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As sutilezas das faces da violência nas práticas escolares de adolescentes

The subtleties of the faces of violence in the school practices of adolescents

Resumos

Este artigo busca lançar um olhar sobre a vida escolar de adolescentes de classes médias e de segmentos das elites, incidindo, porém, sobre a prática de violência contra seus pares em duas escolas da cidade de Vitória-ES, sendo uma pública e outra privada. A pesquisa constituiu-se em um estudo de natureza eminentemente qualitativa, que no entanto valeu-se também de dados quantitativos. No trabalho de campo os dados foram colhidos por meio das técnicas da observação, questionário e entrevistas individuais e em grupos e, também, por meio de depoimentos e da consulta a documentos. O estudo permitiu constatar que nas duas escolas investigadas as ações socializadoras incidem muito mais sobre o aspecto pedagógico do que na proposta educativa, que é deixada em segundo plano. Onde se constata a ausência de uma ampla abrangência da socialização, a escola não funciona como retradutora dos valores sociais e termina por permitir que idéias de discriminação e preconceito, por exemplo, invadam e se estabeleçam no espaço escolar. A falta de alcance da ação socializadora até o ambiente relacional promove o aparecimento de brechas que permitem aos alunos a construção de experiências escolares, dentre elas, a experiência da violência. Com todos os encontros e desencontros entre as escolas, observou-se que o ponto decisivo de convergência entre ambas é a presença da prática da violência, ainda que, em intensidade distinta e com faces envolvidas por sutis especificidades.

Violência; Escola; Adolescentes


The proposal of this article is to cast a look upon the school life of middle and upper class adolescents focusing, however, on their practice of violence against their peers in two schools - one public, one private - in Vitória, capital of Espírito Santo, Brazil. The investigation consisted of an qualitative study, but has also used some quantitative data. In the fieldwork data was gathered through observation, questionnaires, group and individual interviews. Testimonies and written documents were also taken into account. The work has found that in both schools the socializing actions relate much more to the pedagogical aspect than to the educational proposal, which is left in a secondary position. Whenever a wide-ranging socialization is absent, the school does not function as a retranslator of social values, and ends up allowing ideas such as discrimination and prejudice to invade and overtake the school space. The failure of the socializing action in reaching the relational environment creates gaps through which pupils build experiences such as violence. With all the similarities and differences between the two schools studied here the decisive converging aspect between them is the presence of violence, even if in different degrees and with their faces veiled by subtle particularities.

School; Violence; Adolescents


As sutilezas das faces da violência nas práticas escolares de adolescentes

Luiza Mitiko Yshiguro Camacho

Universidade Federal do Espírito Santo

Correspondência:

Luiza Mitiko Yshiguro Camacho

Rua João Baptista Celestino, 210 - Mata da Praia

29066-140 – Vitória- ES.

e-mail: luthi@zaz.com.br

Resumo

Este artigo busca lançar um olhar sobre a vida escolar de adolescentes de classes médias e de segmentos das elites, incidindo, porém, sobre a prática de violência contra seus pares em duas escolas da cidade de Vitória-ES, sendo uma pública e outra privada.

A pesquisa constituiu-se em um estudo de natureza eminentemente qualitativa, que no entanto valeu-se também de dados quantitativos. No trabalho de campo os dados foram colhidos por meio das técnicas da observação, questionário e entrevistas individuais e em grupos e, também, por meio de depoimentos e da consulta a documentos.

O estudo permitiu constatar que nas duas escolas investigadas as ações socializadoras incidem muito mais sobre o aspecto pedagógico do que na proposta educativa, que é deixada em segundo plano. Onde se constata a ausência de uma ampla abrangência da socialização, a escola não funciona como retradutora dos valores sociais e termina por permitir que idéias de discriminação e preconceito, por exemplo, invadam e se estabeleçam no espaço escolar. A falta de alcance da ação socializadora até o ambiente relacional promove o aparecimento de brechas que permitem aos alunos a construção de experiências escolares, dentre elas, a experiência da violência.

Com todos os encontros e desencontros entre as escolas, observou-se que o ponto decisivo de convergência entre ambas é a presença da prática da violência, ainda que, em intensidade distinta e com faces envolvidas por sutis especificidades.

Palavras-chave

Violência – Escola – Adolescentes.

The subtleties of the faces of violence in the school practices of adolescents

Abstract

The proposal of this article is to cast a look upon the school life of middle and upper class adolescents focusing, however, on their practice of violence against their peers in two schools – one public, one private – in Vitória, capital of Espírito Santo, Brazil.

The investigation consisted of an qualitative study, but has also used some quantitative data. In the fieldwork data was gathered through observation, questionnaires, group and individual interviews. Testimonies and written documents were also taken into account.

The work has found that in both schools the socializing actions relate much more to the pedagogical aspect than to the educational proposal, which is left in a secondary position. Whenever a wide-ranging socialization is absent, the school does not function as a retranslator of social values, and ends up allowing ideas such as discrimination and prejudice to invade and overtake the school space. The failure of the socializing action in reaching the relational environment creates gaps through which pupils build experiences such as violence.

With all the similarities and differences between the two schools studied here the decisive converging aspect between them is the presence of violence, even if in different degrees and with their faces veiled by subtle particularities.

Keywords

School - Violence - Adolescents.

A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada.

Hannah Arendt, Sobre a Violência

A violência acomete o mundo contemporâneo em todas as suas instâncias e se manifesta de variadas formas. Ela está presente em toda sociedade e não se restringe a determinados espaços, a determinadas classes sociais, a determinadas faixas etárias ou a determinadas épocas. É equivocado pensar que ela se vincula apenas e diretamente à pobreza, aos grandes centros urbanos, aos adultos e aos dias de hoje. Verifica-se, por exemplo, o crescimento das práticas da violência entre os jovens de classes médias e de segmentos privilegiados da sociedade, nos seus diferentes espaços de atuação: na família, na escola ou na rua.

As reflexões aqui expostas se inspiram numa pesquisa que não investigou os excluídos. Ela envolveu os jovens inseridos na escola, com horas vagas de lazer e esporte e também com possibilidades de atender aos apelos/pressões do mundo do consumo – tão importante para ser aceito e "pertencer" a agrupamentos de caráter eminentemente juvenil. Esses sujeitos gozam do direito ao convívio com a família, à inserção na escola e de serem livres da pressão da responsabilidade e da reprodução social. Por outro lado, esses jovens encontram-se à margem do centro do poder, dos limites das possibilidades de escolha e ainda submetidos à família e à escola por não serem autônomos financeiramente e não estarem aptos para o trabalho.

Esse estudo sobre a violência praticada por jovens nas escolas capixabas foi realizado em Vitória, no estado do Espírito Santo, uma cidade de apenas 263.708 habitantes (dado do IBGE, 1996), porque há indicações de que existem razões para tanto. Dois trabalhos realizados recentemente podem auxiliar na elaboração de um rápido retrato da violência nesse Estado. O primeiro se refere à segurança nas escolas públicas de todos os estados brasileiros, realizado pelo Laboratório de Psicologia do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília entre 1996 e 1997. Os resultados referentes ao Espírito Santo são surpreendentes e negativos. Essa unidade federativa ocupa o quinto lugar no ranking nacional de ocorrências de roubo e vandalismo, ficando atrás de Pernambuco, Acre, Sergipe e Pará. Dentre os da região Sudeste, o Espírito Santo ocupa o incômodo primeiro lugar, sendo seguido de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (Codo, 1999).

