Resumo
O mundo tem assistido a um fenômeno social presente na história da humanidade desde seus primórdios, mas atualmente com proporções e impactos ainda desconhecidos: os grandes deslocamentos populacionais, envolvendo pessoas que passam a ser classificadas como refugiados. De acordo com a ONU, mais de 75 milhões de pessoas se encontravam nesta situação em todo o mundo no final de 2017, uma quantidade jamais vista anteriormente (UNHCR, 2017). Desde 1951, mais de 147 países, dentre eles o Brasil, assinam o Estatuto dos Refugiados da Convenção das Nações Unidas que estabelece obrigações aos governos signatários para que ofereçam aos refugiados condição de trabalho legal e seguro. Desta forma, este estudo tem por objetivo investigar a percepção dos refugiados de diferentes origens sobre os processos e as dificuldades de inserção na sociedade brasileira e em seu mercado de trabalho. Os processos em foco tratam de temas como as barreiras burocráticas, as diferenças culturais, as questões étnico-raciais e o desconhecimento do idioma, entre outros Para a condução da pesquisa, optamos pela metodologia qualitativa, por meio de entrevistas em profundidade, realizadas no Rio de Janeiro, com refugiados de diferentes nacionalidades, de ambos os gêneros. Entre os principais resultados, nota-se a existência de uma distância entre as políticas públicas e as práticas que envolvem os refugiados no meio laboral; além da discriminação sentida pelos entrevistados por parte da população, empregadores e autoridades, o que apontou um contexto multicultural e não intercultural. Apesar dos desafios os entrevistados dizem pretender continuar vivendo e trabalhando no Brasil.
Palavras-chave: Refugiado; Globalização; Mercado de trabalho; Multiculturalismo
Abstract
The world has recently witnessed a social phenomenon that has been present during the entire history of humanity, but has now taken on greater proportions and impact: the large population displacements of refugees. According to the United Nations, more than 75 million people were in this situation worldwide at the end of 2017, a figure never observed before (UNHCR, 2017). Since 1951, more than 147 countries, including Brazil, have signed the United Nations Refugee Convention, which established obligations for signatory governments to provide refugees with legal and safe working conditions. Considering this context, this study aims to investigate the perceptions of refugees of different origins regarding the processes and difficulties of integrating into Brazilian society and labor market. The processes deal with bureaucratic barriers, cultural differences, ethnic-racial issues, and language, among others. The study uses a qualitative approach consisting of eight interviews in the city of Rio de Janeiro with refugees of a variety of nationalities and both genders. The results show that these respondents perceive a gap between public policies and practices involving refugees in the workplace, and also discrimination by the population, employers, and authorities, describing a multicultural rather than an intercultural context. Despite these challenges, respondents say they intend to continue living and working in Brazil.
Keywords: Refugee; Globalization; Labor market; Multiculturalism
Resumen
El mundo ha sido testigo de un fenómeno social presente en la historia de la humanidad desde sus inicios, pero actualmente con proporciones e impactos aún desconocidos: los grandes desplazamientos poblacionales, que involucran a personas que ahora están clasificadas como refugiados. Según la ONU, más de 75 millones de personas se encontraban en esta situación en todo el mundo a fines de 2017, una cantidad nunca antes vista (UNHCR, 2017). Desde 1951, más de 147 países, incluso Brasil, han firmado el Estatuto de los Refugiados de la Convención de las Naciones Unidas, que establece obligaciones para los gobiernos signatarios de ofrecer a los refugiados condiciones de trabajo legales y seguras. Así, este estudio tiene como objetivo investigar la percepción de los refugiados de diferentes orígenes sobre los procesos y las dificultades de inserción en la sociedad brasileña y en el mercado laboral. Los procesos en foco abordan temas como las barreras burocráticas, las diferencias culturales, los problemas étnico-raciales y el desconocimiento del idioma, entre otros. Para realizar la investigación, optamos por la metodología cualitativa, a través de entrevistas en profundidad, realizadas en la ciudad de Río de Janeiro, con refugiados de diferentes nacionalidades, de ambos géneros. Entre los principales resultados, se observaron una distancia entre las políticas públicas y las prácticas que involucran a los refugiados en el medio laboral; además de la discriminación que sienten los entrevistados por parte de la población, los empleadores y las autoridades, lo que señaló un contexto multicultural y no intercultural. A pesar de los desafíos, los entrevistados dicen que tienen la intención de seguir viviendo y trabajando en Brasil.
Palabras clave: Refugiado; Globalización; Mercado laboral; Multiculturalismo
INTRODUÇÃO
O mundo testemunhou recentemente um fenômeno social que esteve presente ao longo de toda a história da humanidade, mas agora assumiu maiores proporções e impacto: o grande deslocamento da população de refugiados (Andrade, 1996; Moreira, 2005; Póvoa & Ferreira, 2005). De acordo com as Nações Unidas, mais de 75 milhões de pessoas estavam nesta situação em todo o mundo até o final de 2017, um número nunca antes observado (United Nations High Commissioner for Refugees [UNHCR], 2017).
Nesse modelo, a mobilidade humana atualmente produz e reproduz as desigualdades internacionais decorrentes do processo de globalização (Santos, 2003). Para alguns, a mobilidade foi facilitada, enquanto para outros é profundamente arriscada. Ao mesmo tempo em que se vê o surgimento de vistos eletrônicos, passaportes biométricos e meios de transporte eficientes em termos de custo e tempo, também é possível ver processos migratórios por rotas perigosas marcadas por recursos escassos e profundas incertezas e privações na chegada desses imigrantes aos destinos desejados (Bauman, 1998, 2016).
