Resumos
Estudo analítico abordando os aspectos estruturais da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Franco de Sá Santoro (1919-1989), que propõe uma segmentação formal a partir da análise motívica da obra, identificando seus elementos constitutivos e procurando elaborar e responder questões investigativas. Ao fornecer subsídios que possam auxiliar o instrumentista em suas escolhas interpretativas, busca-se aprofundar o conhecimento geral na área de execução musical instrumental e em particular de obras brasileiras contemporâneas.
Claudio Santoro; Fantasia Sul América; repertório para clarineta; análise musical e interpretação
Analytical study about structural aspects of Fantasia Sul América for solo clarinet by Claudio Franco de Sá Santoro (1919-1989). It proposes a formal segmentation based on motivic analysis in order to show its constituent elements. It raises investigative questions and provides subsidies that may help players in interpretative choices. It aims at contributing to deepen general knowledge in instrumental musical performance, especially of Brazilian contemporary works.
Claudio Santoro; Fantasia Sul América; Brazilian music for clarinet; musical analysis and performance
ARTIGOS CIENTÍFICOS
Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro: uma análise
Fantasia Sul América for clarinet solo by Claudio Santoro: an analysis
Gueber Pessoa SantosI; Ricardo Mazzini BordiniII
IUFBA, Salvador, BA, gpspostal1@hotmail.com
IIUFBA, Salvador, BA, bordini@ufba.br
RESUMO
Estudo analítico abordando os aspectos estruturais da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Franco de Sá Santoro (1919-1989), que propõe uma segmentação formal a partir da análise motívica da obra, identificando seus elementos constitutivos e procurando elaborar e responder questões investigativas. Ao fornecer subsídios que possam auxiliar o instrumentista em suas escolhas interpretativas, busca-se aprofundar o conhecimento geral na área de execução musical instrumental e em particular de obras brasileiras contemporâneas.
Palavras-chave: Claudio Santoro; Fantasia Sul América; repertório para clarineta; análise musical e interpretação.
ABSTRACT
Analytical study about structural aspects of Fantasia Sul América for solo clarinet by Claudio Franco de Sá Santoro (1919-1989). It proposes a formal segmentation based on motivic analysis in order to show its constituent elements. It raises investigative questions and provides subsidies that may help players in interpretative choices. It aims at contributing to deepen general knowledge in instrumental musical performance, especially of Brazilian contemporary works.
Keywords: Claudio Santoro; Fantasia Sul América; Brazilian music for clarinet; musical analysis and performance.
1 - Introdução
Embora tenhamos o registro da composição de importantes obras para clarineta solo durante o século XIX, a exemplo dos Trois caprices pour clarinette seule (1808), compostos pelo clarinetista austríaco Anton Stadler, e do Studio Primo per Clarinetto (1821), do compositor italiano Gaetano Donizetti, é a partir do século XX que o repertório para essa modalidade instrumental começa a aumentar consideravelmente. Nesse período, destacamos as Three Pieces (1918) para clarineta solo do compositor Igor Stravinsky como sendo um marco histórico e um divisor de águas na literatura dessa modalidade instrumental. Assim, a partir da década de 1950, o número de publicações de obras para clarineta solo continuou crescendo, inclusive entre os compositores provenientes da América Latina.
No Brasil, podemos citar os compositores Ronaldo Miranda, Osvaldo Lacerda, Claudio Santoro, Fernando Cerqueira e Eli-Eri Moura, dentre vários outros compositores que, em todas as regiões do país, se dedicaram à composição de obras para clarineta solo a partir do século XX. Desses, Claudio Santoro, por exemplo, compôs duas importantes obras da literatura brasileira para essa modalidade instrumental, quais sejam: as Três peças para Clarineta Solo (1942) e a Fantasia Sul América (1983) 11 Vídeo contendo performance musical ao vivo da Fantasia Sul América para clarineta solo (1983) de Claudio Santoro. Nele, a peça é executada por Gueber Pessoa Santos durante o 9º Encontro Brasileiro de Clarinetistas, realizado em junho de 2010 na cidade de Brasília (DF). Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=PSdfMTSuUZQ>. Acesso em: 15 abr. 2012., sendo essa última o objeto de estudo do presente trabalho.
