Resumos
INTRODUÇÃO: Em 2002 a Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina foi revisada, sendo criada uma categoria para atipias de significado indeterminado (ASI) e elaborada uma categoria de origem indefinida (ASIOI). Assim como as células atípicas de significado indeterminado de origem escamosa (ASCUS) e as células atípicas de significado indeterminado de origem glandular (AGUS), a categoria diagnóstica ASIOI é controversa. Apesar disso, nenhum estudo nacional anterior a este investigou sua validade. OBJETIVO: Este trabalho tem como objetivo principal investigar a importância da categoria ASIOI. Secundariamente, visa ainda contribuir com a divulgação da Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina, através de sua publicação na íntegra. MATERIAIS E MÉTODOS: Este estudo resultou da colaboração de dois laboratórios privados de anatomia patológica e citopatologia. Os casos foram selecionados a partir de arquivos de exames citopatológicos, realizados entre 2000 e 2004, com diagnóstico de ASCUS ou AGUS e seguidos por exame histológico. Foram selecionados e revisados 30 casos, sendo identificados campos citológicos diagnósticos de ASIOI, ASCUS e AGUS. RESULTADOS: Dos 30 casos, 26 foram selecionados para o estudo após revisão citopatológica. Desses, 19 apresentavam apenas campos citológicos com diagnóstico de ASCUS e/ou AGUS, sendo utilizados como grupo-controle. Apenas sete casos continham campos compatíveis com ASIOI, dos quais 4 (57,1%) estavam associados a AGUS; 1 (14,3%) a ASCUS; 1 (14,3%) estava associado a ambos; e 1 (14,3%) não possuía alterações compatíveis com ASCUS e/ou AGUS. DISCUSSÃO: Os casos de ASIOI encontrados mostraram forte associação com a categoria AGUS e com alterações glandulares na histologia. A maior parte dessas correspondeu a alterações reacionais e benignas, exceto por um caso de displasia e um de adenocarcinoma in situ. O diagnóstico de ASIOI é um achado raro e uma cuidadosa revisão da lâmina, na maioria dos casos, resultará no encontro de campos de AGUS. Vale ainda salientar a forte associação desse diagnóstico com áreas de má fixação nos esfregaços. Novos estudos sobre o assunto serão necessários. Com base nos achados do presente estudo, sugerimos que a persistência desse termo deva ser questionada em futuras revisões da nomenclatura nacional para laudos citopatológicos.
Células escamosas atípicas de significado indeterminado (ASCUS); Células glandulares atípicas de significado indeterminado (AGUS); Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina; Sistema Bethesda; Correlação cito-histológica
BACKGROUND: In 2002, the Brazilian Nomenclature for Reporting Cervical Cytological Diagnosis was revised. A category of atypical epithelial cells of undetermined significance (AUS) and another (sub-classification) of atypical epithelial cells of undetermined significance and undetermined origin (AUSUO) were introduced. Like atypical squamous cells of undetermined significance (ASCUS) and atypical glandular cells of undetermined significance (AGUS), the diagnostic category AUSUO is controversial. Despite controversies, no previous national study had investigated its importance. OBJECTIVES: This study has the main objective of investigate the importance of the diagnostic category AUSUO. Another purpose is to contribute to spread the Brazilian Nomenclature for Reporting Cervical Cytological Diagnosis, by publishing it entirely. MATERIALS AND METHODS: The study resulted from the contribution of two private pathology and cytopathology laboratories. Cases diagnosed as ASCUS or AGUS with follow-up were selected from archives of cytopathology exams, collected from the period between 2000 and 2004. In total, 30 cases were selected and revised, being identified cytological diagnostic fields of ASIOI, ASCUS and AGUS. RESULTS: After revision, from the 30 cases, 26 were selected for the study. Among these, 19 presented cytological fields with diagnosis of only ASCUS and/or AGUS and were used as a control group. Only seven cases contained fields compatible with AUSUO, 4 (57,1%) were associated with AGUS; 1 (14.3%) with ASCUS; 1 (14.3%) with both; and 1 (14.3%) had no alterations compatible with ASCUS and/or AGUS. CONCLUSIONS: The AUSUO cases showed a strong association with AGUS and glandular alterations in histology. Most of these cases corresponded to reactive and benign alterations, except for one case of endocervical dysplasia and one case of in situ adenocarcinoma. The AUSUO diagnosis is a rare finding, and after a careful revision of the pap smears, in the majority of the cases, fields of AGUS are found. It’s worthwhile to emphasize the strong association between this diagnosis and poor fixed areas in the pap smears. New studies will be necessary to confirm our findings. Based in this first approach to this issue, we suggest that the persistence of this term should be questioned in the forthcoming revisions of our national nomenclature for reporting cervical cytological diagnosis.