De acordo com a Convenção das Nações Unidas para Refugiados de 1951, “refugiado é qualquer pessoa que, devido a temores fundados de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social e opinião política, permanece fora do seu país de origem, e por causa desses medos não pode ou não voltará ao seu país” (UNHCR, 2000, p. 76). Vale lembrar que esta convenção, que já foi assinada por 147 países, incluindo o Brasil, estabelece obrigações para os governos signatários de fornecer aos refugiados condições de trabalho legais e seguras, bem como acesso à rede de serviços públicos do país (UNHCR, 2004).
Dados do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE, 2020), um órgão do Ministério da Justiça brasileiro, indicam que o país tinha em outubro de 2018, 10.665 refugiados de 90 nações diferentes. Em dezembro de 2019, mais de 21.432 venezuelanos foram reconhecidos como refugiados por meio de um procedimento prima facie aprovado pela Reunião Plenária do CONARE, elevando assim o número de refugiados reconhecidos no Brasil para cerca de 32 mil pessoas (CONARE, 2020). Considerando apenas o Rio de Janeiro, havia 4.152 refugiados reconhecidos em 2016, e 2.618 aguardando refúgio. Em 2018, foram registrados 752 pedidos de asilo no estado (Alto Comissariado das Nações Unidas Para os Refugiados [ACNUR], 2018). Atualmente no Brasil, a maioria dos integrantes desse grupo são jovens entre 18 e 29 anos que estão em sua fase produtiva como trabalhadores (CONARE, 2016).
Em termos de absorção desses refugiados no mercado de trabalho local, apresenta-se o cenário retratado por Moulin (2013), em que este grupo é principalmente compelido a aceitar empregos para os quais nenhum treinamento específico é necessário. A experiência anterior e a formação acadêmica em seus países de origem, portanto, não foram reconhecidas, apesar da existência de iniciativas públicas e privadas que visam favorecer o seu reconhecimento (Moreira, 2005). No Brasil, os poucos registros existentes de apoio à incorporação de refugiados no mercado de trabalho referem-se principalmente a cursos de português e incentivos ao empreendedorismo, sendo este último uma iniciativa exclusiva da cidade de São Paulo (CONARE, 2016).
Assim, este estudo tem como objetivo investigar a percepção de refugiados de diferentes origens sobre os processos e dificuldades de inserção na sociedade brasileira e no seu mercado de trabalho. Os processos em foco tratam de temas como barreiras burocráticas, diferenças culturais, questões étnico-raciais e idioma, entre outros. Adotamos uma abordagem qualitativa para este estudo, entrevistando refugiados individualmente com um roteiro semiestruturado na cidade do Rio de Janeiro. Esses refugiados vêm de várias nações e de ambos os sexos e viveram e trabalharam nesta cidade.
Além do fato de que a relevância deste tema é, a priori, irrefutável pelo seu caráter humanitário (Hall, 2008; Nkomo, Bell, Roberts, Joshi & Thatcher, 2019; Zanini, Póvoa & Santos, 2013), esperamos que este estudo promova um novo amplo espectro de pesquisas, principalmente nas áreas de estudos organizacionais e gestão de pessoas, incluindo trabalho interdisciplinar com as áreas de relações internacionais, psicologia, ciências sociais, antropologia, geografia humana e direito, entre outras (Póvoa & Ferreira, 2005).
Além disso, espera-se que os resultados aqui encontrados possam ajudar indivíduos, grupos de refugiados, organizações públicas e privadas do país e a sociedade como um todo, a estimular a reflexão e o debate, e permitindo a transformação social em direção a uma maior igualdade, inclusão e respeito pelas diferenças das pessoas.
REFERENCIAL TEÓRICO
Globalização, movimentos migratórios e de refugiados
Os refugiados constituem um grupo específico no processo de migração internacional. Segundo Moreira (2010), estes são indivíduos forçados a sair de seus países devido a conflitos intra ou interestaduais, devido a regimes repressivos étnicos, religiosos ou políticos ou outros contextos de violência e violações dos direitos humanos. Com relação a esta definição, outros pesquisadores destacam a necessidade de ampliá-la, de incluir outras razões para a migração, como risco de tortura, pena de morte, desastres ambientais e falta de recursos naturais, que sugerem o reconhecimento de diferentes categorias de migrantes, como refugiados econômicos, humanitários, ambientais e climáticos (Berchin, Valduga, Garcia, Salgueirinho & Guerra, 2017).
No contexto da globalização, esse movimento migratório enfrenta uma notável discrepância entre o discurso e a prática. De acordo com Pellegrino (2003, p. 8):
A política liberal em relação aos movimentos de capital e mercadorias apoiada pela maioria dos estados centrais contradiz os severos controles impostos à livre mobilidade dos trabalhadores e à fixação das pessoas em seus territórios nacionais.
Assim, Pellegrino (2003) afirma que apesar da ideia de “livre mobilidade de pessoas” incluída na definição de “globalização”, na prática, os refugiados não podem viajar livremente através das fronteiras geográficas.
De acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR, 2019), no final de 2019, havia 79,5 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo em resultado de perseguição, conflito, violência ou violação dos direitos humanos. Desse total, 26 milhões são considerados refugiados, 45,7 ainda estão em seus países e os 4,2 milhões restantes buscam asilo. De todos os refugiados, 68% deste total vem de cinco países - Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar.
