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Formação de professoras e Escolas Normais paulistas: um estudo da disciplina Biologia Educacional

Teacher education and the São Paulo Normal Schools: a study of the discipline of Educational Biology

Resumos

Este trabalho apresenta resultados de pesquisa sobre a história da disciplina Biologia Educacional (1933 a 1970), no âmbito da Escola Normal paulista. As elaborações dessa disciplina inseriram-se em projetos de renovação educacional em desenvolvimento no país desde a década de 1920, produzindo determinadas necessidades para o processo de formação de docentes e para suas futuras práticas. Esse processo, bem como os objetivos e as finalidades sociais da disciplina, foi analisado mediante o exame da atuação de diferentes grupos de interesses sociais, políticos e profissionais. Também foram investigadas as formas sob as quais o conhecimento científico disponível à época foi recriado para servir a esse processo de formação. Tomando como referência teórica os escritos de André Chervel e Ivor Goodson, pressupõe-se o caráter criativo das produções do sistema escolar, levando em conta suas possibilidades de reelaborar conhecimentos acadêmicos e de formar os indivíduos e também uma cultura escolar, produzindo padrões que se estendem a outras esferas sociais. A investigação baseou-se em análises de planos e programas de ensino, manuais didáticos, documentação arquivística e depoimentos de professoras. Foram identificadas várias formas de organização de conteúdos, com destaque para o padrão de maior sucesso, calcado no binômio hereditariedade e meio, dado como facilitador do conhecimento das individualidades humanas e, conseqüentemente, do trabalho do educador no sentido de disciplinar seus alunos para a máxima eficiência física e mental. Verificou-se também a construção de perfis de atuação social, em referência às crianças, mães e donas de casa, bem como de um ideal de desempenho profissional considerado moderno.

Biologia educacional; Escola normal; História das disciplinas


This work presents results of a research on the history of the discipline of Educational Biology (1933 to 1970) within the Normal Schools in the State of São Paulo. The formulations of this discipline were part of projects of educational reform under way in the country since the 1920s, engendering specific needs for the education of teachers, and for their future professional practice. This process, as well as the social objectives and purposes of this discipline, were analyzed through the examination of the action of different groups of social, political, and professional interest. The study also focused on the forms in which the scientific knowledge available at the time was recreated to serve that education process. Theoretically grounded on the works of André Chervel and Ivor Goodson, this study assumes the creative character of school productions, taking into account their possibilities to reconstruct academic knowledges, and to form individuals and also a school culture, giving birth to standards that reach out into other social spheres. The investigation was based on the analyses of teaching plans and programs, didactic manuals, archive documentation, and teachers' testimonies. Several forms of organizing the contents were identified, with emphasis on the most successful pattern, based on the binomial heredity-environment, considered as a key to understand the human individualities and, consequently, to the work of the educator to prepare her students to maximum physical and mental efficiency. The study also recognized the construction of profiles of social action associated to children, mothers and housewives, as well as of an ideal of professional performance regarded as modern.

Educational Biology; Normal School; History of the disciplines


ARTIGOS

Formação de professoras e Escolas Normais paulistas: um estudo da disciplina Biologia Educacional* * Trabalho apresentado no GT de História da Educação da 27ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu, MG, de 21 a 24 de novembro de 2004.

Teacher education and the São Paulo Normal Schools: a study of the discipline of Educational Biology

Luciana Maria Viviani

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Luciana M. Viviani Av. Arlindo Bettio, 1000 03828-000 – São Paulo – SP e-mail: lviviani@usp.br

RESUMO

Este trabalho apresenta resultados de pesquisa sobre a história da disciplina Biologia Educacional (1933 a 1970), no âmbito da Escola Normal paulista. As elaborações dessa disciplina inseriram-se em projetos de renovação educacional em desenvolvimento no país desde a década de 1920, produzindo determinadas necessidades para o processo de formação de docentes e para suas futuras práticas. Esse processo, bem como os objetivos e as finalidades sociais da disciplina, foi analisado mediante o exame da atuação de diferentes grupos de interesses sociais, políticos e profissionais. Também foram investigadas as formas sob as quais o conhecimento científico disponível à época foi recriado para servir a esse processo de formação. Tomando como referência teórica os escritos de André Chervel e Ivor Goodson, pressupõe-se o caráter criativo das produções do sistema escolar, levando em conta suas possibilidades de reelaborar conhecimentos acadêmicos e de formar os indivíduos e também uma cultura escolar, produzindo padrões que se estendem a outras esferas sociais. A investigação baseou-se em análises de planos e programas de ensino, manuais didáticos, documentação arquivística e depoimentos de professoras. Foram identificadas várias formas de organização de conteúdos, com destaque para o padrão de maior sucesso, calcado no binômio hereditariedade e meio, dado como facilitador do conhecimento das individualidades humanas e, conseqüentemente, do trabalho do educador no sentido de disciplinar seus alunos para a máxima eficiência física e mental. Verificou-se também a construção de perfis de atuação social, em referência às crianças, mães e donas de casa, bem como de um ideal de desempenho profissional considerado moderno.

Palavras–chave: Biologia educacional – Escola normal – História das disciplinas.