O segundo estudo, realizado pela Unesco em 1998, fez um levantamento sobre a violência, entre jovens de 15 a 24 anos, nas capitais brasileiras1 1 . Os dados que seguem sobre essa pesquisa realizada pela Unesco foram retirados dos jornais Folha de S. Paulo, de 09/12/1998, e A Gazeta, de 10/12/1998 e atualizados em 2000 com Waiselfisz, Julio Jacobo, Mapa da Violência II: Os jovens do Brasil. Brasília: UNESCO, 2000. . Vitória ocupa o primeiro lugar dentre as capitais brasileiras mais violentas, sendo seguida por Recife, Rio de Janeiro, Aracaju e São Paulo. Os jovens da capital capixaba, do Rio de Janeiro e de Recife têm mais chances de morrer assassinados que os jovens da Colômbia, pois lá a taxa de óbitos foi de 147,3 por 100 mil habitantes. Em Vitória, foi de 164,6; no Rio de Janeiro, de 159; e em Recife, de 154,5.

Apesar da gravidade e da necessidade de reflexões, são muito poucos os estudos existentes a respeito do tema. Em um vasto e apurado levantamento, realizado por Marilia Pontes Sposito (1998), da produção discente nos cursos de pós-graduação em Educação do Brasil, abrangendo o período de 1980 a 1995, foram encontrados somente quatro estudos a respeito da violência que atinge as escolas2 2 . Os estudos são: Guimarães (1984; 1990); Guimarães, Maria Eloísa, (1995); Oliveira (1995). A pesquisa realizada por Lia Fukui para a FDE/SEE, entre 1990 e 1991, também deve ser lembrada (Sposito, 1998). A estes estudos somam-se outros mais recentes: as pesquisas multicêntricas realizadas pela Unesco e coordenadas por Waiselfisz (1998) e por Minayo (1999); por Abramovay (1999); a pesquisa que se situa na perspectiva dos trabalhos promovidos pela Unesco, Escola e violência, coordenada por Vera Maria Candau. .

Esse estudo, que articula a violência, a juventude e a escola, vem se somar a outros encontrados no Brasil3 3 . A violência, assim como a preocupação com ela, não é privilégio brasileiro. Esse problema está disseminado internacionalmente. Dos estudos realizados fora do Brasil, destacam-se os franceses como Éric Debarbieux (1990, 1997, 1998 e 1999), Bernard Charlot (1997), François Dubet (1998), Olivier Galland (1991) e Angelina Peralva (1997 e 1997a). . Esses trabalhos realizados sobre o tema examinaram escolas públicas, classes populares, violência dos próprios alunos contra o patrimônio, contra os adultos e contra a própria instituição escolar e ações violentas vindas de fora, partindo de ex-alunos ou de galeras ou gangues do bairro. Entretanto, nenhum deles alcançou as práticas violentas contra os pares ocorrendo no espaço intramuros escolares, nem os alunos de classes médias e nem as escolas privadas. Outro elemento que o difere dos demais trabalhos é que este desvincula a pobreza da violência, uma vez que a origem social dos responsáveis pelas ações é as classes médias e os segmentos das elites.

Esta pesquisa constituiu-se num estudo de natureza eminentemente qualitativa, apesar de ter utilizado também dados quantitativos. A coleta dos dados de campo se deu basicamente por meio das técnicas de pesquisa: observação, questionário, entrevistas, consulta à documentação e depoimentos4 4 . O processo de coleta de dados ocorreu – nas duas escolas – num período de dois anos, ou seja, em 1997 e 1998. A análise foi realizada no ano subseqüente aos da coleta até o início de 2000. As leituras e estudos teóricos ocorreram durante os quatro anos da pesquisa – de 1996 a 1999. .

Mesmo considerando que o fenômeno da violência se manifesta no cotidiano escolar, familiar e nos grupos de sociabilidade, a pesquisa privilegiou a escola. O papel dos novos modelos de família no processo de socialização e a influência dos grupos de sociabilidade sobre os jovens foram considerados, sim, mas numa abordagem indireta.

A escolha das escolas fundamentou-se nos critérios básicos: de atendimento a alunos de classes médias e segmentos da elite; de uma pertencer à rede pública e a outra à rede privada; de situar-se na cidade de Vitória-ES; de não serem consideradas violentas; e de serem referências ou modelos de boas escolas dentro das suas categorias de escola privada ou de escola pública. Assim, as unidades escolares selecionadas foram: uma pública, municipal, que recebe alunos das classes médias; e outra, particular, tradicional e mantida por uma entidade religiosa católica, que, fictícia e respectivamente, foram denominadas de Escola A e Colégio B.

Houve a definição pelos alunos de 5ª a 8ª séries porque, segundo os professores, é nessas séries que incidem os maiores problemas de indisciplina e violência. A pesquisa não se restringiu a investigar apenas esse grupo isoladamente, porque o objetivo era interpretá-los em relação com seus pares e com os adultos. Então, foram investigados, direta ou indiretamente, os alunos, os professores e a equipe técnico-administrativa e os inspetores de alunos.

Os sujeitos sob análise são alunos em idade variando de 12 a 15 anos, com raras exceções para mais ou para menos, nos casos de alunos atrasados ou adiantados para sua série. São adolescentes entrando na juventude.

Alberto Melucci expõe a sua compreensão de adolescência dizendo que ela é um primeiro momento da juventude e que

não pode ser vista somente como fase de transição entre a infância e a vida adulta, como meta última da maturidade, mas como um período do ciclo vital no qual há processos específicos de transformação que investem as dimensões mental e corpórea, as relações com os outros e com o mundo. Através dessas mudanças se tornam visíveis uma organização da vida afetiva, modelos de pensamento, formas de relações, que vêm em primeiro plano, renegando temporariamente ao fundo outras partes da experiência. (Melucci e Fabbrini, 1992: p. 25)

Para não perder de vista o adolescente sob análise e não cair na armadilha de discorrer sobre uma adolescência abstrata, ele deve ser situado na sua classe social. Esses(as) alunos(as) adolescentes de classes médias em sua grande maioria, com exceções de alguns das classes populares e outros das elites, sofrem forte pressão familiar para serem bem-sucedidos, num momento em que se encontram em uma fase de moratória.

A categoria moratória social merece destaque porque ela explica, com muita propriedade, questões sociais da juventude das classes médias e da elite. Estudos sociológicos têm mostrado que a juventude depende de dinheiro e de tempo – uma moratória social – para viver um período mais ou menos prolongado com relativa despreocupação e isenção de responsabilidades. Esse tempo legítimo de permissividade e legitimidade, proporcionado pela família, é aquele dedicado a estudar e a se capacitar e durante o qual a sociedade os brinda com uma especial tolerância. Mas a moratória é privilégio, geralmente, dos jovens de classes médias, cujas famílias têm a possibilidade de lhes oferecer estudos prolongados e retardar seu ingresso nas responsabilidades da vida adulta como o trabalho e o casamento (Margulis, 1996).5 5 . Sobre a moratória, conferir também Erik Erikson, 1987.

Margulis aborda também a moratória vital, que seria uma espécie de complemento do conceito de moratória social. A moratória vital é crédito temporal, um algo a mais e que tem vinculações com o aspecto energético do corpo. Essa moratória se identifica com a sensação de imortalidade tão própria dos jovens. Essa sensação e essa forma de se situar no mundo se associam com a falta de temeridade de alguns atos gratuitos; com condutas autodestrutivas, que colocam em risco a saúde que eles julgam inesgotável; com a audácia e o lançar-se em desafios; e com a exposição a acidentes, e a excessos de todo tipo. A esse respeito corre a mitologia da cultura juvenil de valorizar o morrer jovem, ou seja, morrer jovem para não envelhecer, para permanecer sempre jovem e, portanto, imortal. Essa moratória é comum aos jovens de todas as classes sociais e está vinculada à idéia do risco.

A classe social dos sujeitos sob análise deve ser considerada porque ela, dentre outros fatores, é, também, responsável pela construção da identidade, pelas formas de sociabilidade e pelos modelos que regem suas vidas.

