Open-access Teoria crítica e sociologia do trabalho e do mercado

Critical theory and sociology of work and of the market

Teoría crítica y sociología del trabajo y del mercado

Resumo

Em sua história centenária, a tradição de pensamento conhecida como teoria crítica da sociedade, inicialmente associada à Escola de Frankfurt e posteriormente desenvolvida como uma ampla perspectiva teórica, atribuiu lugar central ao trabalho, seja por meio da reflexão conceitual sobre essa categoria seja por meio de análises histórico-diagnósticas das transformações nas atividades concretas de trabalho. Assim, às vezes de modo mais estreito, outras de modo mais tenso, a teoria crítica buscou conectar a dimensão normativa da atividade genérica do trabalho com a investigação sobre dimensões intersubjetivas e morais das relações que envolvem o mercado de trabalho. No presente texto, apresentamos introdutoriamente a trajetória do conceito de trabalho e da análise do mercado capitalista na teoria crítica, tomando por base os textos que compõem o dossiê “Teoria crítica e sociologia do trabalho e do mercado”, apresentado na sequência. Além de comentar brevemente os textos do dossiê, indicamos sua conexão com a tentativa mais recente de retomar o tema no âmbito da teoria crítica, a monografia de Axel Honneth, lançada em 2023, chamada O trabalhador soberano. Uma teoria normativa do trabalho.

Palavras- chave Teoria crítica; trabalho; mercado

Abstract

Over its century-long history, Critical Theory, initially associated with the Frankfurt School and latter developed to a broad theoretical perspective, has given pride of place to labor studies, either through conceptual reflections on the category of work or through historical-diagnostic analyses about changes in the reality of labor activities. Thus, sometimes more closely, sometimes more tensely, Critical Theory sought to connect a normative dimension of the general human activity of work with research into the intersubjective and moral dimensions of the relationships involved in the labor market. In this article, we present an overview of the trajectory within Critical Theory of the concept of labor and the analysis of the capitalist market. To do that, we take as our departing point the articles that build up this dossier “Critical Theory and sociology of work and of the market”, presented in the following pages. Besides briefly commenting the individual contributions to the dossier, we indicate their connections with the most recent attempt to discuss the matter within Critical Theory, namely Axel Honneth’s 2023 book, Der arbeitende Souverän.

Keywords Critical Theory; work; labor market

Resumen

A lo largo de su historia centenaria, la tradición de pensamiento conocida como teoría crítica de la sociedad, asociada inicialmente a la Escuela de Frankfurt y desarrollada posteriormente como una perspectiva teórica amplia, ha concedido un lugar central al trabajo, tanto a través de la reflexión conceptual sobre esta categoría como mediante análisis histórico-diagnósticas de las transformaciones de las actividades laborales concretas. Así, a veces de forma más estrecha, otras veces más tensa, la teoría crítica ha tratado de conectar la dimensión normativa de la actividad genérica del trabajo con la investigación de las dimensiones intersubjetivas y morales de las relaciones que implican al mercado de trabajo. En este texto, hacemos una presentación introductoria de la trayectoria del concepto de trabajo y del análisis del mercado capitalista en la teoría crítica, a partir de los textos que componen el dossier “Teoría crítica y sociología del trabajo y del mercado”, presentado a continuación. Además de comentar brevemente los textos del dossier, indicamos su conexión con un intento más reciente de retomar el tema en el contexto de la teoría crítica, la monografía de Axel Honneth, publicada en 2023, titulada Der arbeitende Souverän.

