Resumo
Partindo da perspectiva de Michel de Certeau sobre o estudo do cotidiano, buscamos compreender neste artigo como ocorrem as práticas cotidianas de territorialização de trabalhadores alagoanos, cortadores de cana-de-açúcar, que, em meio ao trabalho precário, migram para trabalhar em usinas no Paraná. Adotamos o método da história de vida para a coleta de dados, realizando entrevistas com sete trabalhadores migrantes. Realizamos a análise tendo por base as narrativas dos entrevistados. Por meio de um recorte analítico e num diálogo constante com as teorias utilizadas, procuramos apreender suas ações cotidianas de territorialização. A análise permitiu identificar o quanto o cotidiano desses sujeitos é repleto de lutas, além de divisões territoriais, com movimentos constantes de aproximações e distanciamentos, divergências e convergências. Assim, em meio ao conformismo e às resistências, observamos um emaranhado na formação de redes, nas relações sociais, nas práticas de conveniências, táticas e estratégias, que permitiram a ressignificação daquele novo espaço e da construção da territorialização desses trabalhadores.
Palavras-chave: Cotidiano; Território; Trabalho precário; Cortadores de cana
Resumen
A partir de la perspectiva de Michel de Certeau en el estudio del cotidiano, buscamos comprender en este artículo cómo ocurren las prácticas cotidianas de territorialización de trabajadores de Alagoas cortadores de caña que migran para trabajar en usinas en el estado de Paraná en medio del trabajo precario. Adoptamos el método de la historia de vida para la recolección de datos realizando entrevistas a siete trabajadores migrantes. El análisis fue realizado partiendo de las narrativas de los entrevistados. Por medio de un recorte analítico y en un diálogo constante con las teorías utilizadas, procuramos aprender sus acciones cotidianas de territorialización. El análisis permitió identificar cuánto el cotidiano de esos sujetos está lleno de luchas, además de divisiones territoriales, con movimientos constantes de aproximaciones y distanciamientos, divergencias y convergencias. Así, en medio del conformismo y las resistencias, puede observamos un enmarañado en la formación de redes, en las relaciones sociales, en las prácticas de conveniencia, tácticas y estrategias, permitiendo la resignificación de aquel nuevo espacio y de la construcción de la territorialización de estos trabajadores.
Palabras clave: Cotidiano; Territorio; Trabajo precario; Cortadores de caña
Abstract
Starting from the perspective of Michel de Certeau in the study of daily life, the study seeks to understand how are the daily practices of territorialization of the ordinary man, represented by sugarcane workers from the Brazilian state of Alagoas, who migrate to work in precarious conditions in plantations in the state of Paraná. The research adopted the Life History method for data collection, conducting interviews with seven migrant workers. The analysis was based on the narratives of the interviewees, and through an analytical cut that sought to understand the historical context of life of the subjects, connecting the data collected to the theoretical framework in order to apprehend their daily actions of territorialization. The analysis allowed identifying the struggles in the daily life of these workers, whether at work, in the city or in the neighborhood, besides territorial divisions, with constant movements of approximations and distances, divergences and convergences. Thus, amid conformism and resistances, in the everyday life of these ordinary men, the formation of networks is a web of social relations, practices of convenience, tactics and strategies, allowing the re-signification of that space and the construction of the territorialization of these workers.
Keywords: Daily life; Territory; Precarious work; Sugarcane cutters
INTRODUÇÃO
Segundo Ramão, Schneider e Shikida (2007), o segmento canavieiro tem sido marcado por um cenário de crescimento e transformações, o que aponta para duas importantes questões: de um lado, temos a possibilidade de ascensão do setor sucroalcooleiro, trazendo benefícios econômicos ao país com o aumento da produtividade; de outro, temos a substituição da colheita manual pela mecânica, proporcionando a substituição gradativa dos trabalhadores pelas máquinas, o que se justifica por fatores institucionais, ambientais e econômicos.
Entretanto, de acordo com Silva e Santos (2014), mesmo com a mecanização nas agroindústrias, ainda se faz necessário grande quantidade de trabalhadores braçais, ou seja, cortadores de cana. Novaes (2009) afirma que no intuito de suprir essa necessidade, as empresas passaram a contratar pessoas com perfis diferenciados; nesse caso, disciplinadas e produtivas. Dessa forma, chegou-se à conclusão de que ser migrante e jovem eram características diferenciadoras quando se pretendia almejar tais requisitos (NOVAES, 2009). Assim, regiões mais empobrecidas economicamente do país, tais como Nordeste - sobretudo Maranhão e Piauí - e o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, originam a maioria desses trabalhadores (SILVA, 2008).
Os trabalhadores selecionados migram na entressafra da cana, permanecendo, em média, de oito a dez meses nas cidades de destino; durante este período moram em alojamentos coletivos das usinas, pensões ou em casas alugadas (GUANAIS, 2012). Nesse caso, o trabalhador passa a abdicar de muitas coisas, como, por exemplo, da própria convivência com sua família. Além disso, essas pessoas são vistas como mão de obra barata, convivem diariamente com o silenciamento das suas condições sociais e de vida, sendo praticamente invisíveis aos olhos da sociedade.
É neste ponto que inserimos Michel de Certeau. A esse homem “invisível” Certeau (1998) dá o nome de homem ordinário - neste estudo, representado pelo migrante cortador de cana. Nesse cenário e pensando no novo lugar de morada, é possível dizer que esse homem ordinário possui práticas cotidianas responsáveis pelo processo de ressignificação do espaço vivido; ou seja, estando em um novo espaço, é necessário torná-lo “seu”, ou melhor, territorializar. De acordo com Raffestin (1993), esse território é marcado por relações de poder e, para que aconteça a apropriação do espaço, existe a produção de uma representação, que segundo o autor demonstra a imagem desejada de um território. De maneira mais prática, tal imagem desejada é fomentada por cada migrante por meio de ações e do próprio comportamento.
