As intervenções urbanas do arte construtora
Virgínia Gil Araujo
Doutoranda em História da Arte na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em História do Brasil pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Publica artigos sobre arte moderna e contemporânea, em que privilegia a análise da arte urbana permanente e efêmera e a sua recepção
A análise das propostas desenvolvidas pelo projeto Arte Construtora, em alguns sítios históricos no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, procura desvendar as estratégias da arte contemporânea para lidar com o esquecimento na era das catástrofes. O projeto é pensado por artistas que criam trabalhos para locais abandonados e privilegia a poética do deslocamento, produzindo modificações provisórias em lugares significativos, mas sem funcionalidade. As "atividades exploratórias" compõem um espaço lúdico de vivências, agregando uma memória-presente. Elas contêm em seu bojo a recuperação de algo que está perdido e fora da história, num híbrido de eventos efêmeros vinculados às memórias do social, à ecologia e à transgressão aos formalismos pensados para o espaço público.
O projeto Arte Construtora é uma proposta de arte ambientada, disposta a assumir as influências do meio, segundo os artistas criadores, e se difere, principalmente, da grandiloqüência da Land Art norte-americana, dos anos 60 e 70. Algumas vezes, dialoga com a Arte Povera, o Fluxus e a arte ambiental de Hélio Oiticica, mas mantém a mesma veemência dos artistas da Land Art, de planejamento da fotografia como linguagem, no impulso de trazer para o presente uma imagem que não existe mais. Os trabalhos podem permanecer como acréscimo à memória transitória dos lugares e valorizam a capacidade de comunicação, na qualidade produtiva das intervenções, dada pelo percurso de descoberta de um ambiente misterioso que tornou os lugares objetos inquietantes.
Como síntese desta proposta, os artistas que a ela se engajam operaram em quatro locais públicos no Brasil que são marcos históricos, sendo que os dois últimos - o Parque Modernista, em São Paulo, e a Ilha da Casa da Pólvora, próxima à Porto Alegre, se encontravam arruinados pelo desamparo das autoridades, impotentes diante da metamorfose que se segue pelo abandono. O parque contém em seu interior a Casa Modernista de Gregor Warchavchick, de 1927, e a Ilha, por sua vez, abrigou um arsenal de pólvora em 1808, durante a Revolução Farroupilha, na Casa da Guarda, próxima à ruína do "Castelinho da Pólvora". Ambas intervenções, realizadas respectivamente em 1994 e a última em 1996, tiveram como antecedentes duas outras em locais memoriais, revigorados pelas montagens.
Em 1992 o Solar dos Câmara, em Porto Alegre, e em 1994 o Solar Grandjean de Montigny, no Rio de Janeiro, são abertos ao público tendo as ambientações como ponto focal. A partir do projeto "Câmaras" se desencadeia uma atenção diferenciada para o processo de apropriação de espaços significativos. Neste, a ocupação do antigo Solar, realizada pelos artistas, efetuou modificações provisórias em espaços diversos como jardins, salas e terraços. Escolhidos os ambientes, trabalhos individuais foram dimensionados e arrumações, acréscimos, reconstituições, montagens, ações planejadas e circunstanciais foram organizadas coletivamente1 1 . ARTE Construtora. Catálogo Câmaras. Porto Alegre, Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1992. . Após o evento, o local destinou-se a abrigar o arquivo histórico da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
No Solar Grandjean de Montigny, espaço de exposição e atividades culturais constantes dentro da PUC-RJ, o Arte Construtora se configura como um evento para locais específicos, na incorporação da experiência de convívio com os espaços e os objetos encontrados, além da arquitetura do lugar e componentes poéticos como histórias e condições climáticas. As instalações são apresentadas como "atividades exploratórias", pois os locais escolhidos não permitem, por suas tensões e sua desconfiguração genérica, abordagens estéticas convencionais de caráter escultórico2 2 . ARTE Construtora. Catálogo Solar Grandjean de Montigny. Rio deJaneiro, Centro Cultural da PUC Rio, 1994. . Pode-se compreendê-las como um projeto de site specific - de acordo com a acepção formulada por Richard Serra ou, ainda, por Rosalind Krauss de escultura no campo ampliado. Destaca-se a proposição da artista Luisa Meyer, de preencher o espaço esvaziado pela escavação arqueológica com objetos ligados ao nosso cotidiano que revelam a noção de memória-presente, bem como a valorização das histórias sobre o local, onde permanece apenas a antiga residência do arquiteto - que com a Missão Lebreton trouxe o neoclássico ao Brasil - em prejuízo da mata atlântica que a circundava. A memória do entorno que se perdeu, diante da emergência de edificações na cidade do Rio de Janeiro, foi explorada pelo artista Fernando Limberger. As explorações do território são entendidas como pontos de uma dinâmica mais ampla, em que as explorações/intervenções não se remetem apenas ao entorno direto, local, mas necessariamente a um espaço mais vasto, configurado num campo para além do sítio particular, de localização imediata, pois desta arte ambientada transparece uma realidade imaginária, que entrelaça os arranjos subjetivos ao local.