Atypical squamous cells of undetermined significance (ASCUS); Atypical glandular cells of undetermined significance (AGUS); Brazilian Nomenclature for Reporting Cervical Cytological Diagnosis; Bethesda System; Cytohistological correlation
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL PAPER
Investigação do valor da categoria diagnóstica de células epiteliais atípicas, de significado indeterminado, e origem indefinida da nomenclatura brasileira para laudos citopatológicos cervicais
Investigation of the value of the atypical epithelial cells of undetermined significance and origin diagnostic category proposed by the Brazilian nomenclature for reporting cervical cytological diagnosis
Álvaro Piazzetta PintoI; Luiz Martins CollaçoII; Luiz Roberto MaiaIII; Lucas ShiokawaIII; Thais Glace TavaresIV; Kelen BezerraV; Regina Fronza GonçalvesVI
IProfessor-adjunto do Departamento de Patologia do Setor de Ciências da Saúde e do Curso de Pós-graduação em Tocoginecologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR); doutor em Patologia pela Universidade de São Paulo (USP); patologista consultor em Ginecopatologia dos laboratórios ANNALAB, de Curitiba-PR, e do Serviço Integrado de Patologia (SIP), de Joinville-SC
IIProfessor de Patologia da UFPR e da Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná (FEMPAR); doutor em Medicina pela UFPR; médico citopatologista do laboratório ANNALAB
IIIBolsistas de iniciação científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); graduandos de Medicina pela UFPR
IVBiomédica especialista em análises clínicas e citotécnica pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA); especialista em citotecnologia pela Sociedade Brasileira de Citopatologia (SBC); citotécnica júnior do laboratório ANNALAB
VMonitora da Disciplina de Mecanismos Básicos de Doença; graduanda de Medicina pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE)
VICitotécnica sênior do SIP de Joinville.
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Álvaro Piazzetta Pinto Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Laboratório Annalab Rua Mal. Deodoro, 235 8° Andar Sala 02 Ed. Arnaldo Thá Centro CEP 80.020-320 Curitiba-PR E-mail: alvaropi@bsi.com.br
RESUMO
INTRODUÇÃO: Em 2002 a Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina foi revisada, sendo criada uma categoria para atipias de significado indeterminado (ASI) e elaborada uma categoria de origem indefinida (ASIOI). Assim como as células atípicas de significado indeterminado de origem escamosa (ASCUS) e as células atípicas de significado indeterminado de origem glandular (AGUS), a categoria diagnóstica ASIOI é controversa. Apesar disso, nenhum estudo nacional anterior a este investigou sua validade.
OBJETIVO: Este trabalho tem como objetivo principal investigar a importância da categoria ASIOI. Secundariamente, visa ainda contribuir com a divulgação da Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina, através de sua publicação na íntegra.
MATERIAIS E MÉTODOS: Este estudo resultou da colaboração de dois laboratórios privados de anatomia patológica e citopatologia. Os casos foram selecionados a partir de arquivos de exames citopatológicos, realizados entre 2000 e 2004, com diagnóstico de ASCUS ou AGUS e seguidos por exame histológico. Foram selecionados e revisados 30 casos, sendo identificados campos citológicos diagnósticos de ASIOI, ASCUS e AGUS.
