Resumos
A distância Terra-Sol, conhecida como Unidade Astronômica (UA), tem papel fundamental para a Astronomia: ela fornece uma escala de distâncias dentro do nosso sistema solar e serve como base para a medida de distâncias entre o Sol e estrelas próximas. Neste trabalho, apresentamos uma das maneiras para se obter a UA a partir dos trânsitos de Vênus pelo disco solar. Esta é uma adaptação do método de Halley e foi aplicado a partir das imagens obtidas pelo software livre de Astronomia Stellarium. Encontramos o valor (1, 4±0, 3)⋅108km, em concordância de 93, 6% com o valor aceito pela literatura. A revisão do método de obtenção da Unidade Astronômica a partir do trânsito de planetas fundamenta-se por razões tanto pedagógicas quanto científicas: este trabalho pode ser facilmente reproduzido em salas de aula tanto do ensino médio quanto superior em cursos de introdução à Astronomia. Além disso, o trânsito de Vênus de 2012 foi utilizado para a determinação do raio do Sol com incerteza de apenas 15km, justificando assim o seu estudo. Por fim, este trabalho fornece um teste de autoconsistência do Stellarium, uma vez que determinamos por meios geométricos o valor da UA utilizado pelo programa.
Palavras-chave:
Unidade Astronômica; Astronomia; trânsito de Vênus
The distance between the Earth and the Sun, known as the Astronomical Unit (AU), has a fundamental role to Astronomy: it provides a scale distance inside our solar system and supports the measure from the Sun to near stars. Then, in this work we present one of the methods to obtain the AU using the Venus transits in front of the Sun. This is an adaptation to the Halley's method and was applied with the help of the free software of Astronomy Stellarium. We found (1, 4 ± 0, 3) ⋅ 108km, which gives 93, 6% of accordance with the literature. The revision of the method of obtaining the AU using the planet's transit meets either pedagogical and scientific reasons: the work proposed here may be easily reproduced in classrooms from high-school to the college, in courses related to Astronomy. Besides, the Venus transit itself from June 2012 was used to measure the solar radius with an uncertainty of only 15km, which justifies its study. Finally, this work checks the consistence of Stellarium for we have determined via geometrical means the AU inserted into the program.
Keywords:
Astronomical Unity; Astronomy; Venus transit
1. Introdução
A Astronomia por si só traz grande interesse ao público de todas as idades. É comum vermos matérias nos noticiários associados ao tema, seja sobre descobertas de novos planetas fora do sistema solar [11 Erik A. Petigura, Andrew W. Howard and Geoffrey W. Marcy, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America 110, 19273 (2013).,22 I.J.M. Crossfield, E. Petigura, J. Schlieder, A.W. Howard, B.J. Fulton, K.M. Aller, D.R. Ciardi, S. Lepine et al., arXiv:1501.03798 [astro-ph.EP].], sobre Marte após a sua exploração por sondas e satélites que o orbitam ou a concentração massiva de pessoas para observação de eclipses. Por que então não utilizar esta atração intrínseca pelo cosmo como elemento motivador para o estudo e divulgação de ciências? Apesar de esforços, estudos indicam que sequer os cursos de licenciatura em ciências exatas dão a devida atenção à Astronomia [33 Artur Justiniano Roberto Junior, Thiago Henrique Reis e Daniel dos Reis Germinaro, Revista Latino-Americana de Educação em Astronomia 18, 89 (2014).]. Assim, propomos neste trabalho uma atividade interativa para a determinação da distância da Terra ao Sol, conhecida como Unidade Astronômica (UA). O método pode ser usado tanto no ensino médio (por não envolver detalhes técnicos rebuscados) quanto no ensino superior. Este trabalho será dividido da seguinte maneira: na Seção 2, destacamos a importância da UA como escala de distâncias astronômicas tanto dentro como fora do nosso sistema solar. Uma revisão histórica sobre a UA e sua determinação é fornecida na Seção 3. Em particular, destacamos a sugestão dada por E. Halley para a determinação da UA a partir do trânsito de Vênus pelo disco solar, legado este que suscitou as clássicas expedições de 1761 e 1769 para coleta de dados e obtenção da Unidade Astronômica. Uma adaptação do método de Halley (e Deslile) é dada na Seção 4 em conjunto com a coleta das imagens dos trânsitos de Vênus de 1631 a 2247 utilizando-se o software livre de Astronomia Stellarium. A análise dos dados na Seção 5 forneceu um valor de (1,4 ± 0,3) ⋅ 108km, em concordância de 93,6% com o valor da UA aceito pela comunidade científica. A Seção 6 é deixada para a conclusão.
