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Discurso de ódio em redes sociais e reconhecimento do outro: o caso M.

Hate speech in social networks and recognition of the other: the M. case

Resumo

Este trabalho analisa a sentença de primeira instância relativa ao caso M., de estudante universitária paulista que, em fins de 2010, publicou discurso de ódio contra nordestinos por meio da rede social Twitter. Com a análise, pretende-se identificar quais modalidades de reconhecimento do outro encontram-se presentes na resposta jurisdicional e como foram desenvolvidas pela julgadora; ainda, busca-se verificar, na sentença, a presença de elementos diferenciais a endereçar especificamente a circunstância de tratar-se de caso de discurso de ódio veiculado pela internet. Valendo-se do método procedimental de estudo de caso, elegem-se por marco teórico os escritos de Axel Honneth relativos à teoria do reconhecimento, sendo adotadas técnicas de pesquisa documental e bibliográfica. Ao final do estudo, conclui-se que, a despeito de suas fragilidades, a sentença do caso M. constitui importante marco responsivo ao discurso de ódio em redes sociais, em âmbito jurídico e solidário, dirigindo-se tanto às partes envolvidas (M. e os nordestinos) quanto à sociedade, e atenta às peculiaridades das novas mídias.

Discurso de ódio; redes sociais; nordestinos; teoria do reconhecimento; Axel Honneth

Abstract

This paper analyzes the sentence of first instance regarding the M. case, of a university student from São Paulo who, by the end of 2010, published on Twitter a hate message against Northeastern people. With the analysis, we wish to identify which types of recognition of the other are present in the jurisdictional response and how they were developed by the judge; also, we aim to verify in the sentence the presence of differential elements that specifically address the circumstance of it being a case of hate speech transmitted by the web. Using the procedural method of case study, we elect Axel Honneth’s writings on recognition theory as theoretical framework, employing documental and bibliographic research techniques. At the end of the study, we conclude that, despite its weaknesses, the sentence of the M. case constitutes an important responsive mark to hate speech in social networks in terms of law and solidarity, having addressed both parties involved (M. and Northeastern people) and society, and displaying attention to the peculiarities of new media.

Hate speech; social networks; Northeastern people (Brazil); theory of recognition; Axel Honneth

INTRODUÇÃO

O desenrolar das recentes disputas políticas – sejam nacionais (p. ex., desde as eleições presidenciais brasileiras de 2014, de marcado antagonismo entre os candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves, até a conflagração do processo de impeachment da presidente eleita, em 2016) ou internacionais (p. ex., as investidas violentas do Estado Islâmico contra os Estados Unidos e a Europa, aliadas, em contrapartida, à ascensão de vertentes políticas de direita nacionalista em democracias ocidentais) – demonstram que a arena de tais disputas está se ampliando, vindo a ingressar em território virtual. Nesse patamar, observa-se que o confronto, ora firmado sobre dimensão simbólica, traduz-se por vezes em ataques a grupos e/ou indivíduos por conta de sua religião, cor de pele, região de proveniência, enfim, por razões de identidade. Trata-se de fenômeno dia a dia mais expressivo e nocivo à convivência com a alteridade: o discurso de ódio em redes sociais. O presente artigo, encarando tal fenômeno sob perspectiva da teoria de Axel Honneth – ou seja, como situação de não reconhecimento –, quer examinar as respostas que, sob o ponto de vista recognitivo, as instâncias judiciais brasileiras têm conferido à questão.

Desse modo, este trabalho analisa a sentença de primeira instância relativa ao caso M., da estudante universitária paulista que, em fins de 2010, publicou discurso de ódio contra nordestinos por meio da rede social Twitter, e busca identificar quais modalidades de reconhecimento do outro encontram-se presentes na resposta jurisdicional e como foram desenvolvidas pela julgadora. Este artigo verifica ainda se há, na sentença, a presença de elementos diferenciais a endereçar especificamente a circunstância de tratar-se de caso de discurso de ódio veiculado pela internet. Como já sinalizado, para este estudo de caso, elegem-se por marco teórico os escritos de Axel Honneth relativos à teoria do reconhecimento, sendo adotadas técnicas de pesquisa documental e bibliográfica. A exposição divide-se em dois momentos: o primeiro tem por mote situar o discurso de ódio como problema de não reconhecimento, detendo-se no exame do hate speech publicado por M.; já o segundo momento é dedicado à análise da sentença do caso M., compreendida, igualmente, à luz de categorias recognitivas.

1 “NORDESTINO ( SIC ) NÃO É GENTE”: ANÁLISE DO DISCURSO DE ÓDIO DE M. SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DO RECONHECIMENTO

1.1 Um prolegômeno necessário: discurso de ódio on-line como ato de não reconhecimento

O discurso de ódio, consoante definição de Brugger (2007BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Tradução de Maria Ângela Jardim de Santa Cruz Oliveira. Revista de Direito Público . Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, ano 4, v. 15, n. 117, jan./mar. 2007. , p. 118), é aquele que se compõe de “palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião”, entre outros atributos, tendo “a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”. É uma violência sobretudo simbólica ( WIEVIORKA, 2007WIEVIORKA, Michel. O racismo, uma introdução . Tradução de Fany Kon. São Paulo: Perspectiva, 2007. (Coleção Debates n. 308; dirigida por J. Guinsburg). , p. 71), cujos efeitos podem se manter nesse âmbito ou extravasá-lo, passando à violência física.

O conceito de Brugger é eficiente no sentido de dividir o hate speech em dois atos: insulto e instigação. O primeiro concerne diretamente à vítima; consiste no desrespeito a determinado grupo de pessoas por conta de traço por elas partilhado. Nota-se que o insulto dirige-se a todo um grupo social, não apenas a um indivíduo. Como destacado por Silva et al. (2011SILVA, Rosane Leal da; NICHEL, Andressa; MARTINS, Anna Clara Lehmann; BORCHARDT, Carlise Kolbe. Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira. Revista Direito GV , v. 7, n. 2, 2011. , p. 447), mesmo que determinado indivíduo tenha sido diretamente atingido, aqueles que compartilham da característica ensejadora de discriminação, ao entrarem em contato com o discurso odiento, compartilham da situação de violação. Produz-se o que se chama de vitimização difusa: não se afigura possível distinguir quem, nominal e numericamente, são as vítimas do discurso de ódio. O que se sabe é que há pessoas atingidas e que tal se dá por conta de pertencerem a um determinado grupo social.

O segundo ato, a instigação, é voltado a possíveis outros, leitores da manifestação e não identificados com suas vítimas, os quais são chamados a participar desse discurso discriminatório, com o fito de ampliar seu raio de abrangência, fomentá-lo não só com palavras, mas também com ações. Com isso, percebe-se que o não reconhecimento busca ir além da manifestação pontual de opinião: impõe adesão.

Nesse sentido, o emissor do discurso de ódio faz largo uso de certas estratégias de persuasão, aproveitando elementos relativos à área de publicidade e propaganda para angariar adeptos. Entre essas estratégias, como constatado por Brown (1971BROWN, James Alexander Campbell. Técnicas de persuasão – Da propaganda à lavagem cerebral. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971. , p. 27-30), há a criação de estereótipos, a substituição de nomes, a seleção exclusiva de fatos favoráveis ao seu ponto de vista, a criação de “inimigos”, o apelo à autoridade e a afirmação e repetição. Também, a ausência de contraposição direta e imediata a tais mensagens, e com o uso de técnicas de manipulação emocional, aumenta a probabilidade de aceitação do discurso lesivo. Ambas essas faces, aquela a insultar e a outra a instigar, revelam que o discurso de ódio, ademais de expressar, busca intensificar a discriminação.

A discriminação, note-se, pode ser interpretada como ato em que o outro não é reconhecido como simultaneamente igual (ou seja, alguém a partilhar a dignidade universal do humano) e singular (ou seja, alguém a possuir características variadas, inserto em uma teia complexa de grupos identitários) em face dos demais. O outro, tornado objeto do hate speech , é agredido na forma como representa a si próprio, em sua identidade – afinal, a identidade não é um dado a priori , e sim uma construção que toma por referencial olhares concretos voltados a si. Precisamente na constatação desse duplo ferimento, a atingir igualdade e diferença, é que se situa a abertura para analisar o discurso de ódio através das lentes da teoria do reconhecimento. Como observa Douzinas (2009DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos . Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. , p. 300), por depender de determinações históricas, o hate speech é ato que nega reconhecer o outro em dimensão jurídica e solidária. A seguir, proceder-se-á à pormenorização do significado dessa afirmação, adentrando-se no arcabouço teórico de Axel Honneth.

Baseando-se nos escritos de Hegel durante seu período em Jena1 – e dotando-os de certa “inflexão materialista” com o apoio da psicologia social de Mead2 –, Honneth ancora sua teoria do reconhecimento, teoria social de teor normativo, em três fundamentos. O primeiro deles: a formação do indivíduo sob perspectiva prática está vinculada à pressuposição do reconhecimento recíproco entre dois sujeitos. Em processo que se inscreve historicamente na realidade social, o indivíduo só alcança a compreensão de que é autônomo moral e juridicamente se é reconhecido como tal por um outro concreto, seu defrontante, que para tanto lança mão de atos (i. e., quem reconhece fá-lo agindo – e não simplesmente pensando). Tais afirmações, note-se, vão de encontro, por exemplo, à concepção kantiana de autonomia da razão prática, concentrada precipuamente sobre o indivíduo (isoladamente concebido) e sua capacidade de, por meio da própria razão (e apenas por meio dela), divisar e agir de acordo com máximas universais, sem depender, por isso mesmo, do aval heterônomo de quaisquer “outros” para conceber-se autônomo. O peso dado à alteridade no delineamento da autonomia individual: eis aí o corte a separar Hegel de Kant.

O segundo fundamento da teoria de Honneth diz respeito às diferentes formas de reconhecimento, distintas segundo o grau de autonomia possibilitada ao sujeito em cada caso. De acordo com Honneth, o reconhecimento do outro assume três formas básicas: o amor, a relação jurídica e a solidariedade. Cada forma de reconhecimento concerne a uma dimensão específica da personalidade, ora mais tendente para a afetividade, ora para a cognição, ora para ambas. O sucesso ou insucesso da relação recíproca desencadeia uma reação individual denominada autorrelação prática , que pode ser traduzida como o modo imediatamente emocional e mediatamente cognitivo como o indivíduo passa a se considerar após o encontro com o outro.