Além disso, dentro desse contexto, há também uma distinção importante entre globalização hegemônica e globalização anti-hegemônica. O primeiro leva a uma ruptura de povos dominados econômica e culturalmente, enquanto o segundo é marcado pela luta contra o globalismo localizado e a violência estrutural que se impõe contra as culturas e contra esses povos oprimidos. Na verdade, pode-se considerar que existe um conjunto de processos de globalização que em última instância são contraditórios. Muitas dessas contradições surgiram à força de intensos deslocamentos populacionais (Santos, 2006).
Há algum tempo, antes mesmo da intensa “crise migratória” ou da atual consciência do novo estado da “globalidade humana”, Hobsbawm (2017, p. 145) apontou que:
Os processos de industrialização e urbanização, sustentando-se, como o fazem, em movimentos massivos e multifários, na migração e deslocamento de pessoas, minam a suposição nacionalista básica de um território habitado essencialmente por uma população étnica, cultural e linguisticamente homogênea. A dura reação xenófoba ou racista da população nativa dos países ou regiões que recebem o influxo de “estranhos” infelizmente tem sido comum nos Estados Unidos desde a década de 1890, e na Europa Ocidental desde 1960. Mas xenofobia e racismo são sintomas, não remédio. Nas sociedades modernas, comunidades e grupos étnicos são obrigados a coexistir, apesar da retórica que sonha em retornar a uma nação sem populações mistas.
Assim, no século XXI, na chamada era da modernidade líquida, as sociedades parecem não mais resistir a esse fenômeno. Afinal, seria como resistir à própria irrefutável globalização (Bauman, 2016). No entanto, de acordo com Hobsbawm (1995, 2017), ainda há na maioria dos países, especialmente aqueles que recebem movimentos migratórios, o surgimento de pequenos arquipélagos insulares onde a resistência é formada por meio de movimentos de identidade étnica que na verdade parecem ser reações à fraqueza e ao medo, e estes erguem barricadas sociais para manter as forças do mundo moderno ou pós-moderno longe.
Assim, no quadro da globalidade contemporânea, adensada pela massiva mobilidade dos grupos populacionais, a hospitalidade surge como uma solução que representa não o princípio da filantropia, mas do direito. De Kant pode ser definido que “o direito cosmopolita deve ser limitado às condições de hospitalidade universal.” O que, de acordo com os preceitos kantianos, significa que todo estrangeiro deve ter garantido o direito de não ser tratado de forma hostil por estar em território estrangeiro. Afinal, todos os homens deveriam ter direito à propriedade comum da superfície da terra, e os seres humanos não podem permanecer para sempre em sua superfície esférica finita, mas sim precisam se tolerar, uma vez que não há ninguém originalmente com mais direitos de estar em um determinado lugar da Terra do que outro (Santos, 2006).
Seguindo este mesmo princípio, Bauman (2016) enfatiza que a distinção entre terras ou países não deve ser reivindicada, mas sim o direito dos seres humanos de se associarem e estabelecerem comunicação e conexão de uma forma benéfica para todos. O que deveria acontecer é a substituição da hostilidade pela hospitalidade.
Movimentos migratórios e os conceitos de multiculturalismo e interculturalidade
Para o bem ou para o mal, em um mundo cada vez mais globalizado a questão das diferenças entre os seres humanos ocupa um lugar fundamental nas discussões atuais, lidando com questões como respeito, identidade e igualdade entre as pessoas. Ao falar sobre grupos de pessoas que são forçadas a se mudar de seus países de origem, é preciso compreender as relações que se estabelecem sob os conceitos de inclusão e diversidade em suas novas realidades locais nos países que os acolheram (Nkomo et al., 2019).
Sociedades de países centrais ou mesmo periféricos, como o Brasil, que recebem fluxos de migrantes nunca estiveram imunes aos conflitos gerados por esses movimentos, e uma das causas pode estar na insuficiência de um modelo intercultural ou mesmo multicultural para dar conta da complexidade inerente a um ambiente permeado por diferenças (Rodrigo, 2012). Nesse sentido, é necessário examinar os dois mais de perto.
No contexto social do multiculturalismo, diferentes grupos coexistem em um ambiente que tende à tolerância, embora haja em grande parte um direito implícito de manter as diferenças, que na verdade esconde as vantagens dos grupos dominantes sobre as minorias (Rodrigo, 2012). É importante que a palavra “tolerância” seja reforçada na compreensão desse conceito, pois pressupõe a existência de pessoas que precisam ser toleradas, ou seja, que de fato não ocupam um papel social de igualdade e inclusão. Nesta dimensão, as relações de poder permanecem claramente delineadas, onde alguns atores sociais se sobrepõem a outros, seja em termos econômicos, de direitos, reconhecimento ou influência (Westwood & Jack, 2009).
Porém, Rodrigo (2012) defende que os padrões de reconhecimento, respeito e valorização da diversidade cultural só podem ser obtidos dentro da dimensão da interculturalidade. Isso porque é somente neste contexto que o etnocentrismo é rompido e surge um real interesse e interação com outras culturas. O conflito também pode estar presente na dimensão intercultural, mas haverá espaços de convivência, começando com uma aceitação da alteridade e do diálogo franco e simétrico.
Além disso, um dos principais traços da interculturalidade é a exigência de reconhecimento, que deve ser representada pelas vozes e necessidades dos grupos minoritários. Honneth (2009) defende que a sociedade sempre viverá sob pressão, mas será assim que interpretará a luta pelo reconhecimento, entendida como um tipo de tensão necessária e legítima que permite novas condições de participação na vida pública. Assim, todos os atores sociais, incluindo grupos minoritários, como refugiados, devem participar na esfera pública e nas organizações. Em uma realidade intercultural, eles precisam ter espaço de expressão e respeito, a fim de articular suas necessidades e influenciar as discussões sociais de forma real.
