Resumos
Uma tese sobre a historiografia da Astronomia Helênica é que a hipótese heliocêntrica seria "natural", no modelo astronômico do círculo excêntrico, o qual é eqüivalente ao modelo de epiciclos e deferentes, usado no influente Almagesto. Neste trabalho, colecionamos argumentos que indicam a plausibilidade da tese.
sistema geocêntrico; sistema heliocêntrico; Almagesto
A thesis in the history of astronomy in ancient Greece is that the heliocentric hypothesis is "natural" within the astronomical model of the excentric circle; this model is equivalent to the model of epicicles and deferents used in the influential The Almagest. We put together arguments that indicate that this thesis is plausible.
geocentric system; heliocentric system; The Almagest
HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS
A hipótese heliocêntrica na Antigüidade
The heliocentric hypothesis in the Antiquity
Diana Paula Andrade PillingI; Penha Maria Cardoso DiasII, 1 1 E-mail: penhacardozo@uol.com.br.
IInstituto de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIInstituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
Uma tese sobre a historiografia da Astronomia Helênica é que a hipótese heliocêntrica seria "natural", no modelo astronômico do círculo excêntrico, o qual é eqüivalente ao modelo de epiciclos e deferentes, usado no influente Almagesto. Neste trabalho, colecionamos argumentos que indicam a plausibilidade da tese.
Palavras-chave: sistema geocêntrico, sistema heliocêntrico, Almagesto.
ABSTRACT
A thesis in the history of astronomy in ancient Greece is that the heliocentric hypothesis is "natural" within the astronomical model of the excentric circle; this model is equivalent to the model of epicicles and deferents used in the influential The Almagest. We put together arguments that indicate that this thesis is plausible.
Keywords: geocentric system, heliocentric system, The Almagest.
1. Introdução
Em seu The Copernican Revolution, Thomas S. Kuhn [1] opina que o Sistema Copernicano só é melhor que o Sistema Ptolemaico em seus aspectos qualitativos; nos aspectos quantitativos, aquele sistema precisa do complicado aparato de epiciclos e deferentes, usado no Sistema Ptolemaico. Portanto, continua o argumento, poucas razões existiam, se alguma, para que se escolhesse entre as duas teorias, que competiam entre si [1, p. 168-169]:
O movimento retrógrado e a variação do tempo requerido para percorrer o [círculo] eclíptico eram as duas grandes irregularidades planetárias, que, na Antigüidade, levaram os astrônomos a empregar epiciclos e deferentes ao tratar o problema dos planetas. O sistema de Copérnico explica essas mesmas grandes irregularidades e o faz sem fazer uso de epiciclos ou, pelo menos, grandes epiciclos.
[...]
[...] Copérnico pode dar uma explicação qualitativa dos movimentos planetários mais econômica do que Ptolomeu. Mas para obter uma explicação quantitativa da alteração da posição planetária, Ptolomeu foi compelido a complicar o sistema fundamental de doze círculos com epiciclos menores, excêntricos e equantes e, para obter resultados comparáveis, a partir de seu sistema básico, de sete círculos, Copérnico, também, foi forçado a usar epiciclos menores e excêntricos. Seu sistema final foi pouco menos desajeitado, se nada, do que o de Ptolomeu. Ambos sistemas empregaram mais de trinta círculos; em economia, havia pouco a diferenciar entre eles. Nem poderiam os dois sistemas serem distinguidos por suas acurácias. Quando Copérnico acabou de acrescentar epiciclos, seu desajeitado sistema centrado no Sol dava resultados tão acurados quanto os de Ptolomeu, mas não obteve resultados mais acurados. Copérnico não resolveu o problema dos planetas.
Uma extrapolação desse ponto de vista é que a hipótese central do Sistema Copernicano - a hipótese heliocêntrica - seria mais bem entendida como produto do surgimento de um movimento neo-pitagórico, na época de Nicolau Copérnico (1473-1543). O mais forte argumento parece ser a seguinte passagem do Das Revoluções das Esferas Celestes [2, p. 527-528], também citada por Kuhn:
No centro de tudo, repousa o Sol. Pois, quem colocaria essa lâmpada de um belo templo em outro ou melhor lugar do que esse, de onde ela pode iluminar tudo ao mesmo tempo? De fato, é [uma] feliz [expressão] que alguns o chamem de lanterna; outros, de mente e outros, ainda, de piloto do mundo. Trimegisto o chama de "Deus visível"; a Electra, de Sófocles, "aquilo que arde em chamas todas as coisas". E, assim, o Sol, como se repousando em um trono régio, governa a família dos astros que o rodeiam. Além disso, a Terra não é, de modo algum, roubada pelos serviços da Lua; mas, como Aristóteles diz no Animalibus, a Terra tem o maior parentesco com a Lua. A Terra, além disso, é fertilizada pelo Sol e concebe crias todos os anos.