Enfim, o terceiro fundamento da teoria de Honneth concerne aos efeitos do sucesso ou insucesso das relações recognitivas. Orientada simultaneamente por normas as mais universais possíveis (a delimitar um terreno comum de possibilidades) e pelo objetivo de autorrealização de seres humanos tomados em particular, a concretização das formas de reconhecimento recíproco promove o desenvolvimento bem-sucedido do indivíduo. Já a ausência de tais operações recognitivas – caso, como se verá mais adiante, do discurso de ódio – impõe aos sujeitos envolvidos a experiência do desrespeito, dando ensejo a que tais sujeitos encetem conflitos com os demais, buscando o reconhecimento negado (de direitos, de valor, etc.). É o que Honneth chama de “luta por reconhecimento”.

Ao longo deste trabalho, o foco se concentrará sobre duas formas de reconhecimento em específico, o direito e a solidariedade, esferas recognitivas presentes em âmbito social e institucional, que se relacionam estreitamente, ainda que em chave negativa, ao problema do discurso de ódio. A começar pelo direito, Honneth (2011HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. , p. 181) concebe-o como acordo racional realizado entre indivíduos livres, iguais e, por conseguinte, moralmente imputáveis, podendo ser traduzido como expressão dos interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade. Em outros termos, a todos é comum a igualdade, a liberdade e a responsabilidade – mais precisamente, a imputabilidade, a capacidade de responder pelos próprios atos.

Sem espaço para exceções ou privilégios nessa seara, o reconhecimento jurídico revela-se uma forma altamente exigente de reciprocidade, em que “sujeitos de direito se reconhecem reciprocamente como pessoas capazes de decidir com autonomia individual sobre normas morais” ( HONNETH, 2011HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. , p. 182). Nessa forma de reconhecimento, o indivíduo reconhece o outro por aquilo que ambos partilham: sua condição de pessoa, de fim em si mesmo, ou, em palavras mais familiares, sua dignidade humana. O argumento de Honneth, nota-se, parece inserir certos elementos da teoria kantiana sobre autonomia individual3 dentro da moldura hegeliana da teoria do reconhecimento.

Da condição de pessoa advêm os direitos individuais. Desligados das expectativas coletivas sobre papéis sociais, esses direitos são cabíveis a todo ser humano na qualidade de livre e autônomo. Seu objetivo é possibilitar a participação igualitária no acordo racional sobre normas. São direitos, em resumo, que surgem da igualdade – condição universalmente partilhada pelo ser humano enquanto racional e livre – e que nela têm seu alvo – a participação horizontal na construção de uma sociedade juridicamente embasada.

Uma vez reconhecida a autonomia do indivíduo e a decorrente imputabilidade moral, instala-se entre os membros da sociedade um sentimento de respeito . Esse sentimento, mais ligado à cognição que à afeição, visto que concerne a relações sociais de amplo alcance e cujo objetivo é a universalidade, tem como autorrelação prática o autorrespeito . Essa reação se traduz na sensação de igualdade “para levantar pretensões de satisfação justificada” ( HONNETH, 2011HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. , p. 196). O indivíduo dirige seu olhar para o outro tratando-o como igual e pleiteia a mesma igualdade de volta.

Diferentemente do direito, a reciprocidade solidária é caracterizada pela valoração que o indivíduo opera sobre o outro tendo em vista as diferenças deste, as capacidades e propriedades que o tornam único. A operação pressupõe um quadro referencial de valores socialmente partilhado, traduzido na “autocompreensão cultural de uma comunidade orientada por objetivos comuns” ( HONNETH, 2011HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. , p. 200). Sob perspectiva prática, o indivíduo reconhece solidariamente o outro à medida que as diferenças deste são percebidas como relevantes para a concretização de finalidades sociais culturalmente estabelecidas.

Hoje – considerando fatores como o modelo secularizado de esfera pública preconizado pelo moderno Estado democrático de direito, a organização de movimentos sociais baseados em raça, etnia e gênero, a criticar a neutralidade ínsita à política liberal, e, mais recentemente, a emergência do fenômeno da globalização, a encetar mobilidade nunca antes experimentada de capital, pessoas e ideias ao redor do mundo –, pode-se dizer que é observada expansão das finalidades sociais, tornadas mundanizadas, progressivamente horizontalizadas e não mais restritas ao ideário local, movimento que é acompanhado por uma proporcional abertura do quadro referencial de valores. Aquilo que orienta a chamada estima social não é mais uma conduta compatível com o papel social, como era o caso em sociedades estamentárias, mas, sim, as capacidades biograficamente desenvolvidas pelo indivíduo. É valorada a identidade que o indivíduo constrói. Nas palavras de Honneth (2011HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. , p. 200), “quanto mais as concepções de objetivos éticos se abrem a diversos valores e quanto mais a ordenação hierárquica cede a uma concorrência horizontal, tanto mais a estima social assumirá um traço individualizante e criará relações simétricas”.

A solidariedade se converte, então, em um interesse simétrico pela diferença. Honneth não quer dizer com isso que a toda pessoa passa a ser atribuída igual estima. O quadro referencial de valores não se comporta da mesma forma que o conceito jurídico de dignidade humana. Mesmo em uma sociedade aberta e plural, os juízos axiológicos são objeto de variações conforme as lutas sociais e a atenção pública concedida a elas, além da influência inevitável das interpretações historicamente predominantes. Aquilo que Honneth (2011, p. 208--211) defende é a igual chance de estima propiciada pelos câmbios modernos. A simetria que ocorre quanto à oportunidade de se sentir valioso para a sociedade.

O sentimento que, nesse passo, surge da relação solidária é o de estima social, sensação de valor que concerne tanto à cognição como à afeição. Como explica Honneth (2011HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. , p. 210--211), a solidariedade não se baseia somente na tolerância racional para com as diferenças do outro, mas também, e principalmente, no interesse afetivo por essas diferenças. Esse interesse, ao se expressar em cuidado ativo – ou responsabilidade, como preferem Ruiz (2003)RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. O (ab)uso da tolerância na produção de subjetividades flexíveis. In: SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e multiculturalismo . Ijuí: Ed. Unijuí, 2003. (Coleção Ciências Sociais). e Lévinas (1997)LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Tradução coordenada por Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes, 1997. –, constitui um aspecto fundamental na concretização das finalidades de uma sociedade plural. Isso porque as diferentes capacidades e propriedades apenas são capazes de contribuir para os fins sociais uma vez que são preservadas, operação que requer envolvimento, não indiferença. Por fim, a estima social traz como autorrelação prática a autoestima . Essa reação individual se traduz na confiança emotiva em suas próprias capacidades e propriedades, no sentimento do próprio valor. Em suma, o indivíduo e o outro se sentem valiosos em suas diferenças.

Delineado esse panorama, observa-se que o discurso de ódio constitui atitude de reconhecimento às avessas ou, mais propriamente, ato de não reconhecimento, em que pessoas que compõem o grupo vitimado sofrem, em primeiro lugar, a atribuição de menor dignidade, bem como a negação do correspondente respeito igualitário; e, em segundo, há a ruína de sua estima entre si e perante a sociedade, tendo em vista a destruição da avaliação positiva de seu caráter e história compartilhados. Enfim, o autorrespeito, reação própria da modalidade jurídica de reciprocidade, e a autoestima, contrapartida do reconhecimento solidário, são ambos corroídos pela exclusão e a degradação.

A lesividade desses efeitos é proporcional ao potencial difusor do meio em que o discurso de ódio é veiculado. Por isso, surge a preocupação com sua divulgação por meio da internet, locus em que a transmissão de informações converte-se em tarefa instantânea, multimídia e de alcance ampliado.4 Com poucos cliques, é instalada situação de não reconhecimento em vasta escala, que ofende os sentimentos de autorrealização de uma quantidade incontrolável de pessoas, por um lado, e convoca outro sem-número de usuários a perpetuar essa assimetria, por outro.

Isto é particularmente verdadeiro no âmbito das redes sociais,5 espaços típicos da chamada segunda geração da internet (em termos de serviços e comunidades), a “ Web 2.0 ”, em que a produção de conteúdo por parte do utente comum, seja por meio de publicações ( posts ) originais ou comentários, é facilitada ( CARDOSO; ARAÚJO, 2009CARDOSO, Gustavo; ARAÚJO, Vera. Out of Information and into Communication. Networked Communication and Internet Usage. In: CARDOSO, Gustavo; CHEONG, Angus; COLE, Jeffrey (Ed.). World wide internet: changing societies, economies and cultures. Macau: University of Macau, 2009. , p. 31; RIVA, 2010RIVA, Giuseppe. I social network . Bolonha: Il Mulino, 2010. (Universale Paperbacks). , p. 70). A interface amigável e descentralizada das social networks logra, nesse passo, angariar para essas plataformas quantidade expressiva de usuários – por vezes a ultrapassar a cifra do bilhão6 –, promovendo a urdidura de complexas redes de interação entre pessoas. Esse cenário, apesar de suas incontestáveis qualidades de difusão de informação e encontro de usuários, também pode se revelar propício à ampliação descontrolada de manifestações de não reconhecimento – entre elas, o discurso de ódio7 –, cujos efeitos, o esmagamento da alteridade e/ou o desencadeamento de lutas por reconhecimento, ganham, como se verá na análise do caso M., um terreno a tender para o global.

1.2 ANÁLISE DO DISCURSO DE ÓDIO DE M.

Conforme consta na denúncia e na sentença de primeira instância ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 1), no dia 31 de outubro de 2010, a estudante M. publicou em sua página no Twitter a seguinte mensagem: “Nordestisto ( sic ) não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado!”. A publicação, segundo M. e testemunhas, teria sido motivada pelo resultado do segundo turno de eleições daquele ano para presidente da República, desfavorável às intenções de M. e, como fica implícito na mensagem, supostamente provocado pela população contra a qual ela se dirige.