2. A importância da Unidade Astronômica
A Astronomia é uma ciência bastante antiga e nos remete a 40 séculos antes de Cristo com os Caldeus, Assírios e Babilônios [44 Nicole Fleuriot, Alexandre Namara e René Svétak, Segredos da Astronomia (Otto Pierre Editores, Rio de Janeiro, 1979).]. Contudo é na Grécia antiga (por volta de 500 a 100 a.C.) que discute-se, por exemplo, sobre a distribuição dos planetas e estrelas na esfera celeste e sobre qual sistema deveríamos adotar: o geocêntrico, com a Terra no centro do Universo ou o heliocêntrico, com o Sol ocupando o centro. Neste segundo caso, planetas e estrelas orbitariam ao redor do nosso Sol. O sistema geocêntrico acabou sendo aceito pois explicava, dentre outros, o movimento errante dos planetas via epiciclos e deferentes [55 Moysés H. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Editora Edgard Blücher, São Paulo, 2013).]. Um argumento bastante forte contra o sistema heliocêntrico foi a ausência de paralaxe estelar, que só foi observada em 1838 [55 Moysés H. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Editora Edgard Blücher, São Paulo, 2013).]. Assim, assumir que a Terra estava parada era de fato mais razoável. Foi só no século XVI que o sistema geocêntrico cai por terra, sendo substituído pelo heliocêntrico por Nicolau Copérnico, um astrônomo extremamente preciso. Seu modelo podia fazer previsões, explicar, por exemplo as estações do ano e o próprio movimento retrógrado dos planetas. Copérnico obteve também as distâncias relativas dos planetas ao Sol, sendo a unidade astronômica igual a 1, veja a Tabela I [55 Moysés H. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Editora Edgard Blücher, São Paulo, 2013).].
Comparação entre os dados de Copérnico e atuais para os valores relativos das distâncias de planetas ao Sol.
Infelizmente Copérnico não conseguiu obter o valor absoluto da UA, o que é essencial para termos uma escala de distâncias dentro do sistema solar. A UA é também ponto de partida para obtermos distâncias das estrelas próximas ao Sol. Com efeito, medidas de distância entre estrelas próximas e o Sol são dadas em parsecs, que é definido como a distância D de uma estrela ao Sol quando a paralaxe anual p é de um segundo de arco, conforme a Fig. 1.
Neste caso, teremos
Diante do que foi exposto, fica evidente a importância da determinação da Unidade Astronômica como ponto de partida para escalas intra sistema solar e entre o Sol e estrelas próximas. Nas próximas Seções, discutiremos então uma pouco sobre a história da obtenção da UA bem como a adaptação de um método para determiná-la.
3. Um pouco de história da UA
Como discutimos anteriormente, é inquestionável a necessidade de obtenção de um valor preciso para a Unidade Astronômica. Uma de suas estimativas mais antigas foi dada na Grécia antiga por Hiparco de Niceia no século II a.C. [44 Nicole Fleuriot, Alexandre Namara e René Svétak, Segredos da Astronomia (Otto Pierre Editores, Rio de Janeiro, 1979).], sendo de aproximadamente 1200 vezes o raio terrestre. Apesar do erro, este valor persistiu por muitos séculos já que Kepler teria sido o primeiro a sugerir a possibilidade de se medir a UA nos anos 20 do século XVII usando os trânsitos de Vênus e Mercúrio na frente do disco solar. O próprio Kepler chegou a prever o trânsito destes planetas em 1631 (Figuras 2 e 3), apesar de não terem sido vistos da Europa, conforme indica a Figura 4.1 1 As imagens que compõem as Figura 2, 3 e 4 foram extraídas do software livre de Astronomia Stellarium, que será também utilizado na Seção IV.
O século XVII foi bastante frutífero para a Astronomia: em 1609 Galileu fez suas primeiras observações do céu noturno com um telescópio que teria construído apenas sabendo da existência de tal instrumento. Sua invenção data de 1608 e é creditada ao holandês Hans Lippershey [66 Kepler de Oliveira e Maria de Fátima Saraiva, Astronomia & Astrofísica (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2014).] e que até então só teria sido utilizado por militares. Estas observações foram de fato o divisor de águas para as ciências do cosmo e que motivaram uma comemoração global em 2009, marcada pelo seu aniversário de 400 anos, o Ano Internacional da Astronomia [77 Augusto Damineli e João Steiner, O Fascínio do Universo (Editora Odysseus, São Paulo, 2010).].