A classe social em análise é freqüentemente anunciada no plural pela diversidade de agrupamentos que ela abrange.6 6 . Angelina Peralva em sua tese de doutorado, intitulada A classe média rediscutida – uma história de lutas no Brasil, defendida em 1985, faz uma discussão teórica a respeito da questão da multiplicidade da compreensão da classe média colocando três grandes interrogações: qual classe média? camadas médias ou classes médias? classe média ou classes médias? Francisco de Oliveira (1988) se refere metaforicamente às classes médias como a cabeça da Medusa, porque, assim como desta nascem mil serpentes, também na sociedade surgem classes médias com formas, expressões, ramificações e aparências multiplicadas e diferenciadas. Tentar definir o que são as classes médias é um problema porque há uma imprecisão decorrente do fato de elas serem heterogêneas.

Num estudo como este, que aborda questões educacionais, há que se reconhecer, como já indicou Angelina Peralva (1985), a importância do estudo clássico de Wright Mills (1976), pois ele afirma que a moderna divisão de trabalho exige uma especialização de competências. Com essa afirmação, Mills está indicando que a escola é a responsável por essas diferentes qualificações e competências. A nova classe média analisada por Mills se insere no mercado de emprego graças a uma passagem mais ou menos prolongada pela escola (Peralva, 1985). Os alunos das classes médias, cientes disso, fazem da escola um instrumento para concretizar seu projeto. Esses alunos tendem a estabelecer uma relação pragmática com a escola (Dubet, 1991).

Maria Alice Nogueira (1991 e 1998) traz valiosas contribuições, com seus estudos sobre as estratégias e comportamentos das famílias pertencentes a diferentes classes sociais em relação à escolaridade e ao destino profissional de seus filhos. Segundo a autora, o comportamento de escolha da escola adotado pelas famílias varia de um grupo social para outro. As elites optam pela escola privada e utilizam estratégias "de distinção" a fim de assegurarem aos filhos a freqüência em estabelecimentos altamente seletivos e prestigiosos. As classes médias, quando podem, optam pela escola particular, mas quando não, partem para a escola pública escolhida e utilizam as estratégias "de evitamento", ou seja, evitam certas unidades escolares situadas em bairros populares, com clientela de nível socioeconômico baixo e/ou com ensino de má qualidade. Essas duas situações de escolhas das escolas foram verificadas nas famílias das duas escolas investigadas.

A opção, neste trabalho, pelo termo "classes médias", no plural7 7 . As classes médias abordadas nessa tese são compreendidas seguindo-se critérios econômicos complementados por outros, políticos e culturais. Aqui são considerados a acumulação, o conhecimento e o modelo cultural, como o fez Angelina Peralva (1985), que por sua vez inspirou-se nas idéias de Alain Touraine (1973). , deve-se às indicações da pesquisa empírica. As escolas pesquisadas apresentam contextos e sujeitos diferenciados; as famílias são de segmentos diversos; os alunos se reconhecem como pertencentes às classes médias, mas com sociabilidades, estilos, consumo e projetos distintos. Entretanto, é preciso esclarecer que os alunos não formam um grupo homogêneo de classes médias. Pelo contrário, a heterogeneidade transpareceu, pois foram verificados alguns alunos provenientes das classes populares na escola pública e uma pequena parcela pertencente às elites no colégio privado.

De que violência se fala aqui? Ao analisar o fenômeno da violência, deparamo-nos com uma série de dificuldades. Uma delas se refere justamente a essa multiplicidade de compreensões a seu respeito. Essa diversidade evidencia a fragilidade das suas fronteiras. A violência se confunde, se interpenetra, se inter-relaciona com a agressão de modo geral e/ou com a indisciplina, quando se manifesta na esfera escolar.

A fragilidade das fronteiras entre a indisciplina e a violência mostrou-se evidente na pesquisa empírica, o que fez com que os rumos das preocupações se alargassem: não era possível isolar o fenômeno da violência do da indisciplina. Dessa forma, as práticas da indisciplina, constantemente citadas, e mesmo confundidas com condutas de violência pelos sujeitos e protagonistas – os alunos –, passaram a ser observadas com atenção.

Para compreender a questão da disciplina no âmbito da socialização vale recorrer a Émile Durkheim (1925). A criança, aos seus olhos, é um ser marcado pela ausência porque lhe faltam qualidades morais, consideração em relação aos interesses dos outros, isto é, faltam-lhe condutas recomendadas para a convivência social. Para suprir essas ausências, os adultos devem lançar mão da educação, transformando essa criança, por meio da socialização, num ser social e moral, com sua natureza neutralizada. O "mal" originário da natureza deve ser contido pela disciplina que imporá limites morais.

A noção dada por Durkheim sobre disciplina comporta os mecanismos de regularidade, autoridade, limite, penalidade, culpa e recompensa. Por meio da regularidade e da autoridade, os limites são definidos para as crianças. E, para completar o processo, as punições e as recompensas garantem o respeito às regras. A punição repara a falta cometida, mas serve mais para dar uma satisfação ao obediente do que para normalizar o transgressor. É por isso que a punição deve ser pública. Já a recompensa é o contraponto do castigo, mas ela tem peso menor que a punição.

E o espaço mais apropriado para tornar a criança um ser disciplinado é a escola, porque nela

Existe todo um sistema de regras que determinam a conduta da criança. Ela deve se apresentar à classe na hora fixa, uniformizada e numa atitude conveniente; na classe ela não deve atrapalhar a ordem; ela deve aprender suas lições, fazer seus deveres, os deve fazer com uma suficiente aplicação, etc... Há assim uma multiplicidade de obrigações às quais a criança está forçada a submeter-se. Seu conjunto constitui o que se chama disciplina escolar [grifo meu]. Pela prática da disciplina escolar é possível inculcar na criança o espírito de disciplina. (Durkheim, 1925, p. 169)

Mas é sabido que a escola, hoje, está passando por uma crise relacionada à socialização, e ela tem enfrentado dificuldades na transmissão das normas e dos valores gerais da sociedade. Além disso, a escola regida pelo modelo tradicional, com o manejo de classe nas mãos exclusivamente do professor e os alunos em posição de obediência e subalternidade, perdeu-se no tempo. A sala de aula onde vigoram novos modelos de relações entre professores e alunos, onde tudo pode ser passível de discussão, onde a hierarquia fica menos visível, onde os alunos têm o direito de opinar, é uma nova realidade. Esses novos modelos, com capacidade de maior elasticidade de tolerância, implicam novas definições de disciplina.

Assim, mesmo reconhecendo o valor e as contribuições do legado de Durkheim à educação e, acima de tudo, que os ideais da escola tradicional ainda estão fortes e presentes no cotidiano de muitas escolas, é necessário ir além e buscar novos caminhos para compreender a indisciplina na escola.

O termo indisciplina não pode se restringir apenas à indicação de negação ou privação da disciplina ou à compreensão de desordem, de descontrole, de falta de regras. A indisciplina pode, também, ser entendida como resistência, ousadia e inconformismo. Essa compreensão de indisciplina está vinculada ao entendimento do processo educativo enquanto processo de construção do conhecimento, no qual emergem falas, movimento, rebeldia, oposição, inquietação, busca de respostas por parte dos alunos e dos professores. Mas, mesmo nesse sentido positivo, a indisciplina incomoda, porque a escola não está preparada, de fato, para conviver com cenas em que o professor não tem mais o controle total e em que cada aluno tem o seu querer.

A garantia da manutenção da disciplina na escola sempre exigiu a presença das relações de dominação e subordinação. Houve, entretanto, uma mudança na correlação entre as partes. Os alunos adquiriram maior espaço de atuação e de decisão, mais autonomia, e se fortaleceram. Na mesma proporção em que há mais igualdade, as situações de tensão se evidenciam, já que os alunos têm possibilidades de se exprimir. As tensões podem ser geradas nas relações de obediência às regras impostas ou no confronto com as diferenças culturais, sociais, econômicas e/ou geracionais.