RESULTADOS: Dos 30 casos, 26 foram selecionados para o estudo após revisão citopatológica. Desses, 19 apresentavam apenas campos citológicos com diagnóstico de ASCUS e/ou AGUS, sendo utilizados como grupo-controle. Apenas sete casos continham campos compatíveis com ASIOI, dos quais 4 (57,1%) estavam associados a AGUS; 1 (14,3%) a ASCUS; 1 (14,3%) estava associado a ambos; e 1 (14,3%) não possuía alterações compatíveis com ASCUS e/ou AGUS.
DISCUSSÃO: Os casos de ASIOI encontrados mostraram forte associação com a categoria AGUS e com alterações glandulares na histologia. A maior parte dessas correspondeu a alterações reacionais e benignas, exceto por um caso de displasia e um de adenocarcinoma in situ. O diagnóstico de ASIOI é um achado raro e uma cuidadosa revisão da lâmina, na maioria dos casos, resultará no encontro de campos de AGUS. Vale ainda salientar a forte associação desse diagnóstico com áreas de má fixação nos esfregaços. Novos estudos sobre o assunto serão necessários. Com base nos achados do presente estudo, sugerimos que a persistência desse termo deva ser questionada em futuras revisões da nomenclatura nacional para laudos citopatológicos.
Unitermos: Células escamosas atípicas de significado indeterminado (ASCUS), Células glandulares atípicas de significado indeterminado (AGUS), Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina, Sistema Bethesda, Correlação cito-histológica
ABSTRACT
BACKGROUND: In 2002, the Brazilian Nomenclature for Reporting Cervical Cytological Diagnosis was revised. A category of atypical epithelial cells of undetermined significance (AUS) and another (sub-classification) of atypical epithelial cells of undetermined significance and undetermined origin (AUSUO) were introduced. Like atypical squamous cells of undetermined significance (ASCUS) and atypical glandular cells of undetermined significance (AGUS), the diagnostic category AUSUO is controversial. Despite controversies, no previous national study had investigated its importance.
OBJECTIVES: This study has the main objective of investigate the importance of the diagnostic category AUSUO. Another purpose is to contribute to spread the Brazilian Nomenclature for Reporting Cervical Cytological Diagnosis, by publishing it entirely.
MATERIALS AND METHODS: The study resulted from the contribution of two private pathology and cytopathology laboratories. Cases diagnosed as ASCUS or AGUS with follow-up were selected from archives of cytopathology exams, collected from the period between 2000 and 2004. In total, 30 cases were selected and revised, being identified cytological diagnostic fields of ASIOI, ASCUS and AGUS.
RESULTS: After revision, from the 30 cases, 26 were selected for the study. Among these, 19 presented cytological fields with diagnosis of only ASCUS and/or AGUS and were used as a control group. Only seven cases contained fields compatible with AUSUO, 4 (57,1%) were associated with AGUS; 1 (14.3%) with ASCUS; 1 (14.3%) with both; and 1 (14.3%) had no alterations compatible with ASCUS and/or AGUS.
CONCLUSIONS: The AUSUO cases showed a strong association with AGUS and glandular alterations in histology. Most of these cases corresponded to reactive and benign alterations, except for one case of endocervical dysplasia and one case of in situ adenocarcinoma. The AUSUO diagnosis is a rare finding, and after a careful revision of the pap smears, in the majority of the cases, fields of AGUS are found. Its worthwhile to emphasize the strong association between this diagnosis and poor fixed areas in the pap smears. New studies will be necessary to confirm our findings. Based in this first approach to this issue, we suggest that the persistence of this term should be questioned in the forthcoming revisions of our national nomenclature for reporting cervical cytological diagnosis.
Key words: Atypical squamous cells of undetermined significance (ASCUS), Atypical glandular cells of undetermined significance (AGUS), Brazilian Nomenclature for Reporting Cervical Cytological Diagnosis, Bethesda System, Cytohistological correlation
Introdução
A primeira Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina foi elaborada em 1993. Em 2002, numa tentativa de reforçar a uniformização de relatórios citológicos cervicovaginais em âmbito nacional, representantes do Instituto Nacional do Câncer (INCA), do Ministério da Saúde (MS), da Sociedade Brasileira de Citopatologia (SBC) e da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP) reuniram-se e revisaram essa nomenclatura(8). Novos conhecimentos morfológicos e moleculares, incluindo elementos propostos pela reunião de consenso do Sistema de Bethesda(18), realizada no ano anterior, formaram a base para essa revisão.