Alguns anos mais tarde, em 1716, Edmund Halley propôs em uma reunião da Royal Society uma sugestão para se medir a UA. Motivado por um trânsito de Mercúrio que acompanhou da ilha de Santa Helena [66 Kepler de Oliveira e Maria de Fátima Saraiva, Astronomia & Astrofísica (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2014).], ele disse [88 Mark Anderson, The Day the World Discovered the Sun (Da Capo Press, Boston, 2012).]
“I very accurately obtained, with a good 24-foot telescope, the very moment in which Mercury, entering the sun's limb, seemed to touch it internally, as also that of this going off.”2 2 Em uma tradução livre, “Eu obtive de maneira muito acurada, com um telescópio de 24 pés, o momento exato em que Mercúrio, entrando no disco solar, parece tocá-lo internamente e também o momento exato de sua saída.”
Infelizmente, devido ao seu tamanho e distância da Terra, seriam necessários bons telescópios e astrônomos bem treinados para se acompanhar o trânsito de Mercúrio. Halley então sugeriu que a resposta estava em Vênus: por ser maior e mais próximo da Terra do que Mercúrio, a determinação da paralaxe solar3
3
Paralaxe solar é o desvio aparente do Sol visto por observadores em locais distintos na Terra.
seria facilitada e a partir do seu valor, a obtenção da UA resume-se a um problema de geometria [99 Udo Backhaus. Disponível em http://www.venus2012.de/stuff/TransitEngl.pdf, aesso em 11/5/2015.
http://www.venus2012.de/stuff/TransitEng...
]. Em 1720 o francês Joseph-Nicolas Deslile propôs uma simplificação no método de Halley. Não seria necessário observar o trânsito durante horas como proposto por Halley contudo seu método exigia um conhecimento prévio da latitude e longitude dos observadores, o que não era necessário no método de Halley.
A previsão para o próximo trânsito foi feita pelo próprio Halley e aconteceria em 1761, quando ele completasse 105 anos. Infelizmente ele não viveu para presenciar uma das suas maiores contribuições para a ciência da época, uma vez que o trânsito de Vênus é um fenômeno raro para ser observado repetidamente em uma vida. De fato, os planos das órbitas da Terra e Vênus ao redor do Sol são inclinados um em relação ao outro em 3,3° graus conforme a Figura 5, fazendo com que só haja dois pontos de alinhamento que possibilitam o fenômeno. O mesmo ocorre com os eclipses: a Lua tem uma órbita inclinada em relação ao plano de translação da Terra, fazendo com que os mesmos não ocorram mensalmente. Os eclipses podem ser previstos pelo que é conhecido como ciclo de Saros [1010 Fabio A.C.C. Chalub, Revista Brasileira de Ensino de Física 31, 1303 (2009).].
A Terra passa pelos pontos 1 e 4 em junho e dezembro. Para ocorrer o trânsito, Vênus precisa cruzar 2 e 3 neste mesmo período. A razão entre os períodos de translação dos dois planetas fornece um ciclo de 243 anos (=8+105,5+8+121,5) para os trânsitos. Eles são separados por pares de 8 anos e cada um destes pares é separado ora por 105,5 ora por 121,5 anos. Na Tabela II apresentamos alguns trânsitos de Vênus, que vão de 1631 a 2247, com o local e hora de observação, bem como o intervalo para o próximo trânsito. Ressaltamos que as datas não correspondem necessariamente ao início do trânsito e sim o momento de observação obtido e checado com o Stellarium. Por exemplo, o trânsito de 2012 na Alemanha, segundo o programa, iniciou-se às 23:59 do dia 05 de junho. Como este trabalho depende da observação direta do fenômeno, os horários foram escolhidos para que o Sol (e Vênus) estivesse visível.