ABSTRACT

This work presents results of a research on the history of the discipline of Educational Biology (1933 to 1970) within the Normal Schools in the State of São Paulo. The formulations of this discipline were part of projects of educational reform under way in the country since the 1920s, engendering specific needs for the education of teachers, and for their future professional practice. This process, as well as the social objectives and purposes of this discipline, were analyzed through the examination of the action of different groups of social, political, and professional interest. The study also focused on the forms in which the scientific knowledge available at the time was recreated to serve that education process. Theoretically grounded on the works of André Chervel and Ivor Goodson, this study assumes the creative character of school productions, taking into account their possibilities to reconstruct academic knowledges, and to form individuals and also a school culture, giving birth to standards that reach out into other social spheres. The investigation was based on the analyses of teaching plans and programs, didactic manuals, archive documentation, and teachers' testimonies. Several forms of organizing the contents were identified, with emphasis on the most successful pattern, based on the binomial heredity-environment, considered as a key to understand the human individualities and, consequently, to the work of the educator to prepare her students to maximum physical and mental efficiency. The study also recognized the construction of profiles of social action associated to children, mothers and housewives, as well as of an ideal of professional performance regarded as modern.

Keywords: Educational Biology – Normal School – History of the disciplines.

Os professores, em seu processo cotidiano de criação pedagógica, deparam-se com toda uma tradição no ensino das disciplinas, tanto em relação às práticas dos colegas, como no que se refere a textos didáticos e cursos de formação inicial ou continuada, o que aparentemente justifica por si só os conteúdos, seqüências didáticas e mesmo os procedimentos metodológicos envolvidos. Tal tradição acaba se estabelecendo como um conjunto de regras informais e também como saberes acadêmicos que resultam em um "dever ser" de grande poder orientador das práticas pedagógicas.

Para os docentes, geralmente não fica claro como essa estrutura disciplinar foi produzida e quais são seus objetivos. Sua presença no currículo e sua organização interna apresentam uma aparente naturalidade, o que afasta qualquer possibilidade de contextualização histórica e social do processo de sua gênese e evolução.

Nesse sentido, é fundamental implementar a reflexão sobre as finalidades dos diferentes conjuntos de ensinamentos, bem como dos processos de evolução das disciplinas, de maneira a possibilitar o questionamento daquilo que comumente se caracteriza como tradição. Estas e outras questões são objeto de estudo da história das disciplinas, área de conhecimento em que se insere este trabalho.

Segundo Circe Bittencourt (2003), a utilização atual do termo disciplina escolar é problemática, pois há discordâncias sobre a equivalência desta e de outras designações correlatas. André Chervel (1990) considerou indiferentemente os termos disciplina escolar e matéria para referir-se às diversas situações de ensino básico, falando em disciplina acadêmica ao designar elaborações do conhecimento em nível superior. Para a autora, há também uma distinção entre esses termos nos escritos de Ivor Goodson (1997), que usou a designação disciplina para as formas de conhecimento próprias da tradição acadêmica, deixando para outros níveis de ensino o uso do termo matéria escolar (school subjects). Há, portanto, diferenças na utilização dos termos quanto a níveis de ensino, na delimitação dos diversos campos do conhecimento e das práticas escolares.

Neste texto, foram utilizadas indistintamente as terminologias disciplina e matéria para denominar os corpos de conhecimentos e práticas em análise, desenvolvidos nas situações de ensino da Escola Normal paulista, ainda que durante a maior parte do período considerado para o estudo estes recebessem, nos documentos oficiais, a denominação de matérias.

A questão da utilização de diversas terminologias não tem importância per se, mas associa-se à discussão sobre a produção de conhecimento nas distintas esferas institucionais associadas ao saber e ao ensino e às funções que podem ser desempenhadas pela escola, pelos diversos profissionais da área educacional.

Chervel (1990) considerou que o ensino escolar, sob o ponto de vista do senso comum, traria para a sala de aula a ciência produzida e comprovada em outras instâncias. A imagem que muitas vezes se construiu da pedagogia associou-se à ligação promovida entre a disciplina escolar e as diferentes áreas de conhecimento. A tarefa dos pedagogos seria então simplificar estes saberes, tornando-os menos complexos e permitindo o seu ensino naquele determinado nível de compreensão. Este conceito teria origem na idéia de que a escola é um meio conservador, caracterizado ainda pela inércia e pela rotina.

Essa idéia configurou-se no ambiente acadêmico mediante a concepção de transposição didática, introduzida pelos escritos de Yves Chevallard, partindo do princípio de que o conhecimento é inserido na escola por meio de agentes externos, que trazem os saberes construídos na esfera acadêmica. A grande aceitação dessa idéia deveu-se, em grande parte, ao fato de considerar a didática como um campo de saberes de fundamentação científica, e também pela legitimação das disciplinas escolares dada pelo seu embasamento no conhecimento científico, a ser constantemente adaptado pelo sistema escolar para os diferentes graus de ensino. Muitas críticas foram direcionadas a esses posicionamentos, tendo como base especialmente a valorização diferenciada e hierarquizada dos saberes acadêmicos e escolares, bem como a concepção do conhecimento erudito fora de um contexto histórico de produção (Bittencout, 2003).