A mensagem empregada caracteriza o discurso de ódio contra pessoas de determinada proveniência regional, mais especificamente o Nordeste brasileiro. Os elementos caracterizadores do discurso de ódio conforme Brugger (2007BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Tradução de Maria Ângela Jardim de Santa Cruz Oliveira. Revista de Direito Público . Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, ano 4, v. 15, n. 117, jan./mar. 2007. , p. 118) estão presentes: há o insulto – nordestino não é um ser humano – e a instigação – matar nordestinos. E, com efeito, alguns dos termos utilizados, como o matar “afogado” e a menção de assim se fazer “um favor a São Paulo”, concernem a uma dicotomia instalada no imaginário brasileiro desde o século passado: o Nordeste pobre e atrasado, e o Sudeste rico e moderno.

O Nordeste, para além de um referencial geográfico, pode ser interpretado como invenção discursiva ( SOUSA NETO, 2010SOUSA NETO, Marcelo de. Imagens de Nordeste: o regionalismo e o Nordeste como prática discursiva. Revista Tempo Histórico , v. 2, n. 2, 2010. , p. 1), que torna homogêneo um grande território em torno de ideias pontuais. Como indicado por Albuquerque Júnior (2007)ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: As fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007. (Preconceitos; v. 3). , a ideia de Nordeste brasileiro possui duas matrizes principais: a ideia da seca, objeto de grande divulgação midiática e mote para a criação de uma profusão de projetos políticos; e a ideia da tradição e do saudosismo, que se desenvolve especialmente no âmbito artístico, através da valorização de figuras típicas como o sertanejo, o cangaceiro e o beato, e que pode ser degenerada na ideia do atraso. De pronto, percebe-se que o discurso de M. estabelece relações diretas com a primeira ideia, embora possam ser verificadas influências da segunda.

Em sua mensagem, M. parece evocar o chamado “discurso da seca”, uma construção política da imprensa paulista e das elites nordestinas do final do século XIX a meados do século XX. O detalhe de que a morte do nordestino deva se concretizar pela via do afogamento é, de certa maneira, uma reação de M. ao ideário sedimentado pelas coberturas jornalísticas das grandes secas do Nordeste, que acentuavam o caráter miserável e decadente da região, por oposição à prosperidade e ao progresso do Sudeste ( BARBALHO, 2004BARBALHO, Alexandre. Estado, mídia e identidade: Políticas de cultura no Nordeste contemporâneo. Alceu , v. 4, n. 8, jan./jun. 2004. , p. 157). Também parece ser uma remissão à visão do Nordeste árido e hostil presente em obras da literatura da chamada Geração de 1930 (p. ex., Vidas secas , de Graciliano Ramos). Nesse sentido, M., em manobra irônica, desloca a água de seu papel previsível nesse contexto, a salvação, para atribuir a ela o significado inusitado de morte.

Já quando é mencionado que a morte de um nordestino constituiria “um favor a São Paulo”, M. está se relacionando mais estreitamente com a contribuição das antigas elites nordestinas para certo desdobramento do “discurso da seca”, qual seja, a pecha de que o Nordeste seria uma região de atraso em comparação com as demais (sobretudo, com o Sudeste). Essas elites, insatisfeitas com a diminuição de seu capital pelo desvio do foco de produção do açúcar nordestino para o café paulista, perceberam na divulgação da seca uma oportunidade de captação de novas verbas estatais. Suas petições ao Estado deram ensejo a diversas políticas de auxílio, entre as quais podem se destacar a implantação de colônias agrícolas (1877); a transferência de vultosos aportes de recursos, sob o governo de Epitácio Pessoa (1909); a criação da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (IFOCS), sob o governo de Delfim Neto (1919), em que o termo nordeste aparece pela primeira vez em um documento oficial. Mais tarde, em 1959, essas iniciativas culminariam na criação da Superintendência Nacional de Desenvolvimento (Sudene), que permanece atuante até os dias atuais.

Ocorre que, apesar das boas intenções dos projetos iniciais, houve grande desvio de recursos quando de sua aplicação. Esse fato, tornado público pelas comissões parlamentares de inquérito desencadeadas, fez com que ao Nordeste e ao discurso da seca fossem atreladas as ideias de corrupção e indolência, como se depreende de Albuquerque Júnior (2007ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: As fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007. (Preconceitos; v. 3). , p. 95):

O discurso da seca e a indústria da seca já nascem associados a [...] prática da corrupção generalizada, que é responsável pela criação de uma outra marca negativa com a qual são marcados os nordestinos, a de viverem às custas dos recursos vindos dos cofres públicos e da corrupção, como se este fosse um privilégio de uma determinada região ou elite no país. A elite paulista, para a qual era canalizada também uma boa parte dos recursos públicos, legalmente ou não, vai usar permanentemente este argumento para se opor ao envio de recursos e à realização de obras nesta parte do país. Neste discurso, muitas vezes, o nordestino é apresentado como aquele que vive às custas dos impostos pagos pelos contribuintes das outras regiões do país, sanguessuga dos cofres públicos, que retorno nenhum daria ao país.

Como se vê, a resposta aos desvios cometidos, encarnada no discurso paulista, reveste os nordestinos de uma índole de dependência, beirando o parasitismo, mais uma vez reforçando a dicotomia sudeste-moderno e nordeste-atrasado. Quando esse panorama é confrontado com a mensagem de M., percebe-se a grande aproximação entre ambos. M., ao implicitamente imputar aos nordestinos a vitória da candidata a presidente mais inclinada a projetos assistenciais, retoma a ideia do Nordeste como região dependente, parasitária. Daí o “favor” que se faz a São Paulo com o extermínio de nordestinos: acaba-se com o parasita; fazem-se possíveis mais investimentos na região Sudeste, que, nessa concepção, caracteriza-se pela produtividade e pelo progresso.

Passando à análise da colocação de M.8 nos termos da teoria de Honneth, há a percepção imediata do não reconhecimento jurídico no trecho “Nordestisto [ sic ] não é gente!”. Na posição de indivíduo, M. não reconhece o outro, o nordestino, como seu igual, como compartilhante da condição de pessoa. Daí deriva sua desenvoltura no comando de matar: a negação da igualdade, retirando do nordestino a legitimidade para exigir o resguardo de sua vida e dignidade, figura como salvo-conduto, como uma forma de afastar a gravidade das ações comandadas e driblar os efeitos da punição e do remorso, por exemplo. Também, a posição inferior em que se situa o nordestino no discurso desqualifica, de antemão, qualquer tentativa de resposta, de diálogo. E essa não é a única forma de não reconhecimento presente.

Também há o não reconhecimento solidário. M. intensifica o reducionismo dos referenciais criados sobre o Nordeste no século passado, produzindo uma manifestação notadamente estereotípica. Os sentidos subjacentes à palavra “nordestino” são fixados em uma tonalidade de degradação, em consonância com a noção de Bhabha (2007BHABHA, Homi K. O local da cultura . Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 4. reimpressão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. , p. 117) sobre estereótipo:

O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais. [...] O que se nega ao sujeito colonial, tanto como colonizador quanto colonizado, é aquela forma de negação que dá acesso ao reconhecimento da diferença. É aquela possibilidade de diferença e circulação que liberaria o significante de pele/cultura das fixações da tipologia racial, da analítica do sangue, das ideologias de dominação racial e cultural ou da degeneração. [...] sua raça se torna o signo não-erradicável da diferença negativa nos discursos coloniais. Isso porque o estereótipo impede a circulação e a articulação do significante de “raça” a não ser em sua fixidez enquanto racismo. Nós sempre sabemos de antemão que os negros são licenciosos e os asiáticos dissimulados.

Nessa operação, a negação de solidariedade está precisamente na desconsideração das diferenças e peculiaridades do povo nordestino. Em lugar de sua complexidade, ora removida, restam os referenciais simplificadores da seca, da ignorância, da dependência degenerada em parasitismo. Não se faz possível emergirem daí quaisquer capacidades ou propriedades significativas para a vida em comum. Pelo contrário, o outro é rebaixado à condição de pária social, quase um entrave ao progresso. Tal incapacidade de contribuição, aliada à oneração de regiões mais valorizadas (São Paulo, por exemplo), ambas as questões implícitas no discurso, configuram, assim, mais um reforço para o comando de morte.

Por isso, pode-se dizer que, no que tange a reconhecimento, o discurso de M. nega reciprocidade tanto em âmbito jurídico como solidário. Os nordestinos não são reconhecidos em sua dignidade, em sua condição de iguais , tampouco em seu valor, naquilo que faz deles únicos . Procede-se, em resumo, à sua exclusão social e degradação.

Cabe, enfim, jogar luz no meio especificamente utilizado para a divulgação da mensagem: a rede social Twitter. Também conhecido como sistema de microblogging , o Twitter é uma ferramenta que privilegia a formação de redes entre ideias, em contraposição às demais redes, que colocam em primeiro lugar a formação de redes entre pessoas. No Twitter, cada página pessoal é alimentada por fluxos de ideias selecionados pelo usuário em tempo real; as ideias, pequenas, limitadas a 140 caracteres, podem provir do próprio dono da página ( outflow ) ou de páginas de terceiros ( inflow ). Conforme esses fluxos são estabelecidos, eles podem ser objeto de novas intervenções por parte de outros usuários, evidenciando aquilo que Santaella e Lemos (2010SANTAELLA, Lucia; LEMOS, Renata. Redes sociais digitais: a cognição conectiva do Twitter . São Paulo: Paulus, 2010. (Coleção Comunicação). , p. 78) chamam de “caráter conversacional” do Twitter.

Não à toa, as autoras comparam o funcionamento dessa rede social ao de uma mente coletiva, em que cada fluxo, revestido do caráter de uma sinapse, trafega instantaneamente e torna possível a ativação de “tramas complexas de redes neurais digitais que integram impulsos maquínicos a consciências” ( SANTAELLA; LEMOS, 2010SANTAELLA, Lucia; LEMOS, Renata. Redes sociais digitais: a cognição conectiva do Twitter . São Paulo: Paulus, 2010. (Coleção Comunicação). , p. 67). Nesse sentido, a inovação da estrutura situa-se tanto na rápida difusão de ideias quanto na rápida construção colaborativa ou conflituosa de discursos ou, em outras palavras, de relações de reconhecimento. A rede social converte-se, assim, em ágora digital , arena para os mais diversos tipos de conversações que o ser humano possa conceber, o que inevitavelmente envolve reciprocidade.

