Open-access ARTE COMO PROJETO, PROJETO COMO ARTE *

ART AS PROJECT, PROJECT AS ART

ARTE COMO PROYECTO, PROYECTO COMO ARTE

RESUMO

A partir do intenso questionamento sofrido por Giulio Carlo Argan no início da década de 1960, o artigo discute a crise da noção de projeto em seu pensamento e a relaciona historicamente com a emergência do projeto como subgênero da arte conceitual. Por um lado, a relação é articulada através do exame de duas tendências defendidas por Argan, a arte programada e a pintura analítica. Por outro, é pensada contra o pano de fundo da consolidação do mercado de arte no período em questão. Por fim, o exame da parte da obra de Antonio Dias nesse contexto histórico visa descrever com mais clareza o laço dialético entre as duas categorias em questão, arte como projeto e projeto como arte .

Projeto; Pintura; Arte conceitual; Pop; Antonio Dias

ABSTRACT

Departing from the intense questioning of Giulio Carlo Argan in the beginning of the 1960s, this article discusses the crisis of the concept of project in his thought and relates it historically with the emergence of the project as a subgenre in Conceptual Art. On the one hand, this relation is articulated through the exam of two tendencies endorsed by Argan: Programmed Art and pittura analitica . On the other hand, it is conceived against the background of consolidation of the art market in the referred period. Finally, the analysis of Antonio Dias’ work during this historical context aims to describe more clearly the dialectical tie between both the categories in question: art as project and project as art .

Project; Painting; Conceptual Art; Pop; Antonio Dias

RESUMEN

Partiendo del intenso cuestionamiento enderezado a Giulio Carlo Argan en el principio de los años 1960, el artículo discute la crisis de la noción de “proyecto” en su pensamiento y la relaciona históricamente con la emergencia de proyectos como subgénero del arte conceptual. Por uno lado, la relación es articulada por el examen de dos tendencias defendidas por Argan, el arte programado y la pittura analitica . Por otro, es pensada contra el telón de fondo de la consolidación del mercado del arte en aquello periodo. Finalmente, el examen de la obra de Antonio Dias en ese contexto histórico intenta describir con mayor claridad el lazo dialectico entre las dos categorías en cuestión, arte como proyecto y proyecto como arte .

Proyecto; Pintura; Arte conceptual; Pop; Antonio Dias

I.

A certa altura de seu artigo “ La solitudine del critico ”, publicado no final de 1963, a jovem crítica de arte italiana Carla Lonzi escreve:

Na medida em que o crítico, habituado ao privilégio institucional, se ilude de [possuir] uma clarividência e uma particular faculdade de coordenação dos dados da realidade, que o isentam da contínua perda de controle da situação e que até lhe permitem programar os termos de uma superação da produção artística em curso, ele realiza um gesto angustiado e angustiante. ( LONZI, 1963 , n.p.)1

O crítico em questão era ninguém menos do que Giulio Carlo Argan. Vindo de uma longa trajetória junto ao serviço público – que culminaria, em 1976, com sua eleição para prefeito de Roma –, Argan passara a ocupar, em 1959, a eminente cátedra de história da arte da Universidade de Roma “La Sapienza”. Na década de 1960, em que publica vários de seus mais importantes escritos teóricos e historiográficos, era reconhecidamente o crítico de arte mais influente do país. Tal alcance público e estatura institucional contribuíram para que ele entrasse em rota de colisão com artistas e com críticos de uma geração mais jovem, descontentes com o que lhes parecia um desmedido exercício de poder.

Os pontos de divergência iam de sua avaliação do panorama das correntes artísticas sessentistas em geral à sua defesa de tendências específicas, mas era sobretudo o seu modelo de crítica que estava em questão. Lonzi era partidária de uma postura mais pessoal e rente à figura do artista; não por acaso, grande parte de sua carreira crítica (que ela abandonaria em 1970 ao fundar o importante coletivo feminista Rivolta Femminile ) foi dedicada a viagens, visitas a ateliês e à tomada de entrevistas. Ela desconfiava do aparente distanciamento com que Argan situava obras e poéticas de artistas diversos ao longo do eixo coeso de uma história da cultura e da técnica; a seu ver, o que de fato se dava ali era um idealismo propenso a “dispensar benesses civis e morais” a partir de uma posição demasiado predeterminada, e por isso mesmo incapaz de reconhecer a vitalidade inerente às contradições do presente e nelas mergulhar ( LONZI, 1963 , n.p.). A prosa “cadenciada e discreta”, sem “costura à mostra”, que Rodrigo Naves (1992 , p. XII) elogia em Argan era precisamente, para Lonzi, um sintoma desse idealismo. Não por acaso, seu livro Autorittrato , publicado em 1969, resulta abertamente de uma costura: através da edição de entrevistas realizadas ao longo dos anos, Lonzi monta uma conversa contínua envolvendo catorze artistas diversos, pontuada por fotografias das mais variadas, como num diário pessoal. Negando uma vez mais o “poder do crítico” e seu “controle repressivo sobre a arte e o artista”, declara-se movida por uma compreensão da arte como “possibilidade do encontro” (LONZI, 2010, pp. 3-4)2. Ademais, se as entrevistas originais já destoavam do habitual formato de pergunta e resposta e soavam mais como uma conversa casual repleta de lapsos e interjeições, em Autorittrato , Lonzi suprime grande parte de suas intervenções de modo a dispersar a sua escrita e a sua própria posição – é um autorretrato, afinal – em meio à polifonia de vozes de artistas3. Nada poderia destoar mais do historicismo racionalista, da altivez humanista e do tenor cívico, por vezes épico – vide o título de seu livro sobre a abstração informal, Salvezza e caduta nell’arte moderna –, com que Argan narrava a história da arte, descrevendo o pós-guerra em particular como palco de uma derradeira crise da arte enquanto fenômeno histórico em relação autônoma e consequente com outras esferas da atividade social, sobretudo a da técnica.

