Resumos
Este artigo examina as transformações por que vem passando o Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, relacionando-as à sua reconfiguração institucional ocorrida por ocasião da Constituição de 1988. essas transformações são apresentadas como respostas a um duplo fenômeno (impulsionado por essa mesma reconfiguração institucional) de incremento do papel político do tribunal, por um lado, e de sobrecarga extraordinária de seu volume de trabalho, por outro. Essa tensão reflete no modelo misto de controle de constitucionalidade no Brasil e parece apontar para mudanças iminentes nesse mesmo modelo, algumas das quais já vêm sendo concebidas pelo próprio tribunal.
Supremo Tribunal Federal; controle de constitucionalidade; judicialização da política no Brasil
The Brazilian Supreme Court is currently changing. This process of change seems to aim at solving a important contradiction caused by the institutional redesign of the court in the 1988 Constitution that, on the one hand, has transformed it into one of the country's major political actors, but, on the other hand, has also caused its dockets to get incredibly overloaded, forcing the court to deal with more then 100,000 cases a year. The solution for such paradox will probably lead to changes in the Brazilian mixed model of judicial review, and some of these changes are already been conceived by the jurisprudence of the court itself.
Brazilian Supreme Court; judicial review in Brazil; judicialization in Brazil
ARTIGOS
A constituição de 1988, vinte anos depois:1 suprema corte e ativismo judicial "à brasileira"
The Brazilian 1988 constitution twenty years on: supreme court and activism in a "Brazilian mode"
Marcos Paulo Verissimo
Professor da Direito GV. Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Marcos Paulo Veríssimo Rua Rocha, 233 - 8º andar Bela Vista - 01330-000 São Paulo - SP - Brasil marcos.verissimo@fgv.br
RESUMO
Este artigo examina as transformações por que vem passando o Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, relacionando-as à sua reconfiguração institucional ocorrida por ocasião da Constituição de 1988. essas transformações são apresentadas como respostas a um duplo fenômeno (impulsionado por essa mesma reconfiguração institucional) de incremento do papel político do tribunal, por um lado, e de sobrecarga extraordinária de seu volume de trabalho, por outro. Essa tensão reflete no modelo misto de controle de constitucionalidade no Brasil e parece apontar para mudanças iminentes nesse mesmo modelo, algumas das quais já vêm sendo concebidas pelo próprio tribunal.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; controle de constitucionalidade; judicialização da política no Brasil
ABSTRACT
The Brazilian Supreme Court is currently changing. This process of change seems to aim at solving a important contradiction caused by the institutional redesign of the court in the 1988 Constitution that, on the one hand, has transformed it into one of the country's major political actors, but, on the other hand, has also caused its dockets to get incredibly overloaded, forcing the court to deal with more then 100,000 cases a year. The solution for such paradox will probably lead to changes in the Brazilian mixed model of judicial review, and some of these changes are already been conceived by the jurisprudence of the court itself.
Keywords: Brazilian Supreme Court; judicial review in Brazil; judicialization in Brazil
INTRODUÇÃO
A CONSTITUIÇÃO DE 1988, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA POLÍTICA NACIONAL
A Constituição de 1988 aniversariou em outubro de 2008 e a comemoração de seus vinte anos passa a ensejar, como é comum acontecer nessas datas especiais, processos variados de avaliação, balanço e revisão. Trata-se de um documento importante por muitas razões, algumas óbvias e outras menos evidentes. Sua posição privilegiada na hierarquia normativa poderia, do ponto de vista interno à dogmática jurídica, ser usada como justificativa formal bastante dessa importância. No entanto, uma análise ao menos parcialmente externa à dogmática é capaz de pôr em relevo outras razões de destaque menos evidentes e talvez mais importantes. A primeira é simbólica: trata-se da "Constituição Cidadã", que nasceu para traduzir uma espécie de novo pacto institucional para a democracia. Nesse sentido, além de documento jurídico, ela incorpora a promessa da construção e manutenção de uma democracia sustentável após um período longo de tempo em que o Brasil foi marcado mais por governos de exceção que por governos democráticos. Além disso, a democracia prometida institucionalmente pela Constituição de 1988 não diz respeito apenas ao regime de governo, aos direitos de participação política, mas também a direitos de inclusão social: é, portanto, uma democracia social marcada pela garantia de direitos sociais próprios a um Estado que se quis fundar como welfarista, e que tem objetivos declarados de transformação social, redução de desigualdades de renda e de oportunidades, e também de desigualdades regionais.
Esse plano de ação social foi incorporado ao discurso constitucional por meio do léxico da dogmática jurídica, com seus substantivos, adjetivos e verbos bastante próprios. Assim, a proposta de construção de uma democracia social foi configurada no documento constitucional debaixo do jargão dos direitos, e os objetivos de redução da pobreza traduzidos em direitos sociais cuja estrutura foi interpretada pela dogmática jurídica sob a mesma tradicional chave dos direitos subjetivos. Essa característica marcante da Constituição de 1988 (que não constitui, vale dizer, fenômeno exclusivamente nacional), produziu importantes modificações no discurso da dogmática constitucional, que incorporou à adjudicação constitucional, com isso, novos e importantes problemas, aos quais estão relacionados os temas candentes da exigibilidade dos direitos sociais, da eficácia normativa das normas ditas programáticas, dos limites do controle de constitucionalidade e outros semelhantes, crescentemente lançados na pauta dos debates constitucionais a partir da promulgação do texto atualmente em vigor.
Sob um prisma externo à dogmática constitucional, o primeiro produto mais importante desse novo arranjo constitucional consistiu em uma espécie de "fuga" cada vez mais acelerada dos temas políticos (de política pública, de ação governamental executiva, de política representativo-partidária) para dentro do mundo do direito e, deste, para dentro dos órgãos judiciários. Esse processo, chamado globalmente pela alcunha de "judicialização", que se torna cada vez mais prevalente na experiência nacional, não parece ter sido, ademais, um resultado imprevisto do novo arranjo constitucional. Ao revés, parece ser um resultado previsível e talvez desejado por esse mesmo arranjo, na medida em que, para além de traduzir o compromisso de democracia social para dentro do léxico do direito, o texto constitucional promulgado em 1988 também cuidou de criar novos mecanismos de tutela judicial capazes de viabilizar a "implementação" dos "direitos" e "princípios" de transformação social incorporados à nova carta.2
A Constituição de 1988 também teve um papel fundamental no redesenho da política tradicional, isto é, não judiciária, no contexto nacional. Outorgando enormes poderes de agenda à chefia do executivo, entregou a esse poder uma capacidade de ditar a pauta legislativa até então inédita no País, ao menos se considerarmos as experiências democráticas anteriores. Entregando também ao executivo poderes intensos de interferência na política de distribuição de recursos, deu a esse poder capacidade de aglutinação em torno de si de um sistema partidário fragmentado, fundando as condições para o nosso chamado "presidencialismo de coalizão", em que o executivo central passa a ter, simultaneamente, enorme predominância na determinação da pauta legislativa, além de altas taxas de sucesso na aprovação de seus projetos.3 Por sua vez, esse expressivo aumento no poder de determinação da política partidária por parte do executivo parece ter contribuído, lateralmente, para a construção de um ambiente institucional apto a atribuir aos órgãos judiciários uma espécie de "competência de controle" do novo e fortalecido executivo, transformando esses órgãos em um importante fórum de contestação de políticas públicas e projetos de governo, em uma espécie de "segunda instância deliberativa", que passou a ser largamente utilizada tanto pela sociedade civil quanto pelos partidos de oposição.
A lista de transformações institucionais provocadas ou viabilizadas pela Constituição de 1988 seria enorme, e não é objetivo deste texto apresentá-la exaustivamente. Contudo, um determinado aspecto dessas transformações parece poder ser indicado com razoável clareza, aspecto esse que, como demonstrarei adiante, se relaciona, diretamente, ao processo de judicialização supra-referido. Trata-se do surgimento, no País, de um judiciário "ativista", que não se constrange em exercer competências de revisão cada vez mais amplas, quer incidentes sobre a política parlamentar (via controle de constitucionalidade, sobretudo), quer incidentes sobre as políticas de ação social do governo (por intermédio das competências de controle da administração pública, controle esse interpretado de forma cada vez mais larga nos dias atuais).
Dentro desse arranjo, um entre os demais órgãos judiciários destaca-se, tendo tido seu papel e características institucionais transformados radicalmente nos últimos vinte anos.Trata-se, evidentemente, do Supremo Tribunal Federal. Apontado pelo texto de 1988 como o órgão responsável, "precipuamente", pela "guarda" da Constituição, esse tribunal foi inteiramente reformado pela nova Carta, destacando-se, entre as características gerais desse processo da reforma, uma enorme preocupação em ampliar as vias de acesso popular à sua jurisdição. Isso se traduziu em instrumentos os mais diversos, entre os quais sobrelevam os seguintes: (i) ampliação do rol de legitimados para a movimentação do controle concentrado; e (ii) eliminação das barreiras de acesso ao controle difuso, por meio, sobretudo, da eliminação dos requisitos de relevância geral como condições especiais de admissibilidade do recurso extraordinário.