Esta idéia se firma a partir das atividades realizadas pelos artistas no Parque Modernista e na Ilha da Casa da Pólvora, territórios arrasados pelo abandono e que perderam sua funcionalidade, mas que contêm histórias a contar. Neles, a reflexão é permeada pela permanência peculiar do lugar, como corpo social rejeitado, em situação de esquecimento, e pela convivência com as condições de metamorfose a que a memória está sujeita. A revelação do lugar, na atividade exploratória, não se dá numa tentativa de ocupação, mas de apropriação para reforma ou alteração, a partir das intervenções.
As transformações realizadas no Parque Modernista e na Ilha da Casa da Pólvora, que resultaram em espaço de convivência, demonstram a ativação de memórias do corpo coletivo, podendo ser lidas aparentemente como uma proposta conceitual crítica, que revela os objetos de afeto dos extintos habitantes, bem como a memória do território em seu aspecto ecológico, em detrimento de um formalismo estetizante - parte-se de uma expedição ecológica/antropológica para selecionar o suposto lixo produzido e sedimentado no local. Consequentemente, após um esforço coletivo de valorização da natureza em intervenções elétricas, ou com espelhos e papéis luminosos, abrese o sítio para visitação. O processo de reação poética continuamente interroga a presença da arte na cidade, através da construção transitória daquela cultura encontrada, nos vários caminhos que o configuram e na ruína, entendida como símbolo da extensão da enorme catástrofe do moderno.
Conforme Lorenzo Mammì, em palestra proferida sobre a atividade na Ilha, os gestos dos artistas são uma extensão de Duchamp: "possibilitam pensar este lugar como um objeto que perde sua função e ganha outra, um 'ready-made'. O lugar, para esses artistas, não é só um material ou uma premissa necessária. Num certo sentido, é a própria obra, uma espécie de 'ready-made' transposto em escala ambiental, que as intervenções se limitam a modificar, sem superpor-se a ele. Não há autoria coletiva: cada artista opera independentemente, num espaço próprio. As intervenções, porém, são tão leves que dificilmente poderiam ser chamadas de obras"3 3 . MAMMÌ, Lorenzo. "A descoberta do espaço abandonado". Texto inédito produzido em ocasião da palestra proferida em Porto Alegre sobre a apropriação da Ilha da Casa da Pólvora, em novembro de 1996. . Trata-se, portanto, de trabalhos in progress porque não significam a história englobada em sua matéria, mas se constituem como comentários sobre o local, objeto de arte possível que interfere e fala com a cidade e com o público. Afastam-se, assim, do risco de converterem-se em meros artifícios, um fenômeno a que está submetida a arte pública quando deslocada de sua função de origem. A contribuição dos artistas se faz presente na tentativa de ativação do lugar que está perdido, está fora da história, e do que poderia vir a ser como objeto não instrumentalizado, refletindo sobre a apropriação daquilo lá fora encontrado e a situação de abandono. Esta, conforme Walter Benjamin, revela a verdadeira personalidade do objeto, e do que ele poderia vir a ser como objeto não instrumentalizado.