Por outro lado, Sir Thomas L. Heath [3, p. 264] cita a tese de G. Schiaparelli, de acordo com a qual a hipótese heliocêntrica seria "natural", no contexto de um dos modelos astronômicos desenvolvidos na Antigüidade Helênica, o modelo do círculo excêntrico; esse modelo é geometricamente eqüivalente ao modelo de epiciclos e deferentes, pelo qual veio a ser substituído, ainda na Antigüidade; esse último é a base teórica do sistema astronômico desenvolvido por Cláudio Ptolomeu (século II dC), no Almagesto [4, 5]. A eqüivalência entre modelos permite inferir, daquele que se conhece em detalhes, estimativas para o outro.
Este artigo é motivado pela tese de Schiaparelli. A seção 2 é auxiliar e tem a intenção de definir o aparato conceitual e os métodos da Astronomia Matemática, sem os quais é impossível entender a discussão. Na seção 3, apresentamos evidências historiográficas de que, na Antigüidade, já se discutia a possibilidade de movimento da Terra e evidências de que a hipótese heliocêntrica foi considerada. Na seção 4, discutimos a plausibilidade da tese:
1. A hipótese é consistente:
(a) A ordenação dos planetas a partir do ponto excêntrico (S) concorda com a ordenação correta [5, p. 473]; acrescentamos que os valores estimados, dentro das categorias do Sistema Ptolemaico, para as distâncias de S a cada um dos planetas, estão muito próximas dos valores modernos.
(b) O sistema solar ordenado a partir de S é consistente com estimativas numéricas para o sistema solar, feitas na Antigüidade.
2. O modelo do círculo excêntrico ganha sentido filosófico, se o ponto S se tornar material e não um ponto matemático.
É possível que o imenso esforço intelectual despendido no desenvolvimento de um sistema heliocêntrico tivesse sido socialmente motivado pelo "espírito neo-platônico", atraído pelo brilho dessa "lâmpada de um belo templo". Porém, já se sabia, desde remota Antigüidade, que a hipótese heliocêntrica era, do ponto de vista formal, não somente plausível, mas quase um sequitur de um dos modelos ou, em outras palavras, "natural".
2. A astronomia matemática
2.1. Os fundamentos da astronomia
Os Gregos fizeram uma distinção entre a Astronomia Matemática e a Astronomia Física: Aquela determinava e predizia a posição dos astros; essa era parte da filosofia natural e cuidava de explicar o comportamento dos astros [6].
2.1.1. Elementos da filosofia natural [7]
Na tradição da Filosofia Natural helênica, havia quatro elementos básicos - terra, água, ar e fogo; a cada um estavam associadas duas de quatro qualidades primárias fundamentais: quente ou frio, úmido ou seco. Essas propriedades seriam parte de sua "essência" ou "forma". A cada um dos elementos acima mencionados corresponderia um lugar natural e um movimento natural: Aos corpos pesados, o centro do Universo; à água, ao ar e ao fogo, respectivamente, esferas concêntricas com a Terra, com raios crescentes nessa ordem. Um corpo só poderia se mover, quando se encontrasse fora de seu lugar natural;02 2 "Movimento" designava qualquer "transformação". Aqui, a "transformação" sob estudo é o "deslocamento". portanto, a corpos pesados corresponderia um movimento natural em linha reta para baixo, em direção ao centro do Universo; os corpos leves (fogo) movimentar-se-iam em linha reta para cima, em direção à sua esfera; a água, quando na terra, movimentar-se-ia para cima e, quando no ar, para baixo; o ar, quando na terra ou na água, movimentar-se-ia para cima, mas, quando no fogo, para baixo. Quando se encontram em seu lugar natural, os corpos não se movem.
2.1.2. Elementos da astronomia física
O movimento (aparentemente) circular dos corpos celestes, que nascem a leste e se põem a oeste, atribuiria a eles a imutabilidade associada à simetria esférica, portanto, um conceito de "perfeição"; eles já estavam em seus lugares naturais e se moviam "por amor à perfeição", não por estarem deslocados de seus lugares naturais. Era, pois, um axioma básico da Astronomia Matemática, com suporte na Astronomia Física, que o movimento dos astros devia ser explicado por meio de movimentos circulares uniformes. O universo decorrente é circular e fechado, com os planetas descrevendo órbitas circulares em torno de um centro, o centro do universo (Fig. 1); a Terra, por ser pesada, teria "caído" para esse centro, há eras.