Desse modo, o presente texto realiza uma análise acerca dos aspectos estruturais da Fantasia Sul América para clarineta solo utilizando a teoria de conjuntos de classes de notas22 No presente trabalho, os autores seguem a nomenclatura utilizada por Joseph Nathan Straus no que se refere à teoria de conjuntos de classes de notas (STRAUS, 2005).. Sua importância se justifica por buscar oferecer subsídios que possam auxiliar o executante em suas escolhas interpretativas, além de contribuir para tornar a difusão desse repertório mais abrangente e dinâmica, como também divulgar a obra de um exímio compositor brasileiro.
2 - Claudio Franco de Sá Santoro
O compositor, instrumentista, pesquisador, professor e regente, Claudio Franco de Sá Santoro nasceu em 23 de novembro de 1919 na cidade de Manaus (AM). Aos 10 anos de idade foi presenteado com um violino e um método de teoria e solfejo pelo seu tio Attilio. Logo em seguida, recebeu suas primeiras lições musicais de sua tia Iracema Franco de Sá, vindo a estudar posteriormente com o professor Avelino Telmo, um violinista chileno radicado em Manaus. Assim, aos 12 anos de idade, transferiu-se para o Rio de Janeiro onde estudou música com os professores Edgar Guerra, Nadile Barros e Lopes Gonçalves. Formou-se em violino pelo Conservatório do Rio de Janeiro com tal aproveitamento que foi imediatamente admitido como professor adjunto da mesma instituição, onde lecionou harmonia e contraponto, além do violino (MARIZ, 2000, p.303). Devido ao seu extraordinário desempenho no curso de harmonia, foi bastante estimulado pela professora Nadile de Barros a ingressar na área da composição. Em 1941, por questões financeiras, renunciou aos cargos no Conservatório e ingressou como violinista em várias orquestras, a exemplo da Orquestra Sinfônica Brasileira e das orquestras da Rádio Nacional e do Cassino Copacabana.
Paralelamente ao trabalho como violinista, Claudio Santoro desenvolveu a sua veia de compositor e regente. Enquanto compositor, frequentou as aulas do professor alemão Hans Joachim Koellreutter, recém chegado da Alemanha em 1939. Com Koellreutter, Santoro trabalhou os métodos de composição de Hindemith e Shoenberg, além de aprender sobre o dodecafonismo33 O dodecafonismo compreende um sistema composicional construído com base na escala dos 12 sons. Dessa forma, as 12 notas cromáticas da escala de temperamento igual são arrumadas numa ordem particular formando, dessa maneira, uma série que serve de base para a composição musical. Assim, essa série pode ser usada em sua forma original, ou invertida, ou em movimento retrógrado, ou retrógrado invertido. Em cada uma dessas formas a série pode ainda ser transposta para qualquer altura (cada série pode, portanto, ter 48 formas possíveis). Desenvolvimentos posteriores da teoria dodecafônica introduziram a ideia de se utilizar apenas segmentos de seis, quatro ou três notas de uma série como elementos de uma composição. O dodecafonismo, tal como originalmente imaginado por seu criador (Schoenberg), conseguiu romper com a tonalidade, apesar de compositores posteriores, especialmente Berg, terem encontrado meios de utilizar a técnica dodecafônica em um contexto tonal, como de fato fez também o próprio Schoenberg (GROVE, 1994, p.271 e 272). e participar da criação do Música Viva, movimento responsável pela divulgação da música de vanguarda no Brasil e pela revista Música Viva, na qual Santoro publicou diversos artigos. Assim, Claudio Santoro era um músico de notável atuação artística, educacional e política. Por conta disso, recebeu em 1946 uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim para estudar nos Estados Unidos, porém ao negar-se a assinar um documento informando que não era membro do partido comunista (MARIZ, 1994, p.20), Santoro teve seu visto negado para ingressar no país norte-americano. No ano seguinte, Santoro consegue outra bolsa de estudos, dessa vez para estudar composição no Conservatório Nacional de Paris com Nadia Boulanger e regência com Eugène Bigot. Ainda em 1947, o compositor participou do Congresso de Compositores Progressistas, realizado na cidade de Praga. Essa participação representou um marco na vida de Santoro, pois o influenciou diretamente na forma de pensar sobre a produção musical brasileira.