Essa nova nomenclatura criou uma categoria separada para as atipias de significado indeterminado (ASI), que engloba atipias indeterminadas em células escamosas e glandulares. Além disso, criou também uma categoria de origem indefinida (ASIOI), destinada a situações em que não se pode estabelecer com clareza a origem da célula atípica. Para as células atípicas de significado indeterminado de origem escamosa (ASCUS) consideraram-se as categorias possivelmente não-neoplásicas e não se pode afastar lesão intra-epitelial de alto grau. A mesma subdivisão foi instituída para as células atípicas de significado indeterminado de origem glandular (AGUS) e de origem indefinida (ASIOI).
Não foram encontrados, entre as bases de dados da literatura médica disponíveis (MEDlars onLINE [MEDLINE], Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde [LILACS], entre outras), trabalhos científicos relacionados ao termo células atípicas de significado indeterminado de origem indefinida (ASIOI), bem como a respeito da nomenclatura brasileira de citologia.
O presente trabalho tem, portanto, dois objetivos. O primeiro é investigar a importância da categoria diagnóstica ASIOI, proposta pela Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina, em 2002, e o segundo objetivo deste estudo é o de colaborar com a divulgação dessa nomenclatura, publicando-a na principal revista nacional sobre patologia e citopatologia.
Materiais e métodos
Este estudo resultou da colaboração entre dois laboratórios privados de anatomia patológica e citopatologia: o Serviço Integrado de Patologia (SIP) de Joinville, Santa Catarina, e o laboratório ANNALAB do Paraná. No laboratório SIP foram selecionados 30 casos com diagnóstico citológico de ASCUS ou AGUS, seguidos por exame histológico (produtos de biópsia e/ou peça cirúrgica), no período de janeiro de 2000 a janeiro de 2004. Todos os casos ainda continham imagens digitalizadas dos principais campos citológicos alterados, sendo que 11 deles apresentaram imagens sugestivas para ASIOI.
Posteriormente, um dos autores (Collaço, LM) revisou todas as lâminas e identificou campos citológicos característicos de ASIOI, ASCUS/lesão escamosa ou AGUS/lesão glandular, emitindo diagnósticos citológicos de revisão. Os critérios citológicos utilizados para diagnóstico e avaliação da qualidade das amostras foram os da nomenclatura brasileira(8), enquanto os adotados para o diagnóstico de ASIOI foram os mesmos propostos para o diagnóstico de ASCUS e AGUS(8), quando consideradas as alterações nucleares. Campos ou casos foram rotulados como ASIOI no momento em que o arranjo celular e/ou a observação cuidadosa do citoplasma das células não foram suficientes para caracterizar a sua origem como escamosa ou glandular. Células em grupamentos tridimensionais, com núcleos discretamente aumentados de volume, variáveis em tamanho e forma, de cromatinas hipercromáticas e discretamente granulares e citoplasmas ausentes, de bordas indistintas e indefiníveis quanto à origem, foram os critérios utilizados para a caracterização de ASIOI.
Na Tabela 1 observa-se a Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina, com a classe das atipias indeterminadas inserida sob o tópico de diagnóstico descritivo: alterações em células epiteliais. Esses diagnósticos foram correlacionados com os diagnósticos histológicos, também obtidos após revisão por outro autor (Pinto, AP). Uma tentativa de comparação estatística entre grupo de estudo e grupo-controle, no que se refere a predizer o diagnóstico histológico, foi realizada, mas sem sucesso (número insuficiente de casos). Considerando a natureza descritiva do presente estudo e o número limitado de casos disponíveis para análise, optou-se por não utilizar testes estatísticos para a análise dos resultados.
