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Apnéia obstrutiva do sono: uma doença contagiosa?

EDITORIAL

Apnéia obstrutiva do sono: uma doença contagiosa?

Denis Martinez

Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre (RS) Brasil

Pode-se chamar de contagiosa a enfermidade na qual o doente, ao morrer, cause morte a outras pessoas? De um grupo de 602 servidores públicos de Wisconsin (EUA) com idades entre 30 e 60 anos, 24% dos homens e 9% das mulheres apresentaram transtorno respiratório no sono, caracterizado pela ocorrência de cinco ou mais apnéias e hipopnéias por hora de sono. Em um subconjunto dessa amostra, 4% dos homens e 2% das mulheres somaram ao transtorno respiratório no sono o principal sintoma de sono perturbado, a sonolência excessiva diurna, possibilitando diagnosticar a síndrome das apnéias-hipopnéias obstrutivas do sono (SAHOS).(1) A prevalência de SAHOS aumenta com a idade.(2) Apesar de se saber que portadores de SAHOS têm de duas(3) a oito vezes(4) mais chance de sofrer acidentes de trânsito, ainda não se conseguiu medir diretamente o efeito dos acidentes por sonolência sobre a mortalidade em pacientes com SAHOS e na população. Dados do Ministério da Saúde indicam que os acidentes de trânsito são um fenômeno masculino. Dos motoristas habilitados, 73% são homens; dos mortos em acidentes, 82% são homens. A SAHOS também é um fenômeno masculino. Tal coincidência pode ajudar a entender e buscar uma solução para o problema.

Anualmente morrem em ruas e estradas do Brasil mais de 30 mil pessoas. Acidentes por adormecer ao volante só podem ser classificados com certeza se o motorista assim o declara.(5) Se o sono durar menos de dois minutos, pode-se cochilar sem perceber.(6) Em caso de acidente, se o motorista negar ter adormecido, poderá ser por falha em identificar esses períodos de microssono ou por temor de declarar à autoridade o fato de ter adormecido. Fortalece a suspeita de que o motorista adormeceu o fato de o veículo sair da estrada sozinho ou colidir sem que restem marcas de freada na pista. As autoridades de Kentucky (EUA) identificaram como causa o adormecer ou fadiga em 13% das colisões fatais de caminhões e em 4% das não fatais.(7) Na estrada, durante um microssono de três ou quatro segundos, o veículo percorre distância maior que o comprimento de um campo de futebol. Acidentes são menos freqüentes que cochilos porque os microssonos tendem a acontecer em trechos monótonos da estrada, sem movimento e, portanto, com baixa probabilidade de colisão. Estudos feitos na Suécia, utilizando eletroencefalograma, mostraram que alguns maquinistas de trem(8) e motoristas de caminhão(9) durante viagens noturnas apresentam microssonos com ondas alfa e teta, e com movimentos oculares lentos, característicos do estágio 1 de sono, somando até uma hora. Durante esses lapsos, os maquinistas deixaram de obedecer a sinais. Porém, no estudo não ocorreram acidentes. Quando o acidente acontece, os microssonos são reportados pela polícia rodoviária como falta de atenção, a causa mais comum de acidentes.

O alerta não é um fenômeno de tudo ou nada. Existe um continuum entre o alerta total e o sono, que pode ser estimado pela soma de ondas alfa e teta no eletroencefalograma. A análise espectral do eletroencefalograma mostra que, após 20 a 30 minutos dirigindo, os motoristas cruzam o limiar acima do qual a quantidade de ondas alfa e teta já indicam sonolência. Para combater a sonolência, muitos motoristas usam ar frio no rosto ou ligam o rádio,(10) que, embora criem sensação subjetiva de maior alerta, são medidas incapazes de melhorar a freqüência no eletroencefalograma. Ao contrário, ingestão de cafeína e sonecas de menos de quinze minutos revertem parcialmente a sonolência.(11)