O legado de Halley foi suficiente para se estabelecer a primeira colaboração científica internacional de grande porte para a obtenção da UA. Foram montadas expedições para os trânsitos de 1761 e 1769 para lugares inóspitos até mesmo para os parâmetros atuais, incluindo, por exemplo, a Ilha de Santa Helena, Baía de Hudson no Canadá, Taiti, Vardϕ na Noruega e Tobolski na Sibéria. Uma revisão ampla sobre o panorama histórico e político por trás das expedições pode ser encontrado em [88 Mark Anderson, The Day the World Discovered the Sun (Da Capo Press, Boston, 2012).]. Nesta mesma referência, em um Apêndice Técnico, o autor discute como, a partir dos dados colhidos com as observações, chegou-se ao valor de
Os trânsitos de 2004 em diante possuem certa importância didático-pedagógica: eles podem ser utilizados por professores em todos os níveis de educação formal como elemento motivador e ainda possuem relevância histórica uma vez que podemos relembrar os feitos de grandes astrônomos e seus esforços para se desvendar os mistérios do nosso universo. Não devemos esquecer também do seu valor científico: recentemente os trânsitos de Mercúrio de 2003 e 2006 foram utilizados para a medição do raio do Sol com excelente exatidão (a incerteza foi de apenas 65km) [1111 M. Emilio, J.R. Kuhn, R.I. Bush and I.F. Scholl, The Astrophysical Journal 750, 135 (2012).] e posteriormente este resultado foi ainda melhorado pelo mesmo grupo com a utilização do trânsito de Vênus de 2012 (neste segundo estudo, a incerteza foi de 15km) [1212 M. Emilio, S. Couvidat, R.I. Bush, J.R. Kuhn and I.F. Scholl, The Astrophysical Journal 798, 48 (2015).]. Na próxima Seção faremos uma adaptação do método de Halley e Deslile que pode ser facilmente reproduzida em sala de aula seja no ensino médio ou superior, em cursos de introdução à Astronomia.
4. O método de Halley-Deslile adaptado
Apresentaremos agora um método para obtenção da Unidade Astronômica. A versão simplificada da metodologia pode ser obtida no site do Museu Nacional da Ciência e da Técnica Doutor Mário Silva [1313 Disponível em http://obviousmag.org/archives/uploads/2004/venus.pdf, acesso em 25/3/2015.
http://obviousmag.org/archives/uploads/2...
].
Consideremos inicialmente um trânsito de Vênus conforme a Figura 6 (fora de escala), onde A e B são dois observadores na Terra, A′ e B′ as respectivas projeções de Vênus no disco solar, a é a unidade astronômica e d corresponde à distância de Vênus ao Sol. Nesta aproximação, os raios do Sol e da Terra podem ser desprezados por serem muito menores que as distâncias envolvidas no problema.
Observemos também que os observadores A e B estão fixados na mesma longitude, garantindo que ambos vejam Vênus no mesmo instante e sem necessidade de ajuste do fuso horário.4 4 Quando partimos de A em direção a B, tanto o Sol quanto Vênus sofrem paralaxe. Contudo o método apresentado depende da ausência de paralaxe solar. O ajuste para este ponto será discutido no final desta Seção.
Com boa aproximação, podemos supor que os triângulos ABV e A′B′V são semelhantes, com V representando o vértice em Vênus. Assim,
Com efeito a aproximação acima é válida: para dois pontos arbitrários A e B sobre o mesmo meridiano, ABV e A′B′V. Poderíamos, por exemplo, na Fig. 6 prolongar os segmentos r e s, paralelas por construção). Neste caso teríamos até encontramos e e não são paralelos e logo não há semelhança entre e paralelos (estes últimos segmentos estão sobre as retas
com ε1,2 distâncias pequenas comparadas por exemplo com a, d ou a - d. Agora garantimos a semelhança entre AB*V e A′*B′V e então
Como ε1 ≪ a - d e ε2 ≪ d, chegamos à expressão aproximada (3).
Pela terceira lei de Kepler [55 Moysés H. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Editora Edgard Blücher, São Paulo, 2013).], sabemos que o cubo do raio médio da órbita de um planeta é proporcional ao quadrado do seu período de translação,
Assumindo, com boa aproximação, órbitas circulares para a Terra e Vênus (já que a excentricidade de ambas é muito menor do que 1), temos
τV e τT correspondem aos períodos de translação de Vênus e da Terra, conhecidos com boa exatidão já por Copérnico [55 Moysés H. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Editora Edgard Blücher, São Paulo, 2013).]. Assim, (7) fica reduzida a
Retornando com (8) em (3), obtemos
Vamos guardar esta última expressão por um momento e consideremos um observador do Sol na Terra como na Figura 7.
Sendo α o ângulo com que o observador vê o Sol e D o seu diâmetro, temos
já que α≪ 1 e assim .