O resultado último dessas transformações foi dúbio. Por um lado, colocou o STF em uma posição de absoluto destaque na política nacional, transformando-o em um órgão que passou, pouco a pouco, a agir declaradamente como uma das mais importantes instâncias políticas da nação. Por outro lado, soterrou essa mesma corte debaixo de uma avalanche de processos, obrigando-a a conciliar esse seu papel político, de instância de revisão e segundo turno da política representativa, com um papel bem mais "rotineiro"4 de prestador de serviços forenses, de "terceira instância" na estrutura judiciária tradicional de solução de disputas individuais. E assim é que, um ano antes de ser promulgada a atual Carta Constitucional, em 1987, computavam- se nas estatísticas de julgamento do órgão 20.122 casos resolvidos em doze meses. Vinte anos depois, ou seja, em 2007, essas mesmas estatísticas registravam 159.522 casos para o mesmo período de tempo.
É em meio a essa crise de identidade institucional do Supremo Tribunal Federal que se comemorará o vigésimo aniversário da Constituição de 1988. As propostas para a solução da crise vão aparecendo aqui e ali e incluem instrumentos de concentração decisória, mecanismos de filtro, propostas de transformação da corte em um "tribunal constitucional".5
Nesse sentido, meu propósito com o presente ensaio é o de analisar com alguma atenção os dados que compõem as estatísticas de julgamento do Supremo, de sorte a tentar compreender como se tem dado, efetivamente, o desenvolvimento de sua missão política em meio a tamanha congestão de casos. A partir dessa análise, procuro examinar, ainda que superficialmente, algumas das propostas de reforma institucional do STF, incluindo uma proposta que se poderia chamar de "autoconduzida" que se encontra presentemente em curso de julgamento no tribunal, ligada à atribuição de efeito vinculante às decisões tomadas pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade. Em conclusão, procuro demonstrar que um debate mais intenso acerca da feição institucional que se quererá emprestar ao órgão é premente, e que, muito possivelmente, tal feição não será a de um "tribunal constitucional" em sentido clássico, mas deverá aproximar-se, talvez, daquilo que poderia ser chamado, por aproximação ao título que escolhi para este ensaio, de um tribunal constitucional "à brasileira".6
1 CONSTITUIÇÃO DE 1988 E ATIVISMO "À BRASILEIRA"
O ponto de partida para a análise das transformações por que vem passando o Supremo Tribunal Federal deve coincidir, creio, como o tema supramencionado da judicialização da vida pública nacional. E esse tema, por sua vez, remete necessariamente ao diagnóstico dúbio já referido acima. No curso do processo de transformações por que passou nos últimos vinte anos, a justiça brasileira, de um modo geral, acabou assumindo, por um lado, um papel marcadamente protagônico no espaço político, mas perdeu credibilidade, por outro lado, como prestadora do "serviço público" de solução rotineira de controvérsias.
Por um lado, está completamente sobrecarregada e tem imensa dificuldade em dar conta do volume de litígios com que é defrontada. É lenta e é ineficiente no desempenho de inúmeras atividades fundamentais como, por exemplo, a recuperação de créditos inadimplidos.Vista como prestadora de serviços de solução de conflitos privados, ela é encarada com pessimismo e ansiedade, passando a estar submetida, por conta disso, a toda uma agenda de reformas, concentrada no tema da eficiência na gestão do serviço judiciário.
Por outro lado, essa mesma justiça engaja-se intensamente nas principais questões de política pública nacionais, vê seus instrumentos de ação aumentarem mais e mais e é enxergada como canal de representação de minorias e de grupos sociais excluídos do processo político formal (Vianna e Burgos, 2002). Em sua ação política e de mediação social, a justiça parece encerrar expectativas esperançosas e apontar para um potencial democrático revolucionário.7
Como ressaltado, boa parte das razões que explicam ambos os fenômenos relacionam-se, direta ou indiretamente, à Constituição da Nova República. Essa Constituição manteve o modelo brasileiro de jurisdição una e controle misto (difuso e concentrado) de constitucionalidade, o que significa que atribuiu a qualquer juiz a tarefa e a prerrogativa de analisar a legalidade de atos produzidos quer pelo legislativo, quer pelo executivo. Adicionalmente, o texto constitucional transformou em regra jurídica um conjunto amplo e por vezes contraditório de anseios sociais e políticos, consagrando ideais de liberdade individual e igualdade material, propriedade e redistribuição de renda, liberdade de empresa e dirigismo econômico. Outorgou à justiça a tarefa de implementar esse plano difuso de ação e ampliou significativamente os mecanismos de acesso que instrumentalizam esse ideal.
Assim é, por exemplo, que acabou eliminada no novo texto constitucional a possibilidade de escolha pelo Supremo Tribunal Federal dos casos que lhe são submetidos. Essa escolha, antes materializada pelo mecanismo da argüição de relevância,8 foi considerada antidemocrática pelo legislador constituinte e expurgada do sistema constitucional. Além disso, foram outorgadas ao Ministério Público garantias de independência semelhantes às entregues ao próprio judiciário,9 positivando-se sua competência para agir em proteção de qualquer interesse social, coletivo ou difuso.10 Ampliou-se o rol de legitimados ao controle de constitucionalidade das leis, que ficou aberto, assim, também à sociedade civil, através dos partidos políticos, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, das confederações sindicais ou das entidades de classe de âmbito nacional.11 Previram-se juizados especiais para pequenas causas cíveis, criminais e federais.12 Estabeleceu-se constitucionalmente a legitimidade processual das associações para representarem seus filiados em juízo.13 Constitucionalizaram-se inúmeros princípios processuais.14
À justiça, e aos órgãos que a cercam, a Constituição de 1988 dedicou diretamente 44 de seus 250 artigos, isso sem falar nas referências indiretas, espalhadas por todo o texto constitucional.15 Criaram-se também, por força da nova Carta, cinco novos tribunais de apelação em nível federal (os Tribunais Regionais Federais), além de um novo tribunal de sobreposição em matéria infraconstitucional (o Superior Tribunal de Justiça), destinado a absorver parte das competências antes atribuídas ao Supremo Tribunal Federal.
Ao Supremo Tribunal Federal foi atribuída a "guarda" do novo texto constitucional. Operando seus termos dúbios e seu projeto de ação social, o tribunal foi chamado a um verdadeiro papel de mediação de interesses e arbitramento de disputas entre atores políticos, sobretudo entre governo e oposição. Os exemplos disso abundam e, como eles demonstram eloqüentemente, o tribunal não parece ter ficado omisso a esse chamamento. Ao revés, assumiu com cada vez mais clareza seu papel político, e passou a exercer sua competência de revisão constitucional com cada vez mais desenvoltura, quer no contexto do controle difuso, quer no do concentrado.
Para exemplificar isso em relação ao controle difuso, é possível referir uma pesquisa, apresentada por Marcus Faro de Castro ao XX Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, em que foram analisadas 1.240 ementas de acórdãos julgados pelo Supremo Tribunal Federal e publicados no Diário de Justiça da União no primeiro semestre de 1994 (Castro, 1997, 147). A amostra compreendeu uma parcela significativa do total de 7.955 acórdãos publicados pelo tribunal no mesmo ano (Castro, 1997, 151) e revelou resultados interessantes. Em primeiro lugar, demonstrou que, na verdade, mais da metade dos processos analisados (58,1%) veiculava questões de política fiscal ou tributária (Castro, 1997, 152). Em segundo lugar, mostrou também que, em mais de três quartos dos casos (75,5%), o tribunal produziu decisões totalmente contrárias aos interesses do Estado veiculados nos respectivos processos. Entre o universo de decisões contrárias aos interesses do Estado, a maior parte delas (50,88%) dizia respeito, justamente, a temas de política fiscal e tributária (Castro, 1997, 153). Outro exemplo eloqüente de ativismo judicial por parte do STF, também em sede de controle difuso, poderia ser o da derrota sofrida pelo governo em relação ao tema da correção monetária incidente sobre as contas de FGTS durante o período de 1989-1990 (Plano Verão e Plano Collor).16 Muitos outros exemplos semelhantes poderiam ser dados.
Mas é no campo do controle concentrado que o ativismo do tribunal fica mais claro e produz resultados mais expressivos. Por essa via foram judicializados, em tempos recentes, temas políticos importantes como aqueles ligados à Lei de Biossegurança (Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 3.510), à reforma partidária (Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 1.351 e 1.354), e à verticalização das candidaturas para a eleição de 2006 (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.685), com declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, nos dois últimos casos. Se pensarmos na batalha judicial que foi travada em torno da contribuição previdenciária dos inativos, teremos exemplo ainda mais expressivo. Isso porque, apesar de o governo se ter saído vencedor por apenas três votos de vantagem, teve de arcar, mesmo assim, com uma vitória parcial, já que o voto vencedor do Ministro Cezar Peluso manteve a constitucionalidade da política mas houve por bem aumentar o limite de isenção respectivo de R$ 1.505,23 para R$ 2.508,72,17 em decisão que poderia ser compreendida, eventualmente, como demonstrativa do exercício de competências legislativas pelo órgão judiciário, para além do mero poder de veto.