Após os estudos em Paris, Santoro retornou ao Brasil em 1949, mesmo ano em que sua Sinfonia nº 3 (1949) foi premiada no Berkshire Music Center de Boston. Essa sinfonia marcou a ruptura do compositor com o dodecafonismo e deu início a sua fase nacionalista. Na década de 1960, Santoro lecionou na Universidade de Brasília até o ano de 1965, quando se demitiu por não concordar com a demissão de aproximadamente 280 docentes da instituição. Entre os anos de 1971 e 1978, estabeleceu-se na Alemanha onde lecionou na Escola Estatal Superior de Mannheim, continuando a compor de forma intensiva e eclética, inclusive incorporando as novas possibilidades da música eletrônica. Em 1978, Santoro retornou ao Brasil para assumir novamente o Departamento de Música da Universidade de Brasília e organizar e dirigir a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional. Assim, durante toda a sua trajetória Claudio Santoro foi bastante premiado e condecorado com a Ordem do Mérito de Brasília (1986). Seu catálogo inclui mais de 600 obras entre 14 sinfonias, peças orquestrais, música de câmara em variadas formações e obras para instrumento solista, entre as quais, compôs uma série de obras para essa modalidade instrumental na qual todas as peças receberam o mesmo título: Fantasia Sul América.
3 - Fantasia Sul América
Conforme supramencionado, Claudio Santoro compôs um conjunto de obras para instrumento solista intitulado Fantasia Sul América. Assim, o compositor escreveu uma Fantasia Sul América para os seguintes instrumentos: violino, viola, violoncelo, contrabaixo, flauta, oboé, clarineta, fagote, trompete em dó, trompa, trombone, tuba, sax alto, piano, voz, e violão. Segundo Vinícius Fraga, cada uma dessas obras pode funcionar tanto como peça solo quanto concertante, uma vez que todas possuem um acompanhamento orquestral. Além disso, Fraga chama a atenção para o fato de que a Fantasia Sul América para clarineta é praticamente idêntica à da flauta (salvo algumas diferenças de registro), de forma que ambas podem ser executadas com o mesmo acompanhamento orquestral (FRAGA, 2008, p.24).
A Fantasia Sul América para clarineta solo, objeto de estudo do presente trabalho, foi composta em março de 1983 a partir de uma encomenda para o Concurso Jovens Intérpretes da Música Brasileira, do qual Santoro participou da banca (SANTORO, 2012). Em seguida, a peça foi dedicada ao clarinetista pernambucano Luiz Gonzaga Carneiro (Gonzaguinha), amigo do compositor. Assim, o tópico a seguir destina-se a realizar uma segmentação formal a partir da análise motívica da obra, identificando seus elementos constitutivos e procurando elaborar e responder questões investigativas, além de fornecer subsídios que podem auxiliar o executante em suas escolhas interpretativas.
4 - Fantasia Sul América para clarineta solo: análise
A peça encontra-se dividida em duas seções (A e B), que por sua vez se subdividem em quatro subseções (a1, a2, b1 e b2). A Seção A compreende os c.1-20, com a subseção a1 compreendendo os c.1-9 (coincidindo com o término da cadência) e a subseção a2 compreendendo os c.10-20. A Seção B inicia-se no c.21 e vai até o final da peça no c.41, tendo a subseção b1 do c.21-29 e a subseção b2 do c.30-41, conforme demonstra o Ex.1.
O conhecimento acerca da segmentação formal da Fantasia Sul América compreende um importante passo para que o intérprete possa fundamentar suas escolhas interpretativas. A partir deste conhecimento é possível perceber que elementos como cadência44 O termo cadência, no presente trabalho, refere-se à cadenza, termo italiano que indica uma passagem musical a ser executada livremente pelo intérprete., Più Mosso e frullato, por exemplo, não surgem na obra de forma aleatória, como veremos no decorrer do presente trabalho, mas sim, são colocados estrategicamente pelo compositor ao final de cada seção, ou subseção e oferecem coesão à obra. Desse modo, a percepção destes elementos como elementos de coesão pode auxiliar o intérprete na coerência em suas escolhas interpretativas.