Com o objetivo de questionar a existência de um ambiente multicultural ou intercultural no Brasil hoje, é relevante analisar a presença de estrangeiros frente à formação de uma identidade social nacional de forma histórica. Estudiosos seminais das ciências sociais brasileiras neste campo, como Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro, fornecem diferentes perspectivas.
Por exemplo, Gilberto Freyre (2006) descreve o brasileiro do ponto de vista das relações sociais e culturais dos colonizadores (portugueses), indígenas (índios americanos) e negros (africanos) que formou a nossa sociedade, embora nunca tenha havido uma convivência igualitária. Essa falta de coexistência igualitária revela um ambiente muito mais próximo da dimensão do multiculturalismo.
Há uma perspectiva romântica no argumento de Freyre, que recebeu algumas críticas (Ribeiro, 2017). Muito disso vem do fato de que havia padrões hegemônicos que sujeitavam grupos minoritários a formas explícitas e veladas de violência, que foram desconsiderados por Freyre, e esses processos ocorreram desde a época da escravidão, que durou cerca de 350 anos no Brasil, deixando marcas que não podem ser esquecidas pela sociedade moderna (Almeida, 2019; Ribeiro, 2017).
Entre as críticas, podemos citar também a obra de Florestan Fernandes, que rejeitou a ideologia da democracia racial de Freyre, por mascarar um conflito de raças e classes, além das contradições e dilemas existentes no Brasil (Freitag, 2005). Na verdade, o Brasil pode dar uma impressão equivocada de ser um país menos preconceituoso e mais igualitário do que é, o que se afastaria ainda mais do conceito de interculturalidade e, na melhor das hipóteses, se aproximaria do modelo de multiculturalismo.
Com respeito ao Sergio Buarque de Holanda (2014), é interessante mencionar que ele descreve o brasileiro como um homem cordial, de comportamento afetuoso, não necessariamente sincero, mas sempre se referindo a relações familiares e pessoais. Neste caso, é importante notar que, porque a palavra cordial é derivada de ‘cordão’ ou ‘núcleo’, que significa coração, este conceito é muitas vezes erroneamente atribuído a um comportamento amável e agradável que produziria um ambiente amigável e inclusivo para todos. Porém, o que Holanda argumenta é que esse homem cordial tem atitudes apaixonadas, mas estritamente relacionadas a um círculo fechado de amigos e parentes, o que torna difícil, de fato, incluir estranhos neste grupo. Cabe a nós perguntar: os estrangeiros (e principalmente os refugiados) recebem o mesmo tratamento familiar?
Em particular, Darcy Ribeiro (2019, p. 183) destaca a vanglória nacionalista brasileira, afirmando que “nosso país tem tal seiva de singularidade que torna extremamente difícil aceitar e desfrutar a convivência com outros povos”. E, para reforçar o desafio, afirma que o Brasil é um país marcado por tantas desigualdades que é, sim, um conjunto de diferentes ilhas sociais.
Assim, esses conceitos devem fortalecer uma tendência nacional em favor da aceitação, mas que se limita no sentido multicultural de tolerar o diferente e estar aberto à diversidade, mas isso não significa realmente que a nação está aberta para promover a inclusão justa dos diferentes em uma base social e econômica igual. Desde a sua origem, o Brasil atendeu todo tipo de gente, vinda de diferentes lugares e de diferentes etnias, mas isso não garante um ambiente intercultural, como definido por Rodrigo (2012).
Brasil no cenário migratório
Desde o período da colonização portuguesa, diversas políticas migratórias têm sido implementadas no Brasil para atrair trabalhadores e expandir a ocupação do território nacional (Amaral & Fusco, 2005). Quando o regime internacional de refugiados estava sendo construído após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil adotou uma política de migração no governo Vargas que visava atrair trabalhadores europeus para o setor agrícola e, em menor medida, a indústria (Moreira, 2012). Assim, o país não hesitou em participar das iniciativas propostas pela comunidade internacional para enfrentar o problema dos refugiados, porque entendia que os refugiados não eram apenas uma questão humanitária, mas também um instrumento político e econômico. As políticas brasileiras, portanto, foram baseadas em interesses nacionais e humanitários (Haydu, 2009; Moreira, 2012).
O direito de refúgio do estrangeiro, garantido pela Convenção da ONU de 1951, foi ratificado pelo Brasil em 1997. De acordo com o Ministério da Justiça (2010), qualquer estrangeiro que tenha medo de perseguição - se devidamente fundado - de natureza racial, religiosa, política ou nacional ou por pertencer a um determinado grupo social, bem como aqueles que foram forçados a deixar seu país de origem por causa de uma violação grave e generalizada dos direitos humanos, pode solicitar o status de refugiado.
O Brasil, signatário dos principais tratados internacionais de direitos humanos, criou uma estrutura institucional para analisar e julgar os pedidos de condição de refugiado - o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) - que inclui membros do governo, sociedade civil e um representante do ACNUR.
Segundo dados do Comitê, os pedidos de refúgio no país cresceram 2.868% de 2010 a 2015, passando de 966 em 2010 para 28.670 em 2015. Em 2017, o país tinha 8.950 refugiados de 79 nacionalidades diferentes. A maior comunidade de refugiados reconhecida no Brasil é a dos sírios (2.480 refugiados, mais de 25% do total), seguido por angolanos, colombianos, congoleses, palestinos e venezuelanos. Naquela época, o Brasil ainda contava com 1.468 reassentados, ou seja, estrangeiros que se refugiaram em um país, mas devido a algumas circunstâncias tiveram que migrar para um terceiro país. Junto com os refugiados, isso totaliza 10.418 pessoas. Em 2017, também havia mais 25 mil estrangeiros aguardando resposta aos seus pedidos (CONARE, 2016).