Palabras clave Teoría crítica; trabajo; mercado

Desde sua fundação, a assim chamada teoria crítica da sociedade atribuiu aos estudos sobre o trabalho um lugar de destaque. Por um lado, embora fosse um empreendimento multidisciplinar, a intenção dos autores associados à teoria crítica era explicitamente diagnosticar tensões próprias das (então jovens) sociedades capitalistas; por outro lado, reconhecendo a influência da teoria de Karl Marx em sua gênese, os teóricos críticos não se furtavam a estabelecer um diálogo com toda a tradição da pesquisa sociológica, empírica ou teórica. Assim, assumindo a centralidade das relações sociais de trabalho e de mercado nas sociedades capitalistas, a teoria crítica foi capaz de tomar essa esfera social como um objeto de análise no qual não apenas a emergência de uma sociedade de compra e venda da força de trabalho deveria ser objeto de explicação sociológica, mas também as dimensões intersubjetivas e morais dessas relações. Ao longo do último século, então, para além do diálogo com a tradição clássica da sociologia de Marx, Émile Durkheim e Max Weber, a teoria crítica também se ocupou com a atualização de diagnósticos a respeito das dinâmicas de integração social e conflitos no mundo do trabalho e no mercado, particularmente a partir de investigações a respeito da situação social das relações intersubjetivas e morais diante das mudanças pelas quais passou o modo de produção capitalista, bem como dos efeitos que essas mudanças trouxeram para a própria conformação de temas de investigação no mundo do trabalho. É por isso que, assumindo um forte caráter teórico desde sua fundação, a teoria crítica – também desde seu início – esteve sempre ocupada com a atualização de seus objetos, incluídas aí mudanças estruturais nas relações de trabalho que resultam na compreensão de que, por um lado, se a classe trabalhadora de modo algum pode ser concebida nas mesmas linhas em que o pioneiro estudo liderado por Max Horkheimer (2006) sobre “Autoridade e família” o fizera, por outro lado, o mundo das relações de trabalho continua sempre a comportar relações intersubjetivas e morais nas quais se reflete de modo privilegiado a conexão entre potenciais de transformação social e motivos de crítica socialmente enraizada. Embora não se fale mais de trabalho exclusivamente no sentido de um proletariado industrial, mas de um conjunto de atividades que incluem o autoemprego e se imiscuem no universo das interdependências pessoais e nas esferas antes tidas como domésticas e separadas do espaço público do mercado formal regido por contratos, a linha de continuidade proposta pela teoria crítica quanto ao trabalho diz respeito à incontornável disposição que o trabalho possui para representar normas de cooperação e interdependência positiva, a despeito de, no capitalismo, esta atividade comportar também a realidade fática da alienação, da perda de autonomia e do tendencial bloqueio à soberania (Honneth, 2023). Assim, desde seu início, estiveram unidas nos esforços da teoria crítica a reflexão normativa e a análise crítica de matriz sociológica e histórica, resultando no permanente engajamento de suas e seus praticantes com a reflexão a respeito da relação entre o horizonte normativo e as práticas sociais encontradas na esfera do trabalho e expressas em suas constantes transformações.

Não foram outras as razões que levaram a que diferentes autoras e autores associados direta ou indiretamente com esta tradição tenham se ocupado com a teorização da sociedade do trabalho, ainda que em diversos momentos a tônica tenha sido exatamente a tensão entre a preservação ou o abandono do paradigma do trabalho como nexo central das sociedades capitalistas. Paradigmática dessa tensão – e por isso mesmo amplamente discutida – foi a tese de Claus Offe a respeito da emergência da sociedade de serviços, que colocaria em xeque a ideia de que o trabalho é a categoria chave da sociologia. Quase quatro décadas após sua formulação, a questão colocada por Offe, porém, continua a instigar reflexões precisamente porque, ao se perguntar se o trabalho continuaria a ser a categoria chave para a análise das sociedades capitalistas, a tese também arriscava uma inversão na economia interna da teoria crítica, trazendo ao centro do palco investigações empíricas sobre a dimensão organizativa do trabalho para além de sua feição industrial e questionando o quão adequados permaneceriam os pressupostos teóricos associados a uma crítica do capitalismo, se o núcleo estruturante desse sistema começava a se espraiar para além da atividade industrial e em direção à prestação de serviços. Curiosamente, o questionamento sobre a centralidade do trabalho se dava em um momento em que, lideradas por teóricas feministas como Nancy Fraser (1985), críticas ao silêncio da Teoria Crítica quanto ao caráter político e estruturante do trabalho doméstico e da esfera privada permitiram recalibrar a análise da crise da sociedade do trabalho de modo a ampliar, mais do que restringir, o escopo da observação sobre as relações intersubjetivas e morais no mercado capitalista; ainda que não fosse essa a preocupação central de Fraser, ao chamar atenção para a miríade de atividades e ocupações que escapavam ao olhar centrado no trabalho realizado no mercado público, a crítica feminista abriu caminhos para que não apenas novas agentes do trabalho fossem observadas, mas também, décadas depois, para que as pré-condições de formação do mercado capitalista também passassem a ocupar a atenção da teoria crítica (Fraser; Jaeggi, 2020). Voltando à tese de Offe, ali a relação entre o horizonte normativo e as práticas sociais já dava as caras, porém, ressaltando como as transformações no desenvolvimento sistêmico do trabalho e dos mercados pressionavam as condições de obtenção de autorrealização, satisfação de necessidades e interdependência. Mais do que uma crítica pontual do trabalho, as pesquisas realizadas por ele em um momento de transformações decisivas nas relações de empregabilidade, obtenção de satisfação material e simbólica e, também, de pretensões intersubjetivas indicavam a capacidade da teoria crítica de contribuir para uma economia política do presente.