Estas atividades exploratórias podem ser compreendidas pela fragilidade intransponível das intervenções sobre o local. Do ponto de vista formal, esses trabalhos causam uma decepção para quem espera deles a construção de uma "ordem" na recuperação estética da paisagem. Aparecem como estratégias da arte na era das catástrofes, ao fomentarem a deriva através da construção de momentos poéticos. Face aos desastres produzidos pela ideologia do progresso, a estética da decepção estabelece uma ruptura com a estratégia de espetacularização dos espaços, tão criticada pela Internacional Situacionista nos anos 604 4 . DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. Ver ainda: JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003. . Subverte a lógica da "arte pública" urbana ao excluir a possibilidade de transformação do lugar em mero cenário, ao fomentar a deriva. O efeito de surpresa alude à magia do lugar e assinala uma experimentação pela iconologia pessoal, que conjuga espaço urbano e espectador potencial, numa complexa ação estratégica, sustentada pela elegância sútil da ironia, no "jogo da memória" que suscita eco nos nossos sentimentos, no nosso inato senso de forma.
O pensamento mágico faz dos objetos instrumentos rituais e pode ser observado nas cruzes colocadas no caminho de entrada da Casa Modernista, na presença da imagem religiosa, em oposição às formas fantasmáticas na Casa da Pólvora. Esta, ainda, mais se parece à arquitetura religiosa, com escadarias, janelas ogivais e nave.
Cabe aqui citar a impressão do evento pela crítica de arte Aracy Amaral: "Poder-se-ia acrescentar que o princípio do jogo não está descartado nesta proposta - no sentido de jogo enquanto subversivo, transgressivo embora lúdico, levando-se em conta que a revolução é essencialmente um jogo e quem o joga o faz pelo prazer que encontra nele. A sua dinâmica é a urgência subjetiva de viver, não o altruísmo"5 5 . AMARAL, Aracy. "A propósito do Arte Construtora: das poéticas visuais às interferências urbanas". Texto inédito produzido em ocasião da palestra proferida em Porto Alegre sobre a apropriação da Ilha da Casa da Pólvora, em novembro de 1996. .
A plena consciência de um devir pela arte deve-se, principalmente, à discussão da memória proposta na iniciativa de construção transitória do local, ao mesmo tempo, mostra-se consoante à visão contemporânea de temporalidade, que se contrapõe à visão moderna de permanência. Esta última afirma a força individualizada da produção autoral, o que aparentemente torna-se problemático nesta análise pelo fato de que os artistas propõem a atuação individual sem circunscreverem-se como um grupo, ao mesmo tempo em que os trabalhos se fundem na relação de conjunto.
A atuação dos artistas no projeto de Arte Construtora, para a Ilha da Casa da Pólvora, ao considerar a idéia de processo na arte, coloca em jogo a utopia vanguardista crítica, e por esta razão não pode ser confundida com o "construtivo"6 6 . Idem. . Conforme Aracy Amaral, a denominação sugere uma aparente contradição, porque construir significa permanecer e o Arte Construtora é efêmero: "O fato do projeto se intitular Arte Construtora a partir de 1993, nos remete a denominação um tanto ambígua, pois construir significa permanência, o que não é o princípio que os move. Fernando Limberger me esclareceu já que a escolha do nome é intuito de não ocorrer confusão com 'construtivo'".
Os artistas propõem a construção como algo transitório, à medida que compreendem os lugares da memória condicionados pelas metamorfoses do social e a estética em sua reação ativa. Participam dos quatro eventos: Elcio Rossini, Elaine Tedesco, Jimmy Leroy, Marijane Ricacheneisky, Luisa Meyer, Fernando Limberger, Nina Moraes e Lúcia Koch. Os artistas que participam esporadicamente são Carlos Pasquetti, Renato Heuser, Iran do Espírito Santo, Rochelle Costi e Marepe. Para especial paricipação na Ilha da Casa da Pólvora, último evento, foram convidados: João Guimarães, Kátia Prates, Mima Lunardi, Laura Fróes, Felipe Chaimovich e Marcelo Zocchio. Este último, para fazer a documentação fotográfica do evento, o que demonstra uma preocupação dos artistas em monumentalizar a fotografia.