De acordo com as estatísticas do CONARE 2017, do total de refugiados no Brasil, 71% são homens e 29% são mulheres. Em relação às faixas etárias, a distribuição é a seguinte: (1) 14% têm de 0 a 12 anos, (2) 6% têm de 13 a 17 anos; (3) 33% têm de 18 a 29 anos; (4) 44% têm de 30 a 59 anos; e (5) 3% têm mais de 60 anos. Segundo o CONARE (2019), o número de refugiados aumentou quase cinco vezes nos últimos três anos. Esse equilíbrio reflete a crise humanitária na Venezuela. 77% dos pedidos de refúgio atualmente são originários desse país.
Cenário atual dos refugiados no Rio de Janeiro
Em 2017, o Rio de Janeiro acolheu cerca de 3.000 refugiados e em 2018 foram registrados 752 pedidos de refúgio no estado (ACNUR, 2018). Estatísticas recentes do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) mostram que o estado do Rio de Janeiro responde por uma proporção significativa de refugiados com status oficial, incluindo refugiados e portadores de visto humanitário.
Todo o aparato burocrático-administrativo ligado aos refugiados atinge os centros urbanos do estado do Rio de Janeiro e outros lugares. Os refugiados precisam provar que estão em uma situação de refugiado. Enquanto eles se inscrevem, eles estão em um limbo de não cidadãos. Assim, a cidade passa a ser uma grande área de controle e as condições urbanas somadas às condições dos refugiados produzem e reproduzem limites territoriais, separando áreas específicas (guetos) para esses grupos e reforçando os preconceitos raciais, étnicos, nacionais e de gênero que se materializam nas interações com esses grupos (Paiva, Dias & Moulin, 2018).
Porém, o Brasil e, especificamente, o estado do Rio de Janeiro, ainda possuem o agravante da crise da economia brasileira e estadual, que começou em 2014 e suas consequências ainda se fazem sentir hoje. A crise brasileira tem sido causada por uma série de choques de oferta e demanda, causados principalmente por erros de políticas públicas, que segundo Barbosa (2017) reduziram a capacidade de crescimento da economia do país, gerando alto custo fiscal. Assim, de acordo com estatísticas do IBGE de 2019, O Brasil em março de 2019 tinha uma taxa de desemprego de 12,7%, afetando 13,5 milhões de brasileiros. E no caso do Rio de Janeiro, pode-se observar o segundo maior aumento no número de trabalhadores informais no país, de 494 mil pessoas em 2014 para 1,2 milhão em 2017. Este grupo representa indivíduos sem carteira de trabalho assinada que nem podem ser chamados de “desempregados”, porque essa classificação (trabalhadores informais) se refere a pessoas que não procuram mais um emprego formal na cadeia produtiva (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019).
METODOLOGIA
Este estudo adota uma abordagem qualitativa, método que segundo Creswell (2010, p. 26) “é um meio de explorar e compreender o significado que indivíduos ou grupos atribuem a um problema social ou humano”. Com este enfoque exploratório, este estudo trata de questões e procedimentos que surgiram a partir de dados coletados dos entrevistados.
A seleção dos sujeitos foi feita por conveniência segundo o método bola de neve (Aaker, Kumar & Day, 2009). Todas as entrevistas foram realizadas entre outubro e dezembro de 2018, e o número de sujeitos foi determinado pela saturação dos dados (Bauer & Aarts, 2002; Gaskell, 2002). Os nomes dos entrevistados foram mantidos em sigilo. O Quadro 1 abaixo apresenta um perfil detalhado dos respondentes da pesquisa.
A análise de dados foi realizada usando o método PCP - percebendo coisas, coletando coisas e pensando sobre as coisas, conforme sugerido por Friese (2014). A primeira etapa (perceber) envolveu uma primeira leitura e exploração do material de pesquisa, passando para uma segunda fase (coleta) para codificação dos segmentos de dados relacionados. E, por fim, com base na codificação anterior, foi feita uma análise (pensando) sob a ótica das questões de pesquisa.
As entrevistas foram gravadas com a permissão do entrevistado, resultando em um áudio total de 870 minutos. Após essa etapa, o material foi transcrito em um texto de quarenta e duas páginas que serviu de base para a análise dos dados.
A análise dos resultados com base no material coletado foi feita de forma interpretativa e indutiva. Segundo Creswell (2010) em termos de interpretação, não se pode separar as interpretações dos pesquisadores de suas origens, história, contextos e entendimentos anteriores. Consequentemente, o papel do pesquisador não deve ser considerado completamente neutro.
A análise foi realizada em três categorias emergentes: (1) Processo de migração para o mercado de trabalho brasileiro, (2) Principais obstáculos para o ingresso no mercado de trabalho brasileiro e (3) Redes sociais com outros refugiados como forma de enfrentar esses obstáculos.