2.1.3. Elementos da astronomia matemática
Os movimentos dos planetas, como se apresentam à observação, não são movimentos circulares uniformes, apresentando, pois, "anomalias". O postulado fundamental era que as aparências (fenômenos) deveriam ser salvas (explicadas) pela composição de movimentos circulares uniformes; daí a expressão salvar aparências [6].3 3 Hoje em dia, na Epistemologia, a expressão "salvar aparências" não é elogiosa. Ela se refere a hipóteses ad hoc, que "salvam" (no sentido vernacular) teorias e vaidades, mas não o conhecimento. As principais aparências eram [6, 8]:
1. Segunda anomalia. Essa "anomalia" é a retrogradação. Em seu trajeto anual pelo céu, atravessando as constelações do Zodíaco, os planetas, de tempo em tempo, parecem "dar marcha-a-ré".
2. Primeira anomalia. Essa "anomalia" consiste no fato de que o tempo transcorrido entre duas retrogressões sucessivas varia, quando o planeta faz seu movimento anual pelo Zodíaco. Com respeito ao Sol (já que seu movimento era tratado como o dos planetas), o tempo para percorrer duas metades da eclíptica não é o mesmo.
3. Variação do brilho dos planetas. A "anomalia" era atribuída à maior ou menor proximidade com a Terra, de modo que o maior brilho ocorreria com a maior proximidade (perigeu). Ora, se o planeta percorre um movimento circular em torno da Terra, ele não pode se aproximar e nem se afastar dela.
Os principais métodos da astronomia matemática que tentavam "salvar as aparências", acima mencionadas, foram [6, 8]:
1. Modelo das esferas concêntricas, atribuído a Eudoxo de Cnido (c. 408-355 aC).
2. Modelo do círculo excêntrico, cuja autoria é controversa. Com certeza, era limitado aos planetas exteriores, no tempo de Apolônio de Perga (265?-170 aC), e já havia sido generalizado a todos os planetas, no tempo de Hiparco de Nicéia (século II aC) [3, p. 268].
3. Modelo dos epiciclos e deferentes, atribuído, por alguns, a Apolônio, mas sem evidências conclusivas [3, p. 267]. Esse foi o modelo usado por Ptolomeu, no Almagesto.
2.2. Salvando aparências
2.2.1. O modelo de epiciclos e deferentes
Para "salvar" a primeira e terceira "anomalias", foi proposto que o planeta se movesse em um círculo (epiciclo), cujo centro moveria ao longo de outro círculo (deferente), centrado na Terra (Fig. 2, esquerda); o movimento do planeta seria a composição desses dois movimentos e, visto da Terra, sua trajetória formaria "laços", como na Fig. 2 (direita), ora indo em um sentido, ora voltando para trás e se aproximando da Terra.
Para "salvar" a segunda "anomalia", os gregos introduziram uma excentricidade [7] (Fig. 3): Se o centro do deferente for deslocado do centro da Terra para um ponto D, é possível considerar que o movimento do epiciclo seja uniforme, do ponto de vista do centro do deferente, mas não uniforme do ponto de vista da Terra; o planeta move-se uniformemente ao longo do epiciclo. De fato:
Visto de D, os arcos AB e CE, sobre o deferente, são iguais e são subtendidos por ângulos iguais, ângulo ADB = ângulo CDE, logo são percorridos no mesmo tempo, pois a velocidade angular é suposta ser uniforme. Porém, vistos da Terra (T), os arcos são subtendidos por ângulos diferentes, respectivamente ângulo ATB ¹ângulo CTE; como os arcos são supostos serem percorridos no mesmo tempo, o observador em T vê arcos (ou ângulos) diferentes percorridos no mesmo tempo e a velocidade angular não pode ser uniforme.
Para melhorar os resultados observacionais, foi necessário introduzir outra excentricidade, o ponto equante. O modelo final (Fig. 4) considera os círculos: A eclíptica, com centro na Terra (T); o deferente, com centro em D; o círculo regular, com centro em E (ponto equante); o epiciclo, com centro no deferente.
O planeta está em P, movendo-se uniformemente sobre o epiciclo; mas o centro do deferente move-se uniformemente em relação a E (equante) e não em relação a T (Terra) (ou: a linha equante-centro do epiciclo gira uniformemente em torno do equante).
2.2.2. Modelo do círculo excêntrico
O planeta gira uniformemente em torno do ponto S, no sentido contrário ao dos signos do Zodíaco (Fig. 5). O ponto S gira uniformemente em torno da Terra (T), no sentido dos signos do Zodíaco.4 4 A tese de Schiaparelli, citada em [3], consiste em dizer que é "natural" colocar o Sol em S.
2.2.3. Eqüivalência entre os modelos
Suponha que, no momento inicial t = 0, a configuração seja (Fig. 6): ponto do epiciclo mais longe da Terra é A0; planeta em: P0º A0º apogeu; ponto excêntrico em S0; centro do epiciclo em C0.