A genealogia e os limites do pensamento de Argan já são bem discutidos no Brasil, provavelmente mais do que em qualquer outro país fora a Itália, e não cabe repisá-los aqui4. Para compreender o ponto nevrálgico dessa querela – e compreendê-la para além do embate imediato entre esses dois críticos de extração antitética –, melhor é atentar para um mote específico e central da crítica arganiana, o da arte como projeto , e avaliar a sua própria crise àquela altura5. Como bem resume a historiadora da arte Carlotta Sylos Calò, Argan enxergava o “diálogo entre arte e sociedade” como dependente de “certas premissas precisas e indispensáveis: deve haver um projeto, inclusive educacional, assim como uma racionalidade básica na estética e na própria estrutura da obra de arte” (CALÒ, 2013, p. 201). Tal mirada racionalista o leva a ver o seu momento presente, o pós-guerra, numa encruzilhada: por um lado, havia a perspectiva cada vez mais remota de retomar a linhagem histórica do “projeto”, cujo ápice recente fora a Bauhaus de Walter Gropius, e com isso recuperar alguma possibilidade de valoração do fazer técnico pela via da arte; por outro, tudo indicava um “destino” nada promissor em que essa possibilidade de valoração pela arte seria escanteada de vez pelo primado de uma técnica voltada exclusivamente para o fomento e a reprodução da lógica do consumo. Como veremos mais adiante, essa situação crítica terá reflexos profundos na própria constituição dos objetos, o que inclui, claro, as obras de arte.

Mas antes, e tendo em mente que é desse ponto de vista que a grande historiografia de Argan é escrita, vejamos como que se pode pensar o projeto como espinha dorsal da historicidade da arte na modernidade em sentido ampliado, isto é, no período que se estende do quattrocento renascentista à crise do modernismo no segundo pós-guerra. Se “o mito europeu de Gropius não é a música ou a poesia, mas a razão”, e se a Bauhaus era “a última carta que se joga, sabendo perder” ( ARGAN, 1951 , p. 27), é na visada retroativa sobre outro arquiteto, Brunelleschi, que o jogo, em seu momento inicial e mais promissor, se deixa entrever6. Difícil pensar num exemplo mais sintético e cristalino disso do que a breve análise da cúpula da catedral florentina de Santa Maria del Fiori em sua História da Arte Italiana , publicada em 1968, mas já elaborada em estudos prévios7. Segundo Argan, a construção apresentava um triplo desafio – “técnico”, “estético” e “ideológico-urbanístico” – que já não poderia ser resolvido “com os velhos procedimentos construtivos, com a experiência de canteiro do mestre de obras: agora o arquiteto é o único responsável pelo projeto” (Idem, 2003, pp. 141-143). Munido dessa perspectiva intelectual superior e unificada – do disegno que “era já, institucionalmente, projeto”, como Argan (2000 , p. 55) escreve em Projeto e Destino –, o arquiteto “não se aterá ao modelo antigo e não se renderá à moda, mas construirá uma forma plena de significado atual sobre o fundamento histórico da construção arnolfiana” ( ARGAN, 2003 , p. 141, grifos no original). O que o historiador da arte sublinha aqui é a dimensão crítica do projeto artístico: o “significado atual” só pode advir de uma avaliação histórica – “a análise e a crítica do existente”, como o autor a define em outra ocasião – conjugada a uma perspectiva de imaginação do futuro, ou seja, da busca por “realizar [uma ideia de] valor dentro do horizonte da existência” (Idem, 1993, pp. 156-170).

É igualmente importante observar que a solução do problema “técnico” – erguer uma cúpula monumental com os meios então disponíveis, sem cimbres, que leva Brunelleschi a calcular uma forma da estrutura sustentar seu próprio peso durante a construção – não se dá de forma inteiramente autônoma, mas atrelada à solução das dimensões “estética” e “ideológico-urbanística” do problema, isto é, à necessidade de conferir ao prédio uma proporcionalidade capaz de representar o momento histórico da comunidade florentina, bem como uma escala e presença formal remetidas ao sentido de capitalidade que Florença então adquiria em relação à Toscana. Tal centralidade do projeto representa o rompimento com uma relação entre arte e artesanato em que se “revelava no objeto a estrutura imóvel do mundo objetivo”; é justamente no quadro diverso de uma “estrutura móvel da existência” – de uma existência conscientemente histórica, portanto – que a historicidade articulada pelo projeto se torna tão fundamental ( ARGAN, 2000 , p. 58). Ao superar o vínculo com o artesanato, enfim,

a arte não reduzia, mas alargava seu próprio campo; entrava em contato com outras atividades culturais; tornava-se partícipe de um conjunto de atividades superiores do qual se fazia depender a produção econômica. Não fornecia mais modelos de técnica, mas modelos de cultura; e assim foi até a técnica industrial, que substituiu o artesanato, rejeitar aqueles modelos e se declarar auto-suficiente. (Ibidem, p. 55)