Essa ênfase do Twitter na interação com ideias torna explicável por que o discurso de M. teve tão grande repercussão, positiva e negativa, em questão de minutos.9 Os usuários não precisavam conhecer a emissora para dialogar com suas ideias. Bastaram algumas operações de input e output, e grandes redes se formaram na velocidade do efeito dominó. Surge novamente a metáfora da mente coletiva: o pensamento sináptico real converte-se em publicação digital instantânea, trazendo consigo, nessa transição do pensamento para o ato – e ato visível e reprodutível por uma miríade incontrolável de usuários –, singular carga lesiva ao autorrespeito e à autoestima do grupo vitimado.

Feitas tais considerações, e tendo-se identificado o discurso de M. como problema de não reconhecimento – jurídico e solidário –, passa-se à análise da resposta a essa situação de intolerância: a sentença judicial.

2 ANÁLISE DA SENTENÇA DO CASO M. SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DO RECONHECIMENTO

O objeto de exame desta seção é a decisão emitida pela 9ª Vara Federal Criminal de São Paulo, em 3 de maio de 2012, com relação à Ação Penal n. 0012786-89.2010.403.61.81, o caso M. A autoridade jurisdicional encarregada da lavra é a Juíza Federal Monica Aparecida Bonavina Camargo. Considerando a teoria do reconhecimento como lente de análise – e sobretudo recordando que, segundo tal teoria, o ato de reconhecer remete diretamente à formação de identidade –, parte-se da premissa de que, ao emitir sentença, o juiz está produzindo, ele próprio, operação de reconhecimento, conferindo às partes referencial para observarem e construírem a si. E não só: também está influenciando a sociedade rumo a uma consideração específica sobre a alteridade. Surge, então, a necessidade de um cuidado especial do julgador no momento decisório, a fim de, em consonância com o ordenamento jurídico, promover equilíbrio e não, ao contrário, fomentar mais assimetrias.

Cabe ressaltar que, embora não se possa afirmar que o enfrentamento judicial é pioneiro, tendo em vista a difícil verificação prática da totalidade de sentenças de primeiro grau elaboradas após o surgimento do Twitter, o caso é relevante pela grande discussão a que deu ensejo nos mais variados meios.10 Pode-se dizer mesmo que o caso carrega certo pioneirismo por ser o primeiro a trazer a questão do discurso de ódio veiculado em rede social para o debate público.

O ponto de partida discursivo da sentença, elemento que desencadeia o diálogo processual, como se trata de ação penal pública, é a manifestação do órgão de acusação, isto é, a denúncia do Ministério Público. Nela, o órgão afirma enquadrar-se a conduta de M. ao tipo previsto pelo artigo 20, parágrafo 2º da Lei n. 7.716/1989. Trata-se do crime de prática discriminatória através de meios de comunicação social:11

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. [...] §2º. Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena – reclusão de dois a cinco anos e multa. (BRASIL, 2017)

Evidenciada a correspondência entre a conduta e a disposição legal, o Ministério Público requer a condenação de M. às penas cabíveis. A instalação desse marco discursivo dá início à operação dialética inerente ao processo: surge a necessária antítese, a defesa, e, com base no enfrentamento de ambas as argumentações, é construída a síntese da autoridade jurisdicional, a sentença. Considerando que o raciocínio do magistrado não pode fugir às linhas mestras delineadas pelos atores processuais, sob pena de resvalar na arbitrariedade, pode-se dizer que as alegações da acusação e da defesa, como ainda as disposições presentes no ordenamento jurídico, constituem norteadores do resultado e, por conseguinte, das relações recíprocas formadas no âmbito sentencial. Cumpre esclarecer que a seguir, quando se referir ao reconhecimento operado pela juíza com relação às partes, dá-se a “partes” o significado de pessoas envolvidas na relação de não reconhecimento ensejadora do processo. No caso em tela, as “partes” são M. e os nordestinos. Cada tipo de reconhecimento abordará o olhar da autoridade jurisdicional, como indivíduo, sobre M. e os nordestinos, encarnados na figura do outro. Estes não se confundem, portanto, com os atores processuais da acusação e da defesa.

O primeiro marco de análise da sentença são as interações recíprocas estabelecidas em âmbito jurídico. Percebe-se que o raciocínio da juíza se funda em um duplo movimento de reconhecimento da população atingida como digna de respeito, por um lado, e de reconhecimento da ofensora como imputável, responsável por seus atos perante a comunidade jurídica, por outro. Esse raciocínio aparece especialmente quando a juíza responde às alegações de defesa que buscam descaracterizar a relação de desrespeito entre as partes. Entre tais alegações, encontram-se aquelas que defendem que a acusada não teria agido com dolo.

Dolo é uma denominação do direito penal para vontade de agir. Trata-se do aspecto subjetivo do tipo penal, compondo-se da combinação entre um elemento cognitivo, a consciência da conduta penalmente punível, e um elemento volitivo, o desejo de realizar o ato. No caso M., sua ausência implica a descaracterização da relação de não reconhecimento, uma vez que o desrespeito depende da intencionalidade do discurso para existir. Não há discurso de ódio por falta dos devidos cuidados, isto é, por culpa.

A juíza rebate as teses relativas à ausência de dolo ao atestar a presença de ambos os elementos caracterizadores no caso concreto. Em suas palavras, “a acusada agiu de forma livre, não tendo sido obrigada a enviar o post . Estava consciente quando enviou a mensagem” ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 11). A magistrada igualmente descarta a hipótese de exclusão do dolo por motivo de imprevisibilidade da repercussão da mensagem em meio virtual. É o início do delineamento de M. como responsável.

Com o objetivo de descaracterizar a conduta, há a tese de defesa n. 7, que aborda que M., em seu ato, não havia querido ofender a população nordestina, mas tão somente manifestar sua opinião. Trata-se de tentativa de desconfigurar o aspecto objetivo do tipo penal, a ofensa, deslocando a manifestação para o âmbito protegido pela liberdade de expressão.

A autoridade jurisdicional desacolhe a tese, entendendo que tanto a declaração em si quanto o contexto em que ela foi proferida revelam o intuito de lesar a dignidade da população nordestina:

Rejeito a tese n. 7, pois quando se declara que alguém (pessoa) não é gente, faz-se uma ofensa, negando-lhe a qualidade humana, a de estar no “ápice” dos seres vivos. [...]. Se a acusada estivesse em um contexto de humor, poder-se-ia cogitar que de fato não queria ofender, mas provocar o riso com uma piada, ainda que se considerasse de mau gosto [...]. Trata-se, porém, de situação diversa da presente. No interrogatório M. disse que fez o comentário, porque estava indignada com o resultado do pleito eleitoral e é justamente este ponto que caracteriza a seriedade de sua declaração, o contexto político, no âmbito do comportamento social, a sede do preconceito. ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 11-12)

Note-se que a pormenorização da ofensa como “negação à qualidade humana”, negação da situação de “ápice dos seres vivos”, revela o ânimo da juíza no sentido inverso, ou seja, no sentido de reconhecer os nordestinos como pessoas. Ainda, a caracterização da mensagem de M. como “séria”, por conta do contexto político subjacente à publicação, mais uma vez conota a ideia de responsabilização da acusada.

Resposta similar recebe a tese de defesa n. 11, a de que a autoridade jurisdicional não deve se deixar influenciar pelo discurso do politicamente correto. Para enfrentar a hipótese, a juíza, em primeiro lugar, colaciona em sentença uma definição para o termo “politicamente correto”: trata-se do cuidado de neutralização de certas expressões linguísticas, visando evitar a ofensa a determinadas pessoas ou grupos sociais. Depois, parte para a resposta em si. A juíza esclarece que o discurso de M. vai além da mera transgressão a esse cuidado, ou seja, além do politicamente incorreto – caracterizado pelo uso ambíguo de expressões capazes de ofender, mormente em situações de humor. Para a magistrada, a mensagem de M. posiciona-se em outro patamar, o território da política ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 17). A gravidade ínsita a esse campo novamente atrai para M. a responsabilidade por seus atos.

Digna de nota é a tese de defesa n. 6, que busca afastar essa responsabilidade através da alegação de que M. era pessoa inexperiente, imatura, ingênua e infantil à época dos fatos. Nos termos de Honneth, essa hipótese ganha um significado surpreendente: a defesa pleiteia que se opere um desequilíbrio na esfera jurídica de reconhecimento de M. Não é caso de afastamento de sua dignidade, por óbvio, mas de sua imputabilidade jurídica – e, mais precisamente, sua imputabilidade penal.

Em termos técnicos, a imputabilidade penal é um dos requisitos que condiciona a aplicação da pena ao autor de fato típico e antijurídico. Ela se encontra presente quando é constatado que o sujeito, à época do crime, detinha autonomia para escolher se se comportaria de modo lícito ou ilícito; por outro lado, é excluída quando o agente, por exemplo, demonstra possuir doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou, ainda, quando se trata de menor de 18 anos. Embora seja elemento mais específico que a imputabilidade proposta na teoria do reconhecimento, ambas se aproximam ao colocar em um patamar de igualdade pessoas autônomas, conscientes das normas (nesse caso, jurídicas) que regem suas relações. Essa disposição igualitária é a base a legitimar o pleito por respeito a direitos próprios,12 bem como a sustentar a responsabilização por transgressão a direitos alheios. A liberdade vivenciada na autonomia do sujeito de direitos atrela-se ao dever de responsabilidade: o imputável, uma vez que escolhe, responde por suas escolhas.

No caso em tela, a alegação da defesa busca distanciar M. desse campo horizontal, através da instalação de dúvida sobre sua consciência dos fatos e do legalmente permitido. Não à toa são utilizados os adjetivos “imatura” e “infantil” para caracterizar a acusada, todos pertencentes à categoria semântica de “criança”, o inimputável por excelência. A alegada ingenuidade de M. lhe retira a liberdade advinda do pleno desenvolvimento das faculdades mentais, aproximando-a dos infantes e dos indivíduos com desenvolvimento mental incompleto. Por esse raciocínio, é-lhe cabível, no mínimo, uma imputabilidade mitigada – a redundar em uma punição diminuída, ou mesmo em punição nenhuma.