Resultados
As idades das pacientes utilizadas no estudo variaram entre 18 e 60 anos, sendo 40 anos a idade média encontrada (desvio-padrão 12,87 anos). Entre os 30 exames citopatológicos inicialmente selecionados para revisão, 23 foram excluídos do grupo principal do estudo (casos ASIOI). Desses, 19 não apresentaram campos diagnósticos para ASIOI e quatro continham artefatos de processamento técnico. Nesses últimos, a coloração apresentava-se desbotada (casos mais antigos da casuística), não sendo possível recuperar as lâminas após reprocessamento. Assim, em apenas sete casos, campos microscópicos contendo alterações citologicamente indefinidas quanto à origem do tipo celular (ASIOI) foram identificados. Esses casos constituíram o grupo principal do estudo (casos ASIOI).
Os 19 casos contendo apenas células diagnosticadas como ASCUS e/ou AGUS foram utilizados como parâmetro de comparação (grupo-controle).
Em seis, dos sete casos ASIOI, esse tipo celular (ASIOI) estava acompanhado de células com atipias indeterminadas reconhecidas como ASCUS e/ou AGUS, predominando essas últimas (Tabela 2). O tempo de seguimento, entre a realização do exame citológico e a biópsia, variou entre 8 dias e 11 meses e 20 dias (desvio-padrão 101,4 dias). Quando analisamos o tipo histológico alterado na biópsia ou peça cirúrgica subseqüente, 4 casos (57,1%) corelacionaram-se histologicamente com alterações em células glandulares; 1 (14,3%) com alterações em células escamosas; e 1 (14,3%) com alterações em ambos os tipos celulares.
Quanto ao comportamento biológico, 5 (71,4%) dos casos contendo campos de ASIOI apresentaram lesões benignas ou reacionais e apenas 2 (28,6%) correlacionaram-se com lesões de risco para evoluir para câncer (Tabela 2). A qualidade das amostras e, mais especificamente, dos campos microscópicos com as alterações diagnosticadas na revisão dos esfregaços também são apresentados na Tabela 2. No grupo-controle, os resultados da revisão citológica também foram confrontados com os resultados da revisão histopatológica (Tabela 3).
Discussão
Desde a sua introdução, em 1988(20), as categorias de significado indeterminado em citologia cervicovaginal (ASCUS e AGUS) têm gerado controvérsia(12). Subclassificações dessas categorias têm sido propostas(4) e validadas(3) por vários autores e pelo próprio Sistema de Bethesda(20). A revisão mais recente desse sistema(18) trouxe, entre outras modificações, a diminuição do número de subcategorias de ASCUS e AGUS. Essa mudança resultou numa diminuição do número de casos diagnosticados das referidas categorias e na melhoria da especificidade dos diagnósticos relacionados a lesões precursoras de carcinoma(7, 10, 13, 14).
Ao seguir essa tendência, trabalhos recentes advogam contra a subclassificação de ASCUS e AGUS(2, 12, 16), chegando a sugerir a eliminação da categoria ASCUS(16). Especialmente em relação à categoria AGUS, o índice de concordância entre observadores e a correspondência com alterações verdadeiramente glandulares são muito baixos(15, 19). Este último argumento, entre outros, embasou a introdução de um termo mais genérico do que os discutidos anteriormente (ASCUS e AGUS), as células atípicas de significado indeterminado de origem indefinida (ASIOI). Ao invés de criar novas categorias ou eliminar subcategorias de ASCUS e AGUS, uma tendência geral da literatura(2, 3, 4, 12, 17, 18, 20) as agrega em um único termo.
De acordo com o mencionado na introdução deste artigo, o termo ASIOI foi proposto pela Nomenclatura Brasileira para Laudos de Citopatologia Cervical Uterina(8) (Tabela 1). Discutiremos a seguir, a partir da interpretação de nossos resultados, o valor da utilização desse novo termo.
Apenas sete casos constituíram o grupo principal do estudo (casos ASIOI). Eles foram encontrados a partir de uma pesquisa de quatro anos em uma rotina laboratorial de aproximadamente 60.000 exames anuais. Mais ainda, quando procuramos cuidadosamente nessas lâminas campos microscópicos que definam a origem da célula alterada, os encontramos em todos os casos, exceto em um. Ao ser encontrado, em cerca de 29,6% dos casos, esse tipo celular (ASIOI) esteve acompanhado de células com atipias indeterminadas reconhecidas como AGUS (57,1%), ASCUS (14,3%) ou ambos (14,3%). A partir daí, podemos concluir que a ASIOI existe, mas é extremamente rara de forma isolada.