Composta para clarineta em Sib55 A clarineta em Sib é um instrumento transpositor no qual as notas lidas na partitura soam uma segunda maior abaixo do que estão escritas. Todos os exemplos nesse trabalho estão conforme aparecem na partitura e, portanto, soam uma segunda maior abaixo., a Fantasia Sul América possui uma grande dramaticidade, com grandes contrastes de dinâmica, andamento e registro. Apresenta notas com grande duração temporal, hierarquicamente importantes, que assumem a função de centros tonais. Em seguida, a peça contrasta esses centros tonais com a aceleração gradual de notas que possuem uma duração temporal bem menor (como fusas, por exemplo), que reconduzem a melodia da obra até outras notas com maiores durações temporais. Explora todos os registros da clarineta66 A clarineta possui uma extensão sonora que abrange do Mi2 ao Dó6, enquanto que a Fantasia Sul América apresenta o Fá2, no compasso 11, como nota mais grave da peça e o Dó6, no compasso 28, como nota mais aguda da mesma. Assim, a Fantasia Sul América explora praticamente toda a extensão sonora do instrumento., desde o grave ao superagudo, além de apresentar planos de dinâmica que vão do pianíssimo ao fortíssimo. "Combinados, fatores como andamento, a atividade rítmica e a variação de dinâmica fornecem uma compreensão mais ampla sobre a Fantasia, reiterada pela forma da sua condução melódica" (FRAGA, 2008, p.49).
As três primeiras notas da peça, de acordo com a teoria pós-tonal, compreendem as classes de notas Fá#- Ré#-Sol (Ex.2a), que dispostas em sua forma normal apresentam-se como [Ré#, Fá#, Sol] (Ex.2b). Essas classes de notas pertencem à classe de conjuntos 3-3 (014), cujo vetor intervalar é (101100). Essa classe de conjuntos permite apenas a geração dos seguintes intervalos: 2ºm (Fá#-Sol), 3ºm (Ré#-Fá#) e 3ºM (Ré#, ou Mib-Sol), além de suas inversões, evidentemente. A classe de conjuntos 3-3 (014) é um subconjunto da coleção Hexatônica, o que define em grande parte a sonoridade característica da peça em virtude do conflito entre a terça menor e a terça maior. Assim, os intervalos de 2ºm, 3ºm e 3ºM aparecem diversas vezes no decorrer da peça e servem como base da estrutura motívica da obra.
A Seção A inicia-se apresentando o motivo principal que define a série geradora do tema cujos intervalos aparecem como estrutura intervalar básica em diversos trechos da obra. Imediatamente no c.2 (Ex.3a), por exemplo, encontramos os intervalos de 3ºm, 3ºM e 2ºm, além de podermos encontrá-los em diversos outros momentos da peça (Ex.3b e Ex.3c), proporcionando assim uma unidade motívica intervalar, conforme veremos a seguir por meio dos Ex.3a, 3b e 3c:
No c.4, podemos eleger as notas Solb4, Láb4 e Réb5 (série de quintas) como pontos de apoio para o executante nesse arpejo, assim como podemos eleger a altura Sol como centro tonal (tonal aqui no sentido de classe de nota, não de tonalidade) nos c.4-5 (Ex.4).
Como demonstra o Ex.5, nos c.8-9, Santoro apresenta uma alternância entre 3ºm e 3ºM, importante e expressiva faceta utilizada pelos compositores pós-tonais para afastar-se da sonoridade tonal e assim, distinguir sua música da música desse sistema, haja vista que os intervalos de 3ºM e 3ºm representam a chave desse sistema de tonalidades maiores e menores. Nesse trecho, sugerimos ao intérprete que execute as tercinas de forma marcada e pesante a fim de valorizar a diferença sonora entre os intervalos de 3ºm e 3ºM, como também um pequeno ritardando nas três últimas colcheias: Sol4-Si4-Sol4, para preparar a cadência melódica que se segue no c.9 (vide Ex.3c acima).
