EDITORIAL
Carga da tuberculose: reflexões sobre o tema
Os organismos patogênicos, como parte de um processo natural, interagem com o ambiente, buscando estabilidade dinâmica e seus nichos ecológicos, sejam estes internos ou externos a outros organismos.
É um desafio para a epidemiologia elucidar a complexidade dessas relações. O referencial teórico apenas quantitativo tem sido insuficiente, pelo esgotamento de questões do tipo "quanto? onde? qual?", que apesar de quantificar, hierarquizar e associar, nem sempre esclarecem o processo satisfatoriamente. Apresentam-se questões de outra natureza, do tipo "por que? como?", que são objeto da metodologia qualitativa, a qual busca profundidade, visão holística, interdisciplinaridade, significados e sentidos.
Pode até ser que muitas questões afeitas à patogenicidade da tuberculose encontrem suas respostas no referencial quantitativo. Contudo, o entendimento da dinâmica da doença não poderá prescindir de uma aborgagem qualitativa. A título de exercício, vejamos a doença tuberculose e sua dinâmica.
Há muito tempo já se tem afirmado que o poder patogênico da doença infecciosa seria a função virulência do micróbio (V) e resistência do organismo infectado (R), relacionando-se estes dois componentes da seguinte maneira:
Bier (1985)(1) assinala ainda que a patogenicidade (P) do processo seria uma função conjunta destes dois componentes. Se representarmos V e R por vetores perpendiculares, a patogenicidade seria expressa pelo ângulo do vetor resultante da soma dos dois, como representado no esquema a seguir:
Theobald Smith sugere a "fórmula"
onde N é o número de germes que penetra o organismo.
Rich acrescenta ainda o componente alergia tuberculínica (H). Esta, com seu poder de necrose, poderia agravar a lesão e, portanto, a "fórmula" ficaria:
Se entendermos a resistência como podendo ser natural (Rn) ou adquirida (Ra), teríamos:
A expressão acima (já consagrada na literatura médica)(2) tem a função apenas de facilitar a análise da patogenicidade, contudo não permite tratá-la como uma expressão matemática que gere soluções numéricas, uma vez que contém variáveis de natureza qualitativa.
Embora muitas proposições sejam apresentadas para explicar a fisiopatologia e imunidade da doença envolvendo o tipo de resposta imunitária, se Th1 ou Th2 , o papel das citocinas IL-12, IL-4 (Beyer et al. , 1998)(2) IL-2, INF-g (Speller e Edwards, 2001)(3), células T CD4, macrófagos e das interleucinas IL-1, IL-6 E TNF-a (Ellner, 1997)(4 ) , ainda permanecem em aberto certas questões relativas à imunidade da tuberculose humana. O fato mais intrigante corroborador desta assertiva é que somente 10% a 20% das pessoas que se infectam pelo M. tuberculosis vão desenvolver a doença. Isto significa que no caso de 80% a 90% das pessoas infectadas, a doença será contida. Por quê? Por outro lado, vale lembrar que a tuberculose é tida como uma doença que seguramente conta com meios diagnósticos fáceis, além de medicamentos disponíveis de eficácia comprovada.
A carga da tuberculose
A Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda recentemente deu à tuberculose o rótulo de "problema de saúde de emergência mundial", com um terço da população mundial já infectada (Raviglione et al. , 1995)(5). A OMS, reconhecendo sua incapacidade de lidar sozinha com o problema do controle da doença, criou o programa STOP TB, cujos parceiros são a própria OMS, o Banco Mundial (WB), a Union International Against Tuberculosis na Lung Disease (UICTB), o Center for Disease Control -Atlanta (CDC), a Royal Netherlands Tuberculosis Association (RNTA) e a American Thoracic Association (ATA).
Talvez o momento seja propício para rever as expressões anteriormente mostradas e acrescentar ou modificar alguns componentes propondo novas perspectivas para entender a carga da tuberculose como um problema de saúde pública no mundo.