Chervel, um dos maiores críticos da transposição didática, afirmou que o estudo de gênese, objetivo e funcionamento das disciplinas nega essa concepção, evidenciando, ao contrário, um caráter criativo do sistema escolar, formando não somente os indivíduos, mas também uma cultura escolar, que influencia e modifica aspectos culturais da sociedade como um todo.

Lucíola Santos (1990) fez uma análise de diferentes perspectivas presentes na pesquisa anglo-saxônica, inicialmente retomando críticas de Ivor Goodson em relação às abordagens conhecidas como filosófica e sociológica. A primeira visão, de acordo com o autor, considerou a disciplina escolar como uma simples transposição de saberes e criações acadêmicas, enquanto a segunda partiu do pressuposto de que as disciplinas são estruturadas segundo os interesses dos grupos mais influentes nos vários períodos históricos e sociais.

Uma outra perspectiva mencionada por Goodson (1997), os estudos críticos do currículo como construção social, que surgiram nos anos de 1960 e 1970, consideraram, segundo o autor, a sala de aula como o local de concretização do currículo, minimizando ao máximo a importância do currículo escrito – os planos e programas de estudos e os manuais das disciplinas. Para ele, o desenrolar das práticas pedagógicas representa efetivamente um processo de negociação do currículo oficial, mas este último também tem a sua devida relevância.

Partindo do pressuposto de que a escola tem uma atuação criativa, tanto dentro de seus limites como fora deles, o objetivo que aqui se coloca refere-se ao estudo das construções elaboradas nesta disciplina, a partir de duas vertentes: as finalidades didáticas, os objetivos sociais e culturais da Escola Normal para a formação do professor, que evidenciam determinadas necessidades, reais ou ideais, para as futuras práticas sociais deste profissional, e se relacionam com a atuação de diferentes grupos de interesses sociais, políticos e de atuação profissional da época; o conhecimento científico disponível à época, tanto em nosso país como em níveis internacionais, ou seja, o processo pelo qual este conhecimento foi transformado e utilizado para servir à formação de professores, naquele dado momento histórico e social.

Considerou-se neste trabalho a instituição educacional em seu caráter disciplinar, caracterizado por Michel Foucault (1987) como a forma de poder predominante das sociedades disciplinares, instauradas no ocidente a partir do século XVIII. Nesse período, ocorreu uma generalização disciplinar, mediante a formação de uma ampla rede de instituições disciplinares, instaurada nos setores sociais mais importantes e produtivos, de onde se espalharam para alcançar outros grupos sociais, que se tornaram assim passíveis de controle e, ao mesmo tempo, constituíram-se em núcleos controladores. Indivíduos mais úteis e produtivos foram fabricados por meio de técnicas capilares responsáveis por veicular relações de poder por todo o tecido social. As normatizações produzidas por esse poder foram, assim, internalizadas por meio de disposições mentais também disciplinares, atuantes não somente sobre o corpo dos sujeitos, mas também sobre suas mentes. Conforme frisou Alfredo Veiga-Neto (1996), o pensamento de Foucault apontou para a duplicidade de sentidos das elaborações teóricas sobre como o pensamento disciplinar contribuiu para a idéia de formação do sujeito. Tais análises poderiam apontar tanto para o fato de o indivíduo se transformar em sujeito como para sua sujeição ao novo poder, aquele disciplinar.

Esta investigação baseou-se em análises de planos e programas de ensino, manuais didáticos da disciplina, depoimentos de professores, e em documentação arquivística localizada em algumas escolas paulistas que ofereceram o Curso Normal durante o período em estudo, com base nos critérios de antigüidade da escola e da facilidade de acesso ao seu acervo.

A documentação aqui mencionada refere-se a atas de exames do Curso Normal, que traziam registros dos pontos sorteados para a avaliação dos alunos, e também listagens de pontos para sorteios. Foram considerados os arquivos da E. E. "Dr. Álvaro Guião", em São Carlos (antiga Escola Normal de São Carlos), e da E. E. "Carlos Gomes", em Campinas (antiga Escola Normal de Campinas), ambas escolas tradicionais localizadas no interior do estado de São Paulo. A partir dos conteúdos examinados na disciplina Biologia Educacional dessas Escolas Normais houve a possibilidade de entrar em contato com as práticas aí desenvolvidas, subsidiando o melhor entendimento da organização desta disciplina nas escolas citadas. Foram também contatadas duas professoras da disciplina Biologia Educacional que atuaram nas escolas aqui consideradas.

Formas de organização da disciplina

Pela análise dos currículos da Escola Normal paulista verificou-se que, somente em 1890, portanto 44 anos após a criação da primeira delas, foi implantada uma disciplina relativa à área de conhecimentos biológicos: Biologia, como parte da reforma educacional proposta por Caetano de Campos. Essa novidade pôde ser entendida como parte de um projeto reformador republicano de implantação de uma nova escola, que pudesse trazer a cidadania e o progresso ao país, tendo como base a necessidade de disseminação do conhecimento científico em detrimento da tradição humanista clássica.

O projeto republicano seria a resposta, numa visão empirista e positivista, para os problemas considerados mais importantes para os intelectuais da época: sair do obscurantismo, da ignorância e do atraso característicos do final do século XIX (Carvalho, 1998). No início do século XX interpretações de várias origens caracterizavam a população brasileira de forma bastante negativa, sempre em comparação a outros países considerados mais desenvolvidos, e propunham soluções para a superação da situação em direção a certos padrões dados como progressistas.