Quando analisamos o comportamento biológico e o tipo histológico alterado na biópsia, curetagem e/ou peça cirúrgica subseqüente (Tabela 2), observamos o predomínio de alterações histológicas benignas em células glandulares, incluindo atipias reacionais/inflamatórias (4 casos), e hiperplasia microglandular endocervical (HMGE) (1 caso), uma entidade histopatológica bem definida relacionada ao uso de anticoncepcionais. Sobre essa, vale salientar a sua freqüente associação com o diagnóstico citológico prévio de AGUS(9).
Outro trabalho sobre HMGE(1) descreve a presença de três tipos celulares nesses esfregaços: a célula escamosa, a glandular e a de reserva. A célula de reserva poderia corresponder a ASIOI, uma vez que essa célula, por definição, é indiferenciada. Entretanto, o que se evidenciou no caso de ASIOI com seguimento histológico de HMGE foram células de difícil definição quanto à origem, acompanhadas de outros campos onde o aspecto era sugestivo de células glandulares. Artefatos de má fixação dificultaram o reconhecimento das células atípicas nesse caso (Figuras 1 e 2). Em contrapartida, células de reserva foram evidenciadas em um dos quatro casos com alterações reacionais na histologia (Figuras 3 e 4). Talvez a célula de reserva, quando presente no contexto de um colo uterino com alterações reacionais ou mesmo em casos de HMGE, possa ser uma das responsáveis pelo diagnóstico de ASIOI, embora não tenhamos comprovado essa possibilidade em nosso único caso de HMGE.
Outra situação que pode levar à identificação de células atípicas totalmente indefinidas, em relação a sua origem, é a de displasia glandular endocervical ou adenocarcinoma in situ. Sabemos que boa parte dos adenocarcinomas endocervicais não é produtora de muco, sendo compostos por células colunares de citoplasma eosinofílico não-vacuoloado ou com diferenciação endometrióide ao exame histológico(21). Quando observamos os aspectos cito e histológico do caso de ASIOI que resultou em displasia endocervical na biópsia, notamos atipias citológicas importantes de difícil caracterização da origem celular (Figura 5) e boa correlação com achados histológicos (Figura 6).
A qualidade das amostras em 57,1% dos casos foi considerada satisfatória (quatro casos); 28,5% (dois casos) apresentavam-se com má fixação e conteúdo hemorrágico; e 14,2% (um caso) apresentavam apenas conteúdo hemorrágico. Entretanto, em relação aos campos que continham as alterações celulares, apenas 28,5% (dois casos) estavam satisfatórios; 71,4% (cinco casos) apresentavam artefatos de má fixação; e ainda, desses, 28,5% (dois casos) apresentavam campos hemorrágicos.
Ao analisar esses achados, conclui-se que artefatos de má fixação parecem ser um fator importante no obscurecimento da origem celular em esfregaços citológicos. Amostras colhidas em meio líquido, normalmente, não apresentam esse tipo de artefato. Uma investigação sobre esse tema (ASIOI), em exames citológicos processados a partir de amostras em meio líquido, poderá elucidar definitivamente essa questão, concluindo ser o termo desnecessário ou, pelo contrário, pode trazer uma nova perspectiva sobre a importância do termo, na dependência de seus resultados.
No grupo-controle, os resultados da revisão citológica também foram confrontados com os da revisão histopatológica (Tabela 3). Quando comparamos o grupo principal do estudo (casos ASIOI) com o grupo-controle (ASCUS e/ou AGUS), em relação ao comportamento biológico das lesões diagnosticadas histologicamente no seguimento, notamos mínima diferença. No grupo ASIOI, 25% das lesões corresponderam a lesões pré-malignas ou malignas. Já no ASCUS e/ou AGUS, 31,5% dos casos corresponderam a esse tipo de lesão, seja ele glandular ou escamoso. Porém, se observa uma diferença maior em relação ao tipo celular indicado pelo exame citopatológico e confirmado pela histopatologia.