Não existe apenas um ponto de vista absoluto sobre determinado fenômeno, mas há o ponto de vista de observadores. O outro está situado diferentemente de mim e por isso tem outros valores, ou ética ou experiência de mundo. Ao analisar-se a indisciplina do ponto de vista, por exemplo, apenas do adulto, tende-se a enquadrá-la no rol dos delitos, da má ação, do que requer punição. Em contrapartida, se nos ativermos apenas ao olhar do aluno, isso pode significar a isenção da responsabilidade de seus atos, já que não agem intencionalmente contra o outro, mas apenas buscam a emoção, o divertimento, as sensações diferentes ou o desvelamento de novos sentimentos.

A captação de diferentes perspectivas possibilita uma infinidade de compreensões de indisciplina. Mas, ao pensar a indisciplina, há que sempre se lembrar do seu lado positivo. Muitas vezes, ela se torna instrumento de resistência à dominação, à submissão, às injustiças, às desigualdades e às discriminações em busca da identidade e dos direitos (cf. Apple, 1989, Camacho, 1990). Há de se considerar também que a compreensão da indisciplina acompanha as mudanças através dos tempos e nos diferentes lugares. A elasticidade da permissividade no tempo e no espaço torna as fronteiras da indisciplina maleáveis, frágeis e difíceis de serem definidas. É por isso que muitas vezes ela se confunde com a violência ou com a agressão.

A mesma variabilidade de concepções encontrada para indisciplina também é verificada para se conceituar o fenômeno da violência. Tal diversidade se justifica por dois motivos: primeiro porque o seu entendimento não é o mesmo nos diferentes períodos da humanidade e, segundo, porque cada pessoa interessada no tema pode se permitir compreendê-la conforme os seus valores e a sua ética.

Etimologicamente, violência vem do latim vis, força, e significa todo ato de força contra a natureza de algum ser; de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém; de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade; de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror (Chaui, 1998 e 1999).

As leituras que deram suporte para este estudo sobre a violência escolar foram principalmente de pesquisadores da França, como Bernard Charlot (1997), Éric Debarbieux (1990, 1997, 1998, 1999) e Angelina Peralva (1997,1997a), François Dubet (1998) e Olivier Galland (1991). Os três primeiros têm tomado como referência as idéias de Norbert Elias (1996) a respeito do processo civilizador, quando denominam as pequenas violências ou as pequenas agressões do cotidiano que se repetem sem parar, a falta de polidez, a transgressão dos códigos das boas maneiras ou da ordem estabelecida, de incivilidades, para efeito de distinção das condutas criminosas ou delinqüentes.

Charlot (1997), ao investigar a violência nas escolas francesas, sintetiza a tese de Elias, afirmando que a violência seria um conjunto de incivilidades, ou seja, de atentados cotidianos ao direito de cada um ver sua pessoa respeitada. Ele indica que o homem, por sua condição antropológica, é obrigado a aprender a ser homem. Já que nasce imaturo, ele só pode se hominizar se for capaz de se apropriar daquilo que a espécie humana cria no curso de sua história. Desde que ele aprende, se hominiza, ele entra numa relação que está sempre em marcha com o mundo, com o outro e consigo mesmo. As pesquisas por ele coordenadas indicaram que a tensão cotidiana tem aumentado bem mais que a violência entendida como agressão física. "Essa tensão se mantém e exacerba a incivilidade; e explode sob a forma de crises – injúrias, rixas, tumultos, pancadas, etc." (1997, p.20). Além de ser maior, essa tensão propagou-se pelas escolas que, há alguns anos, eram consideradas seguras.

Esta premissa de que a violência decorre da falta de controle sobre as condutas e da ausência da civilidade incorpora a idéia de fundo de que é a civilização que canaliza e estabelece a contenção dos instintos. Parte dessa premissa também a idéia de que a escola, responsável pela hominização, deve "civilizar" os alunos, de forma a levá-los a controlar suas condutas, suas emoções e seus impulsos agressivos.

No entanto, a escola não tem cumprido seu papel de hominizar porque sua função socializadora não se tem evidenciado, provocando, assim, um espaço onde o aluno tem construído uma experiência de violência (Dubet, 1991, 1994, 1995). Em razão dessa crise, as práticas de violência têm pipocado cotidianamente entre os alunos. Além disso, acredito que essas violências "leves", não-físicas, verbais e com outras formas de manifestação – como segregação, exclusão, indiferença –, não são assumidas, ficando disfarçadas ou mascaradas.

Para explicar a cegueira a determinados tipos de violência praticados por determinados setores (geralmente dos dominantes) contra outros segmentos (dos dominados) são utilizadas as idéias de Marilena Chaui (1998 e 1999) sobre a dificuldade que há no Brasil em compreender e até em enxergar a violência real. Segundo ela, vivemos uma situação paradoxal, porque, de um lado, brada-se contra a violência e a favor de um "retorno à ética" e, de outro, são produzidas imagens e explicações para a violência que impedem a visibilidade e a compreensão da violência real. A violência real é ocultada por mecanismos ou dispositivos ideológicos como os da exclusão, da distinção, do jurídico, do sociológico e da inversão do real.8 8 . Os dispositivos ideológicos responsáveis pelo ocultamento da violência real apresentados por Chaui são: · da exclusão – existe um mito de que o Brasil é uma nação não-violenta. "O mecanismo da exclusão produz uma diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles não-brasileiros violentos. Eles não fazem parte do nós." (p. 36) · da distinção – ocorre uma distinção entre o essencial e o acidental. Os brasileiros, por essência, não são violentos e por isso a violência é acidental, superficial, momentânea, uma crise, limitada temporal e espacialmente. · jurídico – circunscreve a violência no campo da delinqüência e da criminalidade. Esse mecanismo permite determinar quem são os "agentes violentos" (os pobres) e legitimar a ação da polícia contra os pobres, os negros, as crianças de ruas e outros. · sociológico – considera a violência como um momento de anomia social no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não foram substituídas por novas. A violência, aqui, é considerada como um momento no qual os grupos sociais "atrasados" ou "arcaicos" entram em contato com os grupos sociais "modernos", e por estarem desadaptados, tornam-se violentos. · da inversão do real – são produzidas máscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem não-violentos.

Os mecanismos apontados por Chaui podem auxiliar no exame das práticas de violência dos alunos, bem como na compreensão de determinadas representações correntes nas duas escolas investigadas. Entretanto, aquele que é mais significativo é o da inversão do real, pois ele pode ajudar a compreender situações encontradas nos ambientes escolares, como, por exemplo, a utilização, por alunos ou professores, de artifícios para mascarar os atos violentos, ou então o fenômeno da inversão de posições de discriminador em discriminado e de discriminado em discriminador.

As sutilezas das faces da violência

A instituição escolar tem se ressentido dos limites da socialização por não estar conseguindo atuar nos dois mundos – do pedagógico e do relacional dos alunos – que residem dentro dela. Essa crise da socialização gera um espaço no qual os alunos constroem uma experiência significativa, muitas vezes fora da própria da escola, ou contra ela, ou dentro, mas a despeito dela (Dubet, 1991, 1994 e Dubet e Martuccelli,1995).

Ficou visível que as ações socializadoras das duas escolas incidem muito mais no rigoroso aspecto pedagógico. Ambas, da perspectiva do projeto pedagógico, podem ser consideradas bem-sucedidas porque, no geral, os índices de aprovação são altos e as respostas dos alunos têm sido satisfatórias. Claro que é necessário considerar que, na Escola A (pública), há mais dificuldades, mas mesmo assim, ela é considerada um bom estabelecimento de ensino. No Colégio B (privado), há uma eficácia maior do que na escola pública, porque os professores conseguem transmitir os conteúdos e os alunos conseguem responder melhor. Na Escola A, o sucesso no trabalho pedagógico é menor porque há uma diversidade social maior e o capital cultural dos alunos não se afina tanto com a instituição escolar, então, eles respondem menos, apesar de os professores serem muito bons. A escola não apresenta as mesmas condições aparelhadas do ensino do colégio privado.