Na cadência melódica do c.9, podemos perceber a forte incidência dos intervalos de 3ºm e 2ºm, e chamamos a atenção para o fato de que as suas últimas quatro notas: Fá5-Mi5-Sol#5-Lá5, ou (5, 4, 8, 9), consequentemente as quatro últimas notas da subseção a1, pertencem à classe de conjuntos 4-7 (0145) que apresenta simetria inversiva a T5I, com eixo de simetria em 2/3 - 8/9; no caso em discussão, em torno de 0/1 - 6/7 (ver Ex.7b abaixo). Essa classe de conjuntos 4-7 (0145) reaparecerá posteriormente exercendo importante função estrutural na obra.
A subseção a2 inicia-se no c.10 e sugere a nota Ré4 como centro tonal. Os c.10-11, e os dois primeiros tempos do c.12, possuem um caráter transitório e conduzem o discurso musical da obra para a melodia que se inicia no terceiro tempo do c.12 e, definitivamente, elege a nota Ré4 como centro tonal do trecho e a coloca como pedal nos próximos c.13-14, resolvendo cromaticamente no Mib4 do terceiro tempo do c.14, conforme demonstra o Ex.6. Nesse trecho, sugerimos ao intérprete que realize um pequeno ritardando nas três últimas notas: Sib2- Solb3-Mib3, que antecedem ao Ré4 como pedal a partir do terceiro tempo do c.12 a fim de criar uma expectativa no ouvinte e prepará-lo para perceber a eleição do Ré4 como pedal e novo centro tonal.
Os c.16-20 compreendem os últimos compassos da subseção a2 e, consequentemente, figuram como os últimos compassos da Seção A. Elegemos as notas Sol#5 (c.16), Sol5 (c.17), Si5 (c.19) e Dó5 (c.20) como importantes centros tonais da estrutura e condução melódica desse trecho (Ex.7a). Essas notas: Sol#-Sol-Si- Dó, ou (8, 7, B, 0), são uma transposição a uma terça menor (T3) das notas: Fá-Mi-Sol#-Lá, ou (5, 4, 8, 9), utilizadas como ápice final da cadência melódica do c.9 e, consequentemente, final da subseção a (Ex.7b). É importante ressaltar também a mudança de andamento por meio da indicação de Più Mosso nos últimos quatro compassos da Seção A (Ex.7a). Chamamos a atenção para o fato de que a Seção A conduziu o Fá#4 do c.1, primeira e mais longa nota da peça, para o Dó5 do c.20 (Ex.7c); que essas alturas mantêm entre si a relação de trítono (três tons inteiros); e que essa relação serviu como base para a estrutura composicional da obra, como veremos no decorrer do presente texto.
A Seção B e, consequentemente, a subseção b1 iniciam-se com a indicação de Tempo I no c.21 e apresentam um Dó#4 que desce cromaticamente até o Lá3 do c.22, como veremos a seguir no Ex.8.
Nos c.23-25, Santoro simula uma polifonia a duas vozes e apresenta, no c.23, essas duas vozes divergindo cromaticamente para o Ré4 (voz superior) e Ré3 (voz inferior). Vale ressaltar que o compositor parte exatamente do Sol#3 no c.23 e que este, além de dividir a oitava entre o Ré3 e o Ré4 exatamente ao meio, funciona como um eixo central entre essas duas notas e estabelece uma relação de trítono com ambas. No c.24, Santoro elege o Ré3 como centro tonal, e este desce, cromaticamente, até o Sib2 do c.25, como demonstra a seguir o Ex.9.
A partir da anacruse do c.26, Santoro inicia uma movimentação e progressão melódica que culmina no Dó6 do c.28, nota mais aguda da obra e principal centro tonal na condução melódica desta seção (Ex.10). Este Dó6 representa o ápice da peça e poderia muito bem ter acontecido no c.20, quando aparece o Dó5 (vide Ex.7a acima), mas a expectativa criada pelo compositor parece ter sido intencionalmente adiada para o c.28. Mais uma vez podemos perceber a relação de trítono mantida entre o Dó6 e a primeira altura da peça, o Fá# (vide Ex.2a acima).