A juíza, entretanto, manifesta compreensão diversa. Acompanhando o ponto de vista do Ministério Público, recorda que a acusada “à época dos fatos era universitária e já estagiava, o que revela que não era uma pessoa totalmente inexperiente” ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 11). Em outro trecho, verifica que M. poderia ter agido de outro modo “desde que refletisse minimamente”, sublinhando o fato de que se tratava de uma estudante de Direito ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 18). Adiciona que a defesa não apresentou prova da inimputabilidade, descabendo raciocínio nesse sentido. Com isso, a juíza opera o reconhecimento de M. como igual aos demais em autonomia – e por isso responsável, imputável – em âmbito jurídico.

A defesa tenta utilizar ainda, na tese n. 9, o argumento de que M. não é preconceituosa. Para isso, ampara-se nas declarações das testemunhas que se referem à participação de M. em comunidades de combate ao preconceito ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 4); às relações de amizade que mantém com pessoas de orientação homossexual, com pessoas negras, e inclusive com pessoas nascidas no Nordeste ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 6). O teor dos relatos, como concluído pela defesa, leva a crer que a mensagem de ódio de M. foi um episódio fortuito, que não traduz quem a acusada é realmente. Por isso, pleiteia-se uma vez mais pela diminuição da carga de responsabilidade.

O enfrentamento da juíza a essa questão é interessante por recordar um dos aspectos contundentes da teoria do reconhecimento: a interação recíproca, positiva ou negativa, é desencadeada pela ação. Não é suficiente para sua instalação o simples pensamento – e tal ação tampouco encontra-se fatalmente atrelada à pessoa, como se fizesse parte de uma sua “essência”, fixa e imutável. Faz-se necessário o encontro com o outro para haver reconhecimento – ou não reconhecimento. E, visto que o outro é uma figura concreta, situada fora do indivíduo, o contato com ela só pode se dar pela via externa. Por isso, deve haver ato , no plano dos fatos e dos símbolos. Este, ao alcançar a alteridade, permite a modificação no modo como os entes envolvidos percebem a si e aos demais, o que, por sua vez, desencadeia mais atos recognitivos – não necessariamente coerentes ou incoerentes com uma dada trajetória individual, mas a abarcar em si a possibilidade do diferente –, completando o ciclo.

A juíza demonstra alcançar raciocínio semelhante ao separar M., como pessoa, de seu ato de não reconhecimento: “M. pode não ser preconceituosa; aliás, acredita-se que não o seja. O problema é que fez um comentário preconceituoso. Naquele momento a acusada imputou o insucesso eleitoral (sob a ótica do seu voto) a pessoas de uma determinada origem” ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 12). A autoridade frisa que não é realizado o julgamento de M., mas o ato por ela praticado ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 16). Em outras palavras, embora M. tenha realizado atos positivos de reconhecimento no passado, o que a fez ser reconhecida pelos outros e por si como pessoa aberta à alteridade, isso não retira a gravidade de seu ato de desrespeito. Trata-se de uma interação com o outro que trouxe considerável desequilíbrio e conflito, devendo M. suportar a responsabilização correspondente.

Para encerrar a análise no que tange ao reconhecimento em âmbito jurídico, cabe apontar o momento da sentença em que a juíza mais claramente reconhece os nordestinos como iguais em dignidade humana:

E claro que a acusada poderia expor sua ideia política de que as pessoas da Região Norte e Nordeste teriam votado na então candidata Dilma Rousseff influenciadas por benefícios sociais; não poderia, porém, sob o aspecto jurídico declarar que nordestinos não são pessoas e que deveriam morrer. Trata-se de situações totalmente diferentes. ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 17)

No trecho, a autoridade jurisdicional sugere como M. poderia ter se manifestado, a fim de não ferir uma população em sua qualidade humana. A lembrança de que a ordem jurídica não tolera atos que desloquem o ser humano de sua posição enquanto fim em si mesmo busca devolver aos nordestinos a sua condição de igualdade e, com isso, resgatar o respeito devido.

O segundo marco de análise são as relações de reciprocidade solidária estabelecidas em sentença. Note-se que, como instrumento de reciprocidade, a sentença é capaz de atingir esferas outras que não apenas aquela do reconhecimento jurídico. Como verifica Honneth (2004HONNETH, Axel. Recognition and Justice: outline of a plural theory of justice. Acta Sociologica . Londres: SAGE, v. 47, n. 4, 2004. , p. 362), o princípio normativo que guia o direito moderno – o respeito entre pessoas autônomas – é passível de ser utilizado para legitimar incursões nos demais âmbitos de reciprocidade, uma vez que condições mínimas de formação de identidade devem ser asseguradas nas três esferas. Sidekum (2003SIDEKUM, Antônio. Alteridade e interculturalidade. In: SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e multiculturalismo . Ijuí: Ed. Unijuí, 2003. (Coleção Ciências Sociais). , p. 235), por sua vez, trabalha com uma forma específica de incursão: a imbricação entre direito e solidariedade na figura do “direito a poder ser diferente”. Tais proposições demonstram que os desequilíbrios ocasionados por formas complexas de desrespeito, como é o caso do discurso de ódio, podem, de fato, ser enfrentados de forma mais global pela sentença, desde que, é claro, não desbordem das disposições do ordenamento jurídico.

No caso, também há um duplo movimento de raciocínio por parte da autoridade jurisdicional: ao mesmo tempo em que é resgatado o valor das características distintivas da população nordestina, também M. é considerada em sua individualidade, em especial no momento de aplicação da pena. Diversamente das interações jurídicas expostas acima, em ambos os momentos o enfoque está na diferença do outro, não na igualdade entre ele e os demais, o que caracteriza o reconhecimento solidário.

No que toca aos nordestinos, a juíza aborda a questão de sua relevância através da enumeração de diversos elementos típicos da população, elementos marcadamente valorizados em âmbito cultural e turístico, interna e externamente ao Brasil. O sentido axiológico positivo que permeia esse discurso é enfatizado quando a autoridade menciona que mesmo os detratores do Nordeste, aqueles instigados pela mensagem de M., usufruem desses elementos, confirmando a importância do grupo social de origem:

De fato, as pessoas não têm consciência de seus preconceitos, tanto que a maioria dos que teceram as críticas acima [as mensagens de ódio posteriores a M.] deve ouvir música baiana, curtir o carnaval baiano, fazer viagens de formatura para Porto Seguro, comer doces de caju, tomar suco de açaí, comer açaí na tigela, usar roupas de renda renascença etc. sem ter consciência de que são tipicamente da cultura do norte e nordeste. ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 18)

No trecho, a juíza deixa patente que os nordestinos, em seu caráter único, encontram-se presentes no quadro referencial de valores da sociedade brasileira. Tamanho é o significado das propriedades distintivas da população para a práxis comum que, ironicamente, seu valor é reiterado mesmo de forma inconsciente, por pessoas que empregam discursos negativos sobre o Nordeste. Com essa manifestação, em resumo, é colocada em evidência a estima social que envolve os nordestinos, buscando-se um novo equilíbrio à situação em termos de solidariedade.

Também M. é reconhecida em seu aspecto de diferença, dessa vez no momento da condenação. Tendo-se constatado a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade da conduta, a juíza toma cuidados especiais na cominação da pena correspondente. Esta é fixada abaixo do mínimo legal, em analogia ao disposto no artigo 121, parágrafo 5º do Código Penal.13 A autoridade assim decide em razão de as consequências da infração terem sido bastante severas para M. O assédio negativo do público, fora do controle de M. por conta da permeabilidade ímpar das redes sociais, fez com que ela abandonasse o curso de graduação e o estágio, vivendo reclusa em casa durante meses. Esses fatos, no entender da juíza, já constituem por si uma forma de punição, o que justifica a redução temporal da pena. Ademais dessa medida, é escolhida a substituição da pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direito: a multa, no valor de um salário mínimo, a título de reprimenda; e a prestação de serviços à comunidade. Frise-se que, ao se manifestar sobre este último ponto, a juíza solicita ao Juízo de Execuções Penais que leve em conta as aptidões da sentenciada ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 22).

Essas disposições remetem à reciprocidade solidária porque buscam a recuperação do valor de M. em sociedade, tendo em vista que seu delito lhe retirou parte significativa da estima social de que gozava. No processo, são consideradas as diferenças por dois pontos de vista, o das circunstâncias especiais do caso e o das características individuais de M. A ponderação dessas duas variáveis permite uma maior diversificação e, por conseguinte, uma maior adequação da resposta penal à realidade. Por isso, é possível inferir, em consonância com o ensinado por Garapon (1998GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. Tradução de Francisco Aragão. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. (Coleção Direito e Direitos do Homem n. 6). , p. 231), que a autoridade jurisdicional tem o cuidado de aproximar M. da reconciliação com a dimensão simbólica do social. Em termos mais precisos, é promovido o retorno da ré à esfera de valores prezados pela comunidade, isto é, à esfera de solidariedade.

Ademais dessas constatações, na análise da sentença também podem ser percebidos certos elementos diferenciais que vão ao encontro da circunstância especial que cinge o caso concreto, a internet. Em primeiro lugar, ao longo de várias partes de seu discurso, a juíza reconhece o grande poder de alcance das novas mídias: “Noto, ainda, que a conduta acabou repercutindo na internet e os comentários que instruem os autos em apenso mostram o quanto uma ideia que é latente em nossa sociedade pode ser ‘incendiada’” ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 17); e também: “Note-se que milhares de pessoas escreveram e escrevem [no Twitter] mensagens de conteúdo criminoso” ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 21).

Esse panorama prepara o terreno para manifestações em que a juíza busca incentivar o uso saudável das novas mídias. Um exemplo é a destinação do montante de reparação de danos à organização não governamental SaferNet Brasil ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 23). Como é sabido, essa entidade civil constitui uma das referências nacionais no enfrentamento de violações de direitos humanos na internet, destacando-se na ação articulada com outros órgãos, como o Ministério Público, e na veiculação de conteúdos educativos sobre ética e segurança na rede. A menção a ela em âmbito sentencial é significativa na medida em que, ademais de revelar a atualização da magistrada, reconhece a importância de iniciativas sociais na transformação positiva da rede, o que, por sua vez, intensifica a legitimidade da referida organização e de similares.