Em um tempo t > 0, o centro do epiciclo gira uniformemente de um ângulo a em torno de T, de modo que TC0A0® TCepA, º a; no mesmo tempo, o ponto excêntrico gira uniformemente de um ângulo g, em torno de T, de modo que S0 ® S, = g; g> a, por hipótese: planeta em P ( = b); ponto do epiciclo mais longe da Terra é A ( = a); ponto excêntrico em S ( = g); centro do epiciclo em Cep.
Em um dos modelos, o planeta move em um círculo com centro em S, logo ele gira com S: S0P0® SP1; a essa rotação deve-se seguir a rotação de SP1 em torno de S, para trás, de um ângulo = b, de modo que o planeta termine em P: SP1 = SP. No outro modelo, o planeta está no epiciclo, portanto ele gira relativamente à linha TCepA. Para que a posição do planeta (P) seja a mesma nos dois modelos, a rotação -b, em torno de S, tem de trazer P para o epiciclo, centrado em Cep. É suficiente que TCepPS seja um paralelogramo: CepP||TS e TCep||SP; CepP = TS e TCep = SP; = = = b e g = a + = a + b.
Na terminologia de Ptolomeu (Refs. [4, p. 424] e [5, p. 273]): "Movimento em longitude" do planeta (movimento do centro do epiciclo no deferente): a; "anomalia" (movimento do planeta no epiciclo): b; sol médio: g.
2.2.4. Propriedades do sistema de Ptolomeu
Daí se seguem propriedades importantes do modelo de epiciclo e deferente:
1. Raio do epiciclo: distância Terra-S = TS = raio do epiciclo. Trivialmente, CepP = TS, pois TCepPS é um paralelogramo.
2. Posição do Sol. O Sol é suposto estar na linha prolongada TS (TS||CepP).
3. Uma excentricidade eqüivale ao uso de um epiciclo e um deferente. No limite em que o raio do epiciclo é "pequeno" em relação ao raio do deferente, de modo que os "laços" não apareçam, o resultado do epiciclo é deslocar o centro do deferente, inicialmente centrado na Terra, e deformar a órbita do planeta [1].
4. Uma propriedade do modelo (que Ptolomeu diz ter provado) é: ED = DT; ela é consistente com o fato que Ptolomeu desenha os círculos (Fig. 4) com o mesmo raio, isto é, raio do epiciclo = DT = DE.
O cálculo da excentricidade (DT, Fig. 4) a partir de dados observacionais (ângulos em que oposições do planeta são observadas), é o principal cálculo no Almagesto; ele ocupa a maior parte dos cálculos referentes a um planeta.
3. Movimentos dos planetas (evidências historiográficas)
Muito antes de Copérnico, a hipótese heliocêntrica já havia sido considerada [1, 6, 10]. Alguns historiadores atribuem a Heraclides do Ponto (c. 388 - c. 315 aC) um sistema similar ao que seria proposto por Tycho Brahe (1546-1601), mais de um milênio depois; isso é controverso, mas não há dúvida de que ele atribuiu à Terra, pelo menos um movimento de rotação em torno de seu eixo. Por outro lado, é consensual que Aristarco de Samos (c. 310 - c. 250 aC) propôs um sistema análogo ao de Copérnico, colocando o Sol no centro do sistema e atribuindo à Terra uma "translação" pelo Zodíaco.
As evidências historiográficas em que historiadores se baseiam são escassas e consistem de citações feitas por autores remotos. A grande dificuldade parece ser a interpretação do que esses autores remotos querem dizer, o que gera controvérsias. A seguir, citamos fontes historiográficas clássicas em que Heath e van der Waerden se baseiam.
3.1. Planetas interiores: movimento em torno do Sol
As evidências abaixo atestam que já se sabia que Mercúrio e Vênus giram em torno do Sol. Atribui-se a descoberta desse fato a Heraclides, mas não há consenso.
Evidência 1: Vitrúvio (século I aC)5 5 apud Heath [3, p. 255].
Os astros de Mercúrio e Vênus fazem seus movimentos retrógrados e retardamentos em torno dos raios do próprio [S]ol como centro. É, ainda, devido a seus giros que pairam em seus pontos estacionários nos espaços ocupados pelos signos.
Evidência 2: Calcídio (primeira metade do século IV dC)6 6 apud Heath [3, p. 256] e van der Waerden [9, p. 167].