Os dois estabelecimentos de ensino mostraram-se instituições fortes no aspecto pedagógico, mas fracos na esfera das relações dos alunos, porque nas fibras dessa convivência os jovens das duas escolas vão tecendo uma experiência, que não nasce, necessariamente, do projeto da instituição, ou seja, eles vão construindo um modo de viver dentro do estabelecimento que independe da instituição e que pode até negar a vida da escola. E esse território onde a instituição escolar não está agindo é o território das experiências (Dubet, 1994 e Dubet e Martucceli, 1995).

Onde ocorre a ausência de proposta educativa, a escola não funciona como uma retradutora dos valores sociais e termina por permitir que os valores sociais predominantes invadam o seu ambiente sem nenhum filtro educativo. Com isso, marcas como a dos preconceitos, por exemplo, acabam se alojando no interior do espaço escolar. A falta de alcance da ação socializadora até o ambiente relacional promove brechas que permitem aos alunos a construção de experiências escolares, entre elas, a experiência da violência.

Os territórios da experiência da violência são diferentes nas duas escolas, o que não significa que ela não se construa em qualquer espaço, eventualmente. No Colégio B, ela surge predominantemente nas salas de aula, diante dos professores, enquanto que na Escola A os episódios mais freqüentes ocorrem nos pátios, nos corredores, na calçada em frente ao prédio. Como na escola religiosa as práticas da violência são tecidas com a presença dos professores, elas ganham disfarces, o que não é necessário na outra escola, onde não há adultos por perto. Assim, há duas formas predominantes de prática desse ato: a da violência mascarada/implícita e a da violência não-mascarada/explícita. É necessário que se faça um alerta enfático para o fato de esses territórios e essas formas ocorrerem predominantemente, o que significa que, eventualmente, pode haver mudança de espaços, de faces e de escola.

A partir de um certo momento da pesquisa, a grande indagação passou a ser: quem pratica a violência contra quem e por quê? A investigação foi mostrando duas situações: uma, mais comum na Escola A, em que os agressores eram os diferentes; e outra, mais freqüente no Colégio B, em que os agredidos, excluídos e rejeitados apresentavam um ponto em comum – todos traziam alguma marca que os diferenciava da maioria –, fossem elas marcas que os distinguiam culturalmente ou pelo corpo. Surgiu a indicação, também, de que os agressores aos diferentes pertenciam, no geral, aos grupos dos portadores de características socialmente exigidas ou dos "capacitados" a atender aos critérios impostos pelos dominantes. É necessário que se destaque o fato de que as duas escolas apresentaram esses dois tipos de episódios. No entanto, na escola pública é mais marcante a violência sendo praticada pelos diferentes, e, na religiosa, sendo dirigida aos diferentes.

Observou-se que a intolerância ao diferente ocorre nas duas escolas, mas em proporções diferenciadas. Na Escola A, ela é difusa e eventual, ao passo que no Colégio B ela é forte e se constitui no principal nascedouro da prática da violência ao diferente. As razões estão, primeiro, no fato de que os alunos da escola religiosa estão muito bem integrados nos seus grupos e movidos pelo desejo de fidelidade, o que abre possibilidades de rejeição aos intrusos/de fora/diferentes. O outro motivo dessa rejeição é o mecanismo que transforma o diferente no desigual/inferior (Pierucci, 1999). Essa compreensão de desigualdade encontra fácil penetração nesse estabelecimento, por ter ele próprio, enquanto instituição, a presença muito forte da idéia e da prática da hierarquia. E finalmente, os alunos pertencem às classes médias, com segmentos da elite, o que facilita o auto-reconhecimento de alguns, de serem superiores e destacados dos demais da sociedade.

A realidade que se apresenta nas duas escolas, mas com maior ênfase na unidade privada, no que se refere ao tratamento dado à diferença, possui duas faces: de um lado, há as razões sociais da diferença, que geram intolerância, preconceito, discriminação, racismo e violência porque, nesse caso, a diferença é considerada desigualdade e não diversidade. De outro lado, há a dificuldade típica do momento da idade (adolescência) de se lidar com as diferenças. Esses alunos, por estarem num processo de busca de afirmação da identidade, tendem a rejeitar aqueles que não pertencem ao seu grupo e que apresentam características diferentes das suas (Erikson, 1987).

Nas duas escolas existem variados momentos e diferentes formas de práticas violentas dos alunos: as práticas da violência mascarada e as práticas da violência não-mascarada ou explícita. Esse mascaramento, como já foi dito anteriormente, pode ser explicado por meio dos mecanismos ideológicos que permitem a ocultação da violência real apontados por Marilena Chaui (1998 e 1999). A ocultação da violência foi verificada, com mais força, no Colégio B o que não significa que não se possa, eventualmente, encontrar o mascaramento na pública e o não-mascaramento na religiosa.

A violência, na sua forma explícita de manifestação nas escolas, é combatida, criticada e controlada por meio de punições. Entretanto, a violência mascarada passa impune, ou porque não é percebida como tal e é confundida com a indisciplina, ou porque é considerada pouco grave, isenta de conseqüências relevantes, ou, finalmente, porque não é vista.

As medidas de repressão da violência adotadas pelas escolas são, muitas vezes, dribladas pelos alunos. A pesquisa revelou pelo menos duas maneiras encontradas pelos alunos para se desvencilhar das punições destinadas à contenção da violência visível. A primeira delas, bem antiga e utilizada pelos alunos há muito tempo, se dá com a transferência do confronto para um espaço livre de repressão. Explicando: as desavenças que se iniciam nas dependências da escola ficam, normalmente, circunscritas a ameaças e agressões verbais. O que não se resolve com palavras é levado para fora dos muros escolares, onde os alunos fazem os acertos de contas com agressões físicas. A segunda maneira encontrada pelos alunos para burlar o controle da violência é, justamente, o mascaramento da ação.

Por ser visível, a violência explícita é, na maioria das vezes, assumida, combatida, punida e evitada, mas há as exceções, como, por exemplo, as depredações na Escola A, que, de tão banalizadas, já não são mais percebidas. A violência mascarada, por outro lado, passa, quase sempre, a ser confundida com indisciplina ou com brincadeira. É considerada menos grave, porque não traz conseqüências visíveis ou de efeito imediato, porque não machuca o corpo, não faz verter o sangue. Os danos, muitas vezes indeléveis, são, geralmente, de ordem psicológica e/ou moral.

Essa violência pode se tornar perigosa porque não é controlada por ninguém, não possui regras ou freios e porque passa a ocorrer constantemente no cotidiano escolar. De tanto acontecer, ela passa a ser banalizada e termina por ser considerada "naturalizada", como se fosse algo "normal", próprio da adolescência. A banalização da violência provoca a insensibilidade ao sofrimento, o desrespeito e a invasão do campo do outro.

A ideologia dos tempos contemporâneos, que prega o individualismo exacerbado, que nega e até combate as iniciativas coletivas, faz com que o sujeito não enxergue o outro. O outro é o diferente, é o estranho, é o nada. O que tem valor é o "eu" e aqueles com os quais o "eu" se identifica. O outro não desperta a solidariedade, o respeito, o bem-querer, e pode, por qualquer motivo banal, ser destruído, eliminado, segregado e excluído.