E é diante de um momento de semelhante fecundidade teórica que as autoras e os autores deste dossiê acreditam que a teoria crítica se encontra, novamente. O retorno do paradigma do trabalho ao centro de análise das sociedades capitalistas se faz, nas atuais circunstâncias, motivado pela difusão de um novo conjunto de estruturas de trabalho – pós-industrial, generalizadamente precarizado e individualizado a partir da difusão de plataformas que se tornam seu veículo central – para as quais as reflexões teóricas sobre intersubjetividade e moral precisam se fazer acompanhar por investigações a respeito das estruturas de reconhecimento e das possibilidades de formação de identidades individuais neste novo contexto. Nesse sentido, este dossiê não procura oferecer um novo diagnóstico sobre o trabalho e o mercado nas sociedades contemporâneas (embora este seja o contexto do qual as reflexões aqui reunidas emergem). Antes, o que nos motivou a organizar este conjunto de textos é fornecer recursos teóricos e empíricos para a reflexão sobre as consequências normativas das transformações do presente para a divisão social do trabalho e, também, para a teoria crítica do trabalho e dos mercados.

Desse modo, o dossiê “Teoria Crítica e sociologia do trabalho e dos mercados” tem por objetivo oferecer um panorama de discussões sobre a sociologia do trabalho e dos mercados no âmbito da teoria crítica da sociedade. A fim alcançar este objetivo, o dossiê articulou reflexões teórico-normativas, empíricas e histórico-analíticas. O conjunto de textos aqui reunidos procurou responder a dois complexos de problemas complementares: por um lado, de que modo o diálogo entre a teoria crítica e a sociologia do trabalho responde às mudanças generalizadamente identificadas pela literatura recente nas relações de trabalho e dos mercados, marcadas pela aceleração da desindustrialização e das formas individualizadas de inserção laboral? Por outro lado, quais efeitos normativos se deixam identificar a partir de pesquisas recentes sobre as relações intersubjetivas e morais que permeiam e dão sustentação à existência de mercados de compra e venda da força de trabalho no atual contexto?