Em suma, se essa “estrutura móvel” de relação com a técnica permitiu que a arte se estabelecesse no campo da cultura como componente crítico e valorativo por excelência, ela também abriu caminho para a crise que ameaçava revogar esse lugar recém-adquirido e com isso encerrar o próprio ciclo histórico da arte – o que nada mais é do que uma forma de falar em “fim da arte”. A “Arte Moderna,” observa Naves, “ é a própria história dessa crise ” ( NAVES, 1992 , p. XXI, grifo no original). À medida que a crescente autonomia da indústria enfraquece a relação entre arte e técnica industrial, “o interesse moral, e com ele a realidade dramática da história, é excluído do ciclo já apenas econômico da produção” ( ARGAN, 2000 , p. 57). É claro que o projeto permanece no cerne da técnica industrial, contudo, desprovido de um “componente crítico”, ele se reduz a “um cálculo preventivo” cujo resultado “é, mais que uma proposta, uma dedução”; autocentrado (mas não autônomo) e incapaz de postular valores por si só, tem em vista apenas “o progresso do produto ou da técnica que o produz” (Ibidem, pp. 55-56). A situação de crise é confirmada no pós-guerra, que falha em trilhar o caminho apontado pela Bauhaus de Gropius e testemunha, ao contrário, a ascensão da sociedade de consumo. Cético quanto à pintura informal, em que vê o fazer se desvincular de qualquer perspectiva histórica, Argan adentra a década de 1960 envolto em pessimismo, mas joga ele próprio a sua última carta. É no contexto do intenso debate italiano sobre o legado da informalismo que ele vai condenar com veemência as “poéticas do objeto” de cunho neodadaísta – em especial a arte pop – e defender, em contraponto a estas, o que chamava de “correntes gestálticas” – mais conhecidas pelo resto da crítica italiana como “arte programada” [ arte programatta ] –, cujos principais representantes eram grupos artísticos como o GRAV, na França, o Equipo 57, na Espanha, os grupos T e N, na Itália, e o Zero, na Alemanha, bem como a Escola de Ulm, de Max Bill8.

Pois bem: em 1963, atuando como presidente do júri da IV Bienal de San Marino, Argan valeu-se de sua influência para garantir a premiação dos grupos N e Zero ( GALIMBERTI, 2017 , pp. 152-153). Em paralelo, entre agosto e outubro, ele escreve uma série de cinco artigos em que discute algumas das principais características e do sentido histórico da “arte gestáltica”, contrapondo-a frontalmente às ditas “poéticas do objeto”. O fato de os artigos terem sido publicados no Il Messaggero , o jornal mais popular de Roma, deixa claro que, para Argan, não se tratava de uma questão de interesse estritamente acadêmico, mas de uma intervenção nos rumos da cultura em um momento decisivo, e que por isso demandava a mobilização de todos os recursos institucionais a seu dispor. E foi justamente por isso que sua atuação suscitou tamanha reação. A querela veio a público no Convegno Internazionale di Artisti, Critici, Studiosi d’Arte , realizado em Verucchio também no segundo semestre de 1963 e também sob a presidência de Argan. Diversos artistas de Roma – até então próximos ao historiador da arte – co-assinaram uma carta aberta acusando-o de querer “intervir no cerne da arte no exato momento em que ela está sendo elaborada ou planejada [ progettarsi ], a fim de delinear esquemas apressados e até mesmo impor diretrizes e programas” (ACCARDI, CONSAGRA, CORPORA et. al. , 1963, p. 27). Durante o Convegno , outros artistas manifestaram-se contra tal favorecimento da arte programada, e até mesmo integrantes desses grupos chegaram a questionar os termos com os quais Argan os encampava ( GALIMBERTI, 2017 , pp. 155-156).

Nos artigos do Il Messaggero , o historiador da arte argumenta que as “poéticas do objeto” ou da “ reportage social”, como a pop , recuperam o objeto “na fase final do consumo”, como um “objeto expirado, um pós-objeto”; desprovidas de uma “técnica própria”, elas apenas isolam um “objeto-signo” arbitrariamente em meio a uma série de equivalentes e o alçam à condição de “um símbolo, ou apenas um sintoma, de uma situação” (ARGAN, 1963a, p. 3). Já as “correntes gestálticas” retornam ao âmbito psicológico da “intencionalidade” na busca por realizar uma “demonstração de operabilidade” radicalmente abstrata que tampouco conduz ao objeto, restringindo-se à “hipótese de objeto, a um pré-objeto, à descrição de um comportamento produtivo” (Ibidem, p. 3). Apesar de diametralmente opostas, as duas correntes têm ligação umbilical, pois respondem com sinais invertidos a um mesmo quadro: escanteadas da “vida funcional e da existência social do objeto”, ambas são evidências de que a sociedade moderna chegou ao ponto de excluir “a arte da fase adulta de sua existência” (ARGAN, 1963a, p. 3). Ou, como lemos em Projeto e Destino , resta “[d]e um lado, o projeto que não faz coisas; do outro, coisas feitas sem projeto: ordem sem realidade, realidade sem ordem” (Idem, 2000, p. 42).

Um dos pontos centrais da oposição entre “poéticas do objeto” e “arte gestáltica” é o estatuto da imagem: segundo Argan, a publicidade e os mass media colocam em circulação “imagens-objeto” que se caracterizam por serem como um sinal que “se repete insistentemente, inscrevendo-se no ritmo da nossa existência” (ARGAN, op. cit., p. 3). Não há margem aqui para “objetivar e julgar”, até por se tratar de um regime que visa a “condicionar os processos mentais”, habituando-os a uma sucessão de objetos determinada não por atos ou escolhas crítica, mas pela permutabilidade imediata de um equivalente por outro, isto é, pela lógica do consumo (Ibidem). A crítica específica ao papel da arte pop se assemelha àquela feita mais ou menos na mesma época, no Brasil, por nomes como Frederico Morais, Mário Pedrosa e Antonio Dias: suas imagens são meras reafirmações da alienação oriunda do consumo e reforçada pelos mass media (“eles constatam um hambúrguer”, desdenha Dias em uma famosa entrevista dada em conjunto com Rubens Gerchman a Ferreira Gullar, “e daí?”) (DIAS, 1966/1967, p. 177). Argan argumenta, ainda, que mesmo quando uma constatação dessa ordem se dá com “ironia” ou “náusea”, o resultado não é uma postura efetivamente crítica, pois não há “atribuição de valor na operação”; em outras palavras, a imagem pop não logra projetar um destino alternativo para o objeto (como poderia ser diferente, se ela não projeta absolutamente nada?) e, portanto, para a relação entre arte e técnica (ARGAN, 1963b, p. 3). A “arte gestáltica” é novamente situada no polo oposto: ao reduzir o projeto a um esquematismo abstrato desvinculado de objeto, mas alojado no inconsciente do sujeito moderno feito uma “pulsão” virtualmente universal – um “ pattern ” que é “resultado de experiências remotas, frequentemente comuns a toda uma civilização” –, ela solicita as faculdades do espectador de modo antitético ao da passividade característica do consumo em série, embora esse mínimo de resistência tampouco seja capaz de informar o regime industrial e a produção de objetos, mas apenas de demonstrar que “o mundo da imagem não é totalmente privado de estrutura e de direção” (Idem, 2000, pp. 35-36). Na melhor das hipóteses, o que a arte gestáltica oferece é um recuo estratégico, uma última trincheira da projetualidade – alojada tanto na ética coletivista dos grupos quanto nos estímulos perceptivos e na abertura semântica de suas obras – a partir da qual, quem sabe, um novo vínculo projetivo entre arte e cultura poderia vir a se estabelecer; pessimista, Argan reconhece que essa perspectiva se funda mais numa “torcida” do que num “juízo” (Argan, 2000, p. 43)9.