Outro exemplo de preocupação com a qualidade do ambiente virtual é o estímulo de campanhas de conscientização. Considerando que a mensagem de M. agiu como gatilho para a superpropagação de ideias negativas até então latentes, mas compartilhadas por muitas pessoas, a juíza aponta que “é importante que haja campanhas de esclarecimento e sensibilização social para tais questões [as situações de não reconhecimento], para que no futuro nossa sociedade liberte-se de tais amarras [o preconceito]” ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 17). Embora a manifestação tenha um caráter bastante geral, sua posição é inovadora em sentença, especialmente penal, pois pode ser interpretada como sugestão educativa, que transcende as personagens principais do autor e da vítima, para alcançar a sociedade. Trata-se de um chamado à consciência social.

Entretanto, ao lado dessas inovações, também são constatadas insuficiências no que tange à busca do reequilíbrio de reconhecimento no caso concreto. Um exemplo marcante ocorre quando a juíza, encaminhando-se para realizar o mencionado estímulo a campanhas, dirige-se à sociedade nos seguintes termos:

Assim, é importante que a sociedade seja conscientizada quanto à neutralidade que as questões de diferenças entre as pessoas devem envolver, não sendo a origem, a religião, o gênero, a cor de pele, a condição física, a idade etc. motivo para atitudes agressivas. ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 16)

Em outras palavras, a autoridade sugere que a solução para o discurso de ódio encontra-se na adoção de uma postura neutra. Tal posicionamento, em se endereçando à questão que envolve duas esferas de reconhecimento, jurídico e solidário, é no mínimo problemático. Isso porque o discurso de ódio, como já visto, embora expresse negação da igualdade entre os seres humanos (base do reconhecimento jurídico), também manifesta negação do valor da diferença de determinado grupo e/ou indivíduo em sociedade (base do reconhecimento solidário); o grupo vitimado, nesse sentido, é lesado em ambas as esferas, sendo desejável que as instâncias responsivas a esse tipo de agressão busquem, na medida de suas possibilidades, promover o reconhecimento tanto de direito quanto de solidariedade. A julgadora, em defendendo que no meio social seja adotada atitude de neutralidade, põe dificuldades para a reciprocidade solidária, pois tal esfera envolve precisamente a saída de posturas de indiferença ou nivelamento, exigindo olhar para o outro naquilo que ele foge ao neutro, na diferença. Por certo que a magistrada poderia ter-se fixado apenas na proteção da esfera jurídica de reconhecimento da população nordestina, colocando – como, de fato, colocou – forte ênfase na igual dignidade do grupo. O problema está na vinculação operada entre dignidade humana e neutralidade, a expressar certa falta de cuidado com a dimensão da diferença, do interesse pela alteridade, como se pode perceber pela passagem seguinte:

Sob o aspecto mais profundo, trata-se de convite a revermos nossas atitudes e esteriótipos [ sic ], contribuindo para uma sociedade mais neutra quanto a questões pessoais, dignificando todas as pessoas, dando-lhes a efetiva igualdade de que são portadoras, quer tenham necessidades especiais ou não; quer sejam minorias ou não [...]. ( BRASIL, 2012BRASIL. Justiça Federal. Ação Penal ; autos n. 0012786-89.2010.403.61.81. 9ª Vara Federal Criminal em São Paulo/SP. Juíza Monica Aparecida Bonavina Camargo. São Paulo, SP: 3 maio 2012. Disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2012/120516preconceitomayara.pdf. Acesso em: 17 maio 2012, e https://www.conjur.com.br/dl/nordestino.pdf. Acesso em: 17 fev. 2019.
http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/ad...
, p. 17)

A conexão realizada entre igual dignidade e neutralidade permite que o discurso seja compreendido como um incentivo à tolerância – esta em acepção diversa da solidariedade, qual seja, como a “simples permissão do diferente, na condição de este permanecer na periferia cultural e porventura até geográfica, sem questionar e muito menos agredir o núcleo central das convicções e a organização sócio-política dominantes” ( AURÉLIO, 2010AURÉLIO, Diogo Pires. Um fio de nada: ensaio sobre a tolerância. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. , p. 16). Na esteira do pensamento de Ruiz (2003)RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. O (ab)uso da tolerância na produção de subjetividades flexíveis. In: SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e multiculturalismo . Ijuí: Ed. Unijuí, 2003. (Coleção Ciências Sociais). , esse tipo de estímulo é avesso a uma resposta ético-política satisfatória, uma vez que coaduna com a produção de subjetividades flexíveis, identitariamente maleáveis ao sabor da situação e indiferentes à alteridade em seu valor e em sua circunstância. Diversamente, a solidariedade emerge como prática que propõe a sólida constituição do sujeito através do interesse e da responsabilidade pelo outro. Não se trata de mero respeito cognitivo, mas de um interesse afetivo pela diferença. Nesse âmbito, Ruiz destaca o papel da interpelação do sofrimento da vítima:

A tolerância liberal promovia o individualismo como referência para respeitar (com indiferença) o outro. A alteridade apela para um novo valor (simbólico) e uma nova prática que transcende o respeito, a responsabilidade . A interpelação da vítima não permite que nos refugiemos num sentimento paternalista ou piedoso, porque demanda uma resposta ético-política e apela para nossa responsabilidade. O novo universo simbólico descortinado pela situação das vítimas propõe a responsabilidade pelo outro como a categoria essencial do multiculturalismo. Eu sou responsável pelo sofrimento do outro. A pergunta: onde está teu irmão? me afeta diretamente e me faz responsável por sua sorte; me compromete com seu destino e me ajuda a crescer como pessoa, já que a sorte do outro faz parte da minha própria existência. A vida ameaçada demanda, de meu eu individualizado, uma resposta ético-política. ( RUIZ, 2003RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. O (ab)uso da tolerância na produção de subjetividades flexíveis. In: SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e multiculturalismo . Ijuí: Ed. Unijuí, 2003. (Coleção Ciências Sociais). , p. 164-165)

Assim, um incentivo solidário à sociedade não buscaria a horizontalidade silente, mas a tomada de consciência sobre a diferença e o seu valor, colocando em evidência a dependência entre grupos e indivíduos nesse âmbito de reciprocidade. Percebe-se então que a juíza em sua manifestação à sociedade, nos limites do que é possível em âmbito sentencial, poderia ter efetuado um chamado mais significativo em termos solidários, apontando para a necessidade de interesse pelas diferenças e de discussão sobre o porquê dos conflitos oriundos do preconceito, por exemplo. Para viabilizar esses diálogos sociais, poderia até ter mencionado a possibilidade de se utilizar ferramentas on-line , como o próprio Twitter, dadas suas características sinápticas já referidas. Dessa maneira, teria se aproximado de modo mais eficiente do reequilíbrio recognitivo nas duas esferas envolvidas, direito e solidariedade.

Outra insuficiência que se revela na resposta jurisdicional concerne à fragilidade da proposta restauradora da pena em relação à conduta de M. e suas circunstâncias específicas. Embora a substituição da pena já represente um progresso notável, não há manifestação da juíza no sentido de promover uma reconciliação entre M. e a população nordestina. Não é sugerida, por exemplo, a possibilidade de retratação pública, veiculada na própria rede social, que teria o condão de ser mais eficaz em comparação a uma multa em termos recognitivos. Essa ausência revela as limitações do tratamento da questão no contexto do processo penal tradicional, uma vez que este permanece em grande medida ainda atrelado a lógicas “sacrificiais”, alheio a movimentos de perdão e promessa entre as partes.14

Por fim, tampouco é estabelecido um liame de coerência pedagógica entre o delito e a pena. Como o primeiro ocorreu no âmbito da internet, a juíza poderia ter sugerido que a segunda remetesse ao bom uso das novas tecnologias, a fim de proporcionar uma reflexão contextualizada e construtiva para a condenada. Essa falta de conexão pode ser interpretada como sinal de que os julgadores ainda necessitam adaptar seu modo de raciocínio, como apontado por Pinheiro (2009PINHEIRO, Patricia Peck. Direito digital . 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. , p. 35), para mais adequadamente resolver os conflitos instalados na internet. No entanto, também é indicativo de que não é possível depositar todas as esperanças do combate ao discurso de ódio on-line na esfera criminal. As respostas ao hate speech devem partir também de outras esferas, pertinentes ao Estado, aos provedores virtuais de serviços e à sociedade civil, e precisam, ademais, prezar pela cooperação entre esses entes, como já vem ocorrendo em diversas regiões do globo.15 Essas iniciativas, em prescindindo da lógica conflitiva, repressora (e tardia) do direito penal, descortinam possibilidades outras de enfrentamento do hate speech virtual, depositando atenção, por exemplo, na prevenção cooperativa, na diminuição de danos às vítimas e no fortalecimento de práticas saudáveis em redes sociais. Tais observações não servem para ofuscar, mas sim colocar em devida perspectiva a sentença do caso M., a qual, pelo debate a que deu ensejo e pelas operações de reconhecimento realizadas, não perde sua relevância.

CONCLUSÃO

Este artigo buscou analisar a sentença do caso M. – relativo à estudante universitária paulista que, em fins de 2010, publicou discurso de ódio contra nordestinos por meio da rede social Twitter –, efetuando tal exame sob perspectiva da teoria do reconhecimento, de Axel Honneth. O uso desse marco teórico de análise revelou-se fecundo por possibilitar a compreensão da sentença como discurso que não apenas responde às partes processuais, mas que também dialoga com o réu, com o grupo vitimado e, no limite, com a sociedade em geral, buscando (r)estabelecer mínimos padrões de reconhecimento da alteridade, em compasso com o permitido pelo ordenamento jurídico. Ainda, a sentença, a partir de tal óptica, apareceu como instrumento aberto a enfrentar o discurso de ódio em suas diferentes nuances de negação – nuances que, como demonstrado, figuram no discurso odiento de M. –, sendo a sentença capaz de endereçar-se ao reconhecimento não só das partes como iguais, portadoras da mesma dignidade humana, mas também delas em sua singularidade, naquilo que as faz diferentes e, por isso, valiosas para a conformação social.

Nesse sentido, observou-se na sentença do caso M. ocasião em que desenvolvidas respostas tanto de reconhecimento jurídico quanto de reconhecimento solidário da ofensora, M., e do grupo vitimado, os nordestinos. O reequilíbrio buscado por tais respostas restou evidenciado na duplicidade de seu movimento: na esfera jurídica, ao mesmo tempo em que resgatado o respeito devido aos nordestinos por sua qualidade humana, a juíza também recuperou o dever de responsabilidade de M. por seus atos, sua imputabilidade; na esfera solidária, se por um lado a autoridade retomou o valor da singularidade da cultura nordestina para a sociedade brasileira, também, por outro, procurou a reinserção da ré no campo da estima social, através do cuidado em recordar suas circunstâncias e características especiais na cominação de pena.