Na verdade, segundo informações contidas no sítio do STF na internet, parece haver, de modo geral, uma razoável propensão do tribunal a proferir juízos de inconstitucionalidade nos casos que lhe são submetidos. Entre as Ações Direitas de Inconstitucionalidade julgadas pelo mérito entre 1988 e 2008 (978 ações), nada menos que 66,46% foram julgadas procedentes. Das restantes, 16,97% foram julgadas parcialmente procedentes e apenas 16,57% foram julgadas totalmente improcedentes. Em relação aos pedidos de liminar em ADI julgados pelo mérito (442), o mesmo ocorre. Em 55,43% dos casos a liminar requerida foi deferida integralmente. Em 16,06% dos casos foi deferida em parte e apenas em 28,51% dos casos foi totalmente indeferida (BRASIL, 2008a).
Mas, como já dito, se a Constituição de 1988 está na base do processo de judicialização da vida pública brasileira, tendo sido responsável por desenhar a face protagônica que a justiça e o STF em particular ostentariam a partir da década de 1990, seus mecanismos de ampliação do acesso à justiça, aliados à aparente disposição dos tribunais em exercer ativamente as competências de revisão que lhes foram atribuídas, também respondem, em contrapartida, por boa parte da crise de eficiência que acompanhou a atuação do Judiciário a partir dessa mesma década.
Segundo dados do próprio Supremo Tribunal Federal, a média anual de processos distribuídos a essa corte era, na década de 1940, de 2.500. No final da década de 1950 esse número sobe para 7.000, mantendo-se estável entre 7.000 e 8.000 na década seguinte. O número pouco mais que dobra entre as décadas de 1970 e 1980. Portanto, em um espaço de 50 anos, o volume anual de distribuições ao Supremo Tribunal Federal aumentou em aproximadamente oito vezes, isto é, cresceu a uma proporção média de 4,5% ao ano.
Após a Constituição de 1988, contudo, em um espaço de apenas 16 anos (1989-2004), o volume anual de distribuições mais que quadruplica. Isso representou um aumento à proporção média de 10,5% ao ano. Se for tomado apenas o período compreendido entre 1997 e 2002, o aumento é de espantosos 470%, ou 41,6% ao ano (ver, a propósito, o Gráfico 1).18
Não por acaso, esse aumento é creditável, sobretudo, ao imenso alargamento das vias de acesso ao exercício de competência recursal ligada ao exercício do controle difuso pelo STF. Assim, analisados os tipos de processo que experimentaram particular incremento e que respondem majoritariamente pelo volume de novos feitos ingressados a cada ano, encontraremos, nas primeiras duas posições, tanto os recursos extraordinários quanto os agravos interpostos contra decisões dos tribunais estaduais ou federais que, na origem, negaram seguimento a recursos desse tipo.
Em 1990 (VER GRÁFICO 2), o número de agravos distribuídos ao STF foi de 2.465, ao passo em que o número de recursos extraordinários representou 10.760. Juntas, essas duas classes de processos representaram 81,5% de todas as distribuições. No mesmo ano, foram distribuídas 267 ações diretas de inconstitucionalidade. Ao longo dos 17 anos seguintes, o número de ações diretas de inconstitucionalidade variou muito pouco, oscilando entre um patamar mínimo de 158, em 1996 e 2007, e um patamar máximo de 306, em 2003. A média de ADIs distribuídas para o período foi de 212 ao ano, verificando-se uma levíssima tendência de aumento médio do número de distribuições ao longo do período. Mas, em relação ao número de agravos e recursos especiais, o quadro é completamente outro. Em 2007, foram 56.909 agravos e 43.708 recursos especiais distribuídos, o que representa um aumento, em relação aos dados de 1990, de respectivamente 2.208,68% 306,20%. Em relação à participação percentual dessas duas classes processuais no total de distribuições, o que se verificou no período foi uma forte tendência ao aumento da importância dos agravos e uma diminuição expressiva na participação dos recursos extraordinários, conforme se pode constatar a partir da leitura dos gráficos 3 e 4.
É desnecessário dizer que esses números passaram a colocar em questão o próprio papel institucional do Supremo Tribunal Federal. Seu desenho institucional corresponde ao de um órgão encarregado da "guarda da Constituição". Isso significa que sua missão não é, em princípio, a de solução de controvérsias, mas sim a de estabilização da interpretação constitucional em um regime de controle misto, no qual a importância do controle difuso exercido pelos mais diversos órgãos judiciários do País, é significativa.Tal tarefa se exerce tanto por meio do controle concentrado de constitucionalidade, que é sua competência originária, quanto do controle difuso, que corresponde a uma de suas mais importantes competências recursais. Essas competências recursais, todavia, deveriam ter o mesmo escopo de uniformização da interpretação constitucional, e não serem usadas como mecanismos ordinários de solução de casos particulares. Ao menos, essa seria a lógica se tomássemos como ponto de partida o arranjo institucional em que se inspira o modelo de controle difuso com competência uniformizadora de uma corte suprema, que é o modelo americano.Tais tarefas, contudo, ficam evidentemente prejudicadas se cada Ministro do Supremo Tribunal Federal tiver que dar conta de um volume de distribuições individuais ao ano que supera a casa dos 10 mil feitos.
Ocorre que, não obstante esse volume imenso de distribuições anuais, o Supremo Tribunal Federal é uma corte com baixa taxa final de congestão. De alguma forma, o tribunal consegue dar vazão, ano a ano, a quase a totalidade de seu volume de processos recebidos. Ademais, a julgar pela repercussão que ganharam, nos últimos meses, casos importantes como o do julgamento da Lei de Biossegurança ou como a discussão acerca da constitucionalidade do Prouni, parece que, ao fim e ao cabo, o Supremo consegue, de uma forma ou de outra, exercer sua competência de uniformização (sobretudo no controle concentrado) apesar do imenso volume de casos que recebe anualmente. O Gráfico 5, que compara o volume anual de processos recebidos e julgados, dá conta dessa impressionante capacidade de resposta à demanda que tem marcado o Supremo Tribunal Federal ao longo de sua história recente.
Como explicar essa notável produtividade, que supera em mais de oito vezes a média nacional de produtividade por magistrado? Como justificar que os juízes responsáveis pelo tratamento do maior volume de casos no País sejam, justamente, aqueles incumbidos de julgar os mais importantes, de interagir preferencialmente com o espaço político em um processo de mediação de interesses, de atuação como veto player, e de desestabilização e reorganização das respostas alcançadas nos canais representativos tradicionais? O fato de possuir uma corte suprema ativista não chegaria, por si só, a tornar o caso brasileiro uma espécie de anomalia entre as nações ocidentais, já que o crescente ativismo das cortes supremas e constitucionais tem sido um fenômeno relativamente global. No entanto, o que torna o caso brasileiro anômalo é o fato de essa corte ser, também, a mais produtiva do País (certamente, uma das mais produtivas do mundo), sobretudo quando se considera o número de casos julgados ao ano por magistrado. Isso, sem dúvida, é um traço particular de nossa experiência, caracterizando aquilo que poderia ser chamado, com alguma ironia, talvez, de ativismo "à brasileira".19
2 UM OLHAR SOBRE AS ESTATÍSTICAS DE JULGAMENTO DO STF
A compreensão da fantástica taxa de produtividade do STF passa pela percepção de que são artificiais, em larga medida, os números atinentes aos feitos julgados a cada ano, hoje, pelo STF. Eles dizem respeito, basicamente, ao volume de casos "resolvidos", isto é, eliminados da pauta do tribunal por terem sido objeto de algum tipo de resposta jurisdicional, seja ela de mérito, seja ela meramente processual. O gráfico 6 mostra isso, revelando que o incremento expressivo do número de casos julgados pelo tribunal, sobretudo após a promulgação da nova Constituição, não foi, todavia, seguido por um aumento correspondente nas estatísticas de acórdãos publicados pelo tribunal a cada ano. Estas mantiveram-se, surpreendentemente, muito mais estáveis. Além disso, o percentual de acórdãos publicados em comparação com o número geral de casos julgados tem caído década após década, deixando a média de 83,88% que caracterizou a década de 1940 para atingir uma média de 11,80%, relativa aos sete primeiros anos da década de 2000 (cf. Tabela 1).
Assim, se nos sete primeiros anos da década de 2000 foram julgados em média 109.411 processos pelo STF a cada ano, o número de acórdãos publicados anualmente foi bem menor, atingindo 12.903 (v. Gráfico 5).
Para explicar essa enorme diferença entre o volume anual de casos julgados e o volume anual de acórdãos publicados é preciso investigar com um pouco mais de cuidado as hipóteses de elaboração e publicação de acórdãos no âmbito do tribunal. Essa investigação fornecerá pistas valiosas sobre os modos que permitem ao Supremo lidar com o espantoso volume de litígios que lhe é apresentado a cada ano. Sugerirá também a possível existência de uma espécie de certiorary à brasileira, isto é, de um filtro de cunho processual que pode estar permitindo ao tribunal gerir, de forma eventualmente informal, sua expressiva carga de trabalho.