Após o ápice atingido com o Dó6 no c.28, Santoro apresenta um trinado da nota Si3 com o Dó# imediatamente superior, que prepara a cadência melódica do c.29 (Ex.11). Esta cadência é muito semelhante, em sua estrutura intervalar e sonora, à progressão melódica do c.7 (vide Ex.3b acima) e praticamente, em ambos os trechos, Santoro faz uso das mesmas notas, alterando apenas, em alguns momentos, o registro em que estas aparecem (comparar Ex.3b acima e Ex.11).
Da mesma forma como a subseção a1 se encerra com uma cadência melódica no compasso 9 (vide Ex.3c acima e Ex.7b acima), a subseção b1 também possui em seu momento final uma cadência melódica que figura no c.29 (vide Ex.11 acima). Chamamos a atenção para o fato de que a subseção b1, que culminou com o Dó6 no c.28, nota mais aguda da peça (vide Ex.10 acima), conduziu a melodia deste Dó6 para o Fá#4 do c.30, inicio da subseção b2 (Ex.12a) e, mais uma vez, podemos constatar a relação de trítono (Dó-Fá#) entre as notas hierarquicamente mais importantes da obra. Dessa maneira, ratificamos a importância deste elemento intervalar na estrutura compositiva da obra.
Assim como a subseção a1 (vide Ex.2a acima), a subseção b2 também tem inicio com um longo e expressivo Fá#4 (ver Ex.12a). Após a execução dessa nota, a melodia se movimenta e, dessa maneira, conduz o discurso musical da obra do c.30 ao Fá#2 do último tempo do c.35, que logo em seguida, apresenta um trinado com a nota Sol2, sob a indicação de uma fermata (Ex.12b). Assim, chamamos a atenção para a reincidência dos intervalos de 3ºm, 3ºM e 2ºm na progressão melódica descendente que figura no final do c.35 e se finaliza com a nota Fá#2, como também para o fato de que, assim como no final da subseção a2 e, consequentemente da Seção A, Santoro faz uso da técnica de sonoridade expandida conhecida como frullato, aqui, próximo ao término da subseção b2, ele reutiliza essa mesma técnica de sonoridade expandida (vide Ex.7a e 7c acima).
A subseção b2 segue-se com a indicação de Tempo I no segundo tempo do compasso 36 e conduz a melodia do Fá#2 ao Dó5 entre os c.36-37 (Ex.13a). Assim, mais uma vez podemos perceber a relação de trítono existente entre essas duas alturas (Fá#-Dó). A partir do c.36 a peça apresenta um caráter conclusivo (uma espécie de codetta) que fica ainda mais claro com a indicação de Più Mosso no c.39 (Ex.13b). Chamamos a atenção para o fato de que Santoro também coloca a indicação de Più Mosso nos últimos compassos da Seção A, c.17-20 (vide Ex.7a acima).
Como nos mostra o Ex.14a, a progressão melódica dos c.37-38 apresenta um misto de 3ºm, 3ºM e 2ºm com a formação de trítonos (Fá-Si; Dó-Fá#; Ré-Sol#). Assim, podemos sugerir que esta passagem representa uma espécie de síntese de elementos importantes da estrutura da obra e conduz a melodia até o Sib5 do c.38 (Ex.14a) que, através da indicação de Più Mosso chega até o Si2 do c.40 (Ex.14b), e que este Si2 pode ser compreendido como a resolução do trítono (Fá#-Dó), que elegemos como principais pilares da estrutura compositiva da obra e que conduzem o discurso musical da Fantasia Sul América do c.1-20, atingindo o ápice no c.28 e resolvendo no c.40 (vide Ex.2a, Ex.7c, Ex.10 acima e Ex.14b).
A última nota da peça, o Lá5 do c.41, aparece entre parênteses, pois estes indicam que essa última nota serve apenas, ou funciona como terminação para o glissando que teve início na nota Si2 do c.41 (vide Ex.14b acima). "Além disso, a simetria encontrada na divisão das partes da obra, sendo vinte compassos na primeira e vinte na segunda, sugere que esse compasso tem pouca importância estrutural" (FRAGA, 2008, p.54).