Finalmente, Heraclides do Ponto, ao descrever o círculo de Lúcifer [Vênus], bem como o do [S]ol, e atribuir aos dois círculos um centro e um meio, mostrou que Lúcifer está, algumas vezes, acima, outras vezes, abaixo do [S]ol. Pois ele diz que a posição do [S]ol, da [L]ua, Lúcifer e todos os planetas, quaisquer que sejam, é definida por uma linha [que vai] do centro da [T]erra ao [centro] do particular corpo celeste. Há uma linha reta traçada do centro da [T]erra, mostrando a posição do [S]ol, e há duas outras linhas retas, à direita e à esquerda dele, respectivamente, e distante 50º dele e 100º uma da outra, a linha mais próxima do leste mostrando a posição de Lúcifer ou Astro da Manhã [Estrela d'Alva], quando ela é mais afastada do [S]ol, e próxima das regiões do leste, uma posição, em virtude da qual ele, então, recebe o nome de Astro da Tarde [Estrela Vésper], porque ele aparece no leste, ao entardecer, após o ocaso do [S]ol. ...
Essa citação menciona explicitamente Heraclides e, por isso, está no centro de um debate entre historiadores (Heath; van der Waerden). O quê está em debate é se, de fato, na citação, Heraclides está dizendo que Sol, Vênus e Mercúrio giram em torno de um centro comum, imaterial.
Evidência 3: Martiano Capella (segunda metade do século V dC)7 7 apud Heath [3, p. 256].
Pois, embora Vênus e Mercúrio sejam vistos levantar e se pôr, diariamente, suas órbitas não rodeiam a [T]erra, mas volteiam o [S]ol, em um movimento livre. De fato, eles fazem o [Sol] o centro de seus círculos, de modo que eles, algumas vezes, são carregados acima dele, em outras ocasiões, abaixo dele e mais perto da [T]erra e Vênus diverge do [S]ol pela largura de um signo e meio. Mas, quando eles estão acima, Mercúrio é o mais próximo da [T]erra e, quando eles estão abaixo, Vênus é o mais próximo, pois ele circula em uma órbita maior e mais espalhada [...].
3.2. O movimento da Terra
As evidências abaixo mostram que a possibilidade de movimento da Terra era discutida na Antigüidade.
Evidência 4: Simplício (primeira metade do século VI dC)8 8 apud Heath [3, p. 254] e van der Waerden [9, p. 176].
Ele (Aristóteles) considerou correto analisar a hipótese de que ambos (isto é, os astros e os céus como um todo) estão em repouso - embora parecesse impossível explicar sua aparente mudança de posição sob a hipótese de que ambos estivesem em repouso - pois houve quem, como Heraclides do Ponto e Aristarco, supusesse que os fenômenos pudessem ser salvos se os céus e os astros estivessem em repouso, enquanto a [T]erra movesse em torno dos pólos do círculo equinocial, de oeste (para leste), completando uma rotação cada dia, aproximadamente; [...]. Pois, é claro, se a [T]erra de nenhum modo movesse, como ele irá, depois, provar ser o caso, embora, aqui, ele [Aristóteles] o assuma para efeito de argumentação, seria impossível salvar os fenômenos na suposição de que o céu e os astros estivessem em repouso.
Evidência 5: Simplício (primeira metade do século VI dC)9 9 apud: Heath [3, p. 255] e van der Waerden [9, p. 176].
Isso teria igualmente acontecido (i.e., os astros pareceriam estar a diferentes distâncias, em vez de, como agora, parecerem estar sempre na mesma distância, seja ao nascerem ou ao se porem ou entre esses tempos, e a [L]ua não iria, quando eclipsada, estar sempre diametralmente oposta ao [S]ol, mas seria, algumas vezes, separada dele por um arco menor que um semi-círculo), se a [T]erra tivesse um movimento de translação; mas, se a [T]erra girasse em torno de seu centro, enquanto os corpos celestes estivessem em repouso, como supôs Heraclides do Ponto, então (I) na hipótese de rotação para oeste, os astros seriam vistos levantar-se desse lado [o que não acontece, logo a rotação só poderia ser para leste], enquanto que, (II) na hipótese de rotação para leste, (a) se ela girasse em torno dos pólos do círculo equinocial (o equador), o [S]ol e os outros planetas não se levantariam em diferentes pontos do horizonte [!] e (b) se ela girasse em torno dos pólos do círculo zodiacal, os astros fixos não se levantariam sempre nos mesmos pontos, como, de fato, fazem; de forma que, seja a rotação em torno dos pólos do círculo equinocial, seja em torno dos pólos do zodíaco, como poderia a translação dos planetas, na ordem direta dos signos, ter sido salva, na assunção de imobilidade dos céus?
Essa citação é importante, pois Heraclides é citado por autor considerado rigoroso. Van der Waerden argumenta que ela significa que Heraclides atribuiu à Terra uma translação anual ao longo da eclíptica.
3.3. A hipótese heliocêntrica de Aristarco
Evidência 6: Arquimedes de Siracusa (287-212 aC)10 10 apud Heath [3, p. 302].