Também, foi possível constatar no discurso jurisdicional a presença de elementos diferenciais voltados especificamente à circunstância de tratar-se de caso de discurso de ódio veiculado pela internet. A partir do reconhecimento do poder de repercussão da ferramenta, a juíza apresentou manifestações incentivadoras do uso saudável das novas mídias, desde a valorização da atuação positiva de ONGs na rede até a sugestão de sensibilização da sociedade sobre a lesividade do ato preconceituoso. Esse posicionamento traduz o esforço da magistrada em adequar sua decisão aos desafios trazidos pelas novas tecnologias.

Contudo, também foram percebidas insuficiências na sentença analisada. O apelo que a juíza realiza em favor da neutralidade social indica certa falta de cuidado com relação à dimensão solidária de reconhecimento. A autoridade, em efetuando conexão entre respeito à dignidade humana e adoção de posturas neutras na esfera pública, abandona-se ao risco de deixar a mensagem de que o interesse pela diferença se encontra em segundo plano, perdendo a oportunidade de incentivar a tomada de consciência sobre o valor dos grupos sociais em sua singularidade. Soma-se a isso a fragilidade da pena cominada em termos de restauração e de coerência pedagógica. A possibilidade de reconciliação simbólica entre as partes não é cogitada, assim como a circunstância da internet, fundamental ao delito, desaparece no momento de contextualização da pena à Vara de Execução.

Tendo em vista todos esses aspectos, é inegável que a sentença do caso M., em que pesem suas fragilidades, constitui um importante marco responsivo ao discurso de ódio em redes sociais, em âmbito jurídico e solidário, dirigindo-se tanto às partes envolvidas quanto à sociedade, e atenta às peculiaridades das novas mídias. Permanece, assim, como inspiração para futuras decisões a versarem sobre o tema – decisões judiciais que, em paralelo com o labor do legislativo, o implemento de políticas públicas por parte do Executivo, e iniciativas advindas da sociedade civil, terão à sua frente o desafio de aprofundar as vias de reconhecimento do outro enquanto igual e diferente, sobretudo em ambiente tão fluido, veloz e influente na formação identitária, como é o caso do meio virtual.

agradecimentos

A autora agradece à professora Rosane Leal da Silva, Coordenadora do Núcleo de Direito Informacional (NUDI) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pelas orientações e comentários quando da composição da primeira versão deste artigo.