O campo médico higienista tinha propostas de intervenção regeneradoras que indicavam transformações a serem realizadas a partir da instituição escolar, nas dimensões física, intelectual e moral. No discurso sobre a regeneração social, Gondra (2000) identificou um papel muito importante a ser desempenhado pela escolarização, desde o século XIX, em que a razão médica estaria fornecendo as diretrizes e assim transformando a educação em um objeto de medicalização, sob a inspiração de propostas criadas por médicos higienistas franceses. As análises do autor acima citado demonstraram que a higiene foi o ramo da ciência médica que mais intensa e prolongadamente colaborou para a elaboração de discursos sobre escola, alunos e professores.

O movimento eugenista propunha a regeneração racial, ainda que tenha tido um nível de interferência bem menor aqui do que nos Estados Unidos e países europeus, sem alcançar grandes repercussões sociais. Esse movimento esteve presente em mais de trinta países, havendo diferentes apropriações e encaminhamentos para suas práticas sociais, conforme as condições políticas, científicas e institucionais do local considerado (Adams, 1990; Bizzo, 1994).

As teorias deterministas raciais foram aqui interpretadas no sentido de permitir algumas ações sociais em direção ao desenvolvimento da população brasileira. Na década de 1920 houve uma superposição das agendas dos movimentos eugenista e higienista, como a vinculação do saneamento ambiental ao melhoramento da raça. Muitos médicos higienistas adotaram tais posicionamentos, atribuindo ao meio o poder de transformar as células germinativas e, portanto, todo o processo de hereditariedade. Nesse sentido, muita ênfase foi dada ao processo de reprodução humana – o casamento, as doenças venéreas no convívio matrimonial, a puericultura, a gestação, a saúde materna, sempre como temas relacionados à eugenia. Paralelamente, várias reformas sanitárias encaminhadas nesse período foram encampadas pelo movimento eugênico, já que poderiam representar uma melhoria do estado de saúde da população, e, portanto, das futuras gerações (Stepan, 1990).

Discursos provenientes da área educacional integram essas interpretações para também propor soluções mediadas pela instituição escolar. Para Marta M. C. de Carvalho (1998) tais iniciativas reuniram forças e grupos em torno da validação de campanhas educacionais, num processo que acabou atraindo adeptos para uma ampla causa educacional. Mais tarde, a valorização de um determinado tipo de ensino revela a posição política de uma parcela de educadores da época, e a intenção de controle social por parte dessas elites intelectuais.

A partir dos anos de 1920 ocorrem mudanças no discurso pedagógico, em direção a uma visão mais otimista da criança e de sua natureza, quanto ao seu poder de ação, e sem tantas limitações deterministas. Uma nova compreensão da vida como mundo da indústria e da técnica subsidiava a pedagogia da escola nova, naquele momento redefinida como a disciplina do progresso (Carvalho, 1997).

Vários elementos do ideário escolanovista europeu e americano foram aqui considerados pelos reformadores de ensino, com vários níveis de apropriação e recriação, ao promoverem propostas de intervenção social concretizadas em reformas dos sistemas de ensino de vários estados. Ao contrário da situação dos países de origem dos projetos educacionais, onde a escola nova se constituiu em uma crítica a um sistema estabelecido e organizado de educação, no Brasil, a rede escolar era ainda precária e inadequada. Para implantar esse modelo, foram mobilizados recursos que em outros países serviram a um processo anteriormente encaminhado para a viabilização de um ensino de massas, como a seriação, o ensino simultâneo, a homogeneização de classes, a organização do trabalho escolar etc. (Carvalho, 2000).

O que se tentava superar era o que os renovadores chamavam de pedagogia tradicional, a arte de ensinar, calcada na imitação de modelos e no primado da visibilidade, praticada no estado de São Paulo no final do século XIX conforme ideais republicanos progressistas. Considerada por seus defensores como pedagogia moderna, propugnava a atividade baseada na observação de boas práticas escolares, cujos princípios seriam abstraídos e aplicados de forma criativa em novas situações de ensino, justamente o que se pretendia fazer nas escolas modelo anexas às Escolas Normais. Uma pedagogia prática combatida pelos educadores que tentavam implementar os preceitos da escola nova, por meio de inúmeras estratégias que levassem à conformação de um outro campo de saberes necessário à prática docente, centrado não em modelos, mas em amplos conhecimentos, dados como seus fundamentos e instrumentos.

Um processo de embate e conciliação de tendências pedagógicas e políticas ocorreu ao longo do período de implementação das reformas institucionais promovidas por educadores de vários estados. Toda a legislação produzida pelas reformas, bem como o espaço dos impressos, constituíram-se em estratégias de legitimação do que seria estabelecido como pedagogia nova, científica, experimental, em detrimento das outras práticas relegadas à condição de antigas e tradicionais (Carvalho, 2000).

Em 1933, Fernando de Azevedo, como Diretor da Instrução Pública de São Paulo, foi responsável pela aprovação do Código de Educação de São Paulo, legislação voltada aos preceitos de renovação educacional, que realizou uma ampla normatização de todos os aspectos do ensino, bem como a sua integração, desde o jardim da infância até a Escola de Professores do Instituto de Educação, de nível superior.