Nesse sentido, é preciso ressaltar que há uma variadíssima gama de processos que se submetem à competência decisória do STF. Por sua vez, essas competências são repartidas entre competências originárias, recursais ordinárias e recursais extraordinárias, estas últimas, sobretudo, próprias ao modelo de cortes supremas, cujo paradigma fundamental é o da Suprema Corte Americana.20
A formatação do Supremo Tribunal Federal como corte suprema, isto é, como órgão de cúpula do judiciário brasileiro, aliada ao modelo de controle difuso de constitucionalidade, deriva do arranjo constitucional da primeira república. E isso responde pela variada gama de atividades que são atribuídas à corte até hoje. Além disso, com a introdução (em 1965, no início, pois, do último governo militar), de um mecanismo estruturado de controle concentrado de constitucionalidade, tais competências ficaram ainda mais amplas, consolidando-se o modelo de controle misto (parte recursal-difuso, parte originário-concentrado) que marca a corte até hoje.21
Na Constituição de 1967, emendada em 1969, essas competências variadas incluíam o processamento e julgamento, em instância originária: (i) de crimes comuns e de responsabilidade, quando os acusados fossem autoridades públicas de alto escalão; (ii) de litígios entre Estados estrangeiros ou organismos internacionais e a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Territórios; (iii) de litígios entre a União e os Estados ou territórios ou entre uns e outros, inclusive os respectivos órgãos de administração indireta. Além disso, competia ao STF resolver (iv) os conflitos de jurisdição entre quaisquer Tribunais e entre Tribunal e juiz de primeira instância a ele não subordinado; (v) os conflitos de atribuições entre autoridades administrativas e judiciárias da União ou entre autoridades judiciárias de um Estado e as administrativas de outro, ou do Distrito Federal e dos Territórios, ou entre as destes e as da União.Ao STF também competia julgar e processar originariamente (vi) pedidos de extradição e homologação das sentenças estrangeiras, (vii) os habeas corpus e as ações de mandado de segurança impetradaos contra ou em favor de autoridades de alto escalão. A competência originária do órgão também incluía o julgamento (viii) da representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade ou para interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual; e (ix) das causas que fossem excepcionalmente avocadas para sua jurisdição.
Em sede recursal, as competências do STF incluíam, além de várias hipóteses de recurso ordinário (instância especial de apelação), o julgamento do recurso extraordinário, nos casos em que se alegasse (i) contrariedade a dispositivo constitucional; (ii) negativa de vigência a tratado ou lei federal; (iii) inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; (iv) validação de lei ou ato de governo local contestados em face da Constituição ou de lei federal; ou (v) interpretação divergente lei federal por parte de tribunais submetidos à sua jurisdição.
A Constituição de 1988 extinguiu algumas dessas competências (por exemplo, a avocação excepcional de causas)22 e transferiu outras tantas ao Superior Tribunal de Justiça, sobretudo no que se refere aos objetivos de uniformização da aplicação do direito federal infraconstitucional. Nesse sentido, resolveu concentrar a atuação do STF preponderantemente em matéria constitucional, sem ter pretendido, contudo, transformá-lo em uma corte constitucional especializada, de modelo europeu.
Uma corte constitucional desse tipo possui, como sabido, certas características próprias, adicionais a essa já mencionada, ligada à concentração de competências exclusivamente em temas de interpretação constitucional. Muito esquematicamente, elas seriam as seguintes: (i) posição institucional apartada do judiciário (não são, em outras palavras, órgãos de cúpula do judiciário, mas sim órgãos autônomos, apartados e desvinculados da estrutura organizacional do poder judiciário); (ii) competência exclusiva ou semi-exclusiva de controle constitucional (o que significa que os sistemas que adotam esse modelo não permitem, em geral, que outros magistrados sem assento na corte pratiquem qualquer modalidade de controle constitucional); (iii) mandatos fixos para os integrantes da corte (não há garantias de vitaliciedade, próprias à magistratura em geral, mas sim termos fixos em que os magistrados terão assento na corte); (iv) indicação política de magistrados para a corte, por meio de esquemas variados de nomeação ou eleição destinados, em geral, a repartir os poderes de indicação entre Executivo, Legislativo e Judiciário; (v) controle de constitucionalidade por via de ação originária, praticado à vista da lei em tese (isto é, sem que exista qualquer litígio concreto para ser resolvido), com o efeito de retirar definitivamente a lei do ordenamento jurídico, em caso de declaração de inconstitucionalidade (eficácia erga omnes); e (vi) legitimação para a provocação do controle de constitucionalidade atribuída pontualmente a alguns poucos atores políticos.
Parecem ter sido justamente essas características adicionais, próprias ao modelo de corte constitucional, que foram consideradas, de modo geral, inadequadas pelo legislador constituinte de 1988 (sobretudo a estrutura apartada em relação ao judiciário), para o que contribuiu, inclusive, o lobby dos próprios membros da corte, que temiam a excessiva politização de um tribunal constitucional independente em relação ao judiciário.23
A Constituição de 1988 optou, portanto, por manter o Supremo Tribunal Federal como órgão de cúpula do judiciário, mantendo diversas de suas competências recursais ordinárias e eliminando, em relação ao recurso extraordinário, a relevância geral como requisito adicional de admissibilidade. Além disso, outorgou ao STF novas competências, como, por exemplo, as de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, do mandado de injunção e da ação de descumprimento de preceito fundamental.
A emenda constitucional n. 3, de 1993, outorgou uma nova competência à corte, consistente no julgamento da ação direta de constitucionalidade. Já a emenda constitucional n. 45 eliminou várias das competências alheias ao controle de constitucionalidade presentes no texto original da Constituição, transferindo-as, basicamente, ao Superior Tribunal de Justiça. Reintroduziu, além disso, a relevância geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, através do mecanismo da repercussão geral.
Tal como está configurada hoje, a competência do STF inclui, além do julgamento de recursos extraordinários e dos agravos interpostos contra decisões que tenham deixado de admitir, na origem, recursos desse mesmo tipo (competência recursal extraordinária), as seguintes atribuições adicionais: (a) competências originárias ligadas ao controle concentrado de constitucionalidade - (i) julgamento da ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual; (ii) julgamento da ação declaratória de constitucionalidade; (iii) julgamento da ação de descumprimento de preceito fundamental, (iv) julgamento de pedidos de medida cautelar ligados às ações do controle concentrado, (v) julgamento do mandado de injunção; e (vi) julgamento da reclamação apresentada para de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; (b) competências originárias não ligadas ao controle de constitucionalidade - (i) julgamento de ações penais relativas a infrações penais comuns e de crimes de responsabilidade em que os acusados são autoridades públicas de lato escalão; (ii) julgamento de "habeas corpus", sendo paciente qualquer das autoridades com foro privilegiado no próprio STF, ou quando a autoridade coatora for tribunal superior ou pessoa cujos atos estejam sujeitos à jurisdição do STF; (iii) julgamento de mandados de segurança contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal; (iv) julgamento de "habeas data" contra atos das mesmas autoridades; (v) julgamento das revisões criminais de seus julgados; (vi) julgamento de litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Território; (vii) julgamento de litígios entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta; (viii) julgamento dos pedidos de extradição; (ix) julgamento de ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados; (x) julgamento de conflitos de competência entre o Superior Tribunal de Justiça e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou entre estes e qualquer outro tribunal; (xi) julgamento de ações em face do Conselho Nacional de Justiça ou do Conselho Nacional do Ministério Público; (xii) julgamento de pedidos de suspensão de segurança, liminar ou tutela antecipada; (xiii) julgamento dos pedidos de intervenção federal; (c) competência recursal ordinária - julgamento de recursos ordinários - (i) em "habeas corpus", mandado de segurança, "habeas-data" ou mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão; e (ii) em crimes políticos.
Alguns desses processos são de competência da presidência da corte, e, entre os restantes, sua solução pode ocorrer tanto pela via do julgamento monocrático (quando as normas aplicáveis atribuem poderes ao relator para tanto), quanto por meio de julgamento colegiado, nas Turmas ou no Plenário. Nos termos do artigo 93 do Regimento Interno do STF, apenas nesses últimos casos fala-se na produção de acórdão contendo as conclusões do julgamento, ficando, no entanto, dispensado o acórdão quando as Turmas resolvem remeter simplesmente o caso ao Plenário e, também, nas hipóteses de provimento de agravos de instrumento. De toda sorte, havendo acórdão, ele deve ser objeto de publicação (arts. 95 e 100), em um prazo que, salvo motivo justificado, não pode exceder sessenta dias (art. 95, parágrafo único). Portanto, levadas em conta as disposições normativas relevantes, é possível dizer que, grosso modo, as estatísticas relativas à publicação de acórdãos, divulgadas pelo STF, podem ser lidas como indicativas do número de processos julgados, a cada ano, pelas Turmas ou pelo Plenário, o que equivale, em termos aproximados, ao número de casos julgados de forma colegiada.24
As estatísticas de casos julgados e acórdãos publicados ao ano dizem, portanto, que a imensa maioria dos processos resolvidos atualmente pelo STF (algo em torno de 88,20% deles, utilizando-se o proxy da média de acórdãos publicados verificada para a década de 2000) não são, ao final das contas, levados a julgamento colegiado, quer nas Turmas, quer no Plenário. Ao contrário, são objeto de julgamento monocrático.
Essa constatação, tirada da análise do número de acórdãos publicados, é confirmada pelos dados específicos de classificação dos julgamentos do tribunal contidos no Relatório de Atividades para o biênio de 2006-2008.25 A Tabela 2 compara os dados divulgados nesse relatório, atinentes aos julgamentos monocráticos e colegiados, com os dados totais de julgamento e publicação de acórdãos já referidos anteriormente, demonstrando, para os anos em que a comparação foi possível, a completa consistência da conclusão apontada acima.