De acordo com o exposto, é possível perceber que a territorialização desses migrantes é um processo complexo, decorrente de ações dos mais diversos sujeitos, cada qual com seu modo de organização e é no cotidiano, seja no trabalho, na cidade ou no bairro em que vão morar, em decorrência das práticas cotidianas desses sujeitos, que a territorialização acontece. Dessa forma, nosso objetivo neste artigo é compreender como ocorrem as práticas cotidianas de territorialização dos trabalhadores migrantes, inseridos no contexto do trabalho precário de corte de cana.
Este artigo está dividido em cinco partes, já incluindo a Introdução. Na segunda parte, apresentaremos a abordagem teórica acerca de cotidiano e territorialização, além de abordagem acerca do trabalho precário. Na terceira parte, apresentaremos os procedimentos metodológicos. Na quarta parte, evidenciaremos a análise e a discussão dos resultados. Na quinta, traremos as conclusões finais.
Práticas Cotidianas e a Construção da Territorialização
É possível presenciar claramente a divisão entre aqueles que estão de acordo com os “padrões” da sociedade e aqueles que se encontram na parte exclusa. Os que são e estão excluídos por algum motivo do contexto social são na maioria das vezes silenciados. A este homem, Michel de Certeau (1998), em sua obra A invenção do cotidiano, dá o nome de homem ordinário. Para o autor, o homem ordinário se esconde sob o nome de “consumidor”, e possui um estatuto de dominado. Entretanto, Certeau (1998) desconstrói essa passividade quando enfatiza que, por mais que o homem ordinário esteja propenso à dominação, não quer dizer que seja passivo, mas, pelo contrário, com suas maneiras de fazer, possui todo um jogo para tentar driblar o sistema. Segundo Dey e Taysdale (2016), a “resistência” é um dos principais focos de Certeau. Assim, com base em Foucault, o autor desenvolve uma compreensão a seu respeito entendendo-a como uma potencialidade inerente às práticas.
Partimos do pressuposto de que as resistências podem ser visualizadas no cotidiano e em diversos territórios, de modo que fazem parte das lutas e do processo de ressignificação de determinados espaços. Comparado a um “campo de força” (SOUZA, 2009), o território é um lugar de relações de poder (RAFFESTIN, 1993). Segundo Souza (2009), o poder é uma relação social e o território é a expressão espacial disso. Baseado na perspectiva de Foucault, Raffestin (1993, p. 144) apresenta uma visão relacional de território, ou seja, para ele o território é permeado por relações sociais. Segundo o autor, o território “[...] é um espaço, onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder”. Entretanto, antes de existir um território, existia um espaço (RAFFESTIN, 1993) e é no cotidiano que tudo isso acontece.
Para Certeau (1998, p. 38), “[...] o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”. O autor parte do princípio de que os sujeitos realizam uma bricolagem com o sistema dominante, utilizando de artimanhas e práticas de acordo com seus interesses e regras e assim realizam movimentos, mesmo que de forma sutil, para se sobressaírem perante as imposições. Segundo Duran (2007, p. 119), Certeau “[...] acredita nas possibilidades de a multidão anônima abrir o próprio caminho no uso dos produtos impostos pelas políticas culturais, numa liberdade em que cada um procura viver, do melhor modo possível, a ordem social e a violência das coisas”. Ou seja, atribuir adaptações e “novos usos” (DEY e TAYSDALE, 2016).
Certeau (1998) refere-se a uma linguagem obrigatória, a qual varia de acordo com a necessidade, ou seja, relação de força e situação social com a qual o homem ordinário se depara. Para o autor, em meio à falta de “espaço”, o homem ordinário é mais fraco em relação aos mais privilegiados, de modo que acaba jogando com relações de forças desiguais, surgindo aí a necessidade da utilização de manobra, ou seja, a “arte do fraco”.
As práticas cotidianas permitem a ressignificação e apropriação de determinado espaço. Para Raffestin (1993), a apropriação do espaço acontece em decorrência da produção de uma representação e esse espaço representado é uma relação. Segundo o autor, qualquer projeto que acontece no espaço e que é expresso por uma representação evidencia a imagem desejada de um território, ou melhor, de um local de relações. Desse modo, todo e qualquer projeto é alimentado pela prática e pelo conhecimento, ou seja, por comportamentos e ações que contemplam sistemas sêmicos - códigos e símbolos - (RAFFESTIN, 1993). Segundo o autor, tais sistemas fazem parte do sistema territorial, o qual é composto de alguns elementos do espaço, tais como tessituras, nós e redes, não necessariamente homogêneos, levando a um movimento constante de aproximações, distanciamentos, divergências e convergências. É nesse contexto que, por intermédio de uma representação, “[...] os atores vão proceder à repartição das superfícies, à implantação de nós e à construção de redes”, as quais são denominadas de “essencial visível” das práticas espaciais, ou seja, ações que são realizadas pelos atores em determinado espaço (RAFFESTIN, 1993, p. 150). A partir daí emerge o conceito de territorialidade.
A territorialidade reflete as múltiplas dimensões daquilo que é “vivido” no âmbito territorial, e é definida por Raffestin (1993, p. 160) como “[...] um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional: sociedade-espaço-tempo, em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema” (RAFFESTIN, 1993, p. 160). É nesse sentido que a territorialidade é inerente ao processo de territorialização, ou melhor, a territorialidade significa condição e resultado da territorialização (SAQUET, 2009). Para o autor:
A territorialidade é um fenômeno social que envolve indivíduos que fazem parte do mesmo grupo social e de grupos distintos. Nas territorialidades, há continuidades e descontinuidades no tempo e no espaço; as territorialidades estão intimamente ligadas a cada lugar: elas dão identidade e são influenciadas pelas condições históricas e geográficas de cada lugar (SAQUET, 2009, p. 88).
