Mallarmé, magritte, broodthaers: jogos entre palavra, imagem e objeto*
Bernadette Panek
Éspecialista em História da Arte (EMBAP, 1997), mestre em Poéticas Visuais (ECA/USP, 2003) e doutoranda em História da Arte (ECA/USP, 2004). Entre 1993 e 1996 dirigiu o Museu da Gravura de Curitiba. Atualmente é professora no curso de graduação e coordenadora dos cursos de Especialização em História da Arte e de Museologia da EMBAP
Existe uma aproximação entre as armadilhas propostas por Magritte e Broodthaers e os escritos sobre o Livro de Mallarmé, quando o poeta reflete sobre a idéia e o conceito das coisas, e também sobre as relações entre palavra, imagem, voz e espectador. Magritte joga com a sedução na liberdade das associações construídas quando brinca com o sentido das coisas. Palavra e imagem não agem separadamente. Broodthaers "desconstrói" o museu como estratégia e apresenta uma relação irônica entre o objeto real, a obra-de-arte, as imagens e as palavras quando leva os objetos que representam águias para a vitrine de seu "museu".
Mallarmé: a palavra como imagem
Os escritos de Mallarmé colaboram para a compreensão do livro como forma, ou seja, da sua constituição de objeto como idéia a ser trabalhada poeticamente. O autor elabora o conceito do ato de escrever como uma ação e enfoca a possibilidade da construção conceitual do livro ser realizada derivando de sua própria estrutura. A partir de conflitos filosóficos, ele procura desenlaces nas relações entre linguagem e forma, idéia e ser, vida e morte. Mallarmé insistia que a letra era o elemento básico do livro, que deveria encontrar mobilidade e expansão, chegando mesmo a utilizar a metáfora da composição musical como uma inspiração para experimentos em tipografia e layout.
Poderíamos acrescentar alguns pontos relevantes para a configuração da obra de Mallarmé como objeto visual através da análise da obra deixada em forma de manuscritos e estudada por Jacques Scherer em sua publicação O "Livro" de Mallarmé1. Aqui é visível e clara a procura do poeta por uma estrutura que reflete sobre si mesma, sobre a própria disposição e a ordem de suas partes. Sua ambição foi escrever algo absoluto. Esses esboços comportam sobretudo os projetos do esqueleto formal, os quais estudou cuidadosa e longamente antes de iniciar a construção propriamente dita.
Jacques Scherer analisou a documentação deixada por Mallarmé, concluindo que os manuscritos são, na sua maior parte, uma elaboração da estrutura doLivro e das condições que este deve cumprir a fim de existir. Para o autor, esta obra trata do Livro Total - resultado de toda a literatura e de toda a realidade - como algo sagrado, o que Mallarmé deixa claro em uma de suas declarações: "Le monde existe pour aboutir à un livre" (o mundo existe a fim de terminar num livro). As reflexões deixadas pelo poeta mostram uma preocupação maior, segundo Scherer, com a estrutura; poucas páginas dos manuscritos são consagradas ao que se deve dizer. Scherer aponta várias questões trabalhadas na referida obra, a qual deveria ser construída como um monumento, porém sem ser imóvel. A introdução da ação era importante, não por meio de artifícios externos, mas, sim, com seus próprios elementos - a página, a frase, o verso, a palavra, a letra -, uma vez que Mallarmé via o livro como expansão total da letra e considerava que, dela, dever-se-ia explorar o movimento. Tal objeto não seguiria uma paginação mas, sim, leis de permutação; as páginas poderiam mudar de lugar segundo ordens distintas - seriam folhas móveis que de alguma maneira possibilitariam um sentido.
Mallarmé recusava a passividade da continuidade das páginas, da leitura; para ele o Livro não teria nem princípio nem fim. Preocupava-se em adaptar a forma física à idéia, refletindo fortemente sobre a feição material do objeto, a forma que o expressa. Utilizava o simbolismo da tumba, do cofre ou do bloco e os associava a volumes no espaço. Comparava o Livro fechado, um volume fixo, à tumba, representação da morte, e o Livro aberto, através do movimento das folhas, à representação da vida. Explorava, também, o simbolismo do preto e do branco, que, para ele, formavam um par unido por relações recíprocas, como aquelas existentes entre o livro e o jornal.