O dossiê começa com um texto inédito de Stephan Voswinkel, redigido para publicação em Sociologias. Em seu texto, intitulado “Sociologia do trabalho e desigualdade social: o ‘valor social da força de trabalho’”, Voswinkel apresenta, por meio do conceito de “valor social da força de trabalho”, uma contribuição muito original para a discussão em torno da configuração atual do conflito entre capital e trabalho, uma vez que mantém a noção de valor-trabalho, conforme recuperada de sua versão original em Marx, ao mesmo tempo que a atualiza no sentido de incluir suas condicionantes sociais, graças à influência da teoria sociológica francesa, em particular de Pierre Bourdieu. Desse modo, Voswinkel adota uma perspectiva fronteiriça entre o conceito teórico de trabalho, a sociologia do trabalho e das organizações, a sociologia dos mercados e a sociologia das desigualdades sociais, mostrando as limitações presentes em uma análise restritiva do trabalho enquanto emprego ou trabalho remunerado – que corresponderia, do outro lado, ao problema presente na análise das desigualdades sociais de forma apartada da dimensão do trabalho. A expansão do conceito de trabalho significa, para Voswinkel, não somente ampliar o objeto de análise (para o trabalho reprodutivo, o trabalho não remunerado ou o trabalho informal, por exemplo), mas implica também uma abordagem distinta, que não retira, mas integra as relações sociais de desigualdade materiais e sobretudo simbólicas na composição do “valor” da força de trabalho. Para isso, Voswinkel relaciona de um modo original as dimensões material e socialmente condicionadas do valor-trabalho e compõe uma análise complexa dessa relação a partir de uma perspectiva presente: ele leva em conta as transformações no conceito de trabalho, como já mencionado, mas também, e principalmente, não se furta de refletir sobre as condicionantes sociais do valor-trabalho presentes na atual estruturação do trabalho. Dessa forma, aparecem em seu artigo tanto a leitura das formas de segregação baseadas em classe, raça e gênero – juntamente às formas de trabalho, como o trabalho material/braçal, o trabalho reprodutivo, do cuidado, o trabalho informal e precarizado –, quanto a reflexão sobre novas assimetrias criadas pelos processos de globalização do trabalho, de sua estruturação transnacional e pelos processos migratórios. A compreensão de como essas (velhas e novas) dinâmicas impactam o “valor social da força de trabalho” não somente em razão de mecanismos sociais de discriminação, mas especialmente em razão de sua apropriação funcional pelo capital em prol da maior extração do mais-produto, demonstra, segundo Voswinkel, como as lutas antidiscriminatórias – tais como a antirracista e feminista – não se opõem às demandas na esfera do trabalho. Muito antes, elas podem representar uma importante contribuição para a luta contra a exploração, ou melhor, a dominação presente na relação entre capital e trabalho. E, nesse sentido, o texto de Voswinkel é tanto uma atualização conceitual transversal, quanto um diagnóstico do tempo presente.

Em “Uma leitura sobre trabalho e teoria crítica”, Stefan Fornos Klein e João Paulo Bachur oferecem uma reconstrução histórica da categoria “trabalho” na teoria crítica frankfurtiana. De acordo com eles, a categoria “trabalho” tem presença contínua nas diferentes fases da teoria crítica, mesmo que seu sentido e emprego oscilem durante o tempo em razão das transformações estruturais próprias do capitalismo. Perseguindo esta tese, os autores abordam três estações em seu panorama, que correspondem a diferentes chaves de leitura históricas: a adoção do conceito de reificação próprio de uma “primeira geração” da Escola de Frankfurt, o diagnóstico do “fim da sociedade do trabalho” a partir da década de 1970 e, mais recentemente, a retomada do conceito de “trabalho” de uma perspectiva mais ampla da crítica do capitalismo, atrelando-a a outras formas de dominação. O primeiro momento é marcado, segundo Klein e Bachur, pelas teses da reificação e da sociedade administrada, sendo, portanto, dependentes de uma leitura da forma-mercadoria em Marx, do seu desenvolvimento em Georg Lukács e da tese da racionalização de Weber. Para isso, os autores tratam não somente de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno em sua Dialética do esclarecimento, mas também dos resultados das pesquisas de Friedrich Pollock e Herbert Marcuse, apresentando as interpretações e estudos que contribuem para o quadro mais geral do diagnóstico “marxista weberiano” deste primeiro momento. Ao final desta primeira “geração”, o Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt passa a se dedicar, na década de 1970, à chamada “sociologia industrial”. Trata-se de um período, como bem mencionam os autores, em geral negligenciado, não por último em razão da ressonância de uma outra perspectiva, expressa na tese – que não se restringe somente à teoria crítica – do “fim da sociedade do trabalho”, a qual é muito bem representada por Jürgen Habermas. Em relação a este segundo momento, os autores tratam das teses de Habermas – e inicialmente também de Offe – e de suas consequências para o esvaziamento do conceito de “trabalho”, não mais visto como uma categoria analítica profícua para a pesquisa social. Este esvaziamento não parte de uma simples postura teórica, para Habermas, mas tem relação direta com a crise do Estado social, da “sociedade do trabalho”, o que resulta na perda do potencial analítico da categoria “trabalho” para o âmbito da interação social. O terceiro período, mais recente, apontaria para dois caminhos na revitalização de um conceito de trabalho: por um lado a adoção de autores e preceitos teóricos bem distintos das maneiras mais usuais, como a leitura que Honneth faz, por exemplo, de Hegel, Durkheim e George Herbert Mead, e, por outro lado, a retomada e releitura das críticas ao capitalismo fundamentadas em maior ou menor grau em Marx, como fazem Fraser, Rahel Jaeggi, Stephan Lessenich e Klaus Dörre. Esta é uma das grandes contribuições deste texto, a saber, o esforço de integrar as teses e diagnósticos mais recentes, como as de Jaeggi, Lessenich e Dörre, à produção teórica da Escola de Frankfurt a partir da temática do “trabalho” na sociedade capitalista.