É importante destacar que mais de um território pode ser vivido ou (re)vivido ao mesmo tempo, levando-os a se cruzarem, permitindo a existência de uma multiterritorialidade (HAESBAERT, 2004).
É nos territórios que acontecem as práticas cotidianas do homem ordinário. Certeau (1998) classifica algumas dessas práticas como estratégias e táticas. A estratégia consiste no cálculo das relações de força, em que um sujeito que possui poder e vontades pode ser isolado; a estratégia é postulada de um lugar “próprio”, ou seja, é praticada sempre pelo “mais forte”, aquele que é dominante e tem como característica a imposição (CERTEAU, 1998, p. 46). O “próprio”, a que Certeau (1998) se refere, seria a vitória do lugar sobre o tempo, ou seja, de um lugar onde se possui poder e que assegura legitimidade, aquele que possui o lugar próprio tem privilégios, o que lhe proporciona ainda “melhor visão”.
No que se refere às táticas, Certeau (1998) também compreende como um cálculo, mas, diferentemente da estratégia, não conta com um “próprio”. Assim, percebe-se na tática a ausência do poder, uma vez que o sujeito não possui a força, apenas o tempo e sua habilidade em lidar com ele.
Paralelamente ao conceito de táticas e estratégias, a conveniência também é uma prática que será considerada neste artigo. Essa temática é trazida por Pierre Mayol (2011) na primeira parte da obra A invenção do cotidiano 2 - Morar e Cozinhar (organizado juntamente com Michel de Certeau e Luce Giard), que trata da sociologia urbana do bairro e da análise socioetnográfica da vida cotidiana. O autor une essas duas perspectivas partindo do pressuposto de que o bairro é uma “encenação da vida cotidiana”.
A conveniência, por mais que pareça um tema incomum, é muito praticada nas relações em nosso cotidiano. A conveniência engloba as regras sociais e é responsável por produzir comportamentos que possibilitem o reconhecimento do outro (MAYOL, 2011). Segundo o autor, geralmente ela é praticada no cotidiano coletivo, nas relações entre o sujeito e a sociedade e vem acompanhada de certo interesse de quem a pratica em receber algum tipo de facilidade ou benefício por meio de suas relações no coletivo. Por coletividade entende-se “[...] um lugar social que induz um comportamento prático mediante o qual todo o usuário se ajusta ao processo geral do reconhecimento, concedendo parte de si mesmo a uma jurisdição do outro” (MAYOL, 2011, p. 47).
Mayol (2011) utiliza o bairro para exemplificar como ocorre a conveniência. Segundo ele, um sujeito quando se instala em um bairro é “obrigado” a envolver-se no meio social para ali conseguir viver. Tal feito não é necessário apenas no sentido de atribuição ou dever, mas também pela necessidade de criar laços e vínculos naquele ambiente. Essa prática, segundo o autor, acaba por se tornar um tipo de convenção coletiva tácita, ela não está nítida, porém, os sujeitos que estão envolvidos conseguem percebê-la por meio dos códigos de linguagem e de comportamento compartilhados nas relações sociais, isto é, existem normas implícitas nas práticas cotidianas, nas quais os sujeitos estão suscetíveis ao jogo da exclusão.
Pretendemos, assim, utilizando a perspectiva certeuniana, compreender como ocorrem as práticas cotidianas dos trabalhadores migrantes, pois entendemos que é por meio delas que os sujeitos modificam seu cotidiano e se reapropriam do espaço organizado, construindo suas territorialidades territorializando.
O Trabalho Precário no Corte de Cana
Quando citamos as práticas cotidianas de territorialização, referimo-nos àquilo que pode acontecer no cotidiano - sendo este um lugar de possibilidades, conforme menciona Certeau (1998). Dessa forma, acreditamos que a territorialização é possível por intermédio dessas práticas, seja no que tange ao cotidiano da cidade, do bairro ou do trabalho. Neste artigo, nosso foco foi no trabalho, uma vez que este é o motivo da migração dos trabalhadores cortadores de cana, apesar de toda a precariedade presente, seja no que diz respeito às más condições de trabalho ou sociais que são vivenciadas por esses trabalhadores.
Ao longo do tempo, o trabalho passou por diversas transformações, tanto no que diz respeito à sua relação com o trabalhador, quanto com a sociedade. De acordo com Castel (2001), essa mutação resultou em uma nova questão social, atualmente ligada ao enfraquecimento da condição salarial. O autor ressalta que tal situação deve ser não apenas avaliada, mas também extinta. A precarização do trabalho e o desemprego passam a ser uma realidade preocupante em nossa sociedade moderna. Segundo Castel (2001, p. 516), “[...] começa a tornar-se claro que a precarização do emprego e do desemprego se inseriram na dinâmica atual da modernização”. Para Castel (2001), a precarização e o desemprego são consequências necessárias dos novos modos de estruturação do emprego, derivados das reestruturações industriais, da competitividade e da flexibilização, ou seja, consequências da lógica capitalista.
De acordo com Antunes (2006), nos últimos anos ocorreram diversas mudanças no processo produtivo, por conta do avanço tecnológico, da constituição das formas de acumulação flexível, dos modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, destacando-se para o capital o “toyotismo”. De um lado, essas mudanças trouxeram inúmeras tecnologias e aumento da capacidade produtiva, mas, de outro lado, proporcionaram a flexibilização, que deu origem a inúmeros problemas sociais (CASTEL, 2001).
Desse modo, a flexibilização aparece como o cerne da reestruturação industrial, e é considerada por Castel (2001) o principal motivo para a precarização do trabalho. Segundo o autor, a flexibilidade não se reduz à necessidade de ajustar mecanicamente uma tarefa pontual, mas exige que o trabalhador esteja prontamente disponível para a adaptação às flutuações da demanda. Conforme podemos ver, quem sofre com a flexibilização é o trabalhador, pois é quem precisa se adaptar aos novos modos de produção, ao aumento da demanda, caso contrário, seu emprego é posto “em jogo”.