Agora utilizaremos o fato que uma fotografia conserva proporções de tamanho. Isto pode ser comprovado por um experimento simples. Sejam H1 e H2 a altura de duas pessoas. Coloque-as alinhadas, tire uma foto das duas e meça então ambas as alturas na fotografia, digamos [H1] e [H2]. Experimentalmente, verifica-se que
Utilizando este fato, podemos inferir que
[⋅] corresponde às distâncias medidas em uma fotografia. Unindo as equações (9), (10) e (12) encontramos finalmente a expressão para a UA
Resta agora discutir como obter cada uma das variáveis de (13). A primeira delas será a abertura angular α. O movimento aparente do Sol na esfera celeste se dá ao longo de um dia e ocorre devido à rotação da Terra com velocidade angular ω = 2π∕24h. Assim, sabendo por meio de observação direta que o Sol gasta aproximadamente t = 2 minutos do momento em que começa a se por até sumir completamente no horizonte, encontramos
Um valor mais preciso com incerteza de apenas 0,5% pode ser obtido com um experimento de ótica, onde a luz do Sol atravessa dois orifícios e é projetada em um anteparo. Os detalhes podem ser vistos em [1414 Costantino Sigismondi, Am. J. Phys. 70, 1157 (2002).]. Neste caso,
As outras grandezas envolvidas em (13) para a determinação da UA foram obtidas com o auxílio do software livre de Astronomia Stellarium, como proposto anteriormente. Neste trabalho, utilizamos a versão 0.12.4 do programa, que fornece um planetário virtual ao usuário. O Stellarium foi escrito por Fabien Chéreau et al [1515 Disponível em http://www.stellarium.org, acesso em 7/1/2016.
http://www.stellarium.org...
] e é um software livre que mostra a posição do Sol, Lua, planetas, estrelas, etc, fornecendo a visão do observador do céu de acordo com sua localização e hora [1616 Disponível em http://www.stellarium.org/wiki/index.php/Category:User's\_Guide, acesso em 7/1/2016.
http://www.stellarium.org/wiki/index.php...
].
Para conferir validade ao método de obtenção da UA, repetimos o procedimento variando latitude, longitude data e horário de observação. O método foi reproduzido para os onze trânsitos da Tabela II. Vamos descrever detalhadamente a coleta de dAB, [D] e [dA′B′] para cada trânsito.
Inicialmente sincronizamos o fuso horário do sistema operacional (Ubuntu 14.04) do computador com o do Stellarium na janela “Localização”, marcando o box “Utilizar como padrão”. Assim garantimos que o programa, ao ser iniciado, marque o mesmo horário que o computador. Ao trocarmos a posição de observação com o Stellarium, há um ajuste automático da visualização do céu, sem que o relógio do programa seja ajustado. Assim, este passo inicial de sincronização em cada um dos trânsitos é essencial para evitarmos, por exemplo, visualização do céu noturno mas com o relógio marcando, digamos, 14h da tarde. Escolhido o local, ajustamos a data e horário do trânsito de acordo com a Tabela II. Centralizamos a visualização do Sol e um zoom in fornece a imagem do observador A. Eliminamos então a atmosfera, destacando o Sol sobre um fundo escuro. A “fotografia” é obtida com o comando Ctrl+s. A imagem do observador B é obtida mantendo-se todos os dados de A, variando somente a longitude. Com isso garantimos que as imagens fossem feitas no mesmo instante. A Figura 8 ilustra, por exemplo, o trânsito visto de Coari, no interior do Amazonas. Já a Figura 9 foi obtida variando somente a longitude a partir do ajuste inicial feito para Coari (os detalhes de data e hora estão na Tabela II, assim como a variação na longitude encontra-se na Tabela III).
Para cada trânsito, coletamos as latitudes e longitudes da observação. Com a variação Δ = longA - longB podemos obter dAB pela lei dos cossenos, conforme a Figura 10.
Temos,
onde utilizamos para o raio da Terra o seu valor equatorial r = (6.378.142 ± 5)m [1717 Mohammad Asadullah Khan, Bulletin Géodésique 109, 227 (1973).].
Os pares de imagens que compõem os trânsitos foram impressas em papel A3 e ampliadas na mesma proporção para a determinação de [D] e [dA′B′].5 5 As Figs. 8 e 9 foram colocadas para ilustrar a metodologia adotada para obtenção do valor da Unidade Astronômica. Contudo, foram impressas onze pares de imagens do trânsito, as mesmas que aparecem na Tabela II. Em ambas as impressões, obtivemos o centro do círculo solar usando fundamentos de construções geométricas. Tomando quatro pontos arbitrários sobre a borda do círculo, digamos E, F, G e H, traça-se as mediatrizes dos segmentos 1818 E.Q.P. Resende e M.L. Bontorin de Queiroz, Geometria Euclidiana Plana e Construções Geométricas (Editora da Unicamp, Campinas, 2000).]. Assim, basta traçar qualquer corda que passe pelo centro determinado para medirmos o diâmetro do Sol [D] na imagem. Analogamente determinamos o centro de Vênus em cada uma das imagens., não paralelos, que se interseccionam no centro da circunferência que delimita o disco solar [ e
Ao variarmos a longitude de A para B, ambos Sol e Vênus sofrem paralaxe, conforme indica a Figura 11.