Em “Desreconhecimento e demarcação simbólica no trabalho doméstico: o progresso moral posto à prova”, Cinara L. Rosenfield e Luciana Garcia de Mello tomam como ponto de partida uma pesquisa empírico-analítica sobre o trabalho doméstico no Brasil a fim de refletirem sobre uma questão central da teoria crítica recente, a saber, a ideia de progresso moral. Valendo-se do instrumental teórico do reconhecimento e do conceito de desreconhecimento, as autoras reconstroem de modo frutífero uma tensão frequentemente ignorada pelas teorias do trabalho entre a consolidação de normas jurídicas e a reprodução de padrões de denegação de direitos. Nesse movimento, Rosenfield e Mello colocam em tela uma séria objeção à tradição de dualismo analítico que permeia as gerações recentes da teoria crítica, uma vez que, ao invés de separarem conceitualmente os processos de transformação normativa do diagnóstico de patologias ou falsos desenvolvimentos, as autoras identificam uma ambiguidade interna à própria consolidação e ao reconhecimento de uma forma jurídica. Em uma pesquisa empírico-documental sobre a assim chamada “Lei das domésticas” e seus efeitos, elas encontram em relatos publicados na página de Facebook “Eu empregada doméstica”, criada pela rapper e professora de história, Preta Rara, um impressionante conjunto de falas e posicionamentos que revelam a intersecção entre práticas de subordinação e expressões de reconhecimento interpessoal que desafiam a formalização jurídica de direitos das trabalhadoras domésticas. Antes, apesar do avanço na esfera dos direitos formais, são identificadas reposições de formas degradadas de sociabilidade e de denegação do reconhecimento, de modo que a tradicional ambiguidade das relações interpessoais na sociedade brasileira recebe com o artigo um exemplo muito bem acabado, mas que adiciona um achado teórico fundamental à questão ao constatar que o mundo do direito não se contrapõe – como reconhecimento – ao mundo das relações privadas tidas como arcaicas; antes, mesmo dentro do universo do progresso moral, as formas de denegação de um horizonte normativo se colocam como questões políticas e morais. Na junção da reflexão teórica e da pesquisa empírica, então, Rosenfield e Mello fornecem tanto uma crítica das simplificações teóricas quanto uma instigante reflexão a respeito do paradoxo resultante do avanço jurídico conquistado ao mesmo tempo em que se mantém o menosprezo moral, expresso em três tipos de práticas negativas de reconhecimento: primeiro, a incapacidade de reconhecer aquilo que o sujeito considera digno de reconhecimento, segundo, o reconhecimento distorcido ou ideológico, atribuindo valores (e fazendo exigências) a atividades e disposições ao trabalho das domésticas de modo injusto e, finalmente, a denegação do reconhecimento. Sem negar a importância da Lei das domésticas, Cinara Rosenfield e Luciana Mello concluem seu artigo dialogando com outras autoras e autores que se ocuparam das relações de reconhecimento e de desigualdade no Brasil explicitando que, a despeito dos avanços morais, a reposição do menosprezo e da exploração é uma tendência igualmente forte.

