Caro Editor,
O autor da carta procura explicitar, por meio da evidência representada pelo volume de publicações, que crenças religiosas podem ser “ bad for your health ”. Não podemos refutar tal afirmação. Não obstante, aceitá-la não implica recusar a possibilidade de que religião e religiosidade atuem como fatores protetores. A religião, como outras práticas sociais complexas, não respeita, em geral, as dicotomias estabelecidas pelas reduções de nossos modos doutos de pensar.
Como assinala Latour(1)“é moderno aquele que acredita que os outros acreditam. (…) Os modernos acreditam na crença para compreender os outros (…)”. Ao tratar de “crenças religiosas”, o autor da carta revela suas próprias “crenças” nas evidências da revisão sistemática, ao passo que ignora como esse volume de evidência foi produzido. Se pudermos convidar uma feminista islâmica, Sibai,(2,3)para essa conversa (talvez o autor da carta considere que, assim como religião não pode funcionar como fator protetor da saúde, uma mulher islâmica não pode produzir asserções que se devam levar a sério), vale lembrar que, ao analisar os resultados expressos pela produção acadêmica, é preciso considerar a intersecção entre “quem pode falar”, “sobre o que se pode falar” e “em que termos se pode falar”.(2)Na preferência dada a certos temas (transfusão de sangue, vacinação etc.) e a certas expressões religiosas (fundamentalistas), bem como na fixação de um lugar (supostamente neutro) a partir do qual se julguem as práticas religiosas (a medicina científica ocidental), são invisibilizadas outras agências religiosas e seus efeitos no âmbito da interface religião-saúde. A viciação das variáveis e dos parâmetros de avaliação pode, então, produzir, no balanço das “evidências” publicadas, o objeto colonial (no sentido de ser produto da colonialidade epistemológica) religião-como-algo-ruim-para-sua-saúde.
Podemos admitir que fundamentalismos religiosos, provavelmente, produzam mais efeitos nocivos que salutares, em seu congelamento de identidades e das possibilidades de produção de agências no mundo. Porém a equação religião = fundamentalismo é “ against all evidence and all facts ”. Ela decorre de uma tendência a acusar de fundamentalismo todas as práticas sociais não subordinadas às prescrições das definições hegemônicas ocidentais. Essa tendência é ela mesma fundamentalista, um produto do fascismo epistemológico exercido a partir da ciência, ou, talvez, seja melhor dizer, de uma “má ciência”, incapaz de reconhecer que seu próprio lugar de enunciação é situado e, assim, de assumir a necessidade de relocalizar seus pressuspostos em um contexto epistemologicamente plural.
A partir de nosso artigo, não se pode produzir uma afirmação generalizante como: religião e religiosidade são, independentemente do contexto, um fator protetor da saúde. No entanto, a partir de pesquisa específica e saindo do campo das variáveis viciadas que mencionamos, foi possível identificar contextos em que religião e religiosidade atuam como fatores protetores da saúde, contextos em que a religião não atua como um modo de congelar identidades e possibilidades de produção de agências no mundo, mas como um espaço de construção criativa de identidades e de multiplicação de agências, favorecendo a produção de subjetividades saudáveis. Sabemos, porém, que, para aceitar essa alternativa, o leitor deve abandonar, ele mesmo, seu desejo de congelar as identidades e possibilidades de outrem, em um discurso essencialista e homogeneizador, e reconhecer a diversidade e a complexidade social do fenômeno religioso.
Referências bibliográficas
- 1 Latour B. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru: EDUSC; 2002.
- 2 Sibai SA. La cárcel del feminismo: hacía un pensamiento islámico decolonial. Coyoacán: Akal/ Inter Pares; 2016. [Serie Poscolonial].
- 3 Grosfoguel R. Feminismos islâmicos. Caracas: El perro y la rana; 2016. [Coleccion De Géneros – Série De Construir].
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Dez 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
15 Set 2020 -
Aceito
29 Set 2020