A biologia e a higiene tiveram um papel essencial para fundamentar essa nova pedagogia, com conteúdos que foram sendo inseridos nos currículos da Escola Normal desde a Reforma Sampaio Dória, de 1920. Por um lado, ofereciam meios de desenvolver a "base biológica", por meio da defesa da saúde individual, e, por outro, dotavam o professor de uma sólida base científica. A importância desses conhecimentos, em conjunção à formação de uma cultura geral, associava-se ao entendimento dos fins e dos meios da educação, e teve importante papel no delineamento de perfis de conduta profissionais, femininos e infantis.

Na fase inicial de construção da Biologia Educacional, um programa provisório e um livro didático foram lançados, sendo este último de autoria de Aristides Ricardo. Biologia aplicada à educação foi publicado na coleção Atualidades Pedagógicas, da Editora Nacional, em 1936, momento em que seu coordenador, Fernando de Azevedo, tinha como objetivo veicular ideais renovados para a formação de professores. Nesse material, bem como em alguns documentos arquivísticos encontrados nas escolas citadas, em referência à segunda metade da década de 1930, havia indícios da preocupação com o conhecimento da criança e com aspectos utilitários dos conhecimentos divulgados, que pudessem ser aplicados pelos futuros professores em sua atividade profissional. Outros direcionamentos também compartilharam o dia-a-dia da disciplina, como os ensinamentos de anatomia e fisiologia humanas e orientações próximas àquelas que seriam fortemente veiculadas a partir do final da década de 1930 e início da década seguinte, destacadas a seguir.

Um auxiliar de Sampaio Dória, que colaborou com a reforma educacional paulista de 1920, viria a ser uma das mais importantes figuras na organização da disciplina Biologia Educacional: Antônio de Almeida Jr., nascido em 1892, teve uma vida profissional expressiva em várias áreas de atuação, tais como medicina, ensino e direito. Participou da administração estadual, na esfera educacional e da saúde, ocupando cargos de grande prestígio. Na área acadêmica, foi catedrático no Instituto de Educação "Caetano de Campos" e na Faculdade de Direito, e tendo publicado grande quantidade de livros e artigos.

A atuação de Almeida Jr. nos círculos intelectuais e gestores da educação e higiene escolar de São Paulo foi definitiva para a inserção da disciplina no currículo e para a construção de parâmetros organizacionais que pautaram suas práticas escolares. Seu livro didático, Biologia Educacional, lançado em 1939 na mesma Atualidades Pedagógicas, alcançou grande sucesso de vendas, com um total de 22 edições, sendo a última de 1969. A atividade de Almeida Jr. na elaboração desse livro, na docência da disciplina e como organizador de programações oficiais, influenciaram a formação de gerações de professores primários e da disciplina em questão, atraindo a participação de colegas médicos e professores que trabalharam segundo propósitos semelhantes.

Os objetivos e a estruturação dada à disciplina por Almeida Jr., a partir da década de 1930, consideraram a necessidade social de formação de professoras que levassem uma ação civilizadora às mais longínquas localidades do estado e do país, a fim de modificar mentalidades e vivências presentes na população brasileira, tidas como atrasadas em comparação com outras, predominantes em países desenvolvidos na época, em especial os Estados Unidos. Isto se faria, por um lado, cuidando tanto da "base biológica" das crianças e de suas famílias, como da formação de mães e donas de casa que assumissem certas funções familiares, por meio da veiculação de preceitos eugênicos e da higiene em seus vários ramos. Por outro lado, era também fundamental a formação de professoras eficientes para inserção no mercado de trabalho, por meio da apreensão de uma cultura científica e de formas de raciocínio e atuação dadas como eficientes. A professora assim qualificada poderia ter mais claros os fins da educação escolar e as técnicas necessárias para implementá-la, também de forma eficiente, formando seus alunos segundo os mesmos parâmetros, e tendo em vista o projeto de educação renovada que se construía no país.

Para permitir a atuação da professora segundo tais objetivos, foi necessária uma fundamentação biológica para precisar a condição humana, tanto naquilo que apresentasse em comum com outros organismos, como nas particularidades da espécie. A organização elaborada pelo autor citado para a disciplina deu a conhecer o ser humano sob o ponto de vista de sua individualidade e das possibilidades de sua melhor adaptação ao meio. Estariam assim bem fixados os limites de atuação da escola e dos professores, permitindo a otimização do processo de ensino.

A absoluta diversidade individual foi então comprovada pela análise da enormidade de combinações genéticas possíveis, de parte de ambos os genitores, para a composição de cada novo ser, fosse da espécie humana ou outra qualquer. Somando-se a isto, as influências ambientais vivenciadas por cada um – doenças, tipo de alimentação, estímulos sociais etc. – ressaltavam a diversidade pessoal humana que deveria informar as práticas de ensino nas propostas renovadoras.