O branco do papel não é um suporte amorfo: tem seu valor, vibra em função do preto da tinta impressa sobre ele. Nos livros impressos, a relação acertada do preto e do branco era para Mallarmé um elemento essencial de valor literário. Ele refletia sobre a materialidade do ato de escrever: o vinco (das folhas do livro) não dividiria uma folha em duas metades idênticas, nem mesmo distintas; ele separaria sem separar. A imagem da dobra é central na temática mallarmeana, já que, na estrutura do Livro, essa imagem respeitaria a realidade (a folha dobrada resta intacta) mas permitiria o movimento, a evolução: esses objetos nascem da linha formada no meio das folhas do papel.
Mallarmé procurava incansavelmente o número de páginas, de ouvintes, de leitores que conviesse melhor à ordem de perfeição que ele tentava instaurar. Neste sentido, fazia uma distinção essencial entre álbum e livro. Para ele, o primeiro designaria um conjunto factício de elementos de ordem em que mesmo a presença ou a ausência são arbitrárias: uma folha de um álbum se desloca, se suprime ou se junta conforme a casualidade. O segundo, pelo contrário, possuiria somente uma estrutura fundada sobre a natureza das coisas - elaborar palavra por palavra; esta era a idéia de Mallarmé para construir uma obra que pudesse, sobretudo, vencer o acaso. A concepção mallarmeana da literatura resulta da vontade de extinguir o fato imprevisto em todos os níveis do processo literário, sendo necessário abolir o autor, a realidade, a casualidade das palavras; o Livro, enfim, seria o eliminar do acaso pelo seu próprio projeto.
A partir de todas estas ponderações do poeta em relação ao Livro - objeto de estudos que realizou desde 1866 até os últimos dias de sua vida -, podemos entendê-lo perfeitamente como idéia relacionada com a forma e com o objeto. Mallarmé reflete sobre o volume e sua estrutura; vê o livro como uma forma tridimensional, com profundidade, espessura e solidez; sente a necessidade de compor o espaço. Constrói jogos de relações entre opostos: o branco e o negro, o jornal e o livro, a eternidade e o instantâneo, a vida e a morte, o aberto e o fechado, o fixo e o móvel, a irrealidade e a realidade, sempre relacionando-os com uma estrutura - a deste objeto absoluto que pudesse fazer com que o mundo terminasse em um Livro. Assim, fica claro, o processo de Mallarmé se funda fortemente sobre uma análise visual.
O poema "Un coup de dés jamais n´abolira le hasard" (Um lance de dados jamais abolirá o acaso) apresenta similitudes evidentes com o Livro: a estrutura também é uma de suas inquietações e é por meio das reflexões estruturais que se constrói o conteúdo. O jogo formado pela tipografia, a utilização do espaço da página, o movimento de leitura - que, segundo o prefácio de Mallarmé, se faz sobre as duas páginas simultaneamente - mostram claramente a presença de suas anotações para o Livro. Isto é especialmente evidente quando, no prefácio, comenta sobre as relações da dobra do papel, que "não divide o espaço, separa-o sem separar". O branco do papel é o entorno das palavras, zona de silêncio, pausa entre palavras ou frases, jogo entre o espaço e o tempo que dita a duração da leitura e constrói sua visualização. A leitura em voz alta por parte do espectador/leitor é, para Mallarmé, uma participação: a partir das diferenças que dá aos caracteres de imprensa, ele indica a entonação que deve ser dada à voz. Mallarmé vê as palavras como formas visuais, referindo-se a elas como imagens quando realiza seus movimentos dentro do poema.