ANÁLISE DE DADOS
Processo de migração para o mercado de trabalho brasileiro
Dificuldades no agendamento de entrevistas pareciam prenunciar as dificuldades de todos os lados que afligem os refugiados antes e depois de sua chegada ao Brasil. Neste processo, os refugiados geralmente expressam medo em agendar reuniões, falar e expor suas vidas atuais e passadas. Quando finalmente concordaram em contribuir com a pesquisa, confirmaram, na maioria de suas falas, esse sentimento de insegurança, a dor da perda, as dificuldades das mudanças recentes e o sentimento de desamparo em relação ao presente em uma terra estranha, que muitas vezes os deixou desesperados e sem paciência para entrevistas (Paiva, Dias & Moulin, 2018). Nas entrevistas, eles relataram momentos de suas vidas em seus países de origem marcados por sofrimento e desânimo.
(...) Quando eu tinha 15 anos fui levada para o Senegal para me casar e aos 17 já tinha uma filha. Eu escapei do meu marido e deixei minha filha no começo com uma tia e depois com minha mãe (a entrevistada nos falou com muita dificuldade e medo) (R7).
(...) Pensei em deixar meu país em 2007, após as eleições, devido ao conflito. Recebi ameaças diretas contra minha vida. Outras pessoas foram presas. Eu pertencia a uma organização que defendia o Congo. Minha família e um amigo me ajudaram a comprar uma passagem para vir para o Brasil. Eu queria sair para salvar minha vida (R4).
Estou tentando enfrentar os desafios aqui e esquecer minhas tristezas passadas (R2).
Assim, estes depoimentos revelam que conforme apontado por Bauman (2017) e Santos (2006), a mobilidade humana no século 21 é composta por diferentes facetas e as piores delas são reforçadas por níveis sem precedentes de desigualdade social e injustiça no “mundo sem fronteiras”.
A dificuldade dos pesquisadores em deixar os refugiados confortáveis durante as entrevistas é um indicativo de quão delicada parece ser a situação de ser refugiado no exterior e como as interações com a população local são contaminadas pelo medo, especialmente a hostilidade (Santos, 2006).
Esta observação parece indicar nesta situação uma ausência do preceito kantiano que garante a qualquer estrangeiro o direito de não ser tratado de forma hostil quando em território estrangeiro (Santos, 2006). Afinal, todos os homens devem ter o direito à propriedade comum da superfície da terra. Com base neste princípio universal básico, devemos pelo menos tolerar uns aos outros dentro de uma perspectiva multicultural (Westwood & Jack, 2009).
Pensando nisso e voltando às entrevistas, os motivos que os entrevistados deram para a escolha do Brasil como destino foram a sua grande população negra, a perspectiva de ter carteira de trabalho e viver em liberdade. A questão da linguagem no início parecia um obstáculo para alguns entrevistados, mas essa era uma questão que precisava ser enfrentada.
Eu tentei muitas vezes fugir para países de língua inglesa, mas foi em vão... O Brasil é o país com a segunda maior população negra; e isso teve um impacto significativo (R7).
Procurei um país que falasse francês, mas não tive sucesso. A oportunidade que tive foi no Brasil por conta do visto (R4).
Principais entraves para entrada no mercado de trabalho brasileiro
Embora o Brasil seja signatário do tratado internacional de direitos humanos e tenha assinado a Convenção das Nações Unidas para Refugiados em 1951, logo após chegar ao país, entrevistados têm percebido dificuldades de adaptação e acolhimento, incluindo a entrada no mercado de trabalho. Os aspectos mais difíceis para o ingresso no mercado de trabalho têm sido a demora e desorganização na obtenção dos documentos, falta de apoio financeiro do governo para começar uma nova vida na cidade, a dificuldade de obtenção de diplomas de equivalência, as diferenças entre as línguas nos vários países, e a ausência de políticas públicas relacionadas a essa área.
Identidade e documentação do refugiado
Não há dúvida de que a questão da documentação, que permite que os indivíduos tenham sua identidade de refugiado reconhecida em primeiro lugar, parece ser o primeiro grande obstáculo que enfrentam. As próprias autoridades locais muitas vezes não reconhecem os documentos que os refugiados recebem na chegada. Mas esse desconhecimento é generalizado na sociedade como um todo e acaba impedindo o refugiado até de conseguir moradia, isso sem falar na abertura de conta em banco, matrícula em cursos para continuar os estudos e, principalmente, conseguir um emprego. A condição “eterna” de “ser indocumentado como Villen (2016) coloca, reforça a situação constante dos refugiados de existirem como um ser marginalizado ou, sob outro ponto de vista, um ser hostil (Santos, 2006).
Minha identidade até hoje tem sido um pedaço de papel que parece uma cópia xerox, sem formulário próprio e sem assinatura, o que dificulta a aceitação dos empresários, uma vez que não conhecem tal documento nem a minha identidade (R3).
O primeiro obstáculo foi abrir uma conta no banco, mas no final conseguimos administrar (R6).
Fiquei inseguro no período em que analisaram o documento enviado pelo CONARE. Isso porque quem solicita o visto não sabe se, em razão de alguma alteração, após a análise, a instituição vai validar a condição de refugiado. Esta é uma questão política e leva a problemas. Depende das relações entre os países e isso pode mudar no meio do processo (R4).
Diferenças entre o sistema educacional no Brasil e seus países de origem, diplomas de equivalência e diferenças de idioma
A educação marroquina é diferente daqui. Depois do ensino médio, você ainda tem 2 anos a mais para obter um diploma profissional e mais 3 anos para obter um diploma de graduação (R2).
Tentei trabalhar na enfermagem, minha carreira em casa, mas eu precisava do diploma de equivalência. Demorou muito para obter o diploma de equivalência. Só consegui depois de seis anos, e nessa época já estava trabalhando em outra área (R4).