Mas Aristarco produziu um livro consistindo de certas hipóteses, no qual parece que, como conseqüência das assunções feitas, o universo é muitas vezes maior que o "universo" acabado de mencionar. Suas hipóteses são que os astros fixos e o [S]ol permanecem parados, que a [T]erra revolve em torno do [S]ol na circunferência de um círculo
Heath interpreta essa citação assim [3, p. 309]:
[Aristarco], claramente, quer [apenas] dizer que a esfera dos astros fixos é incomparavelmente maior do que a [esfera] que contém a órbita da [T]erra como um grande círculo; e ele foi suficientemente esperto para ver que isso é necessário para reconciliar a aparente imobilidade dos astros fixos com o movimento da [T]erra.
3.4. Planetas exteriores
Enquanto que, no caso dos planetas interiores, pode ser dito que o movimento dos planetas em torno do Sol é um caso de observação direta, no caso dos planetas exteriores isso só pode ser inferido de um modelo astronômico; a razão é que a órbita desses planetas engloba a da Terra.
Para explicar o movimento desses planetas, foi introduzida a hipótese do círculo excêntrico. A paternidade do modelo é controversa. A evidência que se segue (evidência 7) é uma citação de Apolônio, feita por Ptolomeu, a qual mostra l'état de l'art na época de Apolônio.11 11 Segundo Heath [3], historiadores têm usado essa passagem para dizer que Apolônio foi o inventor do modelo de epiciclos e deferentes, mas [3, p. 267] "se se lê a passagem cuidadosamente, acharemos que ela não implica isso". Téo de Esmirna (primeira metade do século II dC) atribui a paternidade do modelo de epiciclos e deferentes a Hiparco de Nicéia (segunda metade do século II aC) [3, p. 268]. Quanto ao modelo do excêntrico [3, p. 268-269]:
Evidência 7: Apolônio de Perga (265?-170 aC)12 12 apud Heath [3, p. 266].
(I) A hipótese do epiciclo: "Aqui o avanço do epiciclo, em longitude, dá-se na ordem direta dos signos, em torno do círculo concêntrico com o [Z]odíaco, enquanto o astro se move no epiciclo, em torno de seu centro, com uma rapidez igual à da anomalia e na ordem direta dos signos, naquela parte da circunferência do epiciclo mais afastada da [T]erra".
(II) A hipótese do excêntrico: "Essa só é aplicável aos três planetas que podem estar a uma distância angular qualquer, do [S]ol [os planetas exteriores] e, aqui, o centro do círculo excêntrico se move em torno do centro do [Z]odíaco, na ordem direta dos signos, enquanto que o astro se move no excêntrico, em torno de seu centro, na ordem inversa dos signos e com uma rapidez igual àquela da anomalia".
Segundo Heath, o argumento de Apolônio é [3, p. 267]:
O que faz Apolônio dizer que a hipótese do excêntrico não é aplicável aos planetas inferiores é o fato de que, de modo a fazê-lo aplicável a eles, teríamos de supor o círculo descrito pelo centro do excêntrico maior do que o próprio círculo excêntrico.
4. Onde está o Sol?
Para que a tese de Schiaparelli (discutida por Heath [3, p. 260-265]) tenha algum grau de plausibilidade, algumas condições de consistência devem ser satisfeitas:
1. A distância do Sol a cada planeta deve ser igual a distância ponto excêntrico-planeta: Sol-planeta = SP.
2. A ordenação dos planetas de acordo com a distância do ponto-excêntrico (S) ao planeta (P) deve coincidir com a ordem correta dos planetas a partir do Sol, assim: S-Mercúrio-Vênus-(Terra)-Marte-Júpiter-Saturno.
3. As dimensões dos planetas e do Sol devem ser compatíveis com as distâncias preditas. Em outras palavras, os astros devem "caber" dentro do "sistema solar".
4. Mesmo que seja possível colocar os planetas girando em torno de um único e mesmo ponto, que o Sol ocupe esse ponto é uma hipótese independente.
4.1. Distância dos planetas ao ponto excêntrico e ordenação dos planetas
Planeta exterior. O círculo percorrido por S, nas Figs. 5 e 6, é o deferente da Fig. 4 (S gira com o deferente). Portanto, a distância de S ao planeta é o raio do epiciclo ou, o que é o mesmo, o valor da excentricidade mostrada na Fig. 4 (DT = DE).
Ptolomeu calcula a excentricidade DE (Fig. 4) para cada planeta. A unidade de medida é escolhida, de modo que o raio do deferente para aquele planeta valha 60 up; claramente, cada planeta tem um valor de up, diferente do dos outros planetas.
Planeta interior. Na Fig. 5, troca-se S por P e P por T (o círculo centrado no novo T não está traçado). O resultado é que o deferente mostrado na Fig. 4 passa a ser o círculo excêntrico e o círculo centrado em D, na Fig. 4, passa a ser o novo deferente, que coincide com o epiciclo. Logo, a distância do ponto excêntrico (S) ao planeta é o raio do deferente.
