HOMENAGEM AO PROFESSOR OCTÁVIO IANNI
Lições do artesanato intelectual: a herança do mestre
Marcelo Seráfico
Doutorando em Sociologia no PPGS/UFRGS
Em livro, escrito em fins da década de 50, intitulado A Imaginação Sociológica, Charles Wright Mills apresenta sugestões riquíssimas para se pensar a prática sociológica. Polemiza ali com correntes do pensamento vinculadas ao que chamava de "empirismo abstrato", bem como com aqueles que transformavam a sociologia em instrumento de um certo "ethos burocrático". Argumenta acerca da impropriedade das discussões teórico-metodológicas não lastreadas em pesquisas empíricas, isto é, sem referência a problemas concretos encontrados no transcurso de investigações. Condena a instrumentalização das Ciências Sociais, tratadas por muitos como mecanismos de dominação, como técnicas refinadas de controle social.
Wright Mills opõe à atitude hermética, burocrática, formalista e instrumental da sociologia, uma prática artesanal. Caracterizada pelo domínio do pesquisador de todo o processo de conhecimento, desde a definição dos temas, passando pela organização dos arquivos e chegando à exposição dos resultados, a atividade do sociólogo consistiria num artesanato intelectual. Tal artesanato permitiria tanto criar as condições para o conhecimento da realidade, quanto liberar a imaginação sociológica de modo a torná-la permeável a novas questões e possibilidades de resposta.
São pelo menos duas as mais significativas implicações dessa atitude. Primeiramente, ela supõe que o sociólogo vincule sua biografia à história, as experiências pessoais aos processos sociais mais amplos. Isto porque é no contraponto entre a trajetória do indivíduo e as condicionantes mais gerais da vida social que residem as chaves, os momentos heurísticos, para a problematização e compreensão da realidade. Em segundo lugar, esse tipo de prática sociológica carrega consigo uma reivindicação: a de manutenção, na sociologia contemporânea ele escreve na década de 50, mas não parece inadequada a defesa do mesmo ponto de vista hoje de uma tradição herdada da sociologia clássica. Segundo Mills, um traço característico dos autores clássicos (Marx, Engels, Weber, Durkheim, mas também Veblen, Mosca, Schumpeter, Lippman, Spencer, Mannheim, Simmel, Thomas e Znanieck) era seu modo de fazer perguntas e de respondê-las. As perguntas, sempre amplas, concernem à totalidade da vida social, às suas transformações e à variedade de indivíduos, homens e mulheres, que a povoam. As respostas permitem articular concepções sobre a sociedade, sobre a biografia e, também, sobre a história, vistas como dimensões de uma mesma realidade. Além disso, os temas e problemas levantados pelos clássicos revestiam-se de interesse público, versavam sobre questões públicas, sobre impasses e dramas experimentados por homens e mulheres.
Não é à toa que nas obras clássicas as vigorosas interpretações de situações concretas convertem-se em orientações para pensar outras realidades. As perguntas nelas propostas e as explicações apresentadas resultam, de um lado, em conhecimento crítico sobre estruturas, processos e relações sociais concretas e, de outro, em magníficas imagens do Homem, em seus dilemas, conflitos, caminhos e descaminhos.
Assumir essa herança não é tarefa fácil. Exige a dedicação de artesão rigoroso, imaginativo, aberto ao novo, imerso, mas não afogado por seu ofício.
Se algum termo pode definir Octávio Ianni, parece-me que é o de artesão intelectual. Como tal, o Professor Ianni incorporou e enriqueceu a herança dos clássicos, tornando-se ele mesmo uma referência necessária da sociologia e do fazer sociológico.
Raças e Classes Sociais no Brasil, Industrialização e Desenvolvimento Social no Brasil, Estado e Capitalismo, Estado e Planejamento Econômico no Brasil, Ditadura e Agricultura, A Luta pela Terra, Origens Agrárias do Estado Brasileiro, O Colapso do Populismo no Brasil, A Ditadura do Grande Capital, As Metamorfoses do Escravo, A Idéia de Brasil Moderno, A Globalização e o Retorno da Questão Nacional, A Era do Globalismo, Teorias da Globalização, Enigmas da Modernidade Mundo, A Polêmica sobre Ciências e Humanidades, Imperialismo e Cultura, Sociologia da Cultura, Sociologia da Sociologia, Sociologia da Sociologia Latino-Americana, Colonização e Contra-Reforma Agrária na Amazônia, Imperialismo na América Latina, O ABC da Classe Operária e tantos outros títulos são emblemas da dedicação com que Octávio Ianni buscou decifrar, deslindar a realidade brasileira, latino-americana e mundial.
Com a mesma serenidade que ministrava suas aulas, orientava os alunos e lidava com sua própria produção acadêmica. Ao invés da vaidade que por muito menos se apodera de alguns espíritos nas universidades, Ianni combinava à sua infinita curiosidade e ao incondicional compromisso com uma visão emancipatória do Homem, a humildade. Essas características faziam com que seu encanto pelo conhecimento atingisse quem o conhecia.
Esse encanto se revelava nos diálogos entusiasmados e polêmicos que mantinha com todos, sem distinção; e também no empenho em compreender e expor idéias alheias. Insistia na necessidade de "entender os demônios do autor". Para tanto, instigava a todos que mergulhassem no pensamento do outro, procurando apanhá-lo em sua essência e nas nuances. Feita essa projeção, depois de "colocar-se na pele" de quem se queria entender, recomendava que se testassem as hipóteses e pressupostos em jogo, submetendo-os à crítica imanente, o que desvelaria os limites e possibilidades do pensamento em análise.
A pedagogia e a sociologia de Octávio Ianni eram assim, libertárias, comprometidas com o projeto de construção de indivíduos e coletividades autônomos. Através delas se tomava consciência do imperativo de compreender o outro, de fazer-se por ele compreendido e, com isso, de promover o esclarecimento de todos. É evidente que isso significava luta. Ianni travou-a bravamente em vários frontes, sendo a universidade um dos principais.
É por essas e outras razões que sua morte deixa uma enorme lacuna no ambiente universitário brasileiro. Deixa, ainda, um vazio irreparável nas Ciências Sociais. Mas também lega um exemplo de quão profícuo é o artesanato intelectual. É ele que libera a imaginação sociológica e, ao liberá-la, permite tanto forjar imagens fortíssimas de nossa complexa sociedade, quanto o surgimento de homens da envergadura de Octávio Ianni, um gigante da sociologia.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Set 2004 -
Data do Fascículo
Jun 2004