II.

Na esteira desse que foi seu “ annus horribilis ”, Argan toma crescente distância da crítica militante (já em 1964, o ensaio-título de Projeto e Destino retoma com maior distanciamento vários dos argumentos apresentados nos artigos do Il Messaggero ) ( DANTINI, 2014 , p. 97, nota 20). Em todo o caso, o fato é que esse debate deixaria marcas duradouras na cena italiana; basta lembrar, por exemplo, que os jovens Giulio Paolini e Luciano Fabro, artistas posteriormente arrolados por Germano Celant em torno da arte povera e centrais para a convergência desta com a arte conceitual, eram pessoalmente próximos de Lonzi e alinharam-se, em grande medida, a suas posições. No entanto, quando essa geração italiana começa a se integrar à nova geografia artística desenhada pela emergência do conceitualismo na Europa, a própria ideia de projeto volta ganhar destaque, mas agora em sentido muito diverso daquele pensado por Argan. Tomemos, por exemplo, as exposições "Op Losse Schroeven", "Live in Your Head: When Attitudes Become Form" e "Pläne und Projekte als Kunst", realizadas no mesmo ano de 1969: um ponto comum entre elas é a proeminência do projeto como arte. O curador Harald Szeemann concebeu "Pläne und Projekte als Kunst", inclusive, como um desdobramento de "When Attitudes Become Form", visando enfocar prioritariamente a exibição de “projetos, planos e conceitos” – propostas ainda irrealizadas ou mesmo irrealizáveis e que, no mais das vezes, eram a única versão apresentada de um determinado trabalho. Não se buscava uma alternativa apenas a objetos e obras prontas, mas também ao tipo de experiência por estas proporcionada: “Quanto menos realizáveis estes projetos forem, maiores as exigências que eles colocam ao espectador”, escreve Zdenek Felix, o assistente de Szeemann que levou a mostra adiante após a renúncia deste do Kunsthalle Bern (FELIX, 1969, p. 1). Noves fora o ecletismo com que era trabalhada nessa e em diversas outras mostras naquele momento, o fato é que a categoria de projeto começa a se firmar como um dos principais subgêneros da arte conceitual que então emergia no circuito da Europa continental.

De um lado, fundamento ontológico da historicidade da arte, do outro, subgênero de uma vertente artística específica; a diferença entre essas duas concepções do projeto não poderia ser maior. Ainda assim, ambas respondem a um mesmo problema: a espetacular onda de mercantilização da arte norte-americana nos anos 1960. No caso de Argan, como vimos, o problema passava diretamente pela ascensão da arte pop e pelo desconforto que o consumismo à americana promovido pelo Plano Marshall causava em círculos intelectuais europeus; some-se a isso, na Itália, o processo de mercantilização do design , que o reduzia a um objeto de luxo esvaziado de perspectiva utópica (ou mesmo reformista). Já o caso da arte conceitual toca na promoção retroativa que o destaque conferido à pop pelos galeristas Leo Castelli e Ileana Sonnabend projetou também sobre outras alas da pintura norte-americana recente, incluindo o expressionismo abstrato e a abstração pós-pictórica10. Não custa lembrar a desilusão do crítico inglês Charles Harrison ao visitar Nova Iorque pela primeira vez em 1969 e ver as pinturas de Morris Louis, que ele tanto admirava, na galeria André Emmerich, cuja ambiência refinada e cuidadosamente iluminada conspirava para envolvê-las numa aura de preciosidade: “eu não conseguia vê-las em absoluto como arte. Longe de servirem como veículos e expressões da sensibilidade [ of feeling ], seu aspecto era de papel-moeda de parede [ wallpapered money ]” ( HARRISON, 2009 , p. 130). É sintomática a mudança de rumo de Harrison, até então um jovem entusiasta da crítica de Clement Greenberg no além-mar, que ainda em 1969 organizou a versão londrina de "When Attitudes Form" e posteriormente se associou ao coletivo conceitual Art & Language.

Entretanto, a oposição conceitualista à mercantilização da arte também esbarra em limites sérios, sobretudo por conta do equívoco oriundo de um certo materialismo vulgar que tende a reduzir a mercadoria, no âmbito artístico, ao objeto de luxo necessariamente tangível e convencional – pintura e escultura, sobretudo. Em retrospecto, soa deveras ingênua a tranquilidade com que Lucy Lippard e John Chandler, em seu clássico ensaio de 1968 sobre a “desmaterialização da arte”, afirmam que, como “negociantes não podem vender arte-como-ideia, o materialismo econômico é negado junto com o materialismo físico” (LIPPARD, CHANDLER, 2013, p. 160). E nem é preciso tanto retrospecto assim: já em 1975, analisando um contexto em que o mercado era muito mais incipiente, o crítico Ronaldo Brito (1975 , p. 6) foi capaz de observar que “[p]ode-se vender tudo, inclusive os xeroxes dos conceituais”. Mas cabe ir ainda além e notar que a investida conceitual contra a mercadoria artística naquela acepção convencional terminou, ironicamente, por propiciar condições para a vertiginosa aceleração e expansão global do mercado de arte nas décadas seguintes. Como argumenta o historiador da arte Thomas Crow, no momento em que o “objeto único, artesanal” deu lugar a “substitutos discursivos”, tais como “instruções textuais, descrições secas, fórmulas gráficas, documentos fotográficos, definições de dicionário, apresentações performáticas”, ganhou força “um princípio de equivalência, trazendo a prática artística mais para perto da permutabilidade fluida que caracteriza a verdadeira mercadoria. A relativa falta de peso do artefato conceitualista eliminou os gargalos de fricção e produção do sistema” (CROW, 2008, n.p.).