Entre os diagnósticos de ASCUS do grupo-controle, 63,6% corresponderam a lesões puramente escamosas, enquanto entre os diagnósticos de AGUS do grupo-controle, 66,6% corresponderam a lesões puramente glandulares. Quando observamos o diagnóstico de AGUS acompanhado de ASIOI, encontramos correspondência de apenas 40% com lesões puramente glandulares.
Um único caso de ASIOI acompanhado de ASCUS resultou em alterações escamosas (atrofia com alterações reacionais em células escamosas) e glandulares (metaplasia tuboendometrial) na histologia. Assim, partindo desses achados, pode-se lançar a hipótese de que, nos casos onde há presença de células totalmente indefinidas no esfregaço (ASIOI), mesmo quando encontramos tipos celulares mais definidos (ASCUS ou AGUS), há maior dificuldade em se predizer o tipo histológico alterado a ser encontrado pela histologia. Todavia, esse dado deve ser interpretado com cautela, visto que o pequeno número de casos analisados, especialmente no grupo de ASIOI, impossibilitou a aplicação de testes estatísticos.
A partir dos resultados de nossa investigação, conclui-se haver um espectro de alterações celulares que podem resultar no diagnóstico de ASIOI (Figuras 1, 3 e 5), porém apenas quando consideramos campos específicos dos esfregaços. Em nossa reduzida casuística, notamos ainda que predominam alterações reacionais e benignas glandulares. Células de reserva associadas a processo reacional podem originar ASIOI. Mesmo células glandulares displásicas imaturas podem dar origem a tal diagnóstico. Essas alterações celulares estavam freqüentemente associadas à má fixação. O fator má fixação talvez seja o maior responsável em dificultar o reconhecimento do tipo celular afetado. Portanto, pode-se concluir que a ASIOI é um achado muito incomum e que uma cuidadosa revisão da lâmina, na maioria dos casos, resultará no encontro de campos de AGUS (mais provável) ou mesmo ASCUS (menos provável), o que será de grande benefício para a paciente, uma vez que condutas já estão mais bem estabelecidas para esses diagnósticos. Dessa forma, recomendamos que o diagnóstico de ASIOI nunca seja emitido antes de uma minuciosa busca, em todos os campos da lâmina, por elementos que definam a origem das células alteradas.
Para finalizar, sugerimos que a persistência desse termo seja questionada nas futuras revisões de nossa nomenclatura para laudos colpocitológicos. Salientamos ainda a necessidade de novos estudos similares a este, enfocando outros elementos da nomenclatura. Os autores deste manuscrito acreditam que somente por meio de sucessivos estudos e crivos, essa nomenclatura poderá nos servir plenamente no futuro.
Agradecimentos
Este tema foi debatido previamente durante o XVIII Congresso Brasileiro de Citopatologia, realizado em 2004, em Natal no Rio Grande do Norte. Os autores são gratos aos doutores Antonio Luis Almada e Elias Fernando Miziara pela idéia do tema e pelo impulso inicial para o desenvolvimento desta pesquisa. Agradecemos tambem ao Dr. Hercílio Fronza pelo suporte e incentivo durante a elaboração do manuscrito.
Primeira submissão em 12/05/05
Última submissão em 20/04/06
Aceito para publicação em 22/04/06
Publicado em 20/04/06
- 1. ALVAREZ-SANTIN, C. et al. Microglandular hyperplasia of the uterine cervix: cytologic diagnosis in cervical smears. Acta Cytol, v. 43, n. 2, p. 110-3, 1999.
- 2. BARRETH, D. et al. The relationship between atypical glandular cells of undetermined significance on Pap smear and clinically significant histology diagnosis. J Obstet Gynaecol Can, v. 26, n. 10, p. 867-70, 2004.
- 3. CAROZZI, F.M. et al. Clinical impact (cost-effectiveness) of qualifying atypical squamous cells of indeterminate significance (ASCUS) in cases favoring a reactive or dysplastic process. Diagn Cytopathol, v. 29, n. 1, p. 4-7, 2003.