A falta de limites, a falta de responsabilidade pelos atos praticados e a desconsideração pelo outro movem os adolescentes na direção de atos de imposição pela força, de agressão e de destruição, porque, primeiro, eles desconhecem os limites do até onde podem ir e quando devem parar; depois, estão convencidos de que ficarão impunes, já que não são responsáveis pelos atos que praticam, porque estão sempre "brincando" e nunca têm a intenção real de machucar, queimar ou matar, e, finalmente, o outro é diferente e não apresenta significado.

A investigação mostrou que o fundamento básico da forma de expressão mascarada da violência contra os diferentes é a discriminação, nas suas variadas modalidades. Foram observadas práticas de intolerância em face dos diferentes, concretizadas nas formas de discriminação social (aos pobres ou ricos demais), racial (aos negros), de gênero (aos homossexuais) e aos que se distanciam dos padrões colocados (aos bons alunos, aos maus alunos e aos novatos na escola, aos gordos, aos feios9 9 . A utilização de adjetivos qualificativos como feio, bonito, gordo, magro, tem como parâmetros os padrões estéticos dos sujeitos investigados. É sabido que bonito ou feio, gordo ou magro, são conceitos muito relativos, porque dependem do gosto individual, da época e do espaço. e outros).

A discriminação social foi percebida nas duas escolas, mas com variações quanto à intensidade. No estabelecimento privado, ela é generalizada, acentuada, constante e atinge, não apenas os alunos, mas também professores e funcionários. Os professores, por exemplo, notam o tratamento diferenciado dos alunos conforme suas posses: se apresentam indícios de riqueza como jóias e roupas de griffe, ou freqüentam locais reservados à elite, como determinados clubes, por exemplo, são tratados pelos pais e alunos como iguais. Caso contrário, são desprezados e considerados inferiores. Na escola pública, esse tipo de discriminação é mais brando, restringe-se a apenas alguns praticantes e é, portanto, mais difuso.

No Colégio B, a expressão da violência aos etnicamente diferentes é mais freqüente que na Escola A, da mesma forma como ocorre com a discriminação social. No entanto, a demonstração crua e direta do racismo, nessa unidade privada de ensino, não é prática generalizada. Há aqueles que a escondem por trás da "brincadeira". Os adultos reconhecem que esse tipo de prática de discriminação se apresenta mascarada na forma de brincadeira.

Na Escola A, as práticas da discriminação racial são veladas. Elas atingem principalmente os alunos de origem negra, mas os poucos de origem asiática também não são poupados. Aqui, também, os que a praticam tendem a caracterizar os atos como brincadeira. Aqueles que praticam esse tipo de discriminação apresentam duas formas de conduta: ou a negam ou a admitem. Aqueles que a negam o fazem sem convicção, demonstrando desconforto, como se a negação significasse a real ausência da discriminação. Entre os que a admitem, incluem-se aqueles que, contraditoriamente, dizem que é discriminação, mas que é, também, simples brincadeira.

O preconceito em relação aos homossexuais, que embasa as expressões de discriminação, se faz presente na sociedade em geral. As escolas, instituições sociais que são, não fogem desse quadro e apresentam, igualmente, esse preconceito. Ele se exterioriza na forma mais direta e mais constantemente na Escola A. No colégio privado, ele existe mas é sobrepujado pelas discriminações sociais e raciais, colocando-se, dessa maneira, num segundo plano.

Os alunos que fogem dos padrões médios de aproveitamento – tanto para mais, sendo bons alunos, como para menos, sendo maus alunos – não são aceitos pelos seus pares nas duas escolas. Mas são alvo de ações discriminadoras também aqueles com comportamento adequado demais às normas disciplinares.

Em variadas circunstâncias e nas duas escolas verificou-se que o aluno pode ser indisciplinado, displicente nos estudos e violento sem que isso o desmereça diante dos colegas, pelo contrário, isso até o valoriza. O inadmissível é que ele seja reprovado. Está aí um dos motivos que levam os alunos das duas escolas a temer a reprovação que traz – além das conseqüências já conhecidas como a repetência da série e a frustração da família – a rejeição do seu grupo de pares.

Há a tendência, entre os alunos, de relacionar bom rendimento escolar com homossexualidade. Ser estudioso e disciplinado é ser homossexual. A "macheza" está diretamente ligada à coragem de transgredir, de agredir e de não estudar, mas tendo a competência de ser aprovado, mesmo que seja utilizando-se de outros subterfúgios que não a dedicação ao estudo. Essa ideologia é plantada por aqueles que impõem seu poder na base da força, da ameaça e da agressão. Os que apresentam aproveitamento inferior, a ponto de incorrer na retenção na mesma série, são passíveis de recusa do próprio grupo. E, para agravar, esses alunos sofrem, também, a rejeição dos professores. Os comportamentos de rejeição aos bons alunos são antigos e nem podem ser considerados graves. Entretanto, essas velhas atitudes ganham, atualmente, novos tons. O específico de hoje são os limites tênues para essas condutas, em que pequenas discriminações, que sempre existiram, descambam, rapidamente, para uma situação explosiva. Quando os controles do sistema sobre a disciplina e as regras são mais fracos e os espaços democráticos não são utilizados de maneira adequada, essas práticas antigas e comuns ganham colorações e, freqüentemente, passam fácil e rapidamente para o território da violência.

Os grupos já formados nas duas escolas mostraram-se tendentes a rejeitar os novatos movidos pelo pensamento de que "eu e meu grupo nos identificamos entre nós, mas o novo é diferente de mim e de nós". A presença do novato pode, ainda, fazer aflorar aquilo que se assemelha à defesa do território, ou seja, como se os já sediados desejassem mostrar quem são os donos do pedaço. Há que se reconhecer que a defesa do território é inerente à sociabilidade juvenil. Entretanto, as condutas que ultrapassam a normalidade ganham gravidade quando a isso se juntam situações amplas de preconceito, discriminação e recusa do novo diferente.

As duas escolas mostraram nuanças no que concerne a essa forma de discriminação. Na Escola A, as ações violentas são mais explícitas, radicais e se concretizam na forma de intimidações, surras e extorsões. No Colégio B, as manifestações ocorrem de maneira mais sutil e mais dissimulada nas formas de segregação, de desmerecimento e de desrespeito, mas, apesar disso, são percebidas pelos alunos.

Os adolescentes precisam da forma para poderem se entender como pessoas. Por estarem envolvidos no processo de construção da identidade, a forma é muito importante e passa a ser essencial. A aparência física pode definir uma série de coisas, como ser valorizado/desvalorizado/ridicularizado, aceito/rejeitado, amado/desprezado, perseguido/bajulado, ou seja, pode definir se ocorrerá uma discriminação positiva ou negativa.

A adolescência é uma etapa da vida na qual ocorrem grandes transformações de condutas, cognitivas, emocionais e fisiológicas e, conseqüentemente, é um período no qual a imagem do corpo também se encontra em plena mudança. O jovem é portador de um corpo em constante transformação e a aceitabilidade desse corpo depende, em grande parte, dos critérios legitimados pelo seu grupo de pertencimento. A autoconsciência do adolescente se traduz numa auto-observação e num constante exame de suas qualidades físicas (Valiente, 1996).

Nessa fase da vida há uma certa confusão quanto à imagem corporal. Há, também, uma supervalorização do corpo, que pode se traduzir na busca do impacto pela estética ou pela antiestética. Tanto uma como a outra se manifestam por meio de roupas, penteados, marcas como tatuagens ou piercings, etc. (Zimerman, 1999). Há aqueles comportamentos, valores e idéias que são próprios da adolescência e, por isso, considerados normais e esperados. Entretanto, há aqueles que o social reforça e que trazem muito mais sofrimento hoje do que tempos atrás. Um exemplo do social reforçando essa tendência própria dos jovens é o fato de a sociedade contemporânea privilegiar o culto ao corpo magro e saudável e com isso acabar estimulando o desenvolvimento de condutas cujo eixo central é o próprio corpo.