No caso dos migrantes, sujeitos desta pesquisa, a flexibilização está presente na subcontratação. Novaes (2009) ressalta que o crescimento e a modernização da agroindústria levaram as empresas a contratar pessoas com perfis diferenciados, ou seja, pessoas disciplinadas e produtivas; nesse caso, ser migrante e jovem são características diferenciadoras. Assim, ser jovem e migrante tornaram-se atributos valorizados pelas usinas de cana-de-açúcar (NOVAES, 2009), uma vez que pessoas com esses predicados são mais produtivas e necessitam de trabalho. Mas quem são essas pessoas?
De uma forma geral, grande parte desses trabalhadores é oriunda das áreas mais pobres do país, tais como Nordeste, sobretudo Maranhão e Piauí, e o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais (SILVA, 2008). A questão de gênero também está presente na seleção dos trabalhadores, de modo que o perfil destes é semelhante, conforme relata Guanais (2012, p. 209): “[...] na grande maioria dos casos, esses trabalhadores são do sexo masculino e jovens”. Assim, diante da luta pela sobrevivência e da necessidade de viver de seu trabalho, acompanhados de sonhos e expectativas, todos os anos milhares de homens migram com destino às cidades onde irão trabalhar como cortadores de cana (GUANAIS, 2012). É dessa forma que a migração e o trabalho precário no corte de cana tornam-se uma das poucas opções para a sobrevivência dessas pessoas.
O trabalho no corte de cana é precário, requer trabalhadores com habilidades e destreza, em virtude dos movimentos repetitivos e sequenciais, que exigem grande esforço físico (NOVAES, 2007). Segundo Novaes (2007), os movimentos repetitivos e sequenciais favorecem o acometimento de inúmeras doenças do trabalho, tais como tendinites, bursites e problemas de coluna, além do aparecimento comum de cãibras. De acordo com Alves (2006), todo o gasto de energia sob o sol, com a roupa pesada, faz os trabalhadores suarem excessivamente e perderem muita água juntamente com sais minerais, o que provoca desidratação e, consequentemente, cãibras. Chamadas de “birola” pelos trabalhadores, as cãibras se iniciam geralmente pelas mãos e pés, avançando pelas pernas e tórax, podendo provocar fortes dores e até convulsão (ALVES, 2006). A cãibra ocorre no período de maior cansaço do trabalhador, geralmente à tarde, aumenta a cada minuto que passa, podendo levar à morte caso haja demora no atendimento (NOVAES, 2007).
Além de fatores relacionados à saúde, Kalleberg (2009) ressalta que o trabalho precário possui consequências de longo alcance tanto para os trabalhadores quanto para as famílias e a sociedade, de modo que a precariedade se estende para a vida do sujeito, afetando comunidades e lares, causando insegurança e incertezas em suas famílias, como, por exemplo, poder casar, ter filhos, quantos filhos ter, além da própria condição de vida do sujeito. É preciso ressaltar que o trabalho precário, além da própria precarização no sentido do trabalho, oferece consequências sociais para aqueles que estão nesse contexto.
Os Caminhos Metodológicos desta Investigação
Esta pesquisa, qualitativa, utilizou como instrumento preponderante a entrevista de História Oral, na modalidade história de vida. Essa escolha se deu porque consideramos o mais adequado para o contexto desta pesquisa, levando-se em conta suas características. Acreditamos que é no cotidiano (CERTEAU, 1998), por meio das práticas diversas, seja de produção e consumo, que o homem ordinário constrói suas memórias e suas histórias. As histórias de vida, compreendidas como narrativas, norteiam a assimilação das práticas cotidianas do homem ordinário; ademais, as narrativas identificadas neste artigo também são interpretadas como “práticas”. Além disso, a História Oral possibilita que sujeitos de categorias sociais geralmente excluídas possam ser ouvidos. Ao focalizar suas memórias pessoais, é possível construir uma visão mais concreta da dinâmica de funcionamento e das várias etapas da trajetória do seu grupo social (ICHIKAWA e SANTOS, 2006).
A coleta de dados foi realizada, então, por meio dessas entrevistas de história de vida. Importante dizer como ocorreu esse processo: inicialmente, entramos em contato com uma usina que traz e emprega trabalhadores migrantes e solicitamos autorização para a realização da investigação. A autorização foi concedida, porém, desde que não fosse divulgado o nome da empresa. Por esse motivo, não divulgaremos nenhum tipo de informação que possa caracterizar a empresa ou os trabalhadores participantes das entrevistas. Assim, os nomes empregados neste artigo são fictícios.
Nossa inserção no campo se deu por meio de Francisco, também trabalhador migrante, principal responsável pelos migrantes naquela usina. A escolha dos entrevistados ocorreu pela disponibilidade e por seu interesse em participar da pesquisa, uma vez que as entrevistas foram realizadas após o horário de trabalho. Realizamos as entrevistas com sete migrantes: Antônio, Francisco, João, José, Luiz, Nelson e Raimundo. As entrevistas foram gravadas com aparelho celular e, para guiá-las, utilizamos um roteiro com as principais questões que permeiam a pesquisa. O roteiro foi dividido em fases, tais como: infância, vida adulta, motivações para a migração, estadia no Paraná, trabalho e lazer.
Em seus depoimentos, na maioria das vezes, os entrevistados não contavam suas histórias em ordem cronológica, de modo que, para estabelecer uma lógica temporal às narrativas, realizamos a transcriação e não a mera transcrição literal, conforme orientado por Joaquim e Carrieri (2018). Ou seja, reorganizamos as falas, colocando-as em ordem cronológica e recriamos o texto, permitindo, assim, que houvesse uma sequência em suas narrativas, além de deixar que o “não dito” e expressões visualizadas durante as entrevistas também aparecessem.