- 4. CENCI, M. Et al. Atypical squamous and glandular cells of undetermined significance (ASCUS and AGUS) of the uterine cervix. Anticancer Res, v. 20, n. 5C, p. 3701-7, 2000.
- 5. CHEUNG, A.N. et al. Atypical squamous cells of undetermined significance on cervical smears: follow-up study of an Asian screening population. Cancer, v. 102, n. 2, p. 74-80. 2004.
- 6. CROTHERS, B.A. The Bethesda System 2001: update on terminology and application. Clin Obstet Gynecol, v. 48, n. 1, p. 98-107, 2005.
- 7. DAVEY, D.D. et al. Bethesda 2001 implementation and reporting rates: 2003 practices of participants in the College of American Pathologists Interlaboratory Comparison Program in Cervicovaginal Cytology. Arch Pathol Lab Med, v. 128, n. 11, p. 1224-9, 2004.
-
88. INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER (INCA). Nomenclatura Brasileira para Laudos Citopatológicos Cervicais e Condutas Clínicas Preconizadas. Ministério da Saúde, 2003.
- 9. KIM, T.J. et al. Clinical evaluation of follow-up methods and results of atypical glandular cells of undetermined significance (AGUS) detected don cervicovaginal Pap smears. Gynecol Oncol, v. 73, n. 2, p. 292-8, 1999.
- 10. KARATEKE, A. et al. Atypical squamous cells: improvement in cytohistological correlation by the 2001 Bethesda System. Eur J Gynaecol Oncol, v. 25, n. 5, p. 615-8, 2004.
- 11. LOUSUEBSAKUL, V. et al. Clinical impact of atypical squamous cells of undetermined significance. A cytohistologic comparison. Acta Cytol, v. 44, n. 1, p. 23-30, 2000.
- 12. MCGRATH, C.M. ASCUS in Papanicolaou smears: problems, controversies, and potential future directions. Am J Clin Pathol, v. 117, suppl. S, p. 62-75, 2002.
- 13. PIROG, E.C. et al. Comparison of human papillomavirus DNA prevalence in atypical squamous cells of undetermined significance subcategories as defined by the original Bethesda 1991 and the new Bethesda 2001 Systems. Arch Pathol Lab Med, v. 128, n. 5, p. 527-32, 2004.
- 14. QUDDUS M.R. et al. ASC: SIL ratio following implementation of the 2001 Bethesda System. Diagn Cytopathol, v. 30, n. 4, p. 240-2, 2004.
- 15. SIMSIR, A. Et al. Glandular cell atypical on Papanicolaou smears: interobserver variability in the diagnosis and prediction of cell of origin. Cancer, v. 99, n. 6, p. 323-30, 2003.
- 16. SODHANI, P. Et al. Eliminating the diagnosis atypical squamous cells of undetermined significance: impact on the accuracy of the Papanicolaou test. Acta Cytol, v. 48, n. 6, p. 783-7, 2004.
- 17. SODHANI, P. Et al. Atypical squamous cells of undetermined significance: is it worthwhile to qualify them further? Indian J Cancer, v. 40, n. 1, p. 23-6, 2003.
- 18. SOLOMON, D. Et al. The 2001 Bethesda System: terminology for reporting results of cervical cytology. JAMA, v. 287, n. 16, p. 2114-9, 2002.
- 19. TAM, K.F. et al. A retrospective review on atypical glandular cells of undetermined significance (AGUS) using the Bethesda 2001 classification. Gynecol Oncol, v. 91, n. 3, p. 603-7, 2003.
- 20. THE BETHESDA SYSTEM. The 1998 Bethesda System for reporting cervical/vaginal cytologic diagnoses: developed and approved at the National Cancer Institute Workshop in Bethesda, Maryland, December 12-13, 1988. Hum Pathol, v. 21, n. 7, p. 704-8, 1990.
- 21. YOUNG, R.H. et al. Endocervical adenocarcinoma and its variants: their morphology and differential diagnosis. Histopathology, v. 41, n. 3, p. 185-207, 2002.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jul 2006 -
Data do Fascículo
Abr 2006
Histórico
-
Aceito
20 Abr 2006 -
Recebido
12 Maio 2005 -
Revisado
20 Abr 2006