No artigo “Quem somos nós quando trabalhamos? Identidade social no mercado em Smith e Hegel”, Lisa Herzog apresenta uma visão, em certa medida contraintuitiva, da relação entre indivíduo e sociedade para estes dois autores – Adam Smith e Hegel – na dimensão da sociabilização e em comparação com o mercado de trabalho. Contraintuitiva porque ela enfrenta a interpretação largamente aceita de que Smith adotaria um conceito de indivíduo socialmente “desenraizado”, como simples homo economicus, enquanto Hegel poderia ser visto como um “contextualista”. Para sua crítica a estas concepções, ela pesquisa a filosofia moral de Smith – sobretudo no livro Teoria dos sentimentos morais (Smith, 1984) –, demonstrando que, para ele, o ser humano é em grande medida um ser social. Segundo Herzog, os seres humanos estariam, para Smith, “enraizados nas estruturas sociais de seus círculos privados de família, vizinhança e amizade” (Herzog, 2024, neste dossiê, p. 14); sua conexão por “empatia” – uma espécie de “reconhecimento”, como menciona Herzog – acompanharia os indivíduos por toda a sua vida. Nesse sentido, a concepção de indivíduo na filosofia moral de Smith não se oporia diametralmente – como sugere uma imagem equivocada do indivíduo atomizado smithiano – à de Hegel. Da mesma forma, o indivíduo hegeliano não pode ser visto como completamente abrangido pela totalidade social, mas preservaria igualmente seu arbítrio, sua liberdade individual, na leitura de Herzog. E isso vale, por exemplo, justamente para a escolha individual sobre qual papel desempenhar na sociedade civil, ou seja, na divisão do trabalho moderna. É a partir deste ponto que Herzog apresenta o aspecto mais relevante de seu texto: o tratamento que Smith e Hegel dão ao tema da identidade profissional no mercado, ou seja, na sociedade civil. Neste ponto, a divergência entre os autores por ela analisados seria real, pois para Hegel o ser humano, apesar de escolher livremente sua profissão, persistiria então como “ser social” também na sociedade civil, no mercado de trabalho, enquanto para Smith este seria o lócus em que os indivíduos podem sim serem entendidos como “atomizados”. Herzog afirma, nesse sentido, que “o clichê de uma figura humana completamente atomizada, em Smith, e uma completamente enraizada, em Hegel, é, com relação às suas teorias, inadequado como um todo. No que se refere ao mercado de trabalho, no entanto, ele tem certa razão” (Herzog, 2024, neste dossiê, p. 29). Para Smith, o papel desempenhado na divisão do trabalho não é determinante para a formação da identidade dos indivíduos. Do mesmo modo que alguns agentes no mercado possuem capital, as trabalhadoras e trabalhadores possuiriam sua força de trabalho: determinadas capacidades e habilidades que podem ser empregadas em diversos setores e em diferentes ocupações. Por esta razão, Herzog afirma que Smith deveria ser visto como precursor da noção de “capital humano”. Haveria, para ele, uma separação entre a identidade dos indivíduos e sua ação no mercado, onde os indivíduos investem não a si mesmos, mas seu capital. Hegel teria, por outro lado, uma concepção muito mais substantiva do trabalho na sociedade civil. A escolha e desenvolvimento de uma profissão teria um significado muito mais profundo para os indivíduos, o trabalho seria constitutivo de sua identidade, ou seja, faz parte daquilo que os indivíduos efetivamente “são” e não somente de algo que elas e eles “têm”. A profissão, percebida neste contexto germânico como “vocação” – a exemplo do uso do conceito de Beruf –, não é, portanto, facilmente cambiável. As concepções de Smith e Hegel sobre o mercado de trabalho colocam, segundo Herzog, diferentes desafios à reflexão sobre as atuais (re)estruturações do trabalho no mercado capitalista. Este debate demonstra claramente, para ela, que a importante reflexão sobre a economia e o mercado de trabalho se constitui em uma tarefa primordial também da filosofia social.