Se foi antes lançado mão de uma expressão para apresentação da patogenicidade, o mesmo poderia aqui ser reproduzido, sugerindo que a carga da tuberculose (CTb) seja expressa por:
De todos os componentes, deve-se ressaltar que o mais importante é a desigualdade social, pois este gera a pobreza e, como conseqüência, tem-se má nutrição, más condições de vida, educação, etc, havendo impacto praticamente sobre todos os demais componentes.
Deve-se ressaltar também que a prevalência de resistência primária significa um agravante epidemiológico mais importante que a resistência adquirida. Lembramos uma vez mais que a expressão acima não gera soluções numéricas, mas apenas facilita pensar o problema.
A OMS estima que em 22 países ocorram 80% dos casos de tuberculose do mundo (WHO,2000)(6). Esses países são: Índia, China, Indonésia Bangladesh, Paquistão, Nigéria, Filipinas, África do Sul, Etiópia, Vietnam, Rússia , República Democrática do Congo, Brasil, Tanzânia, Quênia, Tailândia Myanmar, Afeganistão, Uganda, Peru, Zimbabwe e Cambodja. De imediato percebe-se que em alguns países o problema pode se localizar mais no nível do numerador, em outros no nível do denominador e em alguns casos de ambos.
Na Rússia, por exemplo, o problema da prevalência de multidroga-resistência é muito grande e grave. Nos países africanos todos os componentes do numerador e do denominador têm forte influência. O Brasil poderá representar uma situação intermediária, com pequeno problema (ainda) da prevalência de multidrogra-resistência, porém com altíssima desigualdade social e demais componentes da fórmula em fase de organização. O Peru é um país onde se observou nos últimos anos uma tendência de alteração da carga da tuberculose graças fundamentalmente a uma reorganização dos serviços de saúde, especificamente na área da tuberculose, com a implantação do tratamento supervisionado e a redução percentual de abandono do tratamento. Nos países do sudeste asiático, embora todos os componentes do numerador e do denominador da expressão possam ser muito significativos, são marcantes a desigualdade social e a precariedade no que diz respeito à disponibilidade de medicamentos nos serviços de saúde.
Recente recrudescimento da tuberculose nos EUA (década de 1990) acionou os serviços de saúde na tentativa de diminuir o denominador da expressão, reduzindo portanto a carga do problema naquele país.
Talvez uma reflexão sobre esta nova "fórmula" permita perceber que ao mesmo tempo em que se avança em conhecimentos técnicos, biológicos, clínicos e epidemiológicos da tuberculose em si, a sua dimensão social deverá ser lembrada, valorizada e utilizada como indicador das mazelas da forma de viver em outros foros de discussão, tais como a Assembléia Mundial da Saúde, Organização Internacional do Trabalho, Organização Mundial do Comércio, entre outros.
Antonio Ruffino Netto
Professor Titular de Medicina Social
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP
e-mail: aruffino@fmrp.usp.br
Referências
1. Bier, Otto- Microbiologia e Imunologia. Ed. Melhoramentos, 24º edição. 1985
2. Beyer DA, Rie A, Adams J, Fenhalts G, Gie R Beyers N. Signals tha regulate hte host response to Mycobacterium tuberculosis. Novartis Foundation Symposium, 1998; 717: 145-57
3. Spellberg B e Eswards JE- Tyoe 1/Tyoe 2 immunity in infectioud diseases. Clinical Infectious Diseases 2001; 32: 76-102
4. Ellner JJ. The immune response in humam tuberculois - implications for tuberculosis control. The Journal of Infectious Diseases 1997: 176: 131-9
5. Raviglione MC Snider DE, Kochi A. Global Epidemiology of Tuberculosis. J.A.M.A. 1995; 273: 220-6
6. World Health Organization. Global Tuberculosis Control. WHO Report 2000 WHO/CDS/TB 2000.275
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Set 2004 -
Data do Fascículo
Ago 2004