O Brasil hoje oferece algumas medidas práticas para incentivar refugiados profissionais que chegam ao país. Uma das medidas é o ensino da Língua Portuguesa, por meio do PRONATEC, com a oferta de 400 vagas no Rio de Janeiro e em São Paulo para os interessados. Além disso, o governo indica cursos de empreendedorismo. Porém, sem dinheiro, muitos refugiados não têm tempo para fazer cursos, pois não conseguem parar de trabalhar.
A questão da linguagem afeta a sensação de isolamento e a dificuldade de convivência e integração, inclusive no âmbito do trabalho. Como Kuhlman (1991) menciona, a integração local deve ser o processo pelo qual os refugiados mantêm sua própria identidade, mas passam a fazer parte da sociedade acolhedora se puderem conviver com a população local de maneira aceitável. Percebe-se pelas entrevistas que a integração social é impedida devido ao idioma (Borjas, 1996) que também pode ser interpretado como um obstáculo local ou resistência local ao multiculturalismo (Rodrigo, 2012).
Foi um momento difícil. Fiquei perdida por 3 meses. Só depois disso pude começar a entender o contexto das frases…. Tive a oportunidade de estudar português em um projeto da UERJ, mas só consegui ir duas vezes porque tinha que trabalhar.
Levei de 5 a 6 meses para falar. Eu conseguia falar da necessidade de sobreviver. Aprendi com as pessoas na rua, no bairro. Eu não tive aulas. Falo inglês, alemão, francês, haitiano. Nenhuma dessas línguas me ajudou aqui (R8).
Quando cheguei aqui meu desejo era encontrar alguém que falasse francês para que eu pudesse me comunicar (R4).
Discriminação e preconceito
Os entrevistados apontaram que haviam experimentado hostilidade e marginalização explícita (Santos, 2006). Relatórios indicam que além de serem afetados pelas constantes mudanças no mercado de trabalho, também sofreram discriminação por serem refugiados, muitas vezes por ser negro, e também por ser mulher. Com base nas entrevistas, vemos o princípio kantiano da hospitalidade universal dando lugar a situações hostis (Bauman, 2016; Santos, 2006). Além disso, encontramos a questão de se considerar a presença do multiculturalismo de uma perspectiva local, uma vez que não parece haver nenhum relato indicativo de tolerância, o que Rodrigo (2012) aponta ser a característica mínima para esta condição. Pelo contrário, as entrevistas contêm referências à discriminação e até ao racismo.
Hostilidade existe principalmente em órgãos públicos. A Polícia Federal não gosta da gente. Não é só a Polícia Federal, também não é só preconceito. Os refugiados são vistos de forma negativa porque são de países mais pobres e por causa do racismo. Outras instituições nos veem como uma ameaça (R8).
Um refugiado amigo meu, que é branco, pode conseguir um emprego que deveria ser meu, mas ser mulher e ser negra é um obstáculo aqui (R4).
Às vezes não sei se não consegui um emprego porque sou refugiada ou porque sou negra. Nunca pensei que o Brasil fosse um país tão racista (R1).
Ninguém aceitava os venezuelanos como refugiados na época e ainda hoje quando a Caritas nos chama para entrevistas, nos chamam de “refugiados venezuelanos” (R3).
Segundo relato dos entrevistados, embora o Brasil tenha em sua história relações culturais e sociais incessantes entre diferentes povos (Freyre, 2006), o preconceito e a falta de convivência igualitária entre eles, e hoje, seus descendentes, ainda mancha o país. A ausência de democracia racial, assim como os persistentes conflitos raciais e de classe denunciados por diversos autores nas ciências sociais (Almeida, 2019; Freitag, 2005; Ribeiro, 2017, 2019) pode ser observado nas relações com refugiados. O homem cordial de Holanda (2014) não demonstrou cordialidade, tolerância e nem mesmo ofereceu ambiente intercultural para refugiados.
Recursos financeiros e trabalho
A maioria dos refugiados que chegam ao Brasil vêm de situações difíceis em seus países de origem e na chegada precisam de apoio financeiro, portanto, ser capaz de trabalhar imediatamente após sua chegada determina sua sobrevivência. Assim, muitas vezes não têm tempo suficiente para fazer um curso de português para facilitar a comunicação.
Vale lembrar que atualmente vive-se uma elevada taxa de desemprego no Brasil e no Rio de Janeiro segundo estatísticas do IBGE (2019), e isso piora ainda mais a situação de empregabilidade do refugiado. Assim, muitos deles iniciam suas atividades profissionais na carreira empreendedora, ainda que possuam o título de mestre ou ensino superior.
Nesse sentido, os resultados estão alinhados com Moulin (2013), que diz que os refugiados são forçados a aceitar empregos que não exigem qualificações, mesmo quando eles já trazem treinamento e know-how de seu país de origem. E, de fato, apesar das políticas públicas existentes para inserção de refugiados no mercado de trabalho, afirma Moreira (2005), na prática, parece que não são tão favoráveis aos refugiados. Isso é reforçado pelos depoimentos abaixo de entrevistados com ensino superior.
(...) Comecei a trabalhar na rua vendendo esfirras em frente ao Shopping Tijuca... Não cozinhei as esfirras, comprei de uns sírios que conheci em uma igreja em Botafogo, e eles me deram a oportunidade de vender seus produtos (R2).
(...)meu primeiro trabalho foi em uma lanchonete por seis meses (R3).
Minha esposa cozinha muito bem e decidimos vender comida libanesa nas feiras da JUNTA LOCAL e eu ajudei ela (R6).