O poema "Um lance de dados", desde sua primeira publicação - revista Cosmopolis, 1897 - atrai a atenção também por suas qualidades visuais, além de todas as questões relativas às renovações do processo poético. Em realidade, essa obra de Mallarmé é um paradigma, um dos precursores do livro de artista. Transforma o poema em objeto visual, unificando a narrativa literária e a narrativa plástica.
Augusto de Campos situa Mallarmé, com o poema "Um lance de dados", como o inventor de um processo de composição poética, considerando o seu processo uma proposta que exige uma tipografia funcional, que espelhe com real eficácia as metamorfoses, os fluxos e refluxos do pensamento2. Em Mallarmé, a utilização de tipos distintos de diferentes dimensões relaciona-se com a importância da emissão oral; a posição das linhas tipográficas indica que sobe ou desce a entonação; a configuração do espaço gráfico da página, assim como as relações entre as páginas, assume importância.
Mallarmé, em seu prefácio para "Um lance de dados", se refere às palavras como imagens e requer a intervenção do leitor no tempo e modo de leitura a fim de "decifrar" seu poema. O desmantelamento das convenções de leitura fez parte das investigações para seu Livro, cujas anotações falam também em abolir o autor. Mallarmé aniquila a narração e expande o sentido de leitura.
Magritte: paradoxo entre imagem e legenda
Em um de seus textos, Magritte afirma: "A dificuldade de meu pensamento, quando anseio fazer um novo quadro, é, de fato, obter uma imagem que resista a qualquer explicação"3. Na verdade, em sua obra, desenvolve a presença de um conceito a decifrar, onde o título não explica a pintura, nem a pintura é mera ilustração do título. O artista joga com a sedução na liberdade das associações construídas quando brinca com o senti-do das coisas. Palavra e imagem não agem separadamente.
Na obra de Magritte, o pensamento de Mallarmé de que a ilustração e o texto não repetem a mesma informação, mas geram uma dialética, se confirma: na obra do artista, texto e imagem se contradizem; ele joga com o paradoxo. Isto ocorre também porque, para ambos, a palavra exerce papel de imagem, ela não é mera legenda. O título é parte integrante das pinturas de Magritte, mesmo que não esteja nelas inserido. Falar do trabalho de Magritte fora do contexto obra/legenda seria como ler o poema "Um lance de dados" sem valorar a composição visual.
Magritte explora diferentes estratégias entre imagens, objetos e palavras. Numa obra ele pinta um cachimbo e ao mesmo tempo afirma que "não é um cachimbo"; noutra ele pinta uma vela e escreve, embaixo, a palavra "teto"; noutra ele pinta um objeto e coloca o nome que lhe corresponde, ou pinta uma forma abstrata qualquer e lhe dá um nome de objeto reconhecível. O que acontece nas pinturas de Magritte se passa apenas ali, naquele espaço determinado do quadro, pois são armadilhas construídas por ele para capturar a palavra, a imagem e, com certeza, o observador. É uma articulação da arbitrariedade presente nas palavras, nas imagens e suas respectivas legendas.
No desenho "Les mots et les images" (As palavras e as imagens), de 1928, o artista faz pequenos desenhos, cada qual com uma legenda, onde aparecem algumas afirmações que nos mostram um dos lados do paradoxo construído em suas pinturas: "Um objeto encontra sua imagem, um objeto encontra seu nome. Acontece que a imagem e o nome deste objeto se encontram"; "Numa pintura, as palavras são da mesma substância que as imagens"; "Uma forma qualquer pode substituir a imagem de um objeto"; "As figuras vagas têm uma significação tão necessária quanto perfeita como as figuras precisas"; "Um objeto nunca executa a mesma atividade que seu nome ou que sua imagem".
Magritte retira um objeto do campo utilitário - uma compoteira de vidro utilizada para guardar queijo - e coloca no seu interior uma pintura, com sua respectiva moldura, na qual pintou uma fatia de queijo. Aqui ele joga não somente com a imagem, mas também com o próprio objeto cotidiano removido para o campo da arte. A obra tem como título: "Ceci est un morceau de fromage" (Isto é um pedaço de queijo, 1936-37). A afirmação mostra a construção de outro paradoxo nas suas ironias, pois o objeto presente não é um pedaço de queijo e sim a pintura de um pedaço de queijo, agora colocada no local original do queijo. Esse espaço é fechado e transparente, o que permite a visibilidade de seu interior. Na verdade, funciona como uma pequena vitrine expondo seus produtos. Magritte provoca ironia entre o campo real e o campo da arte.