Paralaxe sofrida por Sol e Vênus ao variarmos a posição de um observador em um ponto A para um ponto B na Terra.
Para o nosso caso, utilizando a lei dos períodos de Kepler e a geometria (aproximada) da Figura 6, mostra-se que que a paralaxe de Vênus é 3,6 vezes a paralaxe do Sol. Entretanto, a Figura 6 expressa o fato que o método para determinação da UA depende única e exclusivamente da paralaxe de Vênus, mantendo-se o Sol fixo. Uma alternativa para a obtenção de ambas as paralaxes βV e βS e a consequente obtenção de βV -βS necessária ao nosso trabalho seria utilizar as estrelas ao fundo das imagens, tidas como referenciais fixos. Alternativamente, desprezando a paralaxe solar, utilizamos as manchas solares, fixas no disco solar para obtenção de [dA′B′]: passamos um alfinete pelos centros do Sol e sobrepomos as imagens das projeções de Vênus no disco solar. Giramos então as imagens até que as manchas solares ficassem alinhadas, fincando posteriormente também dois alfinetes em pontos facilmente identificados nas manchas. Com isso, obtemos a paralaxe real de Vênus necessária para a metodologia adotada aqui. Por fim, atravessamos um quarto alfinete na imagem de cima sobre o centro de Vênus para que ele atravessasse a figura de baixo. Assim, conseguimos medir diretamente [dA′B′]. A sequência de passos acima está ilustrada pelas Figuras 12 e 13.
Imagens sobrepostas e alinhadas a partir dos mesmos pontos de referência em cada uma delas.
5. Análise e discussão dos dados
A partir da metodologia apresentada anteriormente, coletamos os dados que estão na Tabela III (as datas e horas dos trânsitos estão na Tabela II). Δ corresponde à separação angular entre os observadores A e B na Terra e a notação (N)/(S) significa que o deslocamento de A para B foi feito no sentido Norte/Sul, sobre o mesmo meridiano.
Substituindo os dados obtidos na expressão (13) encontramos onze valores ai, com i = 1,…,11 para a UA, cuja média fornece
A incerteza para a UA foi obtida pela combinação entre incertezas do tipo A e B [1919 INMETRO, Avaliação de Dados de Medição: Guia para a Expressão de Incerteza de Medição - GUM 2008 (INMETRO, Duque de Caxias, 2012), 1ª ed., disponível em http://www.inmetro.gov.br/inovacao/publicacoes/gum_final.pdf, acesso em 12/5/2015.
http://www.inmetro.gov.br/inovacao/publi...
]
com δaA sendo o desvio-padrão
e < δaB > a média entre incertezas do tipo B para cada um dos trânsitos,
Cada f = f(x1,…,x4) (como é o caso da UA dada em (13)) com as respectivas incertezas δxi, i = 1,…,4, temos foi obtido com a prescrição padrão para a incerteza do tipo B, isto é, dada uma expressão que dependa de 4 variáveis, digamos
Para o nosso caso, [D] e [dA′B′] foram medidos com uma régua graduada em milímetros. Logo, δ[D] = δ[dA′B′] = 0,05cm. De acordo com [1414 Costantino Sigismondi, Am. J. Phys. 70, 1157 (2002).], a incerteza para a abertura angular α é dada por δα = 5 ⋅ 10-5 e por fim, δdAB foi estimado utilizando a incerteza do raio da Terra em conjunto com a expressão (16),
Finalmente, ajustando os algarismos significativos, obtivemos o seguinte valor “experimental” para a UA
A concordância C de nosso resultado com o valor da UA aceito pela União Astronômica Internacional [2020 E.V. Pitjeva and E.M. Standish, Celestial Mechanics and Dynamical Astronomy 103, 365 (2009).]
foi de
Apesar de estar abaixo de 95%, esta concordância é aceitável ao encararmos este trabalho como ferramenta pedagógica interdisciplinar. O mesmo vale para a incerteza relativa de δa∕a(Exp) = 0,214 = 21,4%.
O Stellarium usa o método VSOP87 para cálculo da posição dos planetas com o passar do tempo [2121 Disponível em http://vizier.cfa.harvard.edu/viz-bin/ftp-index?/ftp/cats/VI/81, acesso em 11/1/2016.
http://vizier.cfa.harvard.edu/viz-bin/ft...