O ser humano delineado nessa organização da Biologia Educacional era resultado da adaptação social dada pelo balanço entre influências hereditárias e ambientais, que constituiu o eixo organizador da proposta didática de autoria de Almeida Jr. Abordando de forma complementar os dois elementos desse binômio, seu livro-texto elegeu a influência ambiental para certificar o ineludível progresso individual e social que ocorreria por meio da ação formadora da instituição escolar. A atuação humana poderia muito bem modular o patrimônio genético próprio de cada um, alcançando algum tipo de desenvolvimento. Diferenciava-se dessa forma dos outros seres vivos o ser humano, que teria poder para atuar sobre si mesmo, criar oportunidades de progresso para sua própria espécie, implementando sua condição física, intelectual e moral, por meio da educação integral.

Apesar de tudo, uma base hereditária imutável foi considerada pelo autor, cuja ignorância poderia determinar até mesmo o fracasso individual. O apoio à concepção das aptidões naturais, por parte de Almeida Jr., como expressão do patrimônio genético individual, reforçava a legitimidade científica do conceito. Essa noção foi de especial importância para a prática educativa idealizada pela proposta em foco, pois se pensava que a implementação de certos padrões pedagógicos poderia atuar no cultivo dessas tendências naturais e, assim, alcançar a eficiência e o progresso pessoal e da sociedade como um todo. Mas essa concepção poderia também justificar o discurso da causalidade natural tanto do fracasso escolar individual como das desigualdades sociais na escola e no mundo do trabalho.

A estrutura da disciplina propugnada por Almeida Jr. e seus seguidores incluía uma parte de noções gerais, para o conhecimento do indivíduo humano, e também para implementar a cultura científica das futuras professoras, desenvolvida em seu livro didáticos. Para trabalhar os objetivos referentes à prática pedagógica, foi necessário implementar outros conhecimentos, direcionados à atuação da professora. Para isso, foi incluída em tal organização uma parte aplicada, referente à higiene, em seus vários aspectos, para cuja abordagem indicava-se o texto de Ary Lex (Biologia Educacional, publicado na Coleção Atualidades Pedagógicas de 1946 até 1985, em dezenove edições), no que dizia respeito à higiene pré-escolar e escolar, e o livro do próprio Almeida Jr., em co-autoria de Mario Mursa, em relação à puericultura (O livro das mamães, publicado pela Editora Nacional em 1933, 1937 e 1938).

Além da higiene, a parte aplicada da disciplina também envolvia a eugenia, trabalhada por Almeida Jr. em seu Biologia Educacional, ainda que o autor ressaltasse sua discordância com as práticas de eugenia negativa (impedimento da reprodução de indivíduos com "plasmas germinativos" considerados problemáticos) e de controle da natalidade. Em 1941, apoiava somente procedimentos de estímulo aos casamentos que pudessem perpetuar bons "plasmas germinativos", que ocorreriam com maior predominância nas classes economicamente favorecidas. Apesar disso, trouxe elementos de referenciais eugenistas para o seu livro didático, especialmente as produções americanas mais ligadas à questão racial, para no final do texto frisar que, o mais importante, seria cuidar do indivíduo, pela sua educação e higienização, já que a questão racial no nosso país não teria relevância.

Alguns conteúdos permaneceram sendo ensinados durante todo o período em estudo, como os temas "puericultura" e "doenças", assuntos freqüentes e sem grandes modificações durante todo o período, bem como a parte de "higiene escolar", ainda que esta última tivesse sofrido alterações de enfoque. A orientação para normatizar toda a vida do estudante, antes predominante no ensino de higiene escolar, a partir da década de 1950, conviveu com uma abordagem biológica, cujo foco foram as informações sobre as condições físicas da criança.

A proposta de ampla formação científica das futuras professoras foi recriada nas escolas pesquisadas pela crescente diversidade de assuntos tratados na disciplina. Na década de 1930, na Escola Normal de Campinas, apenas conteúdos referentes a higiene e puericultura foram considerados, mas a partir dos anos de 1940, e com maior intensidade na década de 1950, muitos temas examinados constituíram novidades nessa escola e também na Escola Normal de São Carlos.

Dentre estes, mereceu destaque a genética, introduzida a partir de 1952 na Escola Normal de São Carlos, e rapidamente levada à posição de tema mais freqüente entre aqueles examinados nessa escola até 1963. Dirigida ao estudo de teorias gerais válidas para o ser humano ou para qualquer outro ser vivo, abordava poucos conteúdos de genética humana, inserindo-se sob a rubrica de ensino propedêutico, também direcionado ao conhecimento dos indivíduos, fossem as crianças da escola primária, com as quais as futuras professoras trabalhariam, fossem as próprias normalistas.

Essa tendência em privilegiar ensinamentos de cunho genérico ocorreu não somente com a genética, mas de forma ampla nos Cursos Normais. O balanço entre ensino propedêutico e aplicado às situações de ensino, proposto como ideal por Almeida Jr., em contraposição ao ensino descomprometido com a formação profissional, considerado característico da tendência dita tradicional, diluiu-se a partir dos anos de 1950, quando muitos conteúdos passaram a enfocar ideais de saúde individual e conceitos biológicos gerais, ainda que sem a exclusão de referenciais anteriormente presentes. A grande afluência de moças nesses cursos remeteram a objetivos de complementação de formação escolar feminina, bem como à permanência do direcionamento para o desempenho de certas funções consideradas femininas no âmbito familiar, já constantes nas práticas da disciplina desde o início do período estudado.