Magritte chega numa outra articulação entre a imagem e o objeto retirado do meio industrial e trazido para o campo artístico em "Le bouchon d'épouvante" (A rolha de pânico), de 1966, obra na qual pega um chapéu e o coloca no interior de uma caixa de acrílico, ou seja, no interior de uma espécie de vitrine. Nesse momento transforma o objeto em imagem, tornando a sua visualidade muito mais presente do que a própria função.
Broodthaers constrói esse mesmo jogo entre legenda, objeto, imagem e o espaço da vitrine em alguns momentos de seu "Museu de Arte Moderna".
Broodthaers: "Um lance de dados. Imagem"
Marcel Broodthaers, poeta, ao final de 1963 propõe-se a mudar sua área de atuação. Engessando alguns exemplares não vendidos de seu último livro de poemas, Pense-Bête, passa ao campo das artes plásticas, fazendo um jogo com sua própria situação de poeta.
Pense-Bête torna-se um objeto que não é mais possível ler ou manusear. O próprio autor comenta sobre a impossibilidade de ler sem antes destruir o aspecto plástico. Sua pretensão era causar um jogo de curiosidade e interdição, entretanto observou que a reação do espectador não era a curiosidade de ler ou folhear os livros, e sim a curiosidade com a arte, o objeto artístico. Anteriormente havia "ilustrado" seu Pense-Bête, construindo uma certa barreira na leitura através da colagem de papéis coloridos em certas passagens do texto. Porém não os fixara completamente e existia, todavia, a possibilidade de levantar o papel para realizar a leitura.
Broodthaers recusa a idéia de proporcionar uma mensagem clara e introduz em suas propostas a dificuldade de leitura4. Existe uma contradição entre o livro a ler e o objeto a ver, que, por sua vez, não existe a não ser para fazer obstáculo à visão. Broodthaers volta a esta passagem da leitura textual para a visualidade do objeto, ou seja, da poesia às artes plásticas, em 1969, com a obra "Um lance de dados jamais abolirá o acaso. Imagem"5.
"Um lance de dados. Imagem", publicação em forma de livro, acompanha a "Exposition littéraire autour de Mallarmé" (Exposição literária em torno de Mallarmé), realizada por Marcel Broodthaers em 1969, na galeria Wide White Space, na Antuérpia. Nessa publicação Broodthaers faz uma transcrição visual do poema de Mallarmé "Um lance de dados", a partir da edição original de 1914 da editora Gallimard. Broodthaers andava às voltas com esse poema já há algum tempo, desde que Magritte, por alguma razão, lhe oferecera uma cópia. A publicação é realizada em três versões: a primeira, com tiragem de 10 exemplares numerados de I a X, foi gravada em placas de alumínio, sendo cada exemplar composto de doze placas de 32 x 50 cm cada. A segunda versão, com tiragem de 300 exemplares, continha 32 páginas impressas sobre papel branco de 32,5 x 25 cm e foi, para Broodthaers, o catálogo da edição em alumínio. Uma certa transparência no papel dessa edição animou Broodthaers a uma terceira edição. Esta se compunha de 90 exemplares sobre papel transparente, numerados de 1 a 90, com 32 páginas de 32,5 x 25 cm. Cada exemplar dessa edição era acompanhado de dois papéis-cartão com as mesmas dimensões da página, permitindo ao leitor, segundo seu desejo, isolar uma ou duas páginas. Esta prática de Broodthaers, que consiste em confiar ao espectador/leitor a decisão da aparição e da desaparição, da legibilidade e da ilegibilidade de uma visão, já estava presente em obras anteriores, entre as quais Pense-Bête6.