], em conjunto com a correção do tempo de Espenak e Meeus [2222 F. Espenak and J. Meeus, Five Millennium Canon of Solar Eclipses: −1999 to +3000 (2000 BCE to 3000 CE), NASA TP-2006-214141 (Goddard Space Flight Center, Greenbelt, 2006).]. De acordo com o guia do usuário do programa [1616 Disponível em http://www.stellarium.org/wiki/index.php/Category:User's\_Guide, acesso em 7/1/2016.
http://www.stellarium.org/wiki/index.php...
], possíveis imprecisões de posicionamento planetário estariam ligadas com a imprecisão da própria mecânica newtoniana, fornecendo para Vênus uma precisão de 1 segundo de arco de 2000 a.C. a 6.000 d.C. É natural esperar que tal imprecisão não afete significativamente o valor da UA encontrado. A expressão (13) é contudo bastante sensível para pequenas alterações em [dA′B′] e em algumas medidas, tivemos a incerteza relativa alta para esta variável,
Uma possível melhora na incerteza para a UA seria obtida por exemplo, imprimindo as imagens dos trânsitos em papel maior que A3, diminuindo a incerteza relativa para a variável [dA′B′].
6. Conclusão e Discussão
Neste trabalho aplicamos um método para obtenção da Unidade Astronômica definida como a distância entre a Terra e o Sol. Após discutirmos a sua importância como padrão de distâncias dentro e fora do nosso sistema solar, fizemos uma revisão histórica que vai da Grécia antiga até as clássicas expedições de 1761/1769 para medição da UA, principal legado deixado por E. Halley (e Deslile): poderíamos utilizar o trânsito de Vênus para estimar com boa exatidão o valor da UA. Utilizando então o software livre de Astronomia Stellarium, conseguimos reproduzir o trânsito de Vênus e partir daí revisamos detalhadamente uma adaptação do método de Halley e Deslile para o cálculo da procurada distância entre Terra e Sol, a(Exp) = (1,4 ± 0,3) ⋅ 108km. Tanto a incerteza relativa quanto a concordância apresentaram valores aceitáveis, principalmente para cumprir uma das metas propostas por este trabalho: ser reproduzido facilmente por alunos e professores tanto do ensino médio quanto superior em tópicos ligados com Astronomia.
Para concluir este trabalho, façamos uma breve discussão sobre como a Astronomia pode ser útil ao ensino no Brasil [2323 Rodolfo Langhi e Roberto Nardi, Revista Brasileira de Ensino de Física 31, 4402 (2009).]. Um dos pontos centrais sugeridos pelas Orientações Educacionais Complementares dos Parâmetros Curriculares Nacionais [2424 Brasil, PCN+ - Ensino Médio - Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais, disponível em http://www.sbfisica.org.br/arquivos/PCN_FIS.pdf, acesso em 12/5/2015.
http://www.sbfisica.org.br/arquivos/PCN_...
] na condução do aprendizado é a interdisciplinaridade. A articulação entre diferentes áreas de conhecimento deve estar presente no projeto pedagógico da escola [2424 Brasil, PCN+ - Ensino Médio - Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais, disponível em http://www.sbfisica.org.br/arquivos/PCN_FIS.pdf, acesso em 12/5/2015.
http://www.sbfisica.org.br/arquivos/PCN_...
] e naturalmente espera-se que projetos pedagógicos dos cursos de formação de professores também a estimulem. Este trabalho sugere como a Astronomia pode fazer este papel. Abordamos aqui a determinação da distância entre Terra e o Sol a partir do trânsito de Vênus. Para atingir o objetivo pretendido, foi necessário utilizar assuntos independentes que em geral são vistos pelos estudantes em épocas e disciplinas distintas, a saber,
-
As leis de Kepler para o movimento planetário;
-
Fundamentos de Trigonometria;
-
Construções geométricas;
-
Razões e proporções;
-
História das ciências;
-
Conceitos de Geografia, como coordenadas sobre o planeta Terra.
-
Conceitos básicos de estatística associados à coleta de dados experimentais.
-
Cálculos básicos utilizados em laboratórios, como por exemplo, propagação de erros.
Assim, este trabalho sugere fortemente a inserção da Astronomia em projetos pedagógicos seja no ensino médio ou superior, como elemento unificador entre diferentes áreas de conhecimento, fomentando a interdisciplinaridade.
- 1
-
2
Em uma tradução livre, “Eu obtive de maneira muito acurada, com um telescópio de 24 pés, o momento exato em que Mercúrio, entrando no disco solar, parece tocá-lo internamente e também o momento exato de sua saída.”
