Resumo
Este artigo resulta de pesquisa realizada no estado de Minas Gerais entre setembro de 2017 e outubro de 2018, cujos objetivos foram diagnosticar a reiteração de atos infracionais no sistema socioeducativo do estado e identificar o perfil dos adolescentes reincidentes, em comparação com o dos não reincidentes. Procedemos não apenas ao cálculo da taxa de reiteração de atos infracionais, como também analisamos se ela está relacionada com os perfis sociodemográfico e infracional dos egressos do sistema socioeducativo. Para tanto, lançamos mão de metodologia estatística por meio de modelos de regressão logística binomial. Constatou-se que as variáveis que mais impactam a probabilidade de reiteração de atos infracionais são o tipo de vínculo familiar, a trajetória infracional precoce do adolescente, o consumo de drogas ilícitas em período anterior ao cumprimento da medida socioeducativa. Os efeitos das variáveis tipo de medida socioeducativa e tempo de cumprimento da medida socioeducativa são também expressivos.
Palavras-chave
Reiteração de atos infracionais; adolescente infrator; fatores de risco; sistema socioeducativo; violência
Abstract
This article is based on research conducted in the state of Minas Gerais between September 2017 and October 2018, whose objectives were to diagnose juvenile recidivism and to identify the profile of recidivist adolescents, as compared to non-offenders. We proceeded not only to calculate the rate of juvenile recidivism but also to analyze whether it is related to the socio-demographic and criminal profiles of the released adolescents of the socio-educational system. For this, we use statistical methodology through binomial logistic regression models. It was verified that the variables that most impact the probability of juvenile recidivism are the type of family bond, the early infraction trajectory of the adolescent, the consumption of illicit drugs in the period prior to compliance with the socio-educational measure. The effects of the variables type of socioeducative measure and length of compliance of the socioeducative measure are also quite expressive.
Keywords
Juvenile recidivism; juvenile offender; risk factors; socio-educational system; violence
Introdução * * Este artigo foi derivado de relatório de pesquisa desenvolvido pelos autores, disponível em: http://portal.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20181210100418 . Acesso em: 22 nov. 2020.
O fenômeno da reincidência tem sido objeto de pesquisas e de teorizações no âmbito da criminologia há algumas décadas. Reincidência em sentido amplo consiste no novo ato delituoso cometido por um indivíduo que já havia cometido um ou mais atos delituosos anteriormente. Tal conceito é aplicado nos estudos tanto para adultos quanto para adolescentes. E as terminologias prevalecentes nesses estudos são reincidência criminal ( criminal recidivism ) para o segmento adulto e reincidência juvenil ( juvenile recidivism ) para o segmento adolescente. Optamos por adotar, contudo, a nomenclatura prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), qual seja, reiteração de atos infracionais no que diz respeito aos adolescentes.
A quantificação da reiteração de atos infracionais suscita divergências entre estudiosos do tema. Há consenso em tomar como ponto de partida uma coorte de adolescentes egressos da justiça juvenil, ou seja, o parâmetro de atos delituosos cometidos anteriormente é o término do cumprimento de medidas judiciais, seja em meio fechado, seja em meio aberto, por parte dessa coorte. Entretanto, há várias possibilidades de definir o novo ato delituoso eventualmente cometido pelos indivíduos que compõem a coorte, fato crucial para a confirmação da reincidência. Na literatura internacional, identificam-se cinco alternativas nesse sentido, quais sejam: (a) novo registro de ato delituoso pela polícia, com eventual detenção do suspeito; (b) nova denúncia na justiça juvenil; (c) nova condenação pela justiça juvenil; (d) novo cumprimento de medida punitiva determinada pela justiça juvenil; e (e) novo ato delituoso cometido por auto relato do adolescente ( CAPDEVILLA, 2017CAPDEVILLA, Manel. La reincidencia en la justicia de menores . Generalitat de Catalunya: Centro de Estudios Jurídicos y Formación Especializada, 2017. ; NCJJ, 2014NATIONAL CENTER FOR JUVENILE JUSTICE (NCJJ). Juvenile Offenders and Victims: 2014 National Report. Pittsburgh, EUA, 2014. ).
A diversidade de parâmetros de definição da reiteração de atos infracionais é uma das explicações da diversidade de magnitudes das taxas de reincidência nos estudos internacionais, como será explicitado adiante. Não constitui propriamente um problema. Esse dissenso conceitual também se faz presente nos estudos sobre reincidência criminal ( SAPORI, SANTOS e WAN DER MAAS, 2017SAPORI, L. F.; SANTOS, R. F.; WAN DER MAAS, L. Fatores sociais determinantes da reincidência criminal no Brasil: o caso de Minas Gerais. RBCS, v. 32, n. 94, p. 1-18, 2017. ).