Mas qual é o perfil dessa esmagadora maioria de casos que está, com freqüência cada vez maior, sendo resolvida monocraticamente?
Em tese, pode tratar-se de quaisquer dos casos em que o relator tem poderes conferidos pela lei para julgar o mérito ou as condições de admissibilidade da ação ou do recurso, ordinário ou extraordinário. Entre outras, são desse tipo as competências estabelecidas nos artigos 544, §§ 3º e 577 do Código de Processo Civil (juízos de admissibilidade e mérito em recursos em geral), nos artigos 4º e 15º da Lei n. 9.868/99 (indeferimento liminar de ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade), no artigo 4º da Lei n. 9.882/92 (indeferimento liminar da ação de descumprimento de preceito fundamental), e em diversos dispositivos do regimento interno do STF, como, por exemplo, os arts. 161, parágrafo único (julgamento liminar da reclamação) e 248 (decisão de saneamento em ação cível originária). São casos de improcedência ou procedência manifesta por confronto a jurisprudência ou súmula, de ausência evidente de condições de ação, pressupostos processuais ou requisitos de admissibilidade recursal. Pode tratar-se, ainda, de competência atribuída pela lei monocraticamente ao Presidente do STF (por exemplo, a competência para suspensão de segurança, disciplinada no art. 297 do regimento interno, entre outros dispositivos normativos aplicáveis) ou mesmo de competência típica de relatoria exercida por esse magistrado antes da distribuição de recursos (por exemplo, a do art. 13, inc.V, alínea c do regimento interno, que autoriza o Presidente a exercer as prerrogativas previstas nos artigos 544 e 577 do CPC, inclusive para o fim de analisar preliminarmente as condições de admissibilidade relacionadas à repercussão geral).
Nesse sentido, o que organiza esse universo bastante díspar de hipóteses parece ser o fato, comum a todas, de veicularem situações consideradas pela lei como de menor complexidade, situações de solução supostamente evidente, que por isso não justificam, no comum das vezes, o recurso ao órgão colegiado, nem mesmo quando se apresentam em um tribunal comum de segunda instância. São situações, portanto, que sequer deveriam poder ser levadas à presença do Supremo Tribunal Federal, sobretudo quando relativas ao exercício da competência recursal extraordinária da corte, que deve, ao final, responder pelo número mais expressivo de decisões monocráticas, já que os agravos e recursos extraordinários responderam, nos sete primeiros anos da década de 2000, por 95,10% de todos os casos distribuídos ao tribunal e a 94,13% de todos os casos julgados.
É verdade que pode haver também, por trás dessas decisões monocráticas, uma espécie de certiorary informal, isto é, de filtro informal destinado a tornar viável a gestão de casos nas turmas e no plenário. Nesse sentido, não se pode saber se já não estaria sendo praticado informalmente, no tribunal, antes mesmo da Emenda Constitucional n. 45.04, um juízo prévio de relevância dos casos relativos a recursos extraordinários, juízo esse justificado formalmente sob o prisma formal-procedimental da admissibilidade (nesse sentido, decisões de indeferimento liminar fundadas na falta de requisitos formais ou materiais de admissibilidade poderiam estar travestindo, já de algum tempo, juízos materiais de irrelevância, somente autorizados a partir da EC 45). Essa é uma conjectura que pode fazer especial sentido quando se tem em conta a rigidez com que o STF foi construindo ao longo do tempo suas exigências formais e materiais de admissibilidade do recurso extraordinário (por exemplo, quanto às últimas, no que diz respeito ao prequestionamento, ou à noção de interpretação razoável, contida na Súmula 400, ou a todas as matérias tratadas nas Súmulas 283, 284, 356 e 636, entre outras). No entanto, a inexistência de qualquer pesquisa metodologicamente consistente apontando essa tendência com clareza impede-nos de tratar essa suposição como qualquer coisa além de pura conjectura.
Não obstante, fato é que tais decisões monocráticas não podem atingir, ao menos sob o ponto de vista legal, o coração das atribuições institucionais do STF, sobretudo no que diz respeito às mais importantes, àquelas ligadas à produção de decisões vinculantes com efeito geral. Tais decisões, ligadas aos julgamentos de mérito no controle concentrado, à edição de Súmulas, ao julgamento das questões constitucionais mais polêmicas trazidas pelo controle difuso, são exclusivas das Turmas ou do Plenário. Sobretudo no que diz respeito ao controle concentrado, que tem efeitos gerais mais amplos e que tem se mostrado como locus privilegiado das decisões mais importantes do STF, daquelas que ganham mais relevo na mídia e no debate público, são competências que estão atribuídas, privativamente, ao Plenário. E, se as decisões colegiadas já são uma minoria entre os julgamentos proferidos atualmente pelo STF, as decisões proferidas no Plenário são a minoria entre a minoria.
De fato, os números publicados no Relatório de Atividades do STF para o biênio de 2006-2008 demonstram que o julgamento de casos pelo Plenário é evento ainda mais raro que o julgamento colegiado em si. Em 2006, os casos julgados em plenário corresponderam a 0,5% de todos os casos julgados no ano. Em 2007, o percentual foi de 5,04% e em 2008, até 10 de abril, estava em 4,81%. A média do período correspondeu a 3,34%.
Em 2006, o Plenário do STF julgou 565 casos (o número de decisões do pleno foi particularmente baixo nesse ano), ao passo em que o tribunal, como um todo, proferiu 112.403 decisões. Apesar da aparente excepcionalidade dos números de julgados do Pleno em 2006, é inevitável que eles provoquem algum tipo de reflexão quanto ao trabalho do tribunal. A primeira pode ser a seguinte: se é inconcebível imaginar uma corte suprema ou constitucional que julgue mais de uma centena de milhares de casos ao ano, o número algo superior a cinco centenas, atinente aos julgamentos do Plenário do STF em 2006, ainda que permaneça alto, já é bem mais próximo daquilo que se pode encontrar nas experiências estrangeiras.
Em 2007, foram proferidas pela Corte Constitucional italiana 464 decisões. Esse número havia sido de 463 em 2006 e 482 em 2005. Em 2000 foram 592 decisões (Itália, 2007 e 2008). O Tribunal Constitucional português julgou, em 2006, 711 casos. Em 2005, 2004 e 2003 haviam sido, respectivamente, 723, 725 e 638 casos (Portugal, 2008). O Tribunal Constitucional espanhol julgou, em 2007, 11.590 casos, a maior parte consistindo em recursos de amparo inadmitidos, produzindo um total de 295 sentenças de mérito (ESPANHA, 2008). Em 2006 esses números haviam sido de 9, 173 e 382, respectivamente. O Tribunal Constitucional do Peru, entre processos de inconstitucionalidade, amparo, habeas corpus, habeas data, queixas e outros processos semelhantes, julgou ao ano, em média, 7.505 processos, no período compreendido entre 2004 e 2997 (PERU, 2008).
É evidente que cada corte suprema e cada tribunal constitucional possui, para além dos esquemas fáceis de classificação em um ou outro desses modelos, particularidades específicas, ligadas à tradição e à cultura jurídica nacionais, que determinarão perfis de julgamento diferentes, apontando para um maior ou menor volume de casos.Todavia, quando olhamos o número de casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, ele aparece, na comparação internacional, como uma evidentíssima anormalidade. Quando olhamos, contudo, para os julgamentos colegiados, a anormalidade começa a amenizar. Quando focamos nossa atenção exclusivamente ao trabalho do Plenário, a imagem que temos é algo mais próximo do que poderia ser considerado "normal", em termos de volume de trabalho atribuído a um tribunal com as características dessa Corte.
Quando sugiro que a nossa experiência de ativismo constitucional seja marcada por traços próprios, em alguma medida desviantes do que normalmente se encontra na experiência internacional (um ativismo "à brasileira"), um dos pontos a que me refiro consiste justamente nessa disparidade imensa entre o número de casos lançados ao STF, o número de casos "formalmente resolvidos" por ele a cada ano, e o número de casos que efetivamente geram discussões sofisticadas de constitucionalidade no Plenário. Refiro-me ainda ao conforto que o acesso formalmente irrestrito à corte parece dar à comunidade jurídica, fazendo parecer que existe, mesmo, uma espécie de "direito individual" à solução de certos casos pelo STF, mesmo que a experiência mostre que a esmagadora maioria dos casos pode estar sendo resolvida de forma burocrática por meio de juízos singulares de inadmissão. Creio que esse seja um dos pontos que destaca a experiência brasileira das demais.
Mas há um outro ponto de destaque, algo paradoxal, que é distinto, porém se relaciona ao anterior. Trata-se da imensa resistência que temos em outorgar ao STF poderes efetivos de concentração das decisões sobre constitucionalidade. O caráter paradoxal desse traço consiste em seu contraste com o imenso poder que o órgão já detém para, de um lado, produzir decisões vinculantes de efeito geral (como no controle concentrado), ou de outro, para produzir juízos em princípio informais de irrelevância (por exemplo, por meio dos critérios rígidos de admissão do recurso extraordinário, já mencionados acima, que se traduzem em uma expressiva maioria de julgamentos monocráticos, provavelmente de inadmissão).Tais poderes já existem e já são praticados de fato. Contudo, temos, de um modo geral, imenso receio de consolidá- los em mecanismos formais de unificação vinculante de jurisprudência e de escolha (fundamentada, mas com alguma dose de discricionariedade no julgamento) das hipóteses de exercício formal da competência recursal em sede de controle difuso.