-
3
Paralaxe solar é o desvio aparente do Sol visto por observadores em locais distintos na Terra.
-
4
Quando partimos de A em direção a B, tanto o Sol quanto Vênus sofrem paralaxe. Contudo o método apresentado depende da ausência de paralaxe solar. O ajuste para este ponto será discutido no final desta Seção.
- 5
Referências
-
1Erik A. Petigura, Andrew W. Howard and Geoffrey W. Marcy, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America 110, 19273 (2013).
-
2I.J.M. Crossfield, E. Petigura, J. Schlieder, A.W. Howard, B.J. Fulton, K.M. Aller, D.R. Ciardi, S. Lepine et al., arXiv:1501.03798 [astro-ph.EP].
-
3Artur Justiniano Roberto Junior, Thiago Henrique Reis e Daniel dos Reis Germinaro, Revista Latino-Americana de Educação em Astronomia 18, 89 (2014).
-
4Nicole Fleuriot, Alexandre Namara e René Svétak, Segredos da Astronomia (Otto Pierre Editores, Rio de Janeiro, 1979).
-
5Moysés H. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Editora Edgard Blücher, São Paulo, 2013).
-
6Kepler de Oliveira e Maria de Fátima Saraiva, Astronomia & Astrofísica (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2014).
-
7Augusto Damineli e João Steiner, O Fascínio do Universo (Editora Odysseus, São Paulo, 2010).
-
8Mark Anderson, The Day the World Discovered the Sun (Da Capo Press, Boston, 2012).
-
9Udo Backhaus. Disponível em http://www.venus2012.de/stuff/TransitEngl.pdf, aesso em 11/5/2015.
» http://www.venus2012.de/stuff/TransitEngl.pdf -
10Fabio A.C.C. Chalub, Revista Brasileira de Ensino de Física 31, 1303 (2009).
-
11M. Emilio, J.R. Kuhn, R.I. Bush and I.F. Scholl, The Astrophysical Journal 750, 135 (2012).
-
12M. Emilio, S. Couvidat, R.I. Bush, J.R. Kuhn and I.F. Scholl, The Astrophysical Journal 798, 48 (2015).
-
13Disponível em http://obviousmag.org/archives/uploads/2004/venus.pdf, acesso em 25/3/2015.
» http://obviousmag.org/archives/uploads/2004/venus.pdf -
14Costantino Sigismondi, Am. J. Phys. 70, 1157 (2002).
-
15Disponível em http://www.stellarium.org, acesso em 7/1/2016.
» http://www.stellarium.org -
16Disponível em http://www.stellarium.org/wiki/index.php/Category:User's\_Guide, acesso em 7/1/2016.
» http://www.stellarium.org/wiki/index.php/Category:User's\_Guide -
17Mohammad Asadullah Khan, Bulletin Géodésique 109, 227 (1973).
-
18E.Q.P. Resende e M.L. Bontorin de Queiroz, Geometria Euclidiana Plana e Construções Geométricas (Editora da Unicamp, Campinas, 2000).
-
19INMETRO, Avaliação de Dados de Medição: Guia para a Expressão de Incerteza de Medição - GUM 2008 (INMETRO, Duque de Caxias, 2012), 1ª ed., disponível em http://www.inmetro.gov.br/inovacao/publicacoes/gum_final.pdf, acesso em 12/5/2015.
» http://www.inmetro.gov.br/inovacao/publicacoes/gum_final.pdf -
20E.V. Pitjeva and E.M. Standish, Celestial Mechanics and Dynamical Astronomy 103, 365 (2009).
-
21Disponível em http://vizier.cfa.harvard.edu/viz-bin/ftp-index?/ftp/cats/VI/81, acesso em 11/1/2016.
» http://vizier.cfa.harvard.edu/viz-bin/ftp-index?/ftp/cats/VI/81 -
22F. Espenak and J. Meeus, Five Millennium Canon of Solar Eclipses: −1999 to +3000 (2000 BCE to 3000 CE), NASA TP-2006-214141 (Goddard Space Flight Center, Greenbelt, 2006).
-
23Rodolfo Langhi e Roberto Nardi, Revista Brasileira de Ensino de Física 31, 4402 (2009).
-
24Brasil, PCN+ - Ensino Médio - Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais, disponível em http://www.sbfisica.org.br/arquivos/PCN_FIS.pdf, acesso em 12/5/2015.
» http://www.sbfisica.org.br/arquivos/PCN_FIS.pdf
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Set 2016
Histórico
-
Recebido
11 Jan 2016 -
Revisado
22 Fev 2016 -
Aceito
19 Mar 2016