob o vidro - capturada em dispositivos, ou com alfinetes, de vários tipos -, hoje se faz urgente escutar demandas coerentes com essa constatação. A conversação está entre essas demandas, e uma conversação não pode ser uma fusão de contrários, mas somente uma espacialização de diferenças. Hoje a borboleta luta por voar, e sabemos que essa exigência deve ser atendida, mas também sabemos que o desejo não pode escapar da vitrine sem a esperança de uma memória. Essa memória está inscrita, está excrita, porque o texto sempre foi o vestígio de um contato. Que a Divina Psiquis voe, sim, mas não sem o lastro desse alfinete, pois sobre ele ainda teremos que falar extensamente.

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  • 1
    Para Mônica Gama (2014), essas imagens inauguram, junto com entrevistas e reportagens publicadas em 1952, uma imagem, ou figuração autoral, associada à prática de pesquisa etnográfica.
  • 2
    Como lembra Gonzalo Aguilar (2000), a chegada oficial de Guimarães Rosa aos leitores hispano-americanos se deu em 1967 através da tradução espanhola de Grande Sertão: Veredas (Ángel Crespo, Seix-Barral) e dos ensaios de dois críticos quase orgânicos do denominado boom latino-americano: Luis Harss (Cf. 1966) e Emir Rodríguez Monegal (Cf. 1969). Em trabalhos anteriores, abordei a problematicidade da apropriação de Rosa e Rulfo, dentre outros escritores, como “piedras miliares” do boom mercadológico posterior, com diminuição da singularidade dessas escrituras nessa precedência.
  • 3
    Publicado originalmente com o título de “O sertão e o mundo”, em 1957.
  • 4
    Essa denominação se deve ao escritor José María Arguedas, que no livro El zorro de arriba y el zorro de abajo (1971) a usava para se referir a uma constelação de autores latino-americanos que incluía Guimarães Rosa. Por uma questão de espaço, não posso me deter sobre a vasta tradição de abordagem crítica dessas escrituras “provincianas”, mas remeto o leitor interessado à dissertação de Mario René Rodríguez Torres (2009), que faz delas um recenseamento amplo.
  • 5
    Também foi publicada no volume póstumo Ave, Palavra (1970), que Rosa preparava, junto a outros volumes, nos meses prévios à sua morte em novembro de 1967.
  • 6
    Chama a atenção o fato de que, em “A literatura e a formação do homem” (1972), Candido tome tanto a fórmula regional-universalista (“a fusão rara entre o falar culto e o falar popular”), quanto o exemplo negativo de Coelho Neto, do artigo crítico “Regionalismo universalista” (1966) de Tristão de Athayde.
  • 7
    James Clifford, falando sobre o etnógrafo-missionário Maurice Leenhardt, parafraseia Clifford Geertz: “a cultura é sempre já interpretada, pode-se extrapolar que ela é também sempre já inscrita. (Uma ocasião ritual já é um ‘texto’? Como a expressão ‘literatura oral’ chega a significar alguma coisa?)” (2008, p.227)
  • 8
    Esse desdobramento corresponde à interpretação que Deleuze (1989) elaborou do conceito foucaultiano de “dispositivo”. A meu ver, Agamben retoma esse desdobramento para postular que justamente o sujeito é o produto do corpo-a-corpo entre os viventes e os dispositivos em que eles são capturados: “também a escritura [...] é um dispositivo [...] Uma subjetividade produz-se onde o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade a ela”. (2007, p. 63)
  • 9
    Em contraste com a tristeza do narrador-etnógrafo, poderíamos - um tanto anacronicamente - nos perguntar, com o trabalho já clássico de Pierre Clastres, “De que se riem os índios?” (1967). Riem do perigo e da autoridade, do perigo da autoridade. Para Clastres, o riso selvagem é uma forma de aprendizado, que não descarta a seriedade de uma hierarquia risível: “o poder e o respeito pelo poder”; o riso do índio, assim, é coisa seriíssima: responde ao perigo iminente de morte, ou captura, com um equivalente da morte, pois “entre os índios, o ridículo mata” (1979, p.144).
  • 10
    Proferida na Universidade Federal de Santa Catarina em 17 de março de 2017.
  • 11
    Em outros trabalhos, Antelo conjura o Antonio Candido sistemático evidenciando a maneira que o crítico brasileiro sequestra a sua própria escuta. Voltar a escutar essa escuta, por outra parte, pode dar potência inédita, e inaudita, a Candido: força para além da forma e da formação. (Cf. ANTELO, 2017; 2009)
  • 12
    “Contra a concepção soma-zero de nossa pseudo-mestiçagem, as teorias antropológicas indígenas entendem que é perfeitamente possível - o que não quer dizer fácil, nem isento de risco - ser índio e branco ao mesmo tempo, ou melhor, segundo tempos, contextos e ocasiões diferentes. É possível, no sentido de ‘deve ser possível’, acumular posições sim bólicas índias e não-índias, controlar os modos e os momentos de uma transformação es sencialmente reversível. É possível ‘ser branco’ à moda indígena, isto é, acionar os códigos culturais dominantes segundo as prioridades, objetivos e estratégias indígenas, e sobretudo, segundo a antropologia indígena, a teoria indígena (as teorias indígenas) da cultura, que pouco têm a ver com nossas teorias essencialistas da cultura”. (2017, p.6)
  • 13
    Por exemplo na obra de Francisco C. Weffort, Formação do pensamento político brasileiro(2006).
  • 14
    Em 1973, Jacques Lacan, inspirado por uma comédia barroca de Molière, L´étourdi, chamara esse efeito de étourdit ou aturdito, aquilo que se diz e permanece esquecido atrás do que foi dito naquilo que se ouve. “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”. (LACAN, 2003: 449).
  • Bairon Oswaldo Vélez Escallón é professor de Literatura hispano-americana na Universidade Federal de Santa Maria (Departamento de Letras Estrangeiras Modernas/Centro de Artes e Letras). Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (2014) e Profissional em Estudos Literários da Universidad Nacional de Colombia (2006). Pesquisador, tradutor e autor do livro Do tamanho do mundo. O Páramo de Guimarães Rosa -com um Yavaratê (Pitssburgh: IILI/Revista Iberoamericana, 2018). E-mail: flint1883@yahoo.com.mx

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2017
  • Aceito
    30 Nov 2017
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