Importante destacar que, além das entrevistas de história de vida, utilizamos também a observação direta para complementar os dados desta pesquisa. Foram vários encontros, nos quais, além de realizarmos as entrevistas, pudemos observar o cotidiano do bairro onde fica o alojamento em que moram, bem como o da cidade, o que permitiu conhecer a dinâmica do bairro, sua estrutura e entender como era utilizado por eles.
No que tange à análise, por meio de um recorte analítico que buscou entender o contexto histórico de vida dos sujeitos e num diálogo constante com as teorias utilizadas, procuramos apreender suas ações cotidianas de territorialização.
Sinais de uma Escravidão Contemporânea
Não há como abordar as práticas cotidianas sem antes contextualizar como e onde ocorrem essas práticas, além do contexto em que os trabalhadores estão inseridos. Naturais do Estado de Alagoas vieram de cidades pequenas, com quase nenhuma oportunidade de trabalho. Todos têm pouca escolaridade e vêm de famílias bastante pobres. Uma vez ao ano, esses trabalhadores alagoanos migram para o trabalho de corte na safra da cana, tendo como objetivo principal um emprego e consequentemente a renda. A cidade onde estão alojados é pequena, localizada no interior do Paraná e conta com cerca de 15.000 habitantes.
Pensando no bairro do alojamento ainda como espaço, antes da atribuição de significados, visualizamos pequenas construções, praticamente idênticas, em um local afastado da cidade, sem estrutura e nenhum tipo de vegetação, diferindo claramente do restante da cidade. O distanciamento e a diferença do restante da cidade também possuem um significado, uma vez que apontam para um movimento de exclusão da cidade para com os alagoanos. É como se houvesse um tipo de contenção, na cidade, daquela parcela marginalizada, visto que a própria estrutura precária denuncia tal exclusão.
Somente aos poucos, com as práticas cotidianas, os migrantes foram se apropriando daquele espaço. No que tange ao bairro em que estão alojados, uma das primeiras práticas de apropriação observada refere-se a pequenas plantações realizadas nos quintais. É simbólico, mas diz respeito a uma ação, cujo interesse é tornar aquele espaço o mais familiar possível, digamos, ao “seu gosto”. Ao passo que as construções eram praticamente iguais, o que diferenciava os alojamentos era o cultivo de plantas e hortaliças, como, por exemplo, um pé de manga plantado no quintal de um dos alojamentos. Além disso, essa prática pode ser visualizada como uma resistência à estrutura carente oferecida.
Durante todo o período em que se encontram alojados no Paraná - cerca de oito meses -, os migrantes ficam sob supervisão de um líder, que aqui chamaremos de Francisco. Este homem possui papel importante naquele lugar, e é responsável por mediar a relação entre a usina e os trabalhadores. Francisco representa a empresa no bairro em que os trabalhadores estão alojados, atua com práticas punitivas, espalhando as regras e leis naquele território. Ao mesmo tempo, também é um alagoano e representa os migrantes frente à empresa. Como responde por eles e também pode ser punido, Francisco intensifica a obrigação do cumprimento de normas.
É nesse contexto que ocorrem as relações de poder, assim como as práticas de poder (RAFFESTIN, 1993) entre Francisco, os migrantes, a cidade e a própria usina. De todos os entrevistados, Francisco é o único que mora com a família no alojamento e um dos que possuem mais experiência e vivência no bairro, elemento importante para a construção da territorialidade (RAFFESTIN, 1993). Além disso, o tempo permitiu a conquista do lugar “próprio” (CERTEAU, 1998). Francisco não tinha recursos e a única coisa que lhe permitia se sobressair era o “jogo do cotidiano” (CERTEAU, 1998). Foi esse “jogo do cotidiano” que lhe permitiu se tornar o líder daqueles trabalhadores.
Sabendo que o território é um lugar permeado por relações de poder (RAFFESTIN, 1993), Francisco exerce o seu quando da não adaptação de alguns às regras do novo território. Por vezes, pessoas negam a nova territorialidade e não se adaptam às tessituras, nós e redes (RAFFESTIN, 1993) presentes. Como exemplo de não adaptação, podemos citar o comportamento e os costumes dos trabalhadores em desacordo com as leis daquele território, que, por vezes, leva Francisco a exercer sua autoridade no bairro. Bebida alcoólica, saídas noturnas, brigas, farra, problemas no trabalho são motivos de preocupação para Francisco, pois, caso não exerça seu papel, é advertido pela usina e poderá sofrer punições. Sendo assim, existe uma constante atividade de monitoramento de ambas as partes.
Quanto ao cotidiano no trabalho, a precarização inerente a esse tipo de trabalho pôde ser observada nas narrativas, como, por exemplo, na de José. Segundo Alves (2006), 200 metros de cana correspondem a aproximadamente seis toneladas, o que nos dá uma dimensão do quanto de esforço físico é realizado:
José: É um trabalho pesado, eu saio daqui às 06h00min, pego lá às 07h00min, 08h00min, depende a lonjura, né? A gente pega o ônibus no ponto e vamos para nossa batalha. Lá os líderes têm suas bases de pegada, né? Aí cada líder pega 10 eitos de cana, 15, aí divide com o povo. Aí, cada líder daquele tem sua parte e a função de dividir com o povo. Aí quem cortar mais, pega 300 metros, 400 metros, 500 metros e é por dia [...]
Nelson aponta para o esgotamento ocasionado pelo trabalho:
O serviço de cana [...] serviço muito pesado, a pessoa chega meio “enfadada” [cansada]. [...] Nós chegamos hoje (sábado), nós estamos enfadados, aí amanhã é um dia de descanso. [...] E outra, [o serviço] é meio quente. [...] Aqui é assim, a pessoa está boa hoje, mas se o tempo mudar [...] aí o tempo muda de vez em quando e eu já adoeço. Sábado o “cabra” está bom, agora, se der uma variaçãozinha, o “cabra” gripa, aí quando esquenta, melhora, é assim. O tempo muda, você está bom, agora e daqui a pouco está doente [...] O tempo muda, aí gripa, eu vivo gripado, direto!