O artigo de Herzog, além disso, é uma importante contribuição em um campo de estudos que vem se disseminando largamente fora do Brasil, a teoria normativa dos mercados capitalistas. Embora a crítica normativa do modo de produção capitalista remonte, pelo menos, aos socialistas utópicos (Honneth, 2015, cap. 1), nas últimas décadas tem ganhado corpo uma literatura que trata dos princípios normativos implícitos no mercado, distinguindo a esfera do mercado e o modo de produção capitalista (Honneth, 2011, 2020a). Essa literatura tem desmistificado criticamente a leitura tradicional de Adam Smith, tanto objetando à sua interpretação ortodoxa como defensor irrestrito da divisão do trabalho social como princípio de maximização irrestrita de disposições pessoais, quanto resgatando-o do sequestro que ideólogos do regime neoliberal realizam de sua herança intelectual (Herzog, 2013, cap. 2), mas também reavaliado aspectos sociológicos presentes já na obra de Hegel (cf. a coletânea organizada por Andrew Buchwalter, 2015), o que, por sua vez, resulta numa aproximação entre esse autor e teoria sociológica do trabalho, mas desde um ponto de vista diferente da tradicional inversão marxista.

Identificando no projeto de uma crítica da economia política, conforme formulada em O capital (Marx, 2011), a grandeza da descoberta da disposição sistemática à valorização incessante do capital por meio da ampliação contínua da exploração da força de trabalho, essas perspectivas neo-hegelianas objetam que a concepção da sociedade como um todo enquanto relações de produção acaba por depenar a teoria marxista de seu potencial de análise da dimensão política do capitalismo, com seus avanços, disputas e regressões (Honneth, 2018, 2020b). Axel Honneth, talvez o grande representante da atual revitalização da teoria política e econômica de matriz hegeliana – certamente, hoje, seu mais arguto proponente na teoria crítica –, porém, é explícito quanto ao despropósito que seria procurar atualizar a filosofia política de Hegel no presente. Segundo o autor, o único caminho para tornar frutífera a amplitude da visão hegeliana sobre o então nascente sistema capitalista – amplitude que a tornava mais adequada, em termos analítico-descritivos, aos propósitos de uma teoria da sociedade do que à profunda incontornável, porém tendencialmente unidimensional crítica de Marx – é a destilação de seus pressupostos teóricos por meio de uma reconstrução normativa dos ideais e valores que habitam essas esfera de sociabilidade e a ela emprestam sua dimensão de integração social, mais do que de mera produção e distribuição econômicas. É nesse sentido que, surpreendentemente, a aproximação da matriz hegeliana com a sociologia se dá através do conceito durkheimiano de “divisão do trabalho social” (cf. Thijssen, 2012), cuja atualização, por sua vez, é o tema do texto que traduzimos para fechar o dossiê.

O texto “Democracia e divisão do trabalho social. Mais um capítulo negligenciado da filosofia política”, de Axel Honneth, que conta com uma apresentação mais detalhada dos tradutores do texto para este dossiê (Honneth; Sobottka; Souza; Simim, 2024), apresenta de maneira fundamental a relação direta entre o mundo do trabalho e a qualidade da democracia e demonstra a intenção de Honneth no aprofundamento do estudo deste vínculo, o qual resultou, em 2023, na publicação do livro “O trabalhador soberano” (Honneth, 2023). O livro, publicado após a preparação e proposta do dossiê, desdobra a ideia, central no artigo aqui traduzido, de que a teoria política do presente se ressente da falta de atenção à dimensão empírica da vida dos sujeitos da teoria. É dizer: aquelas e aqueles que são pensadas e pensados nas teorias normativas como sujeitos soberanos e capazes de definir os rumos de suas vidas por meio da participação na formação da vontade geral e do exercício da autonomia são, também, sujeitos que trabalham em condições desregulamentadas, precárias e moralmente degradadas, de modo que o vínculo entre as formas de interdependência – objeto da longa tradição que se inicia com Hegel e chega aos dias de hoje passando por Marx, Durkheim, John Dewey, Carole Pateman e Erik Olin Wright – e qualidade da participação democrática é o tema da reflexão e do esboço de uma teoria normativa do trabalho e do mercado.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2023
  • Aceito
    27 Fev 2024
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