Esse segundo traço é, ao mesmo tempo, responsável pela sobrecarga no volume de trabalho do STF e, também, por uma certa sensação de descontrole que parece haver intrínseca ao nosso sistema atual de revisão difusa de constitucionalidade. Esse é o segundo elemento que parece caracterizar nosso ativismo "à brasileira" e sobre ele é que concentrarei as considerações restantes deste ensaio.
3 QUAL É O TRIBUNAL QUE QUEREMOS? UMA SUPREMA CORTE "À AMERICANA" OU UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL "À EUROPÉIA"?
As considerações feitas acima remetem claramente a uma questão fundamental, atinente ao modelo de Supremo Tribunal Federal que desejamos construir. E qualquer ponderação que se possa fazer a respeito disso terá que levar em consideração, necessariamente, nosso modelo híbrido e particular de controle de constitucionalidade, em que se misturam os modelos concentrado e difuso e no qual o modelo de controle difuso é desacompanhado de mecanismos "de organização", por assim dizer: mecanismos que permitam a uniformização dos entendimentos sobre a constitucionalidade das leis a partir da jurisprudência do órgão de cúpula do judiciário.
Desenvolvi, em um outro trabalho (VERISSIMO, 2006), considerações mais extensas sobre a natureza eminentemente distributiva da jurisdição constitucional, ou seja, dos processos variados de negociação de interesses, ação de veto, contribuição para a redefinição e para a criação de políticas públicas que são inerentes à aplicação de uma Constituição vasta, principiológica, socialmente orientada e por vezes contraditória como é a brasileira. E ressaltei o fato de haver um desajuste fundamental quando as decisões distributivas são tomadas com foco na singularidade dos casos individuais. Esse é um tema absolutamente central à análise de nosso modelo de controle misto de constitucionalidade.
De fato, analisando comparativamente os modelos de controle difuso e concentrado, Mauro Cappelletti (1984, p. 77-8) advertia para os perigos que seriam inerentes a qualquer tentativa de introduzir o sistema difuso de controle de constitucionalidade em países de tradição jurídica ligada à família da civil law, nos quais não existe a doutrina do stare decisis ou da vinculação pelo precedente. Segundo o autor, "a introdução, nos sistemas de civil law, do método 'americano' de controle, levaria à conseqüência de que uma mesma lei ou disposição de lei poderia não ser aplicada, porque julgada inconstitucional, por alguns juízes, enquanto poderia, ao invés, ser aplicada, porque não julgada em contraste com a Constituição, por outros". Prosseguindo adiante com seu espanto diante dessa possibilidade, diz Cappelletti que "a conseqüência, extremamente perigosa, de tudo isto, poderia ser uma grave situação de conflito entre órgãos e de incerteza do direito, situação perniciosa quer para os indivíduos como para a coletividade e o Estado".
Essas considerações dizem respeito a um problema jurídico fundamental (talvez o primeiro dos problemas jurídicos): a necessidade de tratar igualmente aos iguais. Esse postulado de tratamento isonômico é também um problema procedimental interno aos arranjos institucionais do controle de constitucionalidade, pois esses podem, dependendo de sua configuração, reduzir ou amplificar desigualdades de tratamento no plano do direito. A advertência é de William Rubenstein (2002), para quem a desigualdade torna-se um problema das estruturas processuais tanto quando elas se defrontam com litigantes desiguais, dotados de desequilibrada capacidade de apresentar suas teses, quanto nas hipóteses em que o próprio processo gera resultados desiguais para pessoas que deveriam estar na mesma situação. Isso pode ocorrer, por exemplo, "quando um conjunto de partes similares litiga de forma independente um determinado dano" (Rubenstein, 2002, p. 1893). Assim, "[u]ma parte das escolhas relativas ao desenho dos procedimentos e das regras processuais, mais ou menos explicitamente, procura evitar esse tipo de disparidade de resultado" (RUBENSTEIN, 2002, p. 1894). Um desses mecanismos, no campo do controle difuso de constitucionalidade, consiste na concentração de poderes decisórios nas cortes superiores, que existem exatamente para essa finalidade (mecanismos de uniformização de jurisprudência, vinculação por precedentes e, em alguns casos excepcionais, avocação de causas). Outro consiste no próprio uso dos mecanismos de controle concentrado.
O hibridismo de nosso sistema não atentou para essas advertências. Assim, se de um lado gerou um sistema especialmente aberto à participação de atores sociais na jurisdição constitucional, com conseqüente ampliação do papel político institucional do STF (Vieira, 2002), não permitiu, por outro, que esse tribunal pudesse exercer qualquer papel relevante de uniformização do direito no uso de sua competência recursal extraordinária ligada ao sistema de controle difuso. Isso, aliado à existência de uma constituição vasta e por vezes contraditória, gerou um ambiente em que a jurisdição constitucional tornou-se especialmente caracterizada por incertezas, processos contraditórios de aplicação e tratamentos por vezes desiguais de situações que deveriam merecer tratamento jurídico uniforme.
Tal cenário fez com que nosso sistema de controle de constitucionalidade fosse descrito por um observador estrangeiro, em artigo publicado em 2000, da seguinte forma:
O Brasil tem um sistema de controle de constitucionalidade extenso e complicado.Tem também uma Constituição enorme, carregada de direitos individuais específicos e de objetivos sociais e econômicos de longo alcance. Colocar direitos e objetivos por escrito, no entanto, mesmo em uma constituição nacional, não assegura seu respeito por aqueles encarregados de administrar as operações diárias do governo. Em virtude da existência no Brasil de um sistema judicial acessível, muitas dessas violações constitucionais estão nas secretarias dos tribunais esperando solução judicial. Como o Brasil tem apenas um sistema mínimo de vinculação por precedentes, as cortes decidem as mesmas questões constitucionais muitas vezes seguidas. Além de isso consumir recursos judiciais valiosos, isso produz interpretações conflitantes das disposições constitucionais (ROSENN, 2000).
No diagnóstico desse autor, as mudanças promovidas pela Constituição de 1988, consolidando um modelo de controle de constitucionalidade "híbrido e extraordinariamente complexo, que tenta conciliar as tradições de civil law e de common law", teriam criados "sérios problemas para o sistema judiciário", apontando a necessidade de mudanças. Especialmente, de mudanças que permitam ao Supremo Tribunal Federal escolher, discricionariamente, os casos em que irá atuar sua competência recursal extraordinária atinente ao controle difuso e, também, que se destinem a tornar sua jurisprudência, de algum modo, vinculante.
Um dos pontos mais importantes a considerar nesse debate é que a escolha entre o modelo de Corte Suprema e o modelo de Tribunal Constitucional tem muito pouca relação com o ponto fulcral dos debates que envolvem hoje a reforma do STF, já que estes são fundados, penso eu, em dois elementos fundamentais que são comuns a ambos os modelos, e que são relacionados entre si, a saber: (i) a concepção de mecanismos de vinculação geral pelas decisões do tribunal; e (ii) o controle sobre o acesso de casos à corte, de modo a expurgar de seu trabalho de julgamento casos rotineiros, que não tenham algum tipo de interesse geral.
No que diz respeito ao primeiro ponto, a solução dada pelo modelo puro de cortes constitucionais consiste no ataque constitucional à lei em tese, com o efeito, em caso de declaração de inconstitucionalidade, de retirá-la do ordenamento jurídico. Dizer que não há, dentro desse modelo, nenhum espaço para o exercício de controle de constitucionalidade por outros órgãos do judiciário é algo que faz sentido quando se pensa no modelo puro, mas já não corresponde completamente à realidade das experiências concretas, como demonstram os casos da Alemanha e Itália, por exemplo. E a explicação para isso é simples:
[...] uma vez que as normas, princípios e valores constitucionais se tornam relevantes para a aplicação de normas infraconstitucionais específicas, eles passam a ser aplicados não apenas pela corte constitucional, que normalmente intervém como "última instância", mas também - e primariamente - por todas as outras cortes e juízes. A constitucionalização de ramos específicos do direito significa que o conteúdo normativo de cada um desses ramos é agora determinado não apenas pelas leis e códigos particulares a eles, mas também pelas disposições constitucionais pertinentes e pela jurisprudência constitucional aplicável. [...] Tais desenvolvimentos demonstram que não é possível uma separação genuína entre jurisdição constitucional e jurisdição ordinária em um Estado de Direito moderno" (GARLICKI, 2007, p. 49).
Assim, o que acaba distinguindo a corte constitucional é o fato de ela estar incumbida de dar a última palavra sobre a interpretação constitucional, e de suas decisões serem vinculantes. No modelo americano de corte suprema, essa vinculação é da essência do sistema de stare decisis, produzindo-se, ao fim e ao cabo, o mesmo tipo de elemento uniformizador.