Embora uma carreira empreendedora possa parecer uma solução para muitos refugiados, também existem dificuldades nesta área, conforme se pode verificar nos depoimentos a seguir.
Não há suporte financeiro para quem deseja iniciar um novo empreendimento. Tantas pessoas estão interessadas no assunto, mas ninguém faz nada para nos ajudar de forma eficaz. Estamos nos cansando aos poucos. Muitas pessoas da minha comunidade não querem mais dar entrevistas por causa disso. Queremos uma solução. Não adianta dar conhecimento se não se pode levantar capital (R1).
Eu sempre tive minhas ideias. Sempre quis ter meu próprio negócio. No começo eu tive a ideia de abrir uma ONG, mas aí vi que buscar incentivos financeiros no Brasil é muito complicado. Aqui se usa uma lógica diferente da do meu país. Não havia modelo de negócios. Não havia nada (R8).
Eu sabia como fazer tranças de cabelo, e este foi meu primeiro trabalho (R7).
Relacionamentos sociais com outros refugiados como forma de enfrentar os obstáculos
Os obstáculos identificados pelos refugiados para se estabelecerem no mercado de trabalho local são muitos e puderam ser observados em todas as entrevistas. No entanto, nesta luta diária pela sobrevivência em uma terra estrangeira e hostil, e em meio a uma crise econômica, os refugiados identificaram unanimemente reunir-se com pessoas que viviam as mesmas condições ou da mesma nacionalidade como um recurso valioso (Bauman, 2016; Moulin, 2018).
No entanto, esta ferramenta de rede pessoal dentro de suas próprias comunidades destaca ainda mais a fragilidade do modelo multicultural e sua distância da interculturalidade. Se os entrevistados não se sentem bem-vindos pelas pessoas e instituições locais, incluindo o mercado de trabalho e a sociedade, resta apenas a união com seu próprio povo como estratégia para enfrentar a situação. Essa rede pessoal, que à primeira vista parece positiva, é limitada aos refugiados e seus próprios amigos étnicos, e isso pode criar ainda mais dificuldades para se conectar e ser incluído e pode aproximá-los ainda mais do gueto, aceitar empregos ruins que não interessam a ninguém (Nkomo et al., 2019; Rodrigo, 2012; Westwood & Jack, 2009).
Minha família e amigos me ajudaram a fugir para o Brasil … depois de dois dias no Rio de Janeiro conheci uns congoleses que me contaram sobre os documentos, sobre a cidade, a violência e isso foi muito importante para mim (R4).
Parte da minha família está aqui, e meu marido e eu viemos morar com um primo de 87 anos. A rede familiar é tudo e é isso que faz a diferença. A maioria das coisas que aprendemos são assim, uma pessoa ensina as outras (R5).
Se não ajudarmos uns aos outros, quem mais o fará? Temos que nos agrupar, juntos somos mais fortes. Não temos medo de trabalhar. Para começar, pode ser qualquer coisa, mas mesmo assim é muito difícil (R8).
CONCLUSÃO
O estudo busca investigar a percepção de refugiados de diversas origens sobre os processos e as dificuldades de inserção na sociedade brasileira e no mercado de trabalho. Os processos em foco tratam de temas como barreiras burocráticas, diferenças culturais, questões étnico-raciais e idioma, entre outros. Embora tenham sido enfrentados obstáculos, principalmente no que se refere ao agendamento de entrevistas e ao estabelecimento de vínculo e confiança com os entrevistados, conseguiu-se organizar suas impressões. Acredita-se que é imprescindível observar a problemática do mercado de trabalho e as dinâmicas estabelecidas com este grupo para compreender este fenômeno social em um contexto mais amplo.
Em relação às dificuldades percebidas de inserção no mercado de trabalho, destacam-se: (1) a emissão da documentação e identificação dos refugiados, que representam questões criadas por órgãos do governo brasileiro em termos de tempo, clareza e eficiência; (2) discriminação, incluindo discriminação racial da população, empregadores e autoridades; (3) condições de ensino, inclusive o ensino de português, que não é eficiente, o que cria barreiras ao processo de inclusão pelo mercado de trabalho; (4) diferenças entre os sistemas educacionais e o problema do diploma de equivalência, que em muitos casos permanece sem solução; e (5) a criação de mecanismos para enfrentar obstáculos por meio de fortes redes pessoais restritas às suas próprias comunidades.
De maneira geral, as percepções dos refugiados entrevistados expressam explicitamente a visão de que o mercado de trabalho na cidade do Rio de Janeiro apresenta dificuldades extremas, tanto pela crise econômica local quanto pelos desafios impostos por sua condição. Uns pensam em formação, outros em empreendedorismo, mas todos a princípio tiveram confiança em encontrar futuras oportunidades no Brasil e na cidade.
Os resultados analisados nos permitem considerar que o Brasil, como signatário da Convenção das Nações Unidas para Refugiados de 1951, que foi ratificada em 1997, garante asilo a estrangeiros e pode, à primeira vista, parecer uma sociedade intercultural, cheio de empatia e aberto para conectar e receber novas pessoas de uma forma inclusiva. No entanto, na prática, este estudo do ponto de vista dos refugiados pinta um quadro de relações institucionais distantes, combinada com graves desafios de isolamento, falta de políticas públicas eficientes e enormes obstáculos para os refugiados entrarem no mercado de trabalho, o que dificilmente nos permite assumir que o Brasil é uma sociedade multicultural, muito menos intercultural.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Jun 2021 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2021
Histórico
-
Recebido
20 Jan 2020 -
Aceito
15 Out 2020