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  • ZEHR, Howard. Justiça restaurativa . Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • 1
    Faz-se referência aos escritos hegelianos compostos entre 1801 e 1807; embora o período culmine com a redação da famosa obra Fenomenologia do espírito (1806), Honneth vale-se precipuamente de textos anteriores, em que o modelo conceitual da “luta por reconhecimento” revela significado teórico mais pronunciado. Entre tais textos, há o Sistema da eticidade (1802-1803), Sistema da filosofia especulativa (1803-1804) e as lições sobre filosofia do espírito (1805-1806).
  • 2
    Trata-se de George Herbert Mead (1863-1931), pragmático norte-americano, considerado fundador da psicologia social (também denominada behaviorismo social). Em sua obra Mind, self and society , Mead introduz a ideia fundamental de que a identidade do indivíduo emerge através de processos de comunicação entre organismos. Ao utilizá-lo, Honneth tem em vista reconstruir as intuições da teoria da intersubjetividade do jovem Hegel – demasiado idealistas para as questões contemporâneas – em um quadro teórico pós-metafísico, “naturalista”, amparado em hipóteses empíricas.
  • 3
    Tais elementos parecem remontar aos argumentos de Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes (1785); sobre o ser humano como fim em si mesmo, veja-se: “[…] O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim” ( KANT, 2011KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes . Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2011. , p. 72). Note-se que, na Fundamentação [...], o tópico da autonomia de vontade vincula-se estreitamente à concepção kantiana de dignidade, raciocínio de que Honneth parece se valer em sua explicação do reconhecimento jurídico. Com efeito, segundo Kant, o homem só é considerado um fim em si mesmo (portador, por isso mesmo, de dignidade), pois sendo dotado de razão, é capaz de atuar como legislador universal (a discernir leis universalmente válidas) e, ao mesmo tempo, submeter-se às leis por ele discernidas. É o que se vê no seguinte trecho: “[...] todo o ser racional, como fim em si mesmo, terá de poder considerar-se, com respeito a todas as leis a que possa estar submetido, ao mesmo tempo como legislador universal; porque exactamente esta aptidão das suas máximas a constituir a legislação universal é que o distingue como fim em si mesmo. Segue-se igualmente que esta sua dignidade (prerrogativa) em face de todos os simples seres naturais tem como consequência o haver de tomar sempre as suas máximas do ponto de vista de si mesmo e ao mesmo tempo também do ponto de vista de todos os outros seres racionais como legisladores (os quais por isso também se chamam pessoas). Ora desta maneira é possível um mundo de seres racionais [...] como reino dos fins, e isto graças à própria legislação de todas as pessoas como membros dele. Por conseguinte, cada ser racional terá de agir como se fosse sempre, pelas suas máximas, um membro legislador no reino universal dos fins” (KANT, 2011, p. 87).
  • 4
    Sobre a internet (i. e., sistema global de rede de computadores interconectados por meio de protocolos de comunicação), como ferramenta amplificadora de mudanças ( change amplifier ), a permitir múltiplas interações em tempo acelerado, apartando-se, por isso mesmo, de formas pretéritas de tecnologias de comunicação (p. ex., telefone, rádio, televisão, etc.), veja-se Stefik (1999STEFIK, Mark. The internet edge . Social, legal, and technological challenges for a networked world. London: The MIT Press, 1999. , p. 11-12): “The Internet amplifies change. Like all earlier connection technologies, it does so by reducing the power of distance. People say that the world is shrinking. Of course, the planet hasn’t changed in size, and great distances can still limit the pace of change. For the most part, it is still true that the farther apart things are the less they interact. […] The Internet lowers such costs [of interaction]; it doesn’t eliminate them, but it does foster more action at a distance, so that something happening over here can have an effect over there. The fan-out effect of the Net can cause multiple changes at many distant locations. And, because each change triggers further changes, the pace of change accelerates and the potential for chaos increases”. Em sentido similar, há o posicionamento de Castells (2009CASTELLS, Manuel. Communication power . Oxford: Oxford University Press, 2009. , p. 65), a enfatizar a versatilidade das novas mídias na formação de redes de interação, recordando que tais mídias dispõem de variadas formas de comunicação (p. ex., blog , vlog , podcasts , wikis , SMS , etc.) e buscam permear todos os domínios da vida social: “The diffusion of Internet, wireless communication, digital media, and a variety of tools of social software has prompted the development of horizontal networks of interactive communication that connect local and global in chosen time. With the convergence between Internet and wireless communication and the gradual diffusion of greater broadband capacity, the communicating and information-processing power of the Internet is being distributed to all realms of social life, just as the electric grid and the electric engine distributed energy in industrial society […]. As people (the so-called users) have appropriated new forms of communication, they have built their own systems of mass communication, via SMS, blogs, vlogs, podcasts, wikis, and the like […]. Filesharing and p2p (i.e., peer-to-peer) networks make the circulation, mixing, and reformatting of any digitized content possible”. Para mais sobre o paradigma inaugurado com a dita “sociedade informacional”, em seus desdobramentos econômico, político, social e cultural, confira-se, por todos, Castells (2004CASTELLS, Manuel (Ed.). The network society: A cross-cultural perspective. Northampton, MA, USA: Edward Elgar, 2004. ; 2010CASTELLS, Manuel. The power of identity. Second edition. With a new preface. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010. ; 2010bCASTELLS, Manuel. The rise of the network society. Second edition. With a new preface. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010b. ) e Cardoso e Araújo (2009)CARDOSO, Gustavo; ARAÚJO, Vera. Out of Information and into Communication. Networked Communication and Internet Usage. In: CARDOSO, Gustavo; CHEONG, Angus; COLE, Jeffrey (Ed.). World wide internet: changing societies, economies and cultures. Macau: University of Macau, 2009. .
  • 5
    Segundo Recuero (2009)RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet . Porto Alegre: Sulina, 2009. (Coleção Cibercultura). , redes sociais são sistemas complexos e dinâmicos constituídos por dois elementos, atores (os “nós”, ou “nodos”, da rede) e conexões, em que a variação destas últimas modifica a estrutura do todo. No caso específico das redes sociais on-line , observam-se atores que, não se dando a conhecer imediatamente, encontram-se em processo contínuo de construção e expressão pessoalizada de identidade, segundo as possibilidades das ferramentas a darem suporte às interações e os recursos de capital social disponíveis (pense--se, a título de exemplo, nos perfis de Facebook e nas páginas do Twitter); e conexões que, à distância, adquirem múltiplas formas e diversos níveis de especialização, sendo baseadas em laços sociais associativos (p. ex., o convite de amizade, o recurso de tornar-se follower [seguidor] de determinado perfil ou página, etc.) e dialógicos (p. ex., troca de recados, inscrição de comentário sobre uma dada publicação, etc.), em ambiente de manejo facilitado e alta capacidade de migração de informações.
  • 6
    A título exemplificativo, em setembro de 2016, a rede social Facebook, segundo dados da própria empresa, contava com média de 1,18 bilhão de usuários diariamente ativos. O Twitter, por sua vez, em dados disponibilizados pela companhia em janeiro de 2017, contabilizava em torno de 313 milhões de usuários em atividade mensal.
  • 7
    Entre os estudos mais recentes sobre discurso de ódio em redes sociais, vejam-se: Chen, Thoms e Fu (2008)CHEN, Hsinchun; THOMS, Sven; FU, Tianjun. Cyber extremism in Web 2.0: An exploratory study of international Jihadist groups. Intelligence and Security Informatics , 2008. ISI 2008. IEEE International Conference on IEEE, 2008. ; Awan (2014)AWAN, Imran. Islamophobia and Twitter: A typology of online hate against muslims on social media. Policy & Internet , v. 6, n. 2, p. 133-150, 2014. ; Oksanen et al. (2014)OKSANEN, Atte; HAWDON, James; HOLKERI, Emma; NÄSI, Matti; RÄSÄNEN, Pekka. Exposure to online hate among young social media users. In: Soul of society: a focus on the lives of children & youth. Emerald Group Publishing Limited, p. 253-273, 2014. ; Ben-David e Matamoros-Fernandez (2016)BEN-DAVID, Anat; MATAMOROS-FERNANDEZ, Ariadna. Hate speech and covert discrimination on social media: monitoring the Facebook pages of extreme-right political parties in Spain. International Journal of Communication , v. 10, p. 1167-1193, 2016. ; no Brasil, confira-se, em sendo atual e de significativo vulto, Santos (2016)SANTOS, Marco Aurelio Moura dos. O discurso do ódio em redes sociais . São Paulo: Lura Editorial, 2016. .
  • 8
    Repare-se que a perspectiva de exame aqui proposta não desmerece ou contradiz análises do mesmo corpus levadas a cabo sob as lentes da linguística (ver SILVA, 2014SILVA, Daniel. The circulation of violence in discourse. Tiburg Papers in Culture Studies , v. 109, p. 1-18, 2014. ) e da análise do discurso (ver MOREIRA; ROMÃO, 2011).
  • 9
    Amostras da repercussão da manifestação de M. no Twitter podem ser encontradas em notícia do periódico O Globo (2017).
  • 10
    O caso foi noticiado pelos principais veículos midiáticos nacionais, além de ter sido objeto de atenção de periódicos estrangeiros, como o The Telegraph ( 2010THE TELEGRAPH. Brazilian law student faces jail for “racist” Twitter election outburst . Por Robin Yapp, São Paulo. Publicado em 4 nov. 2010. Disponível em: http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/ southamerica/brazil/8111046/Brazilian-lawstudent-faces-jail-for-racist-Twitter-election-outburst. html. Acesso em: 25 fev. 2017.
    http://www.telegraph.co.uk/news/worldnew...
    ).
  • 11
    O discurso de ódio encontra restrição sob perspectiva constitucional e penal em vários países do globo, em particular os signatários da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1969). Entre esses países, a Alemanha é comumente lembrada na literatura como modelo de regulamentação restritiva, reunindo dispositivos constitucionais, penais e de legislação especial contra o hate speech (e também contra sua versão virtual). Segundo Timofeeva (2003TIMOFEEVA, Yulia A. Hate speech online: restricted or protected – comparison of regulations in the United States and Germany. Journal of Transnational Law & Policy , v. 12, 2003. , p. 260), o país teria logrado combinar possivelmente a mais rigorosa atitude com relação a atividades racistas e, ao mesmo tempo, uma expressão consistente de seu comprometimento com os ideais de uma sociedade democrática livre. No Código Penal Alemão, o discurso de ódio recebe tipificação nas seções 130 (relativa à incitação ao ódio) e 130a (relativa à incitação ao ódio por meio de publicação). Os Estados Unidos, por sua vez, normalmente aparecem como antípoda do modelo tedesco, por força de interpretações pouco relativizadoras da Primeira Emenda, dedicada às liberdades – e, entre elas, a liberdade de expressão –, e pela defesa do chamado “livre mercado de ideias”, ou seja, da noção de que o discurso, seja ele pernicioso ou não, deve ter sua qualidade testada na arena discursiva, e não segundo mecanismos de controle capitaneados pelo Estado ou por instituições terceiras. Estudiosos como Little (2018)LITTLE, Rory K. Hating hate speech: why current first amendment doctrine does not condemn a careful ban. Hastings Constitutional Law Quarterly , v. 45, 2018. , contudo, vêm demonstrando que, à luz de precedentes da Suprema Corte ( Chaplinsky v. New Hampshire ; e Virginia v. Black ), a doutrina da Primeira Emenda não estaria a proteger palavras cuja simples enunciação já produz dano e que, por isso mesmo, seria possível harmonizar liberdade de expressão e um cuidadoso documento normativo de proibição do hate speech em cenário estadunidense. No que toca à América Latina, a varredura realizada por Bertoni (2006)BERTONI, Eduardo. Estudio sobre la prohibición de la incitación al odio en las Americas . 2006. Disponível em: http://www2.ohchr.org/english/issues/opinion/articles1920_iccpr/docs/SantiagoStudy_ sp.pdf. Acesso em: 26 jun. 2018.
    http://www2.ohchr.org/english/issues/opi...
    indica que disposições proibitivas da incitação ao ódio estão presentes em quase todas as cartas constitucionais. No caso específico da América do Sul, a sanção penal é a regra, seja prevista em código ou em legislação acessória, figurando como exceções – até 2006, data do estudo – apenas a Colômbia, a Venezuela e o Chile. Em 2011, a Colômbia alterou sua codificação criminal com punições a atos discriminatórios, aparecendo como agravante de pena a discriminação realizada através de veículo de difusão massiva. No final de 2017, a Venezuela publicou a polêmica Ley constitucional contra el odio, por la convivencia pacífica y la tolerancia , que prevê de dez a vinte anos de prisão por incitação ao ódio feita de forma pública ou através de meio de comunicação apto à difusão pública. No Chile, permanece em tramitação projeto de lei para agregar ao Código Penal Chileno artigo contendo sanções à incitação ao ódio ou à violência. O Brasil encontra-se em situação semelhante no que toca ao discurso de ódio de teor homofóbico, não abrangido em termos formais pela Lei n. 7.716/1989 e presentemente objeto de ao menos dois projetos de lei.
  • 12
    Repare-se: no caso dos inimputáveis, a falta relativa ou absoluta de autonomia impõe que outros ajam em seu nome, a fim de assegurar-lhes os direitos; o pleito por respeito aos direitos dos inimputáveis ocorre por meio de terceiros, esses, sim, autônomos. É certo que, como todo ser humano, os inimputáveis detêm dignidade; não possuem, contudo, meios de, sozinhos, garantirem o respeito a seus direitos e/ou encetarem lutas por reconhecimento, assim como encontram-se eximidos de responsabilidade ante a comunidade jurídica.
  • 13
    Eis o dispositivo correspondente: “Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. [...] § 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária” (BRASIL, 2017b). Tendo em vista os limites do presente artigo, não se adentrará no mérito da questão sobre se a aplicação analógica desse dispositivo era tecnicamente adequada ou não, segundo doutrina e jurisprudência dominantes.
  • 14
    Recorrer a práticas de justiça restaurativa em casos de hate speech , em paralelo ao processo e execução penais tradicionais, poderia se revelar uma alternativa apta a fazer emergir o perdão e a promessa como resultados incidentais. Mesmo na falta destes, ainda assim, a justiça restaurativa parece ter um potencial significativo – e ainda inexplorado – de contribuição para o enfrentamento do discurso de ódio sob perspectiva do reconhecimento, pois trabalha o dano proveniente do delito a partir da óptica das relações interpessoais, chamando ao diálogo e à pacificação o agente, as vítimas, e a sociedade. Para mais sobre justiça restaurativa, consulte-se, por todos, Zehr (2012)ZEHR, Howard. Justiça restaurativa . Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. , e também, para perspectiva brasileira a respeito, Secco e Lima (2018)SECCO, Márcio; LIMA, Elivânia Patrícia. Justiça restaurativa – Problemas e perspectivas. Revista Direito & Práxis , v. 9, n. 1, 2018. . Ainda, para maior aprofundamento sobre o tema do perdão e da promessa sob perspectiva filosófico-jurídica, veja-se Ost (1999OST, François. O tempo do direito . Tradução de Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. (Coleção Direito e Direitos do Homem n. 14). , p. 380) e também Arendt (2009ARENDT, Hannah. A condição humana . Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. , p. 249).
  • 15
    Exemplo de cooperação no combate ao discurso de ódio pode ser visto nas práticas reguladoras da União Europeia, que já firmou acordos e códigos de conduta com empresas de tecnologias de informação (e.g., Facebook, Twitter, YouTube, Microsoft, etc.). Entre as práticas a que essas empresas se comprometeram ante a Comissão Europeia em 2016, estão: a adoção de procedimentos claros e eficazes de notificação e exame de discursos ilegais; o compromisso de retirada célere de conteúdo pernicioso; a comunicação rápida com Estados-Membros a respeito do fluxo de notificações e da gestão de conteúdo passível de retirada; a parceria com organizações da sociedade civil para adequada sinalização de discursos incitadores de violência e para realização de ações de sensibilização em larga escala ( UNIÃO EUROPEIA, 2016UNIÃO EUROPEIA. Comissão Europeia. Comunicado de imprensa. Comissão Europeia e empresas de TI anunciam o código de conduta sobre discursos ilegais de incitação ao ódio em linha . Bruxelas, 31 de maio de 2016. Disponível em: http://europa.eu/rapid/press-release_IP-16-1937_pt.htm. Acesso em: 26 jun. 2018.
    http://europa.eu/rapid/press-release_IP-...
    ). Países europeus como a Alemanha foram mais longe e desenvolveram normas obrigando plataformas de mídias sociais ao controle de conteúdo – e impondo multa às empresas omissas ou resistentes à retirada de discursos ilegais. Tal é o teor da Netzwerkdurchsetzungsgesetz (em português, “Lei para melhoria da aplicação normativa em redes sociais”; para mais sobre ela, também do ponto de vista crítico, ver Koreng [2017KORENG, Ansgar. Entwurf eines Netzwerkdurchsetzungsgesetzes: Neue wege im kampf gegen “hate speech”?. GRUR-Prax , p. 203, 2017. ]). Digna de nota, enfim, é a reflexão que faz Jakubowicz et al . (2017), que, em cenário jurídico australiano, defende que a cooperação entre múltiplos atores deve servir, no limite, ao propósito de construir resiliência nos usuários finais de redes sociais. Em outras palavras, ações cooperativas de regulação das novas mídias devem buscar que os usuários finais sejam capazes de discernir mensagens de cunho racista e que, sobretudo, sejam capazes de resistir eficazmente a elas. Daí a necessidade de desenvolver não apenas sofisticadas ferramentas de denúncia e administração de conteúdo virtual, mas igualmente mecanismos eficientes de educação dos utilizadores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2017
  • Aceito
    12 Fev 2019
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