Já em relação ao segundo ponto, o da existência de filtros, ambos os modelos também convergem em alguma medida. No modelo puro de cortes constitucionais, haveria, em princípio, uma ação direta de constitucionalidade, cuja legitimação seria atribuída a um rol seleto de atores políticos. Desse modo, a seletividade na atribuição de legitimação agiria como um filtro. No modelo puro (americano) de Corte Suprema, não há esse filtro formal, esta é órgão de cúpula do judiciário e tem competência recursal irrestrita, capaz de ser provocada por qualquer um. No entanto, o filtro incidente é o do certiorary e, conforme mencionado, esse filtro passa a ser aplicado em quase todos os casos submetidos à jurisdição da corte, tendo sido praticamente suprimidas, recentemente, as competências recursais não discricionárias.
Assim, em nenhum dos modelos se cogita atribuir ao órgão encarregado guardar a constituição competências recursais obrigatórias, e irrestritas, aplicáveis à generalidade dos casos. Nem, tampouco, se cogita atribuir, como regra, às decisões desse órgão, caráter de mera recomendação. Há, quase sempre, algum tipo de efeito vinculante e geral, independentemente de o juízo de constitucionalidade ter tido origem em um exame abstrato da norma ou na análise de um caso concreto em que ela foi aplicada.
Essa mesma diferença, entre o caráter abstrato ou concreto do controle, que seria uma das marcas características a dividir os modelos de cortes supremas e constitucionais, também é mais esquemática que real, como exemplifica o caso italiano, em que boa parte do trabalho da Corte Constitucional se dá à vista de casos concretos, referidos à corte pelas instâncias ordinárias do próprio judiciário.26 Ou mesmo o caso alemão, em que o recurso constitucional traz à consideração do Tribunal Constitucional casos concretos, com iniciativa dos próprios indivíduos lesados. Mas vale anotar que o tribunal se reserva, nesse último caso, a competência para escolher quais irá julgar, e os efeitos da decisão continuam a produzir-se erga omnes, tal como ocorreria, grosso modo, no controle difuso à americana.
Isso tudo significa que os modelos de corte suprema e tribunal constitucional funcionam mais como tipos ideais do que como camisas de força institucionais, e que as experiências nacionais e estrangeiras são, normalmente, ligadas à construção de instituições específicas, com particularidades ligadas às necessidades e tradições especiais de cada país.
Assim, o apego brasileiro ao hibridismo que marca nossa jurisdição constitucional não precisa, necessariamente, impedir eventuais projetos de reforma. O hibridismo, por sinal, parece ser a marca de vários dos principais arranjos institucionais que marcam o controle de constitucionalidade em tempos atuais. O que parece haver de errado com a jurisdição do STF não é propriamente o sistema misto de controle, mas sim o desgoverno na entrada de casos na secretaria da corte (fenômeno razoavelmente único na experiência internacional, quer do modelo difuso, quer do concentrado, como já visto) e o desprestígio que as decisões têm quando dadas no contexto do controle difuso (o que não se observa nem no modelo americano, nem na experiência alemã do recurso constitucional, por exemplo, já que em ambos os casos, tirados de modelos opostos de controle, a decisão da corte suprema ou constitucional, uma vez dada, fica investida de algum tipo de efeito geral).
CONCLUSÃO E FUTUROLOGIA: UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL "À BRASILEIRA"?
Qual seria, então, o caminho de reforma para o Supremo Tribunal Federal? Seria o de transformá-lo em uma "corte constitucional" pura, como se cogitou na Constituinte de 1988? Creio que uma reforma desse tipo teria chances muito pequenas de ser bemsucedida no caso brasileiro, quer no que se refere às suas chances de ser aprovada, quer no que diz respeito a seu eventual sucesso institucional, se a aprovação acabasse acontecendo.27 O caminho da experiência nacional tem particularismos importantes e o que parece estar se construindo não apenas pelas progressivas reformas constitucionais e legislativas, mas também, como veremos adiante, pela própria jurisprudência do STF, parece ser um caminho próprio, que mescla elementos dos dois modelos ideais de tribunal constitucional, de sorte a criar um Tribunal Constitucional "à brasileira".
Esse tribunal é, antes de mais nada, órgão de cúpula do judiciário. Isso o aparta do modelo de cortes constitucionais puras e está traduzido, por exemplo, na competência outorgada ao STF para julgar casos "de interesse geral da magistratura". Além disso, parece haver uma experiência nacional ligada ao controle difuso bastante consolidada, que seria dificilmente transformada de modo radical. Essa experiência, em uma de suas faces, outorga competências à magistratura em geral para realizar controle de constitucionalidade, e tais competências se traduzem em um tipo de poder que a magistratura não estaria disposta a abrir mão. O exemplo francês é eloqüente nesse sentido, dando conta da criação de uma curiosa válvula de escape à proibição de exercício de controle difuso por parte dos juízes. Essa válvula de escape consistiu na construção de uma doutrina que lhes permite deixar de aplicar a legislação francesa quando ela é tida por incompatível com a legislação comunitária, que tem, por sua vez, normas abertas e princípios de ação muito parecidos com aqueles que seriam encontráveis em uma constituição nacional. Assim, o controle de constitucionalidade instalou-se informalmente na França travestido de controle de compatibilidade das leis francesas com o direito comunitário, demonstrando, eloqüentemente, que a complexidade das relações reais de poder é capaz de contornar quaisquer tentativas formais de controle do poder decisório da magistratura. Além disso, sequer pareceria conveniente extinguir essas competências de controle por parte dos juízes brasileiros, já que uma das virtudes apontadas para o controle difuso, que parece estar presente em nossa experiência, é sua enorme flexibilidade, aliada à possibilidade de "testarem-se", em múltiplas instâncias e à vista de casos concretos, variadas soluções constitucionais, antes que uma delas seja consolidada no entendimento de uma dada corte suprema. O problema, portanto, parece ser o de permitir que nosso arranjo institucional produza, em algum momento, esse resultado último de consolidação e organização dos entendimentos constitucionais.
Uma das soluções propostas para esse problema, nas reformas recentes, é a da súmula vinculante. Mas trata-se, ao fim e ao cabo, de uma solução algo tímida. Ao invés de impedir o julgamento repetido de questões idênticas pelo STF, a súmula depende, justamente, da existência desses julgamentos idênticos e repetitivos, para que possa ser editada. Isso porque, nos termos do artigo 103-A da Constituição Federal, sua edição somente pode ocorrer "após reiteradas decisões sobre matéria constitucional". Em um tribunal comum de apelações, tal exigência até poderia fazer algum sentido, já que um tribunal desse tipo é composto de uma infinidade de magistrados, reunidos em órgãos colegiados distintos, que podem até mesmo ter interpretações distintas sobre uma mesma questão legal (esse é o modelo de cortes supremas na Europa, que encontraria alguma semelhança, no Brasil, com o arranjo institucional próprio ao STJ, como seus 33 Ministros divididos em 6 Turmas, 3 Sessões, uma Corte Especial e um Tribunal Pleno).28 Mas no STF, em princípio, as declarações de inconstitucionalidade (ressalvada a competência das Turmas, como visto supra), deveriam em princípio ser remetidas, prioritariamente, ao próprio Plenário. Exigir julgamentos repetitivos para que o entendimento do tribunal possa tornar-se vinculante passa a fazer pouco sentido nesse contexto, ainda mais quando se tem em conta que o regime de vinculação no controle concentrado é completamente outro e não depende de qualquer repetição.
Para a solução do problema ligado à existência de filtros, a reforma constitucional concebeu o mecanismo da relevância geral. Mas o fez, novamente, de sorte a tornar o mecanismo quase impossível de ser aplicado, caso se quisesse levar às últimas conseqüências o regime processual determinado pela Constituição.
De fato, ao instituir esse requisito de admissibilidade, a Constituição determinou, em seu artigo 102, § 3º, que o STF somente poderia recusar-se a julgar um recurso extraordinário, por falta de relevância, mediante "manifestação de dois terços de seus membros". Em outras palavras, exigiu, para o julgamento de irrelevância, quorum maior até mesmo que o necessário para o julgamento de mérito do recurso, que acontece, ordinariamente, nas Turmas. Nesses termos, qualquer um que meditasse sobre a viabilidade de reunião do Plenário do STF para o julgamento de irrelevância de mais de 100 mil casos ao ano seria capaz de perceber que o mecanismo, assim aplicado, seria mais custoso que o mecanismo já existente de filtro por meio de decisões monocráticas de inadmissão formal (por falta de requisitos formais, ou de prequestionamento, ou por violação de quaisquer das Súmulas que tratam da admissibilidade, como visto supra).
A salvação do mecanismo, no entanto, parece ter sido dada pelas normas infraconstitucionais que o regularam. Em primeiro lugar, pela Lei n. 11.418/96, que estabeleceu que, "negada a existência de repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente", prevendo ainda a possibilidade de sobrestamento de recursos idênticos, para análise de repercussão geral em apenas um deles. De outra parte, as emendas n. 21, 22 e 23 ao Regimento Interno do STF criaram o mecanismo do "Plenário Virtual" para processar as decisões sobre repercussão geral eletronicamente, criando ainda condições para a própria secretaria aplicar, com certas restrições, os mecanismos de filtro criados.