Nessas edições de "Um lance de dados. Imagem", Broodthaers realiza todo um jogo de trocas, de substituições a partir do original de Mallarmé. Birgit Pelzer analisa estas pequenas mudanças realizadas pelo artista como um jogo dos sete erros7: à primeira impressão tudo parece idêntico, porém, quando fixamos o olhar na capa do livro, notamos que a pequena barra abaixo do nome do autor no livro de Broodthaers está ausente; no lugar do subtítulo de Mallarmé "Poemas", o artista coloca "Imagem"; a sigla NRF é retirada; no lugar da editora, Broodthaers expõe o nome das duas galerias com as quais trabalhava: Wide White Space e Michael Werner. A primeira página do livro inverte este dispositivo: "Image" (Imagem) é o título principal; "Um lance de dados jamais abolirá o acaso" é o subtítulo; o nome de Mallarmé está ausente e o de Broodthaers presente. Em seu prefácio, Broodthaers reproduz os versos do poema "Um lance de dados", porém anulando as pausas, a escala variável das palavras, os espaçamentos criados pelo autor; simplesmente os reproduz como um texto corrente. Com essa atitude anula o prefácio de Mallarmé, realizando o desejo do poeta: que ninguém lesse seu prefácio e, se por acaso o lessem, que o esquecessem. Em seguida, no lugar do texto, faz a transcrição visual do poema: barras retangulares negras substituem as palavras, porém, agora, respeitando a composição original dos versos.
Uma característica de Broodthaers é conservar o objeto que desencadeia sua obra; neste caso utilizou o espaço do prefácio para citar integralmente o poema ao qual faz referência. Seu prefácio segue o ato de Mallarmé, quando apresenta o poema pela primeira vez a Paul Valéry, lendo-o em voz baixa, plana e uniforme, para, em seguida, mostrar o dispositivo textual. Broodthaers realiza este jogo, apresenta o poema "Um lance de dados" em forma de texto corrente e, quando trabalha a ordem espacial dos versos construída pelo poeta, conserva somente o aspecto visual, transformando os versos em barras negras retangulares. Em Mallarmé há primeiramente uma apresentação da voz e depois da visão, em Broodthaers acontece o inverso: após a visão de "Um lance de dados. Imagem", é o retorno à leitura do poema de Mallarmé que faz valorar a intervenção exata do artista. Vemos aqui se construir um diálogo entre a voz e a visão: quando as palavras são inclinadas por Mallarmé, no livro de Broodthaers há uma inclinação no início e no fim das barras negras; a horizontalidade das barras de Broodthaers mantém a idéia de horizontalidade da leitura, respeitando as palavras de Mallarmé, em seu prefácio, relativas à visão simultânea da página8.
Broodthaers: "O Museu das Águias"
Broodthaers leva o museu para sua casa e cria, em 1968, o "Musée d'Art Moderne, Département des Aigles" (Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias), no encalço dos protestos políticos dos estudantes, artistas e ativistas contra os controles governamentais da produção cultural e contra o aumento da comercialização da arte. A primeira manifestação do Museu foi na casa do artista em Bruxelas e teve a duração de um ano. Broodthaers organizou um evento para a abertura e outro para o fechamento, junto com uma série de discussões sobre arte e sociedade. A exposição tinha o aspecto de uma exposição normal, porém sem o corpo central e tradicional - a pintura. Esta estava representada por cartões postais de obras de Ingres, Delacroix, Courbet, entre outros. Do lado de fora da exposição, ou seja, de sua casa, nos dias da abertura e do fechamento, estava parado um caminhão de uma empresa transportadora de obras de arte, e, dentro das salas, integrando a exposição, encontravam-se as caixas de transporte, com as palavras impressas: pintura, frágil, mantenha seco, com cuidado.