O projeto como arte evidentemente integra esse rol de “substitutos discursivos”. Além disso, o mesmo processo de eliminação de gargalos se verifica também do ponto de vista do trabalho artístico, cuja reorganização em torno dessa nova realidade antecipa alguns aspectos do quadro que o operaísta italiano Maurizio Lazzarato descreveria em 1996 sob a rubrica do “trabalho imaterial.” Não pretendo propor aqui um paralelo imediato entre essas duas supostas desmaterializações – da obra e do trabalho –, cujo alcance e validade teórica são inclusive questionáveis11. Mas é interessante que essa tentativa de descrever uma realidade do trabalho marcada pela mobilidade, pela articulação de equipes e pela lida com canais de comunicação em constante fluxo acabe valendo também para o artista contemporâneo, que cada vez mais assemelha-se a um empreendedor de si próprio, realiza obras efêmeras, site-specifics e projetos especiais em residências e bienais mundo afora; a (oni)presença do artista nesse jet set não deixa de servir também como lastro de valor (o mesmo se dá com o protocolar tour de escritores que dão palestras no circuito de feiras literárias ao lançar livros).

Em todo caso, falar em desmaterialização já não nos leva muito adiante; o problema central aqui é o da progressiva descrença na objetividade da obra, isto é, em seu valor imanente e relativamente autônomo. A hipótese talvez soe duvidosa à luz das “maiores exigências” que Felix via os projetos colocarem aos espectadores, ou então da “maior participação do espectador” demandada, segundo Lippard e Chandler, por “uma arte altamente conceitual” (LIPPARD, CHANDLER, 2013, p. 164). Mas essas posições são no mínimo ambivalentes: ainda segundo Felix, numa frase que poderia ter sido escrita por Lonzi, somente “o comprometimento [ Engagierheit ], próximo àquele pessoal do artista, pode permitir a comunicação com estes projetos” ( FELIX, 1969 , p. 2). Lippard e Chandler (2013 , p. 164) são mais peremptórios: “Se o objeto se torna obsoleto, a distância objetiva se torna obsoleta. Em um futuro próximo, pode ser necessário para o escritor ser um artista, assim como para o artista ser um escritor”. O fato é que a subjetividade do artista – e, com ela, a sua palavra – foi fortemente valorizada naquele momento, fosse por prometer uma abertura para uma experiência mais vital da arte, fosse por oferecer um antídoto contra a estagnação da crítica (a conclamação de Felix ao “comprometimento” vem logo após longas citações de textos explicativos de três artistas). De fato, não são poucos os exemplos de artistas cuja escrita, transitando no limite entre a crítica e a prática artística – vide um Robert Smithson –, investiram com vigor contra preconceitos e esquematismos da crítica profissional (Lonzi, como vimos, fez o mesmo pela via inversa, isto é, levando sua escrita ao limiar da condição de obra). Tudo isso fazia sentido num contexto de efetiva disputa pelos meios de circulação de obras e palavras. No entanto, com a progressiva subsunção desses meios à lógica do capital, passa a importar cada vez menos a discussão sobre o sentido imanente da obra; sua consistência objetiva torna-se secundária, quando não um mero empecilho que a inflação da presença, do discurso e da circulação do artista convenientemente substituem, fornecendo uma autenticação de sentido – portanto, de valor de uso – tão ou mais garantida do que o aval do crítico para efeito do que importa: convencer o potencial comprador acerca do valor daquilo que ele está prestes a adquirir12.

Dito isso, cabe ressalvar que a dialética da reorganização do mercado de arte frente à emergência do conceitualismo pode ter sido um processo hegemônico, mas certamente não foi homogêneo, e que tampouco esse esvaziamento da objetividade da obra procedeu sem arestas. Pensemos, por exemplo, no ensaio “Contra a interpretação”, de Susan Sontag, com sua veloz repercussão internacional (datado de 1964, teve sua tradução para o italiano já em 1967). Por mais que sua contundente polêmica contra tradições interpretativas dadas a assimilar a arte a grandes narrativas ou diagnósticos culturais pudesse corroborar o incômodo com um projeto crítico como o de Argan, e por mais que sua conclusão – “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte” ( SONTAG, 1987 , p. 23) – de fato soasse como um manifesto em favor da experiência vital e presente da arte, o ensaio tem nuances que passam longe de autorizar o primado inquestionável da palavra do artista, ou mesmo a “cumplicidade” da “crítica acrítica” que Germano Celant (1970 , pp. 29-30) propõe a partir de sua leitura. Basta atentar para a máxima de D.H. Lawrence citada por Sontag (1990 , p. 9): “ Never trust the teller, trust the tale ” (ou, ainda mais inequivocamente, para a frase seguinte de Lawrence, que a autora não chega a citar: “a função propriamente dita do crítico é salvar a história do artista que a criou”)13.