A Biologia Educacional foi criada como uma disciplina escolar, tendo como justificativa para sua inserção no currículo da Escola Normal a utilidade de seus ensinamentos para a prática profissional docente. Passou por um breve período de exercício acadêmico, caracterizado pela produção de pesquisas e pela criação de signos que lhe conferiam um campo próprio de conteúdos e de procedimentos metodológicos, associando à pesquisa atividades de ensino e ação social. Dado o arrefecimento desse padrão de produção científica, não se instalou uma tradição acadêmica para a disciplina. Apesar disso, a Biologia Educacional continuou sendo ensinada nos Cursos Normais e superiores como um corpo de conhecimentos associado à prática pedagógica, reafirmando seu status de disciplina escolar e a orientação para aspectos utilitários de seu ensino.

Construção de perfis de atuação social

Os estudantes dos primeiros anos de escolarização precisavam ser, antes de mais nada, "curados e higienizados", nas palavras de Almeida Jr., para só então serem educados. Desenvolveriam hábitos de higiene e de raciocínio, valores morais, e práticas de trabalho eficiente na escola, extensíveis para situações de sua futura inserção profissional.

Práticas de controle social sobre a criança, por meio da ação social da escola e da professora, eram difundidas para as suas famílias, que assim poderiam entrar em contato e apreender os mesmos valores e hábitos que eram veiculados nas escolas primárias.

A interferência nos espaços domésticos foi também mediada pela construção de um perfil de atuação feminina dentro e fora da instituição familiar, determinando funções e deveres, especialmente no que dizia respeito aos cuidados infantis. N' O livro das mamães (1938), Almeida Jr. e Mario Mursa trouxeram elementos para a construção de um perfil de atuação social tendo por base a concepção de aptidões naturais femininas para desempenhar esse tipo de tarefa. As práticas e os saberes do senso comum, associados pelos autores às mulheres, eram apresentados de forma negativa e desvalorizada, enquanto o conhecimento científico, associado aos homens, médicos e educadores, era considerado como único válido e correto. Uma das propostas dessa publicação foi a aplicação do conhecimento científico às funções caseiras, promovendo a sua ressignificação, o que representou uma forma de controle e disciplina do ambiente familiar, a partir da instituição escolar, já que esse livro era utilizado na disciplina em foco.

Se, como afirma Joan Scott (1995), o gênero é um campo por meio do qual o poder é articulado, pode-se dizer que as iniciativas dos autores citados contribuíram para a formação de um determinado perfil de atuação social. Deslocava-se dessa forma para posições periféricas outros perfis de feminilidade existentes na sociedade da época, confirmando-se ainda a sua subordinação a um perfil de masculinidade com o qual se identificavam os autores e seu grupo, formado por homens brancos, intelectuais, pertencentes à elite, representantes do pensamento renovador educacional, que assim reafirmavam suas posições de poder social.

Esse perfil feminino constituía-se por meio dos ensinamentos de puericultura na Escola Normal, presentes durante todo o período estudado, pela atuação dos Centros de Puericultura, e também pela veiculação de tais preceitos na escola primária, por parte das professoras, para as crianças e para suas famílias.

Um perfil profissional também foi construído no âmbito da disciplina Biologia Educacional, em associação àquele ligado à condição feminina. A formação de docentes tinha uma posição central na proposta de reforma educacional paulista, como também ocorria nas reformas implantadas em outros estados do país. No discurso empregado por Fernando de Azevedo, para justificar e divulgar as reformas educacionais por ele implementadas, havia a pretensão de mudar a mentalidade da professora. Garantindo-lhe liberdade de ação, ainda que dentro de parâmetros científicos e orientada para ideais de transformação social, oferecia-se a orientação técnica dos órgãos administrativos para viabilizar tais transformações na prática pedagógica. Para Carvalho (1998), essas condições poderiam assegurar o sucesso das reformas, pois alguns parâmetros pedagógicos em que acreditavam os reformadores assim o atestavam. As futuras professoras deveriam também passar por um aprendizado, que seria eficiente se atendesse às mesmas regras pensadas para o processo de ensino das crianças. A ênfase no interesse e na atividade deveria pautar a relação reformador/ professora da mesma forma em que estaria configurada a relação professora/ aluno.

A proposta organizacional de Biologia Educacional de maior permanência durante o período aqui considerado trouxe elementos importantes para o processo de formação profissional dentro de parâmetros de ensino renovados. Entre outros aspectos, a boa professora deveria apreender a possibilidade de transformação social por meio da educação e a importância da atividade e do interesse para garantir um processo educativo eficiente.

Para isso, os ensinamentos do livro de autoria de Almeida Jr. mobilizavam conceitos científicos da área da fisiologia para atestar a possibilidade e a necessidade da educação, pois em comparação com a educação existente nos animais, o homem enfrentaria um ambiente muito mais complexo, em que a simples ação dos instintos não seria suficiente para promover sua adaptação ao meio.

A natureza biológica dos princípios mediadores do processo educativo foram explicitados como estímulos do ambiente que causariam uma reação, uma modificação orgânica, morfológica ou funcional, a atividade funcional. A atividade, a exercitação constante do tecido nervoso seria fundamental para permitir a aprendizagem, e assim justificava-se a necessidade do ensino ativo em um processo educativo que se pretendia eficiente, legitimando as propostas renovadas de ensino. Com base nesses princípios, o livro didático citado apresentava as melhores maneiras de aprendizagem, como as formas de condicionamento, ensaio e erro ou a imitação.