No curso de quatro anos, em várias galerias, museus e feiras de arte,o artista abriu seções consecutivas de seu museu devotado à arte do século XIX, cinema, imagens de águia em arte, arte moderna, arte da Antigüidade e outros temas. Ele era seu diretor, curador-chefe, designer e agente publicitário, e o museu não possuía nem coleção nem local permanente. Broodthaers declarou, no texto da instalação na Documenta de Kassel, em 1972: "Este museu é uma ficção. Ele pode, num momento, desempenhar o papel de uma paródia política de eventos artísticos e, em outro, o de uma paródia artística de eventos políticos".
Outra instalação do "museu" foi realizada em 1972, em Düsseldorf: o "Musée d'Art Moderne, Département des Aigles, Section des Figures" (Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias, Seção de Figuras). 300 figuras de águias de todos os períodos e em diferentes técnicas foram coletadas de vários museus e coleções - a águia desde o oligoceno até o presente. Cada imagem ou figura era acompanhada da etiqueta: "isto não é uma obra de arte", em inglês, francês ou alemão. Broodthaers, como Duchamp, trabalha a apropriação quando traz "todas as águias" para o contexto do museu. Essa exposição, para Broodthaers, deveria ser considerada uma paródia da política (na qual a águia é freqüentemente um símbolo de autoridade) em termos de arte. Todas as obras emprestadas da exposição voltaram, depois, aos seus proprietários e o "museu" foi formalmente fechado.
Ao colocar os objetos no interior da vitrine, Broodthaers os transforma em "imagem", os neutraliza, pois os objetos, agora, não exercem mais sua função original. Christian Boltanski questiona a situação dos objetos que coloca em suas "vitrines de referência": "Se eu coloco meus óculos numa vitrine, eles nunca vão quebrar, mas ainda serão considerados óculos? [...] Uma vez que os óculos são parte de uma coleção de museu, eles esquecem sua função, eles são apenas uma imagem de óculos"9. A tatilidade está barrada pela vitrine, a condição espacial foi transformada e o observador agora se relaciona com a imagem.
Broodthaers "desconstrói" o museu como estratégia e apresenta uma relação irônica entre o objeto real, a obra-de-arte, as imagens e as palavras quando leva os objetos que representam águias para as vitrines de seu "museu".
Ele repete a ação do museu, cujo sistema classificatório praticamente transforma tudo em imagem. Porém, Broodthaers inverte a situação de legitimação da obra-de-arte por parte da instituição-museu em seu "Departamento das Águias, Seção de Figuras" (1972). Isto ocorre quando o artista afirma, por meio de etiquetas colocadas embaixo das figuras de águias apresentadas no interior de vitrines: "isto não é uma obra de arte". Afirmação proveniente dos paradoxos criados por Magritte; porém, enquanto, para Magritte, tudo acontece apenas no espaço "limitado" da pintura, para Broodthaers existe um envolvimento do contexto cultural e social.
A imagem como objeto, o objeto como imagem
Acontece uma trama inteligente e curiosa entre o poeta e os artistas aqui discutidos, relativa à concretude da palavra, à materialização da imagem e às questões visuais do objeto. Isto acontece porque Mallarmé vê a palavra também como imagem, Broodthaers transforma literalmente o texto de Mallarmé em imagem, além de explorar a visualidade do objeto nas vitrines de seu museu, e Magritte coloca em xeque-mate a relação entre a imagem e a palavra, quando diz que as duas são constituídas da mesma substância.
O processo dos três autores/artistas se envolve numa trama instigante entre imagem, objeto e palavra. Para o poeta simbolista, a palavra é um objeto de representação, enquanto, para René Magritte, a imagem pode ser um objeto. E há momentos em que, tanto para Marcel Broodthaers quanto para Magritte, o objeto se transforma em imagem. Também nos dois artistas torna-se claro que "as palavras e as coisas interrompem sua antiga e arcaica correspondência"10.