O termo “enfadado” mencionado por Nelson, diz respeito ao esgotamento oriundo do trabalho penoso com o corte de cana. Sua narrativa denuncia como as condições ruins de trabalho ocasionam prejuízos na vida do trabalhador, acarretando problemas de saúde, comprometendo a sua integridade. Pudemos constatar isso pessoalmente, durante as entrevistas presenciamos a chegada de um trabalhador que passava mal e teve de ser hospitalizado. Quando questionamos Francisco sobre isso, ele confirmou que o problema daquele trabalhador era oriundo do trabalho:
É as quenturas, né? Chega da roça e não consegue aguentar, tem que levar, né? [Ficam muito doentes?] Ficam né? Tem vez que fica, dá cãibra, né? Dá aquela quentura, né? Às vezes puxa demais, né?
Diante desse cenário, podemos afirmar que os trabalhadores arriscam sua saúde e sua própria vida em troca do salário, o que leva a precariedade, assim como lembrou Kalleberg (2009), a ter consequências de longo alcance, uma vez que afetará a saúde dos trabalhadores, além de todas as outras consequências sociais. Sob uma escravidão contemporânea, muitos deles assumem os riscos e vivem uma batalha diária na busca constante por uma vida melhor. No caso dos migrantes, a batalha vai além do cotidiano no trabalho, diariamente buscam a conquista de seu espaço.
Práticas Cotidianas: entre Lutas, Conflitos, Aproximações e Distanciamentos
Durante as idas a campo, várias situações e práticas nos chamaram a atenção, tanto na observação quanto nas narrativas dos entrevistados. Aqui, apresentaremos as práticas identificadas e utilizadas em suas “maneiras de fazer”, utilizadas para a ressignificação do espaço cotidiano e territorialização. Para além do cotidiano do trabalho, os migrantes enfrentam diariamente as dificuldades em virtude do distanciamento da família. A migração como prática fez os migrantes deixarem suas vidas no território anterior. Entretanto, vale dizer que ainda mantêm laços com a territorialidade de origem. As relações que todos mantêm com a família permitem que a territorialidade de origem permaneça existindo e seja (re)vivida, pois, conforme Raffestin (1993), a territorialidade está associada a uma relação com o tempo e outros sujeitos e é mantida pelos sistemas sêmicos.
Em busca de novas práticas em um novo território, em virtude da precariedade, migram visando a algo melhor, que ofereça possibilidade de renda para a manutenção da família, e assim compartilham de uma realidade próxima, de um trabalho precário e penoso, além de uma vida precária e com poucas condições de ascensão. Por tais semelhanças e pela proximidade devido à migração, tornam-se companheiros e, como eles mesmos dizem, consideram-se “irmãos”, passando boa parte do tempo de lazer (além do trabalho) juntos:
Raimundo: Mora eu e mais quatro, são cinco pessoas na casa. Ah, é tudo irmão, tudo irmão, tudo irmão! [...].
José: São legais, são iguais irmãos, são legais mesmo, pra mim são de primeira, não tem o que dizer deles.
O termo “irmãos” é utilizado por eles como demonstração de parceria e passa a impressão de uma relação harmoniosa; entretanto, vale dizer que assim como há parceria entre eles, há também conflitos. No entanto, existe um senso de coletividade forte entre os trabalhadores migrantes e isso é revelado em alguns relatos, como nos de Raimundo e José, que consideram os seus companheiros de alojamento como seus “irmãos”. Dessa forma, compartilham de dificuldades muito parecidas, o que os leva a se identificarem e realizarem novas práticas em um novo território, compartilhando relações, significados e realizando a produção territorial, conforme diz Raffestin (1993).
Considerando que o território é permeado por relações de poder, e que as malhas presentes nas tessituras não são homogêneas, é possível visualizar o jogo - constituído das “maneiras de fazer” (CERTEAU, 1998) - do qual esses migrantes fazem parte. Com as narrativas, fica claro que a territorialidade dos migrantes é construída por meio da relação entre eles, até mesmo porque é determinante para a territorialização a relação com outras pessoas do mesmo lugar de origem.
Entretanto, é necessário dizer que as relações entre os migrantes não são sempre tão harmoniosas, há conflitos, o que se coaduna com a referência de Raffestin (1993) à aproximação e distanciamento no território. Esse distanciamento é visível em algumas narrativas. José aponta para o excesso da bebida como fator de distanciamento:
Eu convivi aqui na [cidade vizinha], aí lá eram 60 pessoas em cada salão daquele, né? É, a noite era rojão por causa de gente bêbada! Chegava gente bêbada, se rolavam nas tapas, os cabras apartavam e depois era aquela resenha. [...] Não gosto de andar com ninguém.
De fato, existem conflitos no relacionamento entre os migrantes. Dessa forma, sair sozinho torna-se conveniente a José, uma vez que pretende seguir as regras da nova territorialidade. Além disso, morar com pessoas desconhecidas propicia esse cenário de lutas, pois, como João diz, está “acostumado com as pessoas da família”. Assim, a adaptação torna-se um processo lento.
Com isso, são perceptíveis algumas contradições em determinadas narrativas que apresentam relações “harmoniosas”, pois os conflitos também perpassam suas relações, havendo no território um movimento constante de aproximações e distanciamentos entre os migrantes. Desse modo a territorialidade vai sendo construída por meio dessas relações que existem e são importantes nesse processo, mas que, às vezes, também se esbarram.
É importante ressaltar que as lutas não ocorrem apenas entre eles, mas também com a cidade. Na verdade, conforme já mencionado neste artigo, há uma divisão entre os migrantes e a cidade que é revelada pela própria estrutura e localização do bairro: afinal, por que os alojamentos ficam tão afastados da cidade? Por que não há estrutura alguma no bairro? A narrativa de João confirma esta ideia:
Por isso que a pessoa, que nem eu falei pra você, se sente mais diferente assim, “mode” isso aí, porque no canto da pessoa é diferente e aqui se torna mais [...] Se a pessoa daqui for pra lá no nosso lugar, ela vai se sentir diferente do mesmo jeito [...].