No Brasil, por sua vez, vale retornar à já citada intervenção de Ronaldo Brito, cujo juízo acerca da crítica tradicional não era menos severo que o de seus pares internacionais. No entanto, sua resposta não se deu através da valorização imediata, em contrapeso, da subjetividade do artista; pelo contrário, Brito advertiu contra a “mítica personalização” de sua figura, tomada como meio do mercado dividir para conquistar, e propôs a “reorganização dos artistas contemporâneos em torno de um programa comum de ação dentro do circuito” que necessitava, como fundamentação, a “formulação de uma História Crítica da Arte Brasileira” (BRITO, 1975, p. 6). Dito de outra forma, propôs que a proximidade entre artista e crítico resultasse não em lances de cumplicidade e inflação subjetiva, mas na busca por um lugar no interior do “ambiente cultural” a partir do qual a relação com outras esferas – inclusive a do mercado – pudesse se estabelecer de forma relativamente autônoma; um lugar demarcado pelo esforço de pensar objetivamente suas fundações críticas e historiográficas. Não era outro, claro, o projeto dos artistas e críticos reunidos em torno da revista Malasartes – “[a]lgo bem diferente da Pólen, como dá pra ver”, escreve Brito em carta para Antonio Dias, mencionando a publicação que este co-organizara, “[u]m veículo de objetivação, não de curtições subjetivas” (BRITO, 1974, n.p.).

A essa altura do campeonato, já há de estar evidente que arte como projeto e projeto como arte devem ser entendidos não como contrários, mas como um par dialético. Se tomados isoladamente, eles apontam para soluções insatisfatórias: recuo nostálgico, no caso do primeiro, e subjetivismo acrítico, no limite do segundo (posições que sobrevivem no cenário contemporâneo ainda mais esvaziadas, mas devidamente amparadas por seus nichos de mercado correspondentes). Mas tampouco há ganho em satisfazer-se com a pincelada larga de uma condenação histórica retroativa e sem restos; por isso, e à guisa de conclusão, quero trazer à baila mais uma aresta, por assim dizer; dessa vez, o caso de um artista que me parece não só acompanhar o movimento dessa dialética, mas extrair dela força poética, o que faz com que seu trabalho abra uma perspectiva privilegiada sobre as questões levantadas por esses debates e suas implicações para a arte contemporânea que se formaria a partir dali.

III.

Já em 1968, ano de sua mudança para Milão, Antonio Dias percebe que o projeto como arte está em voga. Ele começa a trabalhar em seu Project-book: Ten Plans for Open Projects , que, no entanto, jamais publica (ou melhor, que publica com formato, suporte e diagramação bastante modificados, quase dez anos mais tarde, com um novo título: Trama ). Em 1969, escreve para o curador Harald Szeemann, que o incluíra previamente na mostra "Science Fiction" (1967), dando notícias de sua ida para a Itália e das mudanças em seu trabalho. “Caro Szeemann,” inicia a carta:

Na casa de um amigo, vi o catálogo da exposição Anti-Form, que você realiza no Kunsthalle nesse momento. [...] Estou morando na Itália há 9 meses. [...] Depois de 1967, meu trabalho evoluiu num sentido deveras próximo daquele da exposição Anti-Form, acredito. [...] Envio para você os catálogos de minhas mais recentes exposições individuais. (DIAS, 1969, n.p.)

Não obstante a confusão acerca do título, não há dúvida de que a referida exposição é "When Attitudes Become Form". O contato parece ter rendido frutos: convidado para participar de "Pläne und Projekte als Kunst", o artista expõe cinco fotocópias, todas datadas de 1969: Reality: Project for an Artistic Attitude, Sun Photo as Self-portrait, Paradox Project: Find an Island Called Oasis, Project for The Hard Life e Air Detroying Gorgeous Monuments ( FELIX, 1969, p , p. 2). Se projetos como esses de fato colocam “maiores exigências” aos espectadores, isso se dá sobretudo por conta seu caráter enigmático – sublinhado em primeira mão por observadores diversos como Mário Barata, Tommaso Trini e Hélio Oiticica14 –, que opera ali como índice de objetividade da obra (nesse mesmo momento, também o filósofo Theodor Adorno (2008, p , pp. 138-143) tratou do “caráter enigmático” da obra de arte moderna em geral como índice de irredutibilidade da lógica formal da obra à razão empírica, isto é, como aquilo que desafia o crítico ou espectador a “mimetizar” a logicidade própria da obra na experiência, sob pena de incompreensão). Some-se a isso a notória aversão de Dias a teorizar ou interpretar seus próprios trabalhos; longe de funcionar como “substituto discursivo”, a linguagem era incorporada, no interior de suas obras, à dinâmica do enigma, o que significa dizer aqui, da sua lógica formal. Que a maioria desses e de outros projetos seus, inclusive os do Project-book , tenha ganhado versão pictórica – enfaticamente pictórica, aliás, como demonstram os dois por três metros de Project for an Artistic Attitude , de 1970 – é consistente com a exploração desse caráter enigmático, já que seus quadros amarram os fios da linguagem, da imagem e do suporte físico da obra num nó apertado que efetivamente demanda uma atenção a um só tempo redobrada e difusa – o “estrabismo” de que fala Paulo Sergio Duarte (1978, p , p. 21). Nesse ponto, o artista se diferencia tanto das vertentes conceituais informadas por certo determinismo tecnológico (que valoriza meios de reprodução técnica, como o próprio xerox e o photostat , em oposição aos tradicionais) quanto da ênfase ambiental de um interlocutor importante como Hélio Oiticica, que assina o texto de apresentação (jamais publicado) do Project-book tratando os “desenhos como projetos mesmo para algo, e não desenhos em si”, e exorta Dias a radicalizar essa ideia, “não fazendo concessão à ideia de desenho ou quadro” – sem sucesso, como bem se sabe (OITICICA, 1969b, n.p.).