As atividades exploratórias ocorrem a partir da poética individual de cada um deles, sem afetar a coerência das suas respectivas pesquisas, e sem uma perspectiva individualizante, ou seja, o trabalho individual não rompe com a idéia de coletivo, pelo contrário, ele bloqueia o acesso ao entendimento do discurso como independente de uma lógica intensificada do próprio local. Durante os diferentes processos de apropriação da Ilha, há o diálogo aberto e aos poucos as poéticas individuais vão se contaminando. A partir do entrelaçamento das subjetividades, os trabalhos ganham força numa idéia de convivência. Os artistas conseguem integrar diferentes propostas numa convivência pouco habitual que não se impõe ao local, nem define um destino para o mesmo, afastando-se completamente da monumentalização "aurática" que se constrói abruptamente nas cidades.
O lugar permitiu algo inusitado: uma série de aparições que aludem a um momento de suspensão mágica, diante de um ambiente de mobilidade, privilegiado pela presença de artistas que criam um estranho processo de constrangimento às armadilhas advindas da lógica projetual. O projeto sinaliza, assim, outras possibilidades para o urbano ao opor ao marasmo da cidade contemporânea um universo imaginário, inventado em plena luz do dia de nossa época. O lugar agrupa as experiências à dinâmica das descobertas ao ser identificado pelos visitantes como o labirinto que é a memória de cada um de nós, pela situação de aporia que é colocada logo na chegada à terra firme: decidir que direção tomar. Essa foi a minha própria reação, admitidamente inquieta, mesmo depois de ser acolhida pelos demais visitantes e pelos artistas que indicavam os caminhos possíveis a seguir.
Segundo Felipe Chaimovich, "sem um mapa indicativo, acabam por gerar uma percepção topográfica do conjunto da Ilha e, nisso, vivenciam o encontro do sentido de si mesmos"7 7 . CHAIMOVICH, Felipe Soeiro. "Todo mundo é uma ilha". In ARTE Construtora. Catálogo Arte Construtora - Ilha da Casa da Pólvora. Porto Alegre, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, SMC, FUMPROARTE, 1996. . O texto "Todo mundo é uma ilha", em que o crítico especialmente convidado para participar do projeto realiza uma leitura do evento, depois de uma intensa convivência com o lugar e os artistas, aponta uma possibilidade de leitura da Ilha como um corpo afetivo de escrita múltipla. As descobertas ocorreram, muitas vezes, através da comunicação verbal entre os visitantes e os artistas, o que evidencia uma estética de condição ativa e comunicação recíproca. Esta vivência nutriu de esperança os anseios de recuperação do estuário, assim como uma possibilidade de mudança da relação com a cidade, dificultada pelo acesso àquela Ilha devido ao boicote dos barcos e ao modelo de desenvolvimento predominante.
A iniciativa do projeto Arte Construtora experimenta explicar as condições e contradições específicas da construção e reconfiguração do espaço público com proposições que valorizam a natureza e não teriam razão de ser num espaço convencional de exposição. Acentua as controvérsias existentes entre arte e espaço público, quando tensiona as possibilidades de melhoramento da qualidade urbana e humana ao conseguir atenção para invenção de uma disseminação diferenciada do ambiente, que abre espaço à memória do território, como objeto de afeto e convivência. O ato artístico nela se caracteriza mais como de invenção cultural do que de consumo, ao desafiar a noção evasiva de arte pública que instrumentaliza a cultura. Desenvolve uma história de recolhimento pessoal, mas que transborda para o social quando investe no coletivo, uma história experienciada pelos que lá estiveram e perceberam a Ilha como um lugar inquietante. O Arte Construtora, por compreender os lugares como verdadeiras premissas dos trabalhos, corre o risco de fornecer outra visão de mundo, ao privilegiar, na apropriação do lugar em esquecimento, a memória como representação do imaginário.
- 1 ARTE Construtora. Catálogo Câmaras. Porto Alegre, Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1992.
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22 ARTE Construtora. Catálogo Solar Grandjean de Montigny. Rio deJaneiro, Centro Cultural da PUC Rio, 1994.
- 4. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
- Ver ainda: JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
- 7. CHAIMOVICH, Felipe Soeiro. "Todo mundo é uma ilha". In ARTE Construtora. Catálogo Arte Construtora - Ilha da Casa da Pólvora. Porto Alegre, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, SMC, FUMPROARTE, 1996.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Maio 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2003