Se esse mecanismo for utilizado com o devido rigor pelo STF, talvez seja possível, afinal, racionalizar a pauta de julgamentos do Supremo, ao menos no que diz respeito à sua competência recursal extraordinária. Em outras palavras, talvez seja possível reduzir o imenso abismo que separa, hoje, os números atinentes aos julgamentos totais da corte em relação aos números atinentes aos casos julgados em Plenário. Mas, aparentemente, outras reformas precisariam ser feitas, inclusive para reduzir ainda mais as competências recursais ordinárias e as competências originárias do tribunal, no último caso em relação, sobretudo, ao julgamento de ações penais envolvendo autoridades políticas, ou das ações cíveis envolvendo "pequenas causas políticas", para usar uma expressão que tem sido usada pelo Professor Oscar Vilhena (VIEIRA, 2007).29
Voltando, contudo, ao tema do controle difuso, e também ao das súmulas vinculantes, é preciso ter em mente que o endurecimento no uso dos filtros atinentes à admissão de recursos extraordinários não fará qualquer sentido se não for introduzido algum mecanismo mais eficaz de atribuição de efeito geral às decisões dadas pelo STF no exercício dessa competência recursal. Nesse ponto, as soluções vindas do espaço legislativo sempre foram tímidas.
Desde muito tempo se discute no plano legislativo a atribuição de efeito vinculante às decisões desse tipo proferidas pelo STF. Em todas as oportunidades, a tese de criação de uma espécie de stare decisis brasileiro ficou vencida. A alternativa que encontramos foi a de suspensão da execução da lei pelo Senado Federal, mas essa alternativa, por razões até mesmo óbvias (o Senado tem, no mais das vezes, uma agenda política própria, que pode perfeitamente ser incompatível com o juízo de inconstitucionalidade proferido incidentalmente pelo STF), nunca produziu efeitos substantivos concretos.
Todavia, está ocorrendo, agora mesmo, um fenômeno curioso de contorno desse impasse institucional pelo próprio STF. Refiro-me ao julgamento da Representação n. 4.335-5, em curso perante o tribunal.
Essa representação tem origem no julgamento do habeas corpus n. 82.959, em que se decidiu, incidentalmente (por via de controle difuso, portanto), ser inconstitucional o art. 2º, § 1º, da lei de crimes hediondos (Lei n. 8.072/90). Esse artigo estabelecia a proibição de progressão de regime, determinando o cumprimento de toda a pena imposta a esse tipo de crime em regime fechado. E foi com base justamente nessa decisão incidental que a Defensoria Pública da União ajuizou a reclamação, afirmando que a decisão do STF, proferida neste caso, estaria sendo descumprida pela Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, que estaria continuando a aplicar o artigo em questão, ainda que para o efeito de julgar o regime das penas atinentes a outros condenados, distintos daqueles que haviam sido beneficiados diretamente pelo HC n. 82.959.
Em defesa de sua posição, o juiz reclamado ponderou que não teria ocorrido, no caso, violação de qualquer decisão do STF, já que os interessados na Reclamação n. 4.335-5 seriam pessoas distintas daquelas beneficiadas pelo HC n. 82.959, sendo que esta decisão foi proferida no contexto do controle difuso, produzindo, portanto, apenas efeitos concretos, aplicáveis especificamente às partes no processo. Para que tal decisão possa ganhar efeitos gerais seria preciso que o STF comunicasse o Senado Federal, para que este, a seu critério, resolvesse suspender, ou não, a execução do dispositivo tido por inconstitucional. O conteúdo dessas razões foi (como seria normalmente de se esperar) acolhido no parecer da Procuradoria Geral da República, mas, surpreendentemente, não convenceu o relator, Ministro Gilmar Mendes.
O voto desse Ministro, dado a público na sessão de 01.02.2007, fala na ocorrência de mutação constitucional, cujo efeito teria sido o de equiparar, hoje, os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, quer se trate de controle difuso, quer de controle concentrado. Isso porque, a partir dos novos arranjos trazidos pela Constituição de 1998, "a ênfase passou a residir não mais no sistema difuso, mas no de perfil concentrado", "sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade". Segundo o Ministro Gilmar Mendes:
[...] a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental. Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do Senado. O mesmo há de se dizer das várias decisões legislativas que reconhecem o efeito transcendente às decisões do STF tomadas em sede de controle difuso. Esse conjunto de decisões judiciais e legislativas revela, em verdade, uma nova compreensão do texto constitucional no âmbito da Constituição de 1988.30
Essa não é uma nova compreensão que nasce desvinculada do cenário descrito neste artigo, de forte distorção do sistema difuso no período posterior a 1988, gerada pela multiplicação de processos em face da ausência de filtros, do crescimento no exercício das competências de controle de constitucionalidade, e da ausência, em contrapartida, de efeito vinculante para as decisões incidentais de inconstitucionalidade proferidas pelo STF. Segundo ainda o voto do Ministro Gilmar Mendes, "[a] multiplicação de processos idênticos no sistema difuso - notória após 1988 - deve ter contribuído, igualmente, para que a Corte percebesse a necessidade de atualização do aludido instituto".
Em linha de conclusão, entende o voto do Ministro Relator ser:
[...] legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso.Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa.
Não há dúvida: se essa orientação prevalecer no julgamento do caso, terá ocorrido uma verdadeira revolução no sistema brasileiro de controle difuso de constitucionalidade. Até agora, a posição do relator já foi acompanhada pelo Ministro Eros Grau, para quem o sistema de atribuição de efeitos inter partes no controle incidental promovido pelo STF, com a eventual possibilidade de suspensão da execução da lei pelo Senado, ter-se-ia tornado, atualmente, obsoleto. Contra tal entendimento votaram, até agora, os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa. O julgamento foi suspenso em 19.04.2007, com o pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski, e ainda não foi retomado. Além deste Ministro, faltam votar, no caso, os Ministros Cezar Peluso, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Carlos Britto e Cármen Lúcia. Não deve votar, em princípio, o Ministro Menezes Direito, por ter tomado posse após o início do julgamento e por ter substituído o Ministro Sepúlveda Pertence, que já votou no caso.
A solução proposta nos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau coloca, evidentemente, na pauta de debates, uma importante questão de democracia, ligada àquilo que se chama na literatura norte-americana de "objeção contra-majoritária". Isso porque a mudança proposta por tais votos no sistema de vinculação próprio ao controle difuso já foi, em inúmeras oportunidades, cogitada pelo legislador constituinte original e derivado, mas restou sempre superada no decorrer do processo legislativo, como ressalta o próprio voto do relator, ao fazer referências à Constituinte de 1946 e ao processo de elaboração da Emenda 16/1965. De certa forma, questão semelhante chegou a ser discutida até mesmo na PEC n. 96/1992, que originou, posteriormente, a EC n. 45/2004.Tratava-se do incidente de inconstitucionalidade, presente nos projetos dos Deputados Jairo Carneiro e Aloysio Ferreira e também no texto aprovado na Comissão Especial, mas expurgado do texto da Proposta em virtude de um acordo capitaneado pelo governo no início de 2000, dada a enorme resistência que surgiu em relação a essa proposta.31
Assim, com o eventual julgamento de procedência da Reclamação n. 4.335, produziríamos, em princípio, por via judicial, uma reforma que, de um modo ou de outro, foi cogitada, no sistema político representativo, há pouco mais de oito anos, tendo sido ali rejeitada. Daí, eventualmente, seu caráter contra-majoritário. Mas, a bem de ver, seria uma decisão contra-majoritária que poderia ter a virtude de corrigir uma importante anomalia presente em nosso sistema de controle constitucional, consistente na atribuição ao STF de uma competência recursal extraordinária sem qualquer grau de vinculação geral, que o tem transformado, ao fim e ao cabo, em uma espécie de tribunal ordinário de apelação em matéria constitucional. E essa situação, ainda que já se desenhasse no final da década de 1990, quando a média de processos recebidos ao ano pelo STF atingia algo em torno de 50 mil, apenas de consolida integralmente na década de 2000, quando esse número sobe, de uma vez, para a casa dos 110 mil. Situação distinta, portanto, daquela que se apresentava ao constituinte derivado, na análise da PEC n. 96/1992.
O resultado último desse julgamento, e dos embates institucionais que ele e o próprio processo de reforma institucional do STF irão gerar, ainda não pode ser antevisto. Mas o que parece isento de dúvida é o fato de estar em curso, no vigésimo aniversário da Constituição de 1988, um processo declarado de revisão e reforma da jurisdição constitucional, que pode, no limite, vir a transformá-la radicalmente.
Qualquer que seja o resultado desse processo, ele irá contribuir para amplificar o caráter marcadamente específico e brasileiro de nosso arranjo institucional relativo ao controle de constitucionalidade. A esperança é que, além de brasileiro, esse arranjo possa também ser também funcional, isto é, que resulte adequado a atender as necessidades particulares de nosso sistema jurídico e, também, a corrigir os imensos problemas que têm sido apontados, atualmente, em relação a esse sistema.
NOTAS
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Artigo aprovado (03/11/2008)
Recebido em 30/07/2008
ANEXO - GRÁFICOS E TABELAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Nov 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
-
Recebido
30 Jul 2008 -
Aceito
03 Nov 2008