Vale enfatizar que tal recurso à pintura não era nem nostálgico, nem extemporâneo: no início dos anos 1970, ganha proeminência na Itália uma tendência conhecida como pintura analítica, pintura fria, nova pintura ou pittura pittura , entre outras alcunhas. Em linhas gerais – com a ressalva de que não se tratava de um movimento coeso ou programático, e tampouco organizado em grupos, como fora a arte programada –, seu traço distintivo era a produção de pinturas que dissecavam a própria prática da pintura, enfocando diversos de seus fundamentos materiais, processuais e convencionais: a moldura, a tela, o formato, a cor, a linha, a pincelada, a colocação, e por aí vai15. Por um lado, a pintura analítica tinha olhos para a vertente do expressionismo abstrato representada por Mark Rothko e Barnett Newman, para expoentes da abstração pós-pictórica e do minimalismo, como Morris Louis, Ellsworth Kelly e Frank Stella, para os franceses do grupo Supports/Surfaces e também para Giulio Paolini, considerado um precursor da reflexão fria sobre o suporte e as convenções pictóricas na Itália. Por outro, tinha plena consciência da arte conceitual e a ela respondia (o que corroborava a importância de Paolini). Nas palavras de Filiberto Menna ( apud BELLONI, 2015 , p. 29), um dos críticos mais atentos àquela tendência, se a arte conceitual questionava o “sistema da arte”, “a nova pintura questionava o sistema (ou subsistema) da pintura”. Já Argan, ao contribuir para a publicação comemorativa dos dez anos da Studio Marconi – galeria de Dias em Milão –, em 1975, toma partido da pintura analítica e a situa como tendência mais “consciente” daquele momento, sublinhando que, ao invés de transpor os limites “intoleráveis” da arte, esses pintores “reconhecem o seu perímetro caminhando sobre ele como sobre uma corda bamba, e [...] fazem pintura analisando a estrutura de suas operações e evitando perguntar-se se, ao se fazer pintura, se faz arte” ( ARGAN, 1976 )16. A crise da noção de projeto segue preocupando-o: a nova pintura “projeta em sentido inverso [ao do design ], através de uma rigorosa operação de desmontagem”. A “redução a zero”, continua Argan, “é [...] a redução à pintura pura, entendida em si mesma, e não como um conjunto de significantes cuja existência é condicionada por significados” – em suma, e assim como a projetualidade pura e sem objeto da arte gestáltica, o que esse “grau zero” recusa é o “condicionamento por significados” que já não poderiam escapar, num mundo pós- pop , à determinação pela lógica da imagem consumida em série.

Por coincidência ou não, um dos primeiros trabalhos que Dias intitula The Illustration of Art , de 1972 – justamente o ano em que a pintura analítica desponta, com a exposição "Per pura pittura", em Trieste –, pode ser lido como uma espécie de ponte entre a arte gestáltica e essa “redução a zero”. Num vídeo que reconstitui o fazer do trabalho, vemos o artista traçar, com o auxílio de uma longa ripa, linhas ortogonais e diagonais, numa demarcação inicial que se assemelha às do Disegno Geometrico (1960), de Paolini, e de Ommagio a P. (1970), com que o analítico Claudio Verna homenageia o próprio Paolini ( Figura 1 )17. Mas o brasileiro, vindo de um contexto marcado por gestos fundadores de um modernismo cujo ethos utópico já vinha se tornando menos crível, ou mesmo fracassado (vide Brasília, que em poucos anos passa de concretização máxima da utopia modernista a sede de um poder ditatorial tecnocrático, e que também teve, num cruzamento de perpendiculares, sua demarcação simbólica inaugural), lança mão da ironia para recalibrar o sentido e o alcance desse tipo de gesto. Traçadas as perpendiculares iniciais, ele acrescenta diagonais até perfazer uma espécie de rosa-dos-ventos composta por doze ou mais linhas que se cruzam no mesmo ponto central18. Em seguida, remove um papel quadrado da parede branca, fazendo com que as extremidades das linhas demarquem negativamente – num efeito tipicamente gestáltico – a sua forma ausente. Apesar de sua extrema simplicidade, a operação resulta numa radical inversão qualitativa: por um lado, é impossível não lembrar mais um gesto inaugural particularmente caro às vanguardas brasileiras, o quadrado branco de Malevich, agora reduzido, para além mesmo da tela – ou seja, para além do seu convencional grau zero –, à condição de parede sobre parede (a referência fica explícita no início do livro de artista Some Artists Do Some Not , no qual uma foto do trabalho é contraposta a uma página toda preta com um quadrado em branco do mesmo tamanho e na mesma altura, como se eles tivessem sido decalcados um do outro). Por outro lado, o gesto inaugural das perpendiculares dá lugar a uma imagem oriunda do extremo oposto do espectro estético-ideológico, o da vulgaridade, já que os traços em torno do quadrado vazio remetem a um splash publicitário ou uma aura comumente usada na linguagem dos quadrinhos para conotar brilho ou novidade (Dias brinca com essa conotação numa foto tirada em frente ao trabalho, em que ele se encontra circundado pela “aura” enquanto segura uma lâmpada acesa da qual vemos apenas o brilho luminoso, mas não os contornos do objeto, ofuscados pela exposição excessiva). Como aquilo que essa aura delineia é um quadrado vazio, este pode ser tomado como representação tanto de um valioso quadro ausente quanto do plano pictórico em sua abstração absoluta, mas fundamental enquanto esteio do sensível; ou ainda, na falta de termo melhor, como o nada de uma fraude do tipo “o rei está nu” (não por acaso, há um quê de trickster no jeito com que o artista se deixa ou se faz representar em imagens e trabalhos desse período – e a foto com a lâmpada não é exceção –, em contraposição tanto à persona intelectualizada do artista conceitual quanto ao xamã beuysiano).

FIGURA 1
Claudio Verna, Ommagio a P. , 1970. Acrílica sobre tela, 150 x 150 cm.