Os horários usuais de estar na cama e o horário de sesta são problemáticos para todas as pessoas, mas o risco multiplica-se nos casos em que o indivíduo sofre de transtorno respiratório no sono.(12-13) Na Espanha, alguns autores demonstraram aumento de sete a onze vezes no risco de acidentes em quem sofre de SAHOS, quando comparados com controles. Reforçando o conceito de que o risco de ingerir álcool é maior quando associado a transtorno respiratório no sono, indivíduos que relataram uso de álcool no dia do acidente e apresentavam na polissonografia mais de dez apnéias e hipopnéias por hora de sono, tinham chances onze vezes maiores de acidente do que os que ingeriram álcool no dia do acidente, mas tinham menos de dez apnéias e hipopnéias por hora de sono.(14) O álcool retarda os reflexos, mas não os elimina, como faz o sono.

As autoridades responsáveis por prevenir acidentes de trânsito enfatizam a preocupação com excesso de velocidade e com uso de álcool. Os dados disponíveis, porém, demonstram suficientemente o equívoco de se ignorar o sono.(15) Nos acidentes em que o motorista adormeceu ao volante, a velocidade costuma ser mais alta.(16) Segundo relatos de pacientes sonolentos, eles correm mais para "aumentar a adrenalina" e afugentar o sono.

O trabalho publicado neste número do Jornal Brasileiro de Pneumologia, "Prevalência de fatores de risco para a síndrome da apnéia obstrutiva do sono em motoristas de ônibus interestadual",(17) indica a abertura da Pneumologia para esse importante tema. E a escolha de motoristas de ônibus é a mais oportuna. Enquanto que em uma busca no Pubmed se encontram 42 artigos sobre sono de motoristas de caminhão, há apenas onze que abordam o sono de motoristas de ônibus, um deles brasileiro. O foco no motorista de ônibus é apropriado, pois, sendo ônibus o transporte obrigatório do brasileiro, o potencial de 'contágio' é maior. A literatura aponta que 61% dos motoristas de ônibus têm transtorno respiratório no sono com cinco ou mais apnéias e hipopnéias por hora de sono.(18) Além do foco em grupos de alto risco, como motoristas profissionais, devido à cultura nacional da automedicação, futuros trabalhos em nosso país poderão abordar a influência sobre o risco de acidentes do uso de medicamentos sedativos, analgésicos e anti-histamínicos. Segundo a literatura, essas drogas lícitas foram capazes de dobrar e até triplicar a taxa de acidentes.(18)

A SAHOS permanece subdiagnosticada mesmo nos EUA, entre trabalhadores com plena cobertura médica.(19) Esta situação deveria ser revertida, pois tratar a SAHOS reduz o risco de acidentes,(20,21) com potencial de reduzir custos de bilhões de dólares em danos materiais e de evitar mortes.(22)

Os pneumologistas, mantendo sua tradição de combater doenças temidas, como a tuberculose, e insidiosas, como o tabagismo, devem confrontar-se com a tarefa de tornar a SAHOS, de doença ainda desconhecida, em causa tratável de morbimortalidade para o paciente e seus circunstantes. Afinal, o melhor da viagem é voltar vivo.

REFERÊNCIAS

1. Young T, Palta M, Dempsey J, Skatrud J, Weber S, Badr S. The occurrence of sleep-disordered breathing among middle-aged adults. N Engl J Med. 1993;328(17):1230-5.

2. Bixler EO, Vgontzas AN, Ten Have T, Tyson K, Kales A. Effects of age on sleep apnea in men: I. Prevalence and severity. Am J Respir Crit Care Med.1998;157(1):144-8.

3. Barbe, Pericas J, Munoz A, Findley L, Anto JM, Agusti AG. Automobile accidents in patients with sleep apnea syndrome. An epidemiological and mechanistic study. Am J Respir Crit Care Med. 1998;158(1):18-22.