Assim, deveria a professora implementar uma série de "atividades práticas" em seu cotidiano profissional, para exercitar, desenvolver a inteligência e otimizar o processo de aprendizagem dos educandos. Aulas práticas em laboratórios, com observação direta dos fenômenos estudados, seminários, estágios em centros de puericultura, palestras com profissionais de áreas correlatas aos assuntos tratados e campanhas educativas eram sempre sugeridas nas programações oficiais de ensino e nos livros didáticos de Almeida Jr. e Ary Lex, inclusive para o curso de formação de professores, fosse sob a forma de orientações diretas ou por meio da descrição de situações ideais e experiências bem-sucedidas.

Não houve, no entanto, indicações de trabalho com a concepção de atividade funcional, que pudessem fundamentar princípios escolanovistas, na presente pesquisa documental arquivística, havendo poucos temas examinados nesse sentido. Quanto à orientação dada às práticas em Biologia Educacional, ficou na dependência do encaminhamento pessoal de cada professora, estando a estrutura de ensino da Escola Normal de Campinas, mais próxima aos ideais do ensino ativo. Verificou-se, portanto, a ocorrência de diversos caminhos para a organização desses ensinamentos nas escolas pesquisadas, indicando mais uma vez o caráter criativo do processo de construção da disciplina.

Em complementação à necessidade de implementar o ensino ativo, o perfil profissional da professora construído pela proposta considerada envolveu a atuação social referente à assistência aos estudantes e às suas famílias. A assistência implicava atuar sobre o aspecto físico, como na higienização, cura e condicionamento de hábitos na criança, e mesmo sobre o desenvolvimento de aspectos intelectuais e morais, implementando uma educação integral.

Quanto ao aspecto intelectual, mais uma vez concepções biológicas foram mobilizadas para explicitar a importância do desenvolvimento da inteligência, considerada a maior força da espécie humana, seu diferencial em relação aos outros seres vivos, por meio de ações que pudessem modular e controlar elementos do ambiente infantil – alimentação, higiene, tratamento médico e estímulos do meio.

As práticas de integração social desenvolvidas pelas professoras contatadas nesta pesquisa, no âmbito da disciplina em foco, desde a década de 1950 até 1976, aproximaram-se do assistencialismo, dos cuidados infantis direcionados especialmente às crianças de famílias pobres, que também eram atendidas, na medida do possível, quanto a dificuldades econômicas, por meio de campanhas e doações de toda a ordem. Uma das professoras registrou sua visão da incapacidade de as famílias proverem adequadamente os cuidados necessários aos seus filhos, em termos econômicos e culturais, deficiência que a escola deveria suprir.

Ao mesmo tempo em que se pregava a liberdade profissional do professor, em oposição ao desempenho limitado em que se dizia ocorrer a atividade do docente em moldes tradicionais, construía-se um perfil de excelência profissional a ser seguido, que foi associado à idéia de modernidade pedagógica. Esse perfil teve nas propostas de Biologia Educacional a sua justificativa e legitimação, ancoradas na ciência biológica, assim contribuindo para a construção do status científico da concepção de pedagogia que obteve grande circulação nos meios educacionais a partir dos anos de 1930.

A disciplina de corpos e mentes exercitada no âmbito da disciplina Biologia Educacional apontou para a necessidade de seus ensinamentos no processo de instituição de práticas de controle social com relação às classes sociais, à criança, à família e à professora, no âmbito de um amplo projeto de intervenção social que, a partir de práticas escolares renovadas, almejava a disciplina e a eficiência individuais, que pudessem trazer o progresso às populações do estado e do país. Aspectos culturais elitistas foram tomados como modelo para configurar tais práticas de controle e, assim, reforçaram-se as posições de poder dos idealizadores dos projetos de renovação educacional, que faziam parte das elites culturais brasileiras.

Obras analisadas

ALMEIDA JR., A. F. Biologia Educacional: noções fundamentais. São Paulo: Ed. Nacional, 1939 (Atualidades Pedagógicas, 35).

ALMEIDA JR.; A. F., MURSA, M. O livro das mamães. Noções de puericultura. 3ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1938.

LEX, A. Biologia Educacional – para uso nas Escolas Normais, Institutos de Educação e Faculdades de Filosofia. São Paulo: Ed. Nacional, 1946 (Atualidades Pedagógicas, 45).

RICARDO, A. Biologia Applicada à Educação. São Paulo: Ed. Nacional, 1936 (Atualidades Pedagógicas, 19).

Recebido em 21.10.04

Aprovado em 07.05.05

Luciana Maria Viviani é doutora em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e professora doutora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo Leste, na área de fundamentos da educação. Atua na área de história da educação e de formação de professores.

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  • Endereço para correspondência
    Luciana M. Viviani
    Av. Arlindo Bettio, 1000
    03828-000 – São Paulo – SP
    e-mail:
  • *
    Trabalho apresentado no GT de História da Educação da 27ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu, MG, de 21 a 24 de novembro de 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Aceito
      07 Maio 2005
    • Recebido
      21 Out 2004
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