A obesidade, a baixa estatura, a cor da pele mais escura, e tantos outros desvios dos padrões aceitos socialmente são motivos de discriminação, de exclusão, de auto-isolamento, de sentimento de rejeição, de baixa auto-estima, enfim, de muito sofrimento para os adolescentes. Isso se o problema for observado do ponto de vista do "desenquadrado" dos padrões. Mas observando-se da perspectiva dos devidamente "pertencentes" e aceitos pelo grupo de iguais, constata-se a discriminação e a rejeição aos que são diferentes e que não se identificam com os padrões propostos.

Dentre tantas ocorrências interessantes observadas, a prática da discriminação sendo definida pela aparência das pessoa se destaca. Os bonitos são bajulados e os feios, gordos, desajeitados são rejeitados na escola privada. Na escola pública, os fortes e obesos são temidos. Na escola privada, o domínio é exercido pelos belos e, na pública, pelos fortes e corpulentos. O poder dos belos se assenta na sedução, na ostentação, na arrogância da consciência de sua condição privilegiada e eles são, na maioria das vezes, os agressores. Já o poder dos fortes se ancora na força, na imposição por meio da ameaça e da efetiva agressão, geralmente, física. Vale um alerta: não se está, aqui, afirmando que um aluno seja violento porque é bonito, mas sim que a sua beleza acrescida de riqueza lhe concede cacife suficiente para sobrepor-se aos demais. Um ponto em comum evidenciou-se entre as duas escolas: os feios são rejeitados.

A intolerância ao diferente é uma das faces do processo que dá origem à violência. Do outro lado pode surgir um outro tipo de conduta: os diferentes, isoladamente ou em grupo (no qual se identificam na diferença), respondem com agressão àqueles que os discriminam.

A realidade mostrou-se diversa nas duas escolas. Enquanto no Colégio B a experiência da violência nasce, basicamente, da intolerância ao diferente, na Escola A, os discriminados pela diferença reagem praticando a violência.

As diferenças que marcam e determinam as discriminações nessa escola pública não são as mesmas da escola religiosa. Naquela, os diferentes eram marcados principalmente pela etnia e pela classe social, mas nesta os diferentes são aqueles que não se integram ao projeto pedagógico da escola e se voltam contra ela. Na Escola A há uma divisão que resulta em dois blocos: de um lado, o grande bloco dos integrados e participantes do projeto da escola, formado pelos professores e pela maioria dos alunos, e, de outro, o pequeno bloco que não responde ao projeto, cria uma vida própria e é formado pelos que são definidos pelos demais agentes da instituição como os que não querem saber dos estudos, os indisciplinados, os bagunceiros, os maus alunos, os que atrapalham o desenvolvimento das atividades pedagógicas, os depredadores, os pichadores, os violentos, enfim, os que infernizam a vida da escola. Esse segundo grupo reage a essa rejeição e a essa discriminação construindo a violência – nos espaços onde a instituição é fraca –, que é dirigida, em várias ocasiões e indiscriminadamente, contra os pares em geral e contra o patrimônio. Os alvos, quando escolhidos, são os homossexuais masculinos e os negros (e nesses casos, caem na intolerância ao diferente na etnia e na orientação sexual). Esses alunos se esforçam para marcar e ressaltar suas diferenças, exagerando e ostentando um estilo próprio de movimentar o corpo, de se vestir, de falar e, principalmente, de se comportar.

As práticas da violência nas escolas não acontecem de uma forma só e não seguem sempre os mesmos rituais. Elas apresentam faces, tempos e particularidades sutis, e tudo dependendo do cenário onde se apresentam.

Observou-se que no Colégio B há um cenário mais propício para as práticas sutis e escondidas da violência que necessitam de máscaras, e que, na Escola A, o cenário permite a expressão mais declarada da violência. Mas, com ou sem máscaras, as práticas da violência nunca deixam de se manifestar nas duas instituições.

É comum a idéia de se equacionar a violência com o mal. Para fugir de um julgamento, o ator, ao praticá-la, se serve de disfarces que tornam possíveis sua dissimulação. Transportando essa situação para as escolas, verificou-se que, na verdade, o artifício do mascaramento não é privilégio apenas dos protagonistas. Explicitando: os alunos se utilizam da máscara para que os adultos não percebam. Entretanto, esse artifício não vale para os pares, pelo contrário, já que um dos possíveis objetivos do ato violento é justamente o de se exibir para conseguir a admiração e a aceitação de seu grupo de identidade. Nem sempre a máscara garante a não percepção dos professores. Há momentos em que é possível perceber que o adulto tem a percepção de que a prática da violência está se efetuando, mas finge que não está vendo. Se esse jogo de faz-de-conta estiver realmente acontecendo, então, há uma nova máscara em ação e, nesse caso, ela foi colocada no ato praticado pelo próprio professor. E o aluno entra no ardil e também faz de conta que está acreditando que o adulto não está vendo. Observa-se que há um teatro com fingimentos de ambas as partes.

Às vezes, a violência acontece de forma súbita, sem prelúdios. Em outras ocasiões, antes de acontecer, ela se aloca em espaços ou estágios prévios, como se fossem ante-salas. A ante-sala pode, ou não, oferecer um ambiente propício. Quando as condições se apresentam favoráveis, o ato que ainda não era violência ganha novas conformações e passa para a sala, onde já pode se manifestar com feições de violência. Na ante-sala se estabelecem atos como a indisciplina ou as brincadeiras de mau gosto.

As fronteiras entre a ante-sala e a sala ou os espaços típicos da violência são tênues e o trânsito dessa passagem nem sempre são percebidos. Não existe uma passagem tão clara que permita que se defina que isto ou até aqui é violência e que até lá ou aquilo não é violência. O que ocorre é que os significados vão se misturando na prática e, como o processo evolui rapidamente, nem sempre é possível definir o momento que a violência explodiu. Um episódio banal pode se transformar e acabar gerando uma situação complicada e constrangedora.

Um exemplo que clarifica a compreensão: a atribuição de apelidos é encarada como brincadeira por quem o atribui, mas nem sempre por quem o recebe.10 10 . Há apelidos que indicam intimidade e são carinhosos. Entretanto, há outros, pejorativos, que o receptor considera ofensivos. Em geral, os apelidos rejeitados pelos recebedores são aqueles fazem referência à origem étnica, à orientação sexual, à condição social e a traços que evidenciam o que é considerado "falha", "defeito" e "carência". Alguns dos apelidos citados por alunos que se sentem ofendidos foram: Loira burra (para uma menina loira, muito bonita e repetente), Girafa e Carla Perez (para um menino com trejeitos femininos), Jamanta (para um outro considerado homossexual, muito feio e "sonso"), Negresco, Macaca, Japona (para alunos negros e japoneses), Favelado(a) (para alunos que não têm comportamento de acordo com a etiqueta e para alunos que residem em bairros populares distantes das escolas), Pão-de-ló (para um filho de padeiro, portanto, sem prestígio social) e outros mais. No início, tudo é brincadeira de quem quer se divertir provocando e irritando o colega, e fica restrita à ante-sala. No momento seguinte, ao vir a resposta do aluno visado, com pontapés e atracamento de corpos, ocorre a transferência para a sala da violência.

Esse caso dos apelidos ilustra as ante-salas das brincadeiras de mau gosto que podem se encerrar nelas mesmas, mas que podem culminar num dano interno grande ou num desenlace de agressão física.

Todos os estudiosos reconhecem que brigas corporais e atividades lúdicas existem e que sempre fizeram parte da vida das crianças e adolescentes. A diferença que deve ser reconhecida entre o passado e o presente é a rapidez do trânsito para um desenlace grave.