4. Findley LJ, Unverzagt ME, Suratt PM. Automobile accidents involving patients with obstructive sleep apnea. Am Rev Respir Dis. 1988;138(2):337-40.

5. Bonnet MH, Moore SE. The threshold of sleep: perception of sleep as a function of time asleep and auditory threshold. Sleep. 1982;5(3):267-76.

6. Bunn TL, Slavova S, Struttmann TW, Browning SR. Sleepiness/fatigue and distraction/inattention as factors for fatal versus nonfatal commercial motor vehicle driver injuries. Accid Anal Prev. 2005;37(5):862-9.

7. Torsvall L, Akerstedt T. Sleepiness on the job: continuously measured EEG changes in train drivers. Electroencephalogr Clin Neurophysiol. 1987;66(6):502-11.

8. Kecklund G, Akerstedt T. Sleepiness in long distance truck driving: an ambulatory EEG study of night driving. Ergonomics. 1993;36(9):1007-17.

9. Reyner LA, Horne JA. Evaluation of "in-car'' countermeasures to driver sleepiness: Cold air and radio. Sleep 1998; 21:46-50.

10. Horne JA, Reyner LA. Counteracting driver sleepiness: effects of napping, caffeine, and placebo. Psychophysiology. 1996; 33:306-9.

11. Stoohs RA, Bingham LA, Itoi A, Guilleminault C, Dement WC. Sleep and sleep-disordered breathing in commercial long-haul truck drivers. Chest. 1995;107:1275-82.

12. Stoohs RA, Guilleminault C, Itoi A, Dement WC. Traffic accidents in commercial long-haul truck drivers: the influence of sleep-disordered breathing and obesity. Sleep. 1994;17:619-23.

13. Teran-Santos J, Jimenez-Gomez A, Cordero-Guevara J. Association between sleep apnea and the risk of traffic accidents. N Engl J Med. 1999;340(11):847-51.

14. MacLean AW, Davies DR, Thiele K. The hazards and prevention of driving while sleepy. Sleep Med Rev. 2003;7(6):507-21.

15. Pack AI, Pack AM, Rodgman E, Cucchiara A, Dinges DF, Schwab CW. Characteristics of crashes attributed to the driver having fallen asleep. Accid Anal Prev.1995;27(6):769-75.

16. Santos EH, de Mello MT, Pradella-Hallinan M, Luchesi L, Pires ML, Tufik S. Sleep and sleepiness among Brazilian shift-working bus drivers. Chronobiol Int. 2004;21(6):881-8.

17. Viegas CAA, Oliveira HW. Prevalência de fatores de risco para a síndrome da apnéia obstrutiva do sono em motoristas de ônibus interestadual. J Bras Pneumol. 2006;32(2):144-9.

18. Howard ME, Desai AV, Grunstein RR, Hukins C, Armstrong JG, Joffe D, Swann P, Campbell DA, Pierce RJ. Sleepiness, sleep-disordered breathing, and accident risk factors in commercial vehicle drivers. Am J Respir Crit Care Med. 2004;170(9):1014-21.

19. Young T, Evans L, Finn L, Palta M. Estimation of the clinically diagnosed proportion of sleep apnea syndrome in middle-aged men and women. Sleep. 1997;20(9):705-6.

20. Findley L, Smith C, Hooper J, Dineen M, Suratt PM. Treatment with nasal CPAP decreases automobile accidents in patients with sleep apnea. Am J Respir Crit Care Med. 2000;161:857-9.

21. George CF. Reduction in motor vehicle collisions following treatment of sleep apnoea with nasal CPAP. Thorax. 2001;56(7):508-12.

22. Sassani A, Findley LJ, Kryger M, Goldlust E, George C, Davidson TM. Reducing motor-vehicle collisions, costs, and fatalities by treating obstructive sleep apnea syndrome. Sleep. 2004;27(3):453-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2006
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