Eu falei em ponte, mas, a rigor, é da relação dialética que assinalei previamente que se trata aqui. A súbita aparição do registro da imagem, simultaneamente em positivo e negativo, ali onde se poderia esperar uma afirmação do laço histórico entre arte programada e pintura analítica, marca uma distância irônica em relação a essas tendências, assim como seu recurso aparentemente idiossincrático à pintura marca distância frente à doxa conceitualista. Além disso, a metafísica modernista subjacente aos gestos de redução ao grau zero é questionada também naquilo que pressupõe uma concepção temporal linear e positivista da ontologia pictórica. Em outras palavras, The Illustration of Art questiona o pressuposto de que seria possível uma volta a um estado mais puro de pintura pela via da redução e de que esse retorno ao manancial da pintura “ela mesma” seria condição sine qua non para a sua continuidade histórica. “A pureza é um mito,” reza a máxima de Oiticica, que Dias aqui reinterpreta como uma subversão daquela ontologia em que, um pouco como na psicanálise, a busca por pureza ou origem acaba desaguando, sintomaticamente, na falta, no retorno e na repetição (o quadrado ausente, repito, é isso: um repentino deslocamento, uma irrupção da imagem que vem perturbar uma linguagem geométrica instrumentalizada em prol da ideologia da pureza). Já se antevê aqui a lógica econômica que a série The Illustration of Art desenvolverá ao longo dos anos seguintes. Assim, em meio a uma conjuntura turva em que o ocaso do vanguardismo se cruza com a consolidação cultural do capitalismo tardio, Dias dá um passo para além da lógica daquele para melhor se posicionar criticamente diante deste.

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Referências bibliográficas

  • Território Liberdade - a arte de Antonio Dias (2004), Roberto Cecato, Brasil. DVD (48 minutos).

NOTAS

  • 1
    . Todas as traduções são do autor deste texto, exceto quando indicado o contrário.
  • 2
    . As transformações da crítica italiana nos anos 1960 e a relevância do debate Lonzi-Argan são objeto de ampla discussão na Itália. Ver, por exemplo: CONTE (2011 , pp. 87-109) e DANTINI (2010 , pp. 262-307; 2014, pp. 87-103).
  • 3
    . Minha compreensão de Autorittrato deve muito a Teresa Kittler, que trata o livro sobretudo como uma obra e o situa em meio à problemática italiana da moradia e do habitar. Cf. KITTLER (2014, pp. 199-242).
  • 4
    . Para introduções rigorosas às coordenadas teóricas e historiográficas de Argan, ver NAVES (1992) e MAMMÌ (2003 , pp. 9-18).
  • 5
    . Num livro curto, mas sugestivo, Guilherme Bueno (2007) também se debruça sobre a categoria de projeto ao tratar do pensamento de Argan, mas para traçar um paralelo com a visada da crítica norte-americana sobre o modernismo no pós-guerra.
  • 6
    . Para uma discussão sobre a centralidade de Gropius para Argan com ênfase na questão do projeto, ver LORBER (2014 , pp. 155-164).
  • 7
    . A leitura que se segue se alinha fundamentalmente à feita por Lorenzo Mammì, que ressalta o status paradigmático da cúpula para Argan. Cf. MAMMÌ (op. cit., pp. 11-12).
  • 8
    . É interessante observar que, ao contrário do Brasil – onde, via escola de Ulm, o concretismo e o neoconcretismo se remetem diretamente às vanguardas construtivas históricas –, as vertentes neoconstrutivas italianas são entendidas como herdeiras do informalismo. Para uma discussão sobre a semântica do termo com ênfase nesse parentesco com o informel , ver GALIMBERTI (2017 , p. 143).
  • 9
    . A origem da arte programada se cruza com a do famoso conceito de obra aberta, de Umberto Eco, que contribuiu para o catálogo da mostra "Arte programmata: Arte cinetica, opere moltiplicate, opera aperta" (1962). Fortemente politizados, mas críticos também da estética realista favorecida pelo Partido Comunista Italiano, os praticantes e defensores da arte programada viam produção e recepção caminhando juntos em prol da democratização do sentido: por um lado, a opção por se organizar em grupos minaria a individualidade artística (inflada pela pintura informal) e, com isso, a autoria; por outro, o acaso e a indeterminação formal então contribuiriam para cultivar uma fruição semanticamente aberta e mesmo criativa por parte do espectador. Para uma discussão aprofundada sobre esse cruzamento (e suas contradições), ver CAPLAN (2018, p , pp. 54-81).
  • 10
    . Cf. CROW (2008) .
  • 11
    . Em seu texto de apresentação da conferência “Art and Immaterial Labour”, o filósofo Peter Osborne (2008, p , p. 17) já reconhece que o paralelo entre essas duas “desmaterializações” não é banal. Talvez o paralelo mais plausível seja negativo: numa resenha crítica dessa mesma conferência, David Graeber (2008, n , n.p.) aponta para um materialismo vulgar, na base do conceito de trabalho imaterial, que de fato se assemelha muito ao do texto de Lippard e Chandler.
  • 12
    . Sobre o problema do neovanguardismo frente à “subsunção real” pelo capital, ver BROWN (2012) .
  • 13
    . A citação em inglês é a que consta no original em inglês de Sontag, com uma imprecisão – a troca de artist por teller – que a torna aliterativa. Eis a passagem original de Lawrence (2004, p , p. 14): “Never trust the artist. Trust the tale. The proper function of the critic is to save the tale from the artist”.
  • 14
    . Cf. BARATA (1969) , TRINI (1969) e OITICICA (1969).
  • 15
    . Sobre a pintura analítica, ver BELLONI (2015, p , pp. 16-71).
  • 16
    . As citações seguintes nesse parágrafo são do mesmo texto.
  • 17
    . Cf. Território Liberdade - a arte de Antonio Dias (2004), Roberto Cecato, Brasil. DVD (48 minutos).
  • 18
    . No documentário de 2004, Dias traça 20 linhas ao invés das 12 mais comumente vistas em registros fotográficos dos anos 1970.
  • *
    O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Pela bolsa CAPES/Humboldt, agradeço ainda à fundação Alexander von Humboldt. A escrita do presente trabalho também não teria sido possível sem o apoio da FAPERJ, através da bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado (processo: E-26/202.691/2018). Por fim, agradeço ao Getty Research Institute, através do Getty Library Grant.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2021
  • Aceito
    10 Maio 2021
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