Considerações finais

Os mecanismos da socialização atuantes, hoje, no ambiente escolar estão permitindo a entrada das dificuldades da vida coletiva do país e do mundo, as quais geram preconceitos e discriminações porque a própria instituição não está conseguindo imprimir um outro padrão. Na verdade, ela está simplesmente assimilando, sem filtro, o padrão da vida social coletiva. A conseqüência desse estado de coisas é a formação de jovens alunos que se mostram pessoas desprovidas da idéia de alteridade, do espaço democrático, do diálogo, do convencimento ou da persuasão. E, como num círculo vicioso, o resultado disso é a manutenção e até o fortalecimento de uma sociedade muito pouco democrática.

Se o que se deseja é uma política de educação com mais democracia, então é preciso repensar a escola, analisar o seu currículo e redirecionar as suas ações para que seja superada essa crise da socialização. O primeiro passo em direção a uma mudança de conduta no cotidiano é a conscientização e a compreensão dessas dificuldades da vida coletiva. Neste sentido, seria importante estender a ênfase dos conceitos simplesmente pedagógicos até os (pré)conceitos que fomentam as práticas do cotidiano. Essa maior abrangência significa o transporte da vida do mundo relacional até o mundo pedagógico, ou seja, a inclusão, no currículo, da reflexão, da discussão e do entendimento de conceitos como identidade (cultural e social), alteridade, diferença, multiculturalismo, gênero, etnia, sexualidade, intolerância, preconceito, discriminação, violência, dentre tantos outros.

Tal discussão remete à problemática do modo como o professor deveria atuar na sala de aula, às dificuldades, ao despreparo e à falta de formação inicial e continuada. Essas deficiências, que não são do professor, mas dos próprios mecanismos institucionais, se mostram na própria forma de trabalho escolar ou no modo como a própria cultura escolar está organizada. Os cursos de Pedagogia e Licenciatura ignoram e raramente discutem questões do dia-a-dia das escolas, como a indisciplina, a violência, os preconceitos, as discriminações ou as relações que irão construir com os alunos, pois as preocupações estão voltadas para o estritamente pedagógico, como os planejamentos, ou para as teorias da educação ou da psicologia. A falha de formação propicia aos profissionais, em sua maioria, o desconhecimento de quais caminhos percorrer e como lidar com essa problemática. Essa situação pede a sugestão de mudança de currículo que não deve se restringir apenas às escolas terminais da cadeia educacional. Ela deve, isto sim, se iniciar nos cursos formadores de profissionais da educação.

Recebido em 12.07.01

Aprovado em 04.09.01

Luiza Mitiko Y. Camacho é Professora do Departamento de Didática e Prática de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal do Espírito Santo.

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  • WRIGHT MILLS, C.. A nova classe média. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
  • ZIMERMAN, David E. Grupos espontâneos: as turmas e gangues de adolescentes. In: ZIMERMAN, D. E. e OSORIO, L.C. e colaboradores. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
  • 1
    . Os dados que seguem sobre essa pesquisa realizada pela Unesco foram retirados dos jornais
    Folha de S. Paulo, de 09/12/1998, e
    A Gazeta, de 10/12/1998 e atualizados em 2000 com Waiselfisz, Julio Jacobo,
    Mapa da Violência II: Os jovens do Brasil. Brasília: UNESCO, 2000.
  • 2
    . Os estudos são: Guimarães (1984; 1990); Guimarães, Maria Eloísa, (1995); Oliveira (1995). A pesquisa realizada por Lia Fukui para a FDE/SEE, entre 1990 e 1991, também deve ser lembrada (Sposito, 1998). A estes estudos somam-se outros mais recentes: as pesquisas multicêntricas realizadas pela Unesco e coordenadas por Waiselfisz (1998) e por Minayo (1999); por Abramovay (1999); a pesquisa que se situa na perspectiva dos trabalhos promovidos pela Unesco,
    Escola e violência, coordenada por Vera Maria Candau.
  • 3
    . A violência, assim como a preocupação com ela, não é privilégio brasileiro. Esse problema está disseminado internacionalmente. Dos estudos realizados fora do Brasil, destacam-se os franceses como Éric Debarbieux (1990, 1997, 1998 e 1999), Bernard Charlot (1997), François Dubet (1998), Olivier Galland (1991) e Angelina Peralva (1997 e 1997a).
  • 4
    . O processo de coleta de dados ocorreu – nas duas escolas – num período de dois anos, ou seja, em 1997 e 1998. A análise foi realizada no ano subseqüente aos da coleta até o início de 2000. As leituras e estudos teóricos ocorreram durante os quatro anos da pesquisa – de 1996 a 1999.
  • 5
    . Sobre a moratória, conferir também Erik Erikson, 1987.
  • 6
    . Angelina Peralva em sua tese de doutorado, intitulada
    A classe média rediscutida – uma história de lutas no Brasil, defendida em 1985, faz uma discussão teórica a respeito da questão da multiplicidade da compreensão da classe média colocando três grandes interrogações: qual classe média? camadas médias ou classes médias? classe média ou classes médias?
  • 7
    . As classes médias abordadas nessa tese são compreendidas seguindo-se critérios econômicos complementados por outros, políticos e culturais. Aqui são considerados a acumulação, o conhecimento e o modelo cultural, como o fez Angelina Peralva (1985), que por sua vez inspirou-se nas idéias de Alain Touraine (1973).
  • 8
    . Os dispositivos ideológicos responsáveis pelo ocultamento da violência real apresentados por Chaui são:
    · da exclusão – existe um mito de que o Brasil é uma nação não-violenta. "O mecanismo da exclusão produz uma diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles não-brasileiros violentos. Eles não fazem parte do nós." (p. 36)
    · da distinção – ocorre uma distinção entre o essencial e o acidental. Os brasileiros, por essência, não são violentos e por isso a violência é acidental, superficial, momentânea, uma crise, limitada temporal e espacialmente.
    · jurídico – circunscreve a violência no campo da delinqüência e da criminalidade. Esse mecanismo permite determinar quem são os "agentes violentos" (os pobres) e legitimar a ação da polícia contra os pobres, os negros, as crianças de ruas e outros.
    · sociológico – considera a violência como um momento de anomia social no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não foram substituídas por novas. A violência, aqui, é considerada como um momento no qual os grupos sociais "atrasados" ou "arcaicos" entram em contato com os grupos sociais "modernos", e por estarem desadaptados, tornam-se violentos.
    · da inversão do real – são produzidas máscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem não-violentos.
  • 9
    . A utilização de adjetivos qualificativos como feio, bonito, gordo, magro, tem como parâmetros os padrões estéticos dos sujeitos investigados. É sabido que bonito ou feio, gordo ou magro, são conceitos muito relativos, porque dependem do gosto individual, da época e do espaço.
  • 10
    . Há apelidos que indicam intimidade e são carinhosos. Entretanto, há outros, pejorativos, que o receptor considera ofensivos. Em geral, os apelidos rejeitados pelos recebedores são aqueles fazem referência à origem étnica, à orientação sexual, à condição social e a traços que evidenciam o que é considerado "falha", "defeito" e "carência". Alguns dos apelidos citados por alunos que se sentem ofendidos foram:
    Loira burra (para uma menina loira, muito bonita e repetente),
    Girafa e
    Carla Perez (para um menino com trejeitos femininos),
    Jamanta (para um outro considerado homossexual, muito feio e "sonso"),
    Negresco,
    Macaca,
    Japona (para alunos negros e japoneses),
    Favelado(a) (para alunos que não têm comportamento de acordo com a etiqueta e para alunos que residem em bairros populares distantes das escolas),
    Pão-de-ló (para um filho de padeiro, portanto, sem prestígio social) e outros mais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Nov 2001
    • Data do Fascículo
      Jun 2001

    Histórico

    • Aceito
      04 Set 2001
    • Recebido
      12 Jul 2001
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