5 - Conclusão
A Fantasia Sul América para clarineta solo, composta em 1983 pelo manauara Claudio Santoro, apresenta um elevado grau de exigência técnica e um alto padrão artístico. Assim, na catalogação realizada por Maurício Carneiro, a obra figura entre as peças para clarineta solo de nível avançado (CARNEIRO, 1998, p.55). Além disso, em sua proposta curricular para a graduação em clarineta, Ricardo Durado Freire, Professor da Cátedra de Clarineta da UnB, sugere que a Fantasia seja incluída no sexto semestre (de um total de oito) do curso, figurando ao lado de obras como as Three Pieces para clarineta solo do compositor Igor Stravinsky (FREIRE, 2000, p.8).
A análise musical compreende uma importante ferramenta capaz de elaborar perguntas investigativas e fornecer subsídios que auxiliem na interpretação e performance musical. Dessa maneira, a relação dialética entre análise e performance, onde uma informa e complementa a outra, é denominada por Nicholas Cook como performance estruturalmente informada77 "... structurally informed performance". (COOK, 1999, p.249), na qual a análise é utilizada como uma ferramenta para as decisões a serem tomadas.
Nesse sentido, embora o presente texto não tenha a pretensão de apresentar considerações interpretativas definitivas como resultado final da análise realizada (salvo algumas sugestões tecidas pelos autores no decorrer da mesma), entendemos que a análise proposta teve como objetivo oferecer subsídios para fundamentar, ou invalidar, possíveis intenções interpretativas do executante. Com isso, concluímos que esse trabalho apresentou informações relevantes sobre uma importante obra da literatura brasileira para clarineta solo, a Fantasia Sul América, além de divulgar a obra do compositor Claudio Franco de Sá Santoro.
Leitura recomendada:
Notas
Recebido em: 08/03/2012
Aprovado em: 27/05/2012
Gueber Pessoa Santos é Doutorando e Mestre em Execução Musical (Clarineta) pela Universidade Federal da Bahia, sob a orientação do professor Dr. Pedro Robatto (2012); licenciado cum laude em música pela Universidade Federal de Pernambuco (2008); formado pelo Centro Profissionalizante de Criatividade Musical do Recife (2002) e pelo Conservatório Pernambucano de Música (2002). Músico titular da Orquestra Sinfônica do Recife desde o ano de 2003, já dividiu o palco com artistas consagrados da MPB a exemplo de Sivuca, Dominguinhos, Quinteto Violado, Spok e Edu Lobo. Tem atuado como músico convidado na Orquestra do Festival Virtuosi (PE) e na Orquestra Sinfônica da Bahia, além de desenvolver atividades camerísticas nas mais variadas formações. Em 2010 organizou e liderou o Quinteto Leão do Norte a fim de participar da 13º edição do Projeto Sonora Brasil, promovido pelo Departamento Nacional do SESC, realizando assim uma turnê composta por 83 concertos, contemplando todas as regiões do país e apresentando a obra de Claudio Santoro e Guerra-Peixe, incluindo no programa a Fantasia Sul América para clarineta solo.
Ricardo Mazzini Bordini possui graduação em Composição pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1986), graduação em Regência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987), mestrado em Música pela Universidade Federal da Bahia (1993) e doutorado em Música pela Universidade Federal da Bahia (2003). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal da Bahia. Tem publicado artigos sobre análise e composição musical com foco em teoria pós-tonal. Coordena um grupo de pesquisa que produz material didático para disciplinas teóricas abrangendo harmonia, contraponto, instrumentação e orquestração, análise e composição. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Composição Musical, atuando principalmente nos seguintes temas: análise musical, teoria pós-tonal, música brasileira, composição musical, execução musical, informática e hipermídia em música, e composição algorítmica.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Dez 2012 -
Data do Fascículo
Jun 2013
Histórico
-
Recebido
08 Mar 2012 -
Aceito
27 Maio 2012