A diferença apontada por João diz respeito ao novo território, já que possui tessituras, nós, redes e sistemas sêmicos diferentes daqueles de seu território anterior, além do distanciamento que dificulta a criação de redes. Por conseguinte, é possível afirmar que, se existe relação entre a cidade e os migrantes, é precária. Nesse ponto, fica claro o “distanciamento” a que Raffestin (1993) se refere e que dificulta essa relação. Dessa forma, o território possui harmonia; entretanto, sob a condição de que os migrantes não ultrapassem certos limites, como, por exemplo, não beber, não brigar, ou seja, respeitar as regras e as leis daquele território para serem aceitos. Isso fica claro na narrativa de Luiz, quando perguntado se percebe algum preconceito:
Não, comigo ainda não foi o meu caso, mas já deve ter acontecido com algumas pessoas né? [...] Comigo até aqui não foi meu problema não, eu não. É porque eu já sou paranaense.
Quando comenta que “já deve ter acontecido com algumas pessoas”, reconhece e afirma o distanciamento existente entre eles e a cidade. O que chama a atenção é a afirmação de já ser “paranaense”; ou seja, é como se dissesse que não existe o conflito entre ele e a cidade por já ter se adaptado e seguir as regras e as leis daquele território.
Frente ao distanciamento, os migrantes possuem práticas heterogêneas, que, de certa forma, contribuem para o desenvolvimento da territorialidade. Por vezes, alguns migrantes mantêm o distanciamento do restante da cidade, preferindo cultivar relações apenas com seus pares, como é o caso de José e Antônio, que ainda não fizeram amigos na cidade:
Antônio: [Tem amigos da cidade?] Não, daqui da cidade não. Tem uns dois de lá de onde eu vim e tem uns dois de lá das casinhas. Da cidade, não converso com ninguém.
José: [Amizade na cidade] Eu não fiz amigo aqui, até agora não. Eu vim em março e tenho só os amigos daqui, no caso, do alojamento, no caso, né? (...) Mas amizade eu faço em casa (risos).
Dessa forma, “ficar sozinho” ou não se relacionar com as pessoas da cidade é uma prática de resistência à nova territorialidade, o que não é uma prática única de José. É nesse contexto que a construção de redes na cidade passa a ser dificultosa.
Conforme evidenciado, existe essa dificuldade de desenvolvimento de redes com as pessoas da cidade. Entretanto, há um elemento capaz de agir como fomento para tal questão: a identificação, no sentido de ter algo em comum. Um exemplo disso seria a bebida alcoólica. Assim como a bebida (o excesso) é responsável por gerar conflitos e distanciamento nos alojamentos, ela é capaz de aproximar pessoas da cidade aos migrantes:
Raimundo: Há cinco anos aqui, passando, me chamam, ô fulano, [...] tomo um golinho mais outro, tomo uma cervejinha mais outra e pronto, aí já passou o tempo.
José: Chego no bar assim e fico lá conversando, chega um amigo de fora mais eu, nós conversamos, faz amizade e assim nós leva a vida [...]
À vista disso, podemos dizer que as redes na cidade ocorrem por mediação, como, por exemplo, essa atitude de “beber”, que permite alguma identificação, uns para com os outros. É interessante notar que, mesmo com as divisões no território, os migrantes relatam ter feito “amizades” na cidade. Entretanto, suas narrativas deixam claro que mantêm relações sociais apenas com seus pares, enquanto que com outras pessoas da cidade possuem uma relação limitada, mediada principalmente pela bebida, mas também pela conveniência, que é o que permite a “aproximação” (RAFFESTIN, 1993).
A prática da conveniência é utilizada pelos migrantes como uma forma de dar um novo uso ao consumo da representação social negativa do alagoano, além de permitir maior aceitação pelas pessoas da cidade. Assim, por meio da conveniência, podem ser vistos com “outros olhos” pela sociedade e, dessa forma, tornar-se mais bem aceitos:
Francisco: O espaço a gente constrói primeiro com amizade, né? Amizade, respeito, consideração pelos outros, né? [...] eu construí uma amizade aqui melhor do que onde eu morava. Eu conquisto [meu espaço] com amizade, a palavra é essa, amizade, ser humilde, né?
Diante da narrativa acima, fica claro o interesse dos migrantes em territorializar, pois se esforçam em cumprir a convenção coletiva tácita, nos dizeres de Mayol (2011), daquele lugar. Sendo assim, em busca da “não exclusão”, aceitam e praticam as regras da nova territorialidade, o que contribui para a territorialização.
Não há como discorrer sobre o processo de territorialização desses sujeitos sem abordar as resistências existentes durante tal processo. Sem dúvida, existem alguns fatores, como a distância da família, diferenças culturais, que dificultam o desenvolvimento da territorialidade. É nesse contexto que se utilizam de artimanhas para (re)viverem a territorialidade de origem, ao mesmo tempo que são táticas que fazem parte do processo de territorialização.
Um dos momentos em que mais vimos descontentamento no semblante dos entrevistados durante as entrevistas foi quando falavam sobre a alimentação. Tanto no local de trabalho, quanto nos alojamentos, a alimentação é fornecida por meio de empresa terceirizada, que serve marmitas com cardápio simples, poucas variedades, como arroz, feijão, um tipo de carne e salada. Eles sentem falta do inhame, do cuscuz e dos temperos nordestinos.