Redução à mesma unidade [5, p. 473]. Para comparar distâncias, é preciso referir os valores a um mesmo u. A unidade escolhida é aquela em que S-Terra = 60 u. No caso dos planetas interiores, as distâncias já estão na unidade escolhida. No caso dos planetas exteriores, isso é feito por uma "regra de três": o raio do deferente = 60 está para o raio do deferente = X assim como S-planeta = A está para S-Terra = 60 u.
Na Tabela 1 as distâncias são, também, apresentadas em unidades astronômicas (ua), definida por Sol-Terra = 1.
4.2. Tamanho do sistema solar
Os diâmetros dos astros estimados na época devem ser compatíveis com as distâncias S-planeta estimadas na seção anterior; isto é, as dimensões de dois planetas vizinhos têm de caber dentro das distâncias entre eles sem que um planeta se sobreponha ao outro. Há estimativas, apenas, para o Sol e a Terra (Tabela 2) e, pelo menos para esses, a compatibilidade pode ser verificada (Tabela 3).
É trivial que os valores achados por Ptolomeu para os raios do Sol e da Terra são consistentes com a ordenação dos planetas a partir de S (Fig. 7). Além disso, sua estimativa para o diâmetro da Terra (em valores absolutos) está bem avaliada em ordem de grandeza: () » 12 × 103 km para Ptolomeu, vs. () » 12,76 × 103 km moderno; em unidades u, Ptolomeu acha um diâmetro 20 vezes maior que o moderno, mas, mesmo assim, não prejudica a ordenação na Fig. 7. O diâmetro do Sol está bem avaliado em unidades u (0,55 para Ptolomeu vs. 0,56 moderno), embora em valores absolutos seja (em ordem de grandeza) » 10 vezes menor.
4.3. O Sol no centro
Uma coisa é ordenar os planetas a partir de um mesmo ponto excêntrico; outra coisa, é saber se esse ponto precisa ser ocupado por algo e, se assim, o quê é esse "algo"? Abaixo listamos algumas respostas.
Argumento pitagórico: Téo de Esmirna (primeira metade do século II dC), Copérnico
Já foi citada, na introdução deste artigo, uma passagem de Copérnico que bem ilustra o papel do Neo-pitagorismo na hipótese heliocêntrica. Outra passagem é de Téo de Esmirna, um autor bem mais próximo de Aristarco (apud Heath [3, p. 262]).
[...] o centro do universo, enquanto magnitude, é a região em torno da [T]erra, a qual é fria e destituída de movimento; enquanto que, no universo, [considerado] como universo e coisa viva, a região em torno do [S]ol é o centro de seu princípio que anima, o [S]ol como se fosse o coração do Todo, que é, também, como nos contam, o ponto de partida de onde a alma procede para permear todo o corpo, espalhada sobre ele a partir das extremidades.
Argumento do tamanho do Sol, segundo Heath [3, p. 319]:
[Schiaparelli] sugere que uma das razões que levou Aristarco a colocar o [S]ol no centro do universo foi, provavelmente, a consideração do grande tamanho do [S]ol em comparação com a [T]erra. Ora, no tratado mencionado, Aristarco acha que a razão do diâmetro do [S]ol para o diâmetro da [T]erra está entre 19:3 e 43:6; isso torna o volume do [S]ol algo como 300 vezes o volume da [T]erra e, embora os princípios da dinâmica fossem, então, desconhecidos, mesmo naquela época poderia parecer absurdo fazer com que o corpo que fosse muito maior revolvesse em torno do menor.
Argumento com base na astronomia física
Inicialmente, é preciso que se note uma contradição entre a astronomia física e a astronomia matemática [6, p. 64-65]:
A rejeição, em bases físicas [isto é, da filosofia natural], de qualquer teoria astronômica que concebia a [T]erra movendo-se impedia, ao mesmo tempo, sua elaboração como descrição puramente matemática; [...]. Isso indica que a distinção metodológica entre [A]stronomia [M]atemática e [F]ísica não poderia ser preservada como absolutamente prática, na medida que pudesse ser formulada, em teoria.
[...]
Tão logo as assunções sobre as quais essa teoria [de epiciclos e deferentes] é baseada foram testadas, com relação aos princípios da [F]ísica [isto é, Filosofia Natural], a apreciação de seu valor estava fadada a ser bem diferente daquilo que foi, quando os resultados a que levou só eram requeridos a concordar com fatos observados. Em particular, uma contradição insolúvel se apresentava com respeito à [F]ilosofia [N]atural de Aristóteles. De acordo com ele, um movimento circular natural não pode ter lugar, senão em torno do centro imóvel do universo; isso pede, até mesmo, a presen ca de um corpo central imóvel, nesse caso, a [T]erra. A teoria das esferas concêntricas satisfaz a esse requerimento; a hipótese de um movimento excêntrico, entretanto, já se tornava impossível por isso, enquanto que a suposição de que um corpo celestial deveria ser capaz de mover em um epiciclo, i.e. deveria ser capaz de revolver em torno de um ponto matemático que, a seu turno, deveria, também, estar movendo, conflitava ainda mais obviamente com [o requerimento].