No que diz respeito à sociedade brasileira, os estudos sobre o fenômeno são bastante escassos. Ignoramos em boa medida sua magnitude e seus contornos psicossociais. Têm prevalecido meras suposições de senso comum acerca de eventuais adolescentes que voltam a cometer delitos após o cumprimento de medidas socioeducativas.
Este artigo pretende preencher em parte tal lacuna de conhecimento. Resulta de pesquisa realizada no estado de Minas Gerais entre setembro de 2017 e outubro de 2018, sendo financiada pelo Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte (CIA-BH), vinculado ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
A pesquisa teve como objetivos diagnosticar a reiteração de atos infracionais no sistema socioeducativo do estado e identificar o perfil dos adolescentes reincidentes em comparação com o dos não reincidentes. Procedemos não apenas ao cálculo da taxa de reiteração de atos infracionais, como também analisamos se ela está relacionada com os perfis sociodemográfico e infracional dos egressos do sistema socioeducativo. Para tanto, lançamos mão do método estatístico de regressão logística binomial. Essa técnica se aplica a modelos em que a variável dependente é binária, ou seja, tem apenas duas categorias de resposta. É importante salientar que o acesso aos dados empíricos que fundamentaram tais análises estatísticas, tanto na polícia civil de Minas Gerais como na subsecretaria de atendimento às medidas socioeducativas, foi franqueado aos pesquisadores mediante solicitação do TJMG.
1. Reiteração de atos infracionais e teoria criminológica
A reiteração de atos infracionais tem merecido especial atenção da criminologia, com destaque para a teoria do curso de vida ( life-course theory ) e para a criminologia desenvolvimental ( developmental criminology ). Prevalece a junção de ambas as abordagens sob a denominação criminologia desenvolvimental e do curso de vida ( Developmental and Life-Course Criminology – DLC), conforme Farrington (2003)FARRINGTON, D. P. Developmental and life-course criminology: Key theoretical and empirical issues. The 2002 Sutherland award address. Criminology , v. 41, p. 221-255, 2003. e Piquero (2015)PIQUERO, A. R. What we know and what we need to know about developmental and life-course theories. Australian & New Zealand Journal of Criminology , v. 48, n. 3, p. 336-344, 2015. . A DLC incorpora três dimensões à compreensão do fenômeno criminal, quais sejam: (a) a noção de fatores de risco, que foca na identificação dos fatores propiciadores do crime e consequente adoção de mecanismos de prevenção que lidam com tais fatores; (b) a perspectiva desenvolvimental que focaliza a dinâmica criminal ao longo da trajetória de vida do infrator; e (c) a perspectiva do curso de vida que focaliza na sucessão de eventos ao longo da vida do ofensor que impactam sua trajetória infracional.
Criminólogos, tais como Terrie Moffitt, Gerald Patterson, David Farrington, Ralf Loeber, Marc Le Blanc, John Laub e Robert Sampson, oriundos em boa medida da Inglaterra e da América do Norte, são os representantes mais significativos dessa orientação teórica que se preocupa com as mudanças no comportamento infracional/criminoso ao longo do tempo, destacando a relevância do fator idade e da curva da idade para a compreensão do fenômeno. Nessa perspectiva, propõe-se, de modo geral, a análise dinâmica e longitudinal do comportamento delitivo, inserido no curso vital do indivíduo e em suas muito distintas/mutantes etapas, com vistas a descrever sua gênese, curso e desenvolvimento.
A questão central dessa abordagem teórica não é o porquê os indivíduos cometem crimes. Está direcionada para explicar por que diferentes indivíduos cometem crimes em diferentes idades, por que alguns deles cometem crimes com mais frequência em relação a outros e por que alguns indivíduos continuam a cometer crimes no decurso da vida, ao passo que outros desistem de fazê-lo já na fase final da adolescência.
Boa parte dos estudos em criminologia desenvolvimental e do curso de vida foca na adolescência por esta ser considerada uma etapa especialmente crítica ao aparecimento e ao desenvolvimento da conduta infracional. Em muitas pesquisas com esse enfoque, pôde-se demonstrar, em uma primeira instância, que a adolescência se apresenta como um momento da vida do indivíduo em que se concentram comportamentos socialmente divergentes. Procuram integrar à compreensão do fenômeno as dimensões do indivíduo, da família, dos pares, da escola, da vizinhança, da comunidade e do contexto situacional. Não ignoram elementos contemplados