Para driblar tal necessidade, os migrantes dão um novo uso ao consumo da alimentação: a tática consiste em preparar, em grupo, alimentos típicos de sua terra natal. Dessa forma, fazer uma comida diferente está associado não apenas à necessidade de (re) viver a territorialidade de origem, mas aponta para movimentos de microrresistência - nos dizeres de Certeau (1998) - por parte dos migrantes, que, por meio da prática de cozinhar, contribuem para o processo de territorialização no novo território. As táticas (CERTEAU, 1998) são vistas como formas de microrresistências, as quais são praticadas no intuito de que o homem ordinário se sobressaia perante a dominação do sistema. Com base nisso, podemos afirmar que esses sujeitos não são apenas consumidores e reprodutores daquilo a que são compelidos, pois possuem suas formas de resistir.
De um modo geral, em todas as narrativas, é possível observar a relação que os migrantes possuem com o trabalho, que influencia no processo de territorialização, ao passo que estabelece vínculo entre o migrante e o lugar. Dessa forma, o sofrimento no trabalho, a distância da família, a precariedade vivida no âmbito do trabalho e no social são enfrentados dia a dia em um verdadeiro campo de força, como diz Souza (2009).
Diante desse cenário, percebemos que as relações sociais praticadas no novo território, principalmente entre os migrantes, são fundamentais para o seu processo de territorialização. Os trabalhadores migrantes seriam os nós, ou a nodosidade naquele território, que agem nas tessituras, no intuito de manter suas relações, assegurar funções, se influenciar, se controlar, se aproximar ou distanciar e assim criar redes (RAFFESTIN, 1993). As nodosidades são os agrupamentos de indivíduos ou grupos e representam a expressão do ego individual ou coletivo do ator ou atores que os compõem; além de que, simbolizam a posição dos atores (RAFFESTIN, 1993). Dessa forma, é na prática e nas relações que os migrantes compartilham ações que contemplam códigos e símbolos, assim comunicam suas intenções e realidades materiais e territorializam.
Desse modo, a territorialização dos migrantes consiste em um processo simultâneo e não linear. Nesse processo, destacamos a importância da figura de Francisco como a pessoa com autoridade formal direta sobre os migrantes naquele território. Ao mesmo tempo que possui amizade com os trabalhadores, realiza sua função de “capataz”, sendo o “porta-voz” da usina. Toda a relação dos migrantes com a usina passa pela figura de Francisco. Nesse sentido, ele está no topo da hierarquia para os trabalhadores migrantes, e utilizando de sua autoridade faz as regras daquele território serem cumpridas. Aqueles que não se enquadram são enviados de volta à sua terra natal; não territorializam, portanto.
Assim, por meio das narrativas e das observações, pudemos interpretar como acontecem as micropráticas deste “homem ordinário” (CERTEAU, 1998) para territorializar o novo espaço. Com suas práticas cotidianas e diante das lutas territoriais é que esses trabalhadores migrantes conseguiram ressignificar aquele espaço. Desse modo, o conjunto de relações que eles desenvolveram, originado no tripé sociedade-espaço-tempo, culminou num processo de territorialização, que permitiu uma nova territorialidade, porém sem desligá-los de seu território anterior, dando sentido assim à multiterritorialidade narrada por eles em suas histórias de vida.
PASSOS FINAIS
Com o objetivo de compreender como ocorrem as práticas cotidianas de territorialização de trabalhadores alagoanos, cortadores de cana-de-açúcar, que migram para trabalhar em usinas no Paraná, realizamos esta pesquisa de cunho qualitativo.
Como resultado, pudemos entender que esse cotidiano a que nos remetemos não é linear e, desse modo, a territorialização também se forma de maneira complexa. Na tentativa de suprir as diversas “ausências” que tiveram em suas vidas, como de possiblidades de emprego em sua terra natal, esses trabalhadores migram em busca de condições melhores de vida e de renda. No entanto, territorializar em um novo espaço não é fácil, e pudemos notar, com base em suas narrativas, que eles saem de uma vida precária em sua terra natal para entrar em outra vida precária no local para onde migraram.
As condições de trabalho são exaustivas, a alimentação que recebem não lembra em nada as suas origens, as relações sociais na usina, no bairro e na cidade são difíceis. Eles sofrem preconceitos dos moradores da cidade paranaense onde estão alojados, ao mesmo tempo que, embora se chamem de “irmãos”, muitos deles também não querem reforçar laços com seus pares e conterrâneos. As tessituras, nós e redes do sistema sêmico se tornam mais complexos diante desse contexto. Assim, o que se desvela na pesquisa realizada é que talvez exista uma grande resistência por parte deles em territorializar no novo espaço em que se encontram.
Quando Raffestin (1993) menciona que a territorialidade reflete as múltiplas dimensões daquilo que é vivido no âmbito territorial, podemos compreender o processo de territorialização dos trabalhadores alagoanos com base no tripé sociedade-espaço-tempo apresentado pelo autor. O espaço que eles “devem” territorializar é o da usina, do bairro, da cidade para onde migraram. As relações sociais, tanto as atuais como as já vividas, no entanto, interferem muito nesse processo, às vezes facilitando, mas também dificultando a territorialização; afinal, são multiterritorialidades que convivem dentro deles em seu cotidiano: de uma família deixada em Alagoas e de uma realidade atual vivida como migrante. Talvez o tempo de permanência no Paraná - cerca de 8 meses - seja o fator desse tripé que mais dificulte o seu processo de territorialização. Afinal, para que vão se adaptar, fazer daquele o “seu lugar”, se sabem que em pouco tempo retornarão à sua terra natal?
Assim, notamos o quanto esse processo de territorialização é heterogêneo, mais ainda nesse contexto de trabalho precário e de preconceitos vividos por esse grupo de trabalhadores. Mas não queremos dizer com isso que suas práticas cotidianas não levem à territorialização: mesmo resistindo, utilizando-se de táticas ou ainda aceitando as conveniências da vida em sociedade, esses homens ordinários constroem uma realidade que merece ser mais bem compreendida e, em última instância, alterada naquilo que tem de mais cruel.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Abr 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2020
Histórico
-
Recebido
30 Abr 2018 -
Aceito
10 Jan 2019