Magritte joga com o descompasso entre imagem e texto. A princípio ocorre uma intriga na denominação de suas pinturas. Na verdade joga também com uma evidência lógica, pois quando coloca em uma pintura ou um desenho a inscrição "isto não é um cachimbo" junto à imagem do cachimbo, quer dizer, entre outras coisas, que aquilo não é o objeto e sim a imagem do cachimbo, trama entre a realidade e a representação. Quais são os limites entre a representação e o que está sendo representado? Ele entrelaça uma conspiração da semelhança com a similaridade. É a traição das imagens da qual fala o próprio artista: "quem poderia fumar o cachimbo de meus quadros? Ninguém. Conseqüentemente NÃO É UM CACHIMBO. Nisso existe um jogo com o observador que sempre pergunta: 'o que é esta imagem?' ou 'o que significa esta imagem?'"11.
Quanto a Broodthaers, no primeiro momento de visualização de sua obra, a relação entre a palavra e a coisa não nos parece evidente. Ele provoca um bloqueio na correspondência da palavra com a imagem. Em diferentes momentos, quando parte da afirmação de Magritte "Isto não é um cachimbo", ele constrói armadilhas irônicas. Como, por exemplo, na pintura "L'erreur" (O erro), de 1966, na qual a afirmativa do título diz respeito ao aparente engano entre a representação da imagem e a da palavra, pois, embora estejam pintadas cascas de ovos quebrados, o artista insere a palavra moules (marisco). Tal procedimento não se mostra como uma associação lógica, o que confirma a recusa de Broodthaers em oferecer uma mensagem clara, e também a proveniência de sua ironia dos jogos de Magritte. A palavra, que geralmente repete e afirma o significado da imagem, aqui se refere a outra coisa. Em "L'erreur" poderíamos falar também de um jogo de deslocamento e descontextualização e, assim, referirmos-nos a Duchamp. Aliás, poderíamos associar esse jogo às palavras de Mallarmé quando afirma que texto e imagem não devem dizer a mesma coisa.
Existe uma aproximação entre as armadilhas propostas por Magritte e Broodthaers e os escritos sobre o Livro de Mallarmé, quando o poeta reflete sobre a idéia e o conceito das coisas, e também sobre as relações entre palavra, imagem, voz e espectador. A construção elaborada por Magritte explora as relações de similitude e diferença entre as palavras e as imagens. Nesse processo de titulação e nominação, brinca com a recepção da obra, surpreende e seduz o espectador. Em Broodthaers vemos articulações irônicas entre a representação, o observador e as questões sociais e políticas nas afirmações e negações de seus projetos. Ele bloqueia a relação da palavra com a figura.
Referências bibliográficas
- 1, SCHERER, Jacques. Le "Livre" de Mallarmé. (1957). Paris: Éditions Gallimard, 1977.
- 2. CAMPOS, Augusto de. Pontos-periferia-poesia concreta. In: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta. Săo Paulo: Livraria Duas Cidades, /975, p. 17-25.
- 3.Apud LENNEP, Jacques. Prefácio. In: MAGRITTE, René. Les mots et les images. Bruxelas: Labor, 1994, p. 8.
- 4. PELZER, Birgit. Los indícios dei intercâmbio. In: Marcel Broodthaers. Madri: Museo Nacional Reina Sofia, 1992, p. 24.
- 5. MOEGLIN-DEL-CROIX, Anne. Esthétique du livre d'artiste 1960/1980. Paris: Editions Jean-Michel Place/ Bibliothčque Nationale de France, 1977, p. 20.
- 6.PELZER, Birgit. Marcel Broodthaers - La Place du Sujei. In BUCHLOH, B. KRAUSS, R.; LANG, L. NESBIT, M. PELZER, B.. POGGI, C. POINSOT, J. M, SCHWARZ, D. Langage et modernité. Villeurhanne: Nouveau Musée, 1991, p. 166.
- 9. BOLTANSKI, Christian. Apud MCSHINE, Kynaston. The Museum as Muse: artists reflect. Nova Iorque: MOMA, 1999.
- 10. ALMANSI, Guido. Introduçăo. In: FOUCAULT, Michel. Esto no es una pipa: ensayo sobre Magritte. Barcelona: Editorial Anagrama, 1981, p. 10.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Mar 2011 -
Data do Fascículo
2006