O argumento de Schiaparelli faz uso da idéia, tão bem descrita por Dijksterhuis, de que o movimento circular em torno de pontos matemáticos abstratos não cabia na Filosofia Natural [3, p. 264]:
A coisa natural, no caso de Marte, teria sido fazer do [S]ol material o centro, como foi feito, com os epiciclos de Vênus e Mercúrio. O uso de pontos ideais como centros de epiciclos e excêntricos foi, sem dúvida, primeiramente pensado, em um estágio posterior, por algum grande matemático, tal como Apolônio.
Comentário
A tese de Schiaparelli refere-se à Astronomia Matemática; dentro do ponto de vista dessa Astronomia, que estuda a posição dos astros e seus movimentos aparentes, colocar o Sol no centro seria uma hipótese possível ("natural"), dentro de um modelo. Mas (como citado acima) Heath observa que seria filosoficamente difícil justificar o ponto imaterial (S); por outro lado, o sistema de epiciclos e deferentes também usa pontos imateriais, os centros desses círculos; o próprio Ptolomeu introduziu o ponto equante, um ponto imaterial. A tese de Schiaparelli, para entrar no domínio da Astronomia Física, depende da possibilidade de atribuir materialidade a S, colocando o Sol em S, e da verificação de sua consistência com outros postulados da Filosofia Natural.
Não é intenção deste artigo discutir por que o desenvolvimento do sistema heliocêntrico teve de esperar por Copérnico. O artigo não se propõe a avaliar teorias epistemológicas, mais particularmente um problema difícil e cheio de polêmicas, o da escolha entre teorias que competem entre si. Como dito na Introdução, é possível que o desenvolvimento do sistema heliocêntrico por Copérnico precisasse da emergência do neo-platonismo; isso não é incompatível com a hipótese de Schiaparelli, apenas reformula a questão epistemológica: Se a idéia pôde ser concebida e discutida, anteriormente, e se era consistente com o aparato da Astronomia Matemática, então por que não foi desenvolvida?
Recebido em 31/7/2007; Aceito em 31/9/2007
A teoria de excêntricos, portanto, já tinha sido generalizada ao tempo de Hiparco de Nicéia [(segunda metade do século II aC)], mas, com Apolônio, ainda era limitada ao caso dos três planetas superiores. Isso indica, clara e suficientemente, que foi inventada com o específico propósito de explicar os movimentos de Marte, Júpiter e Saturno em torno do [S]ol e somente com esse propósito.
Nessa passagem, Heath argumenta contra Schiaparelli, que atribui o modelo a Heraclides; por sua vez, Heath atribui o modelo a Apolônio de Perga.
- [1] T.S. Kuhn, The Copernican Revolution (Harvard University Press, Cambridge, 1957).
- [2] N. Copérnico, Das Revoluçőes das Esferas Celestes (Nuremberg, 1543). Traduzido para o inglęs por C.G. Wallis, Great Books of the Western World, 54 v. (Encyclopćdia Britannica, Chicago, 1952), v. 16, p. 496-838.
- [3] T.L. Heath, Aristarchus of Samos (The Ancient Copernicus) (Clarendon Press, Oxford, 1913; Dover, Nova Iorque, 1981).
- [4] G.J. Toomer, Ptolemy's Almagest (Princeton University Press, 1998).
- [5] C. Ptolomeu, Almagesto, século II dC. Comentado e traduzido para o Inglęs por R. Catesby Taliaferro, Great Books of the Western World, 54 v. (Encyclopćdia Britannica, Chicago, 1952), v. 16, p. 1-495.
- [6] E.J. Dijksterhuis, The Mechanization of the World Picture Traduzido para o Inglęs por C. Diskhoorn (Oxford University Press, Oxford, 1961, 1969) e (Princeton University Press, Princeton, 1986).
- [7] P.M.C. Dias, W.M.S. Santos e M.T.M. de Souza, Revista Brasileira de Ensino de Física 26, 257 (2004).
- [8] J. Evans, The History and Practice of Ancient Astronomy (Oxford University Press, Nova Iorque, 1998).
- [9] B.L. van der Waerden, Archives Internationales d'Histoire des Sciences 28, 167 (1978).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Mar 2008 -
Data do Fascículo
2007
Histórico
-
Recebido
31 Jul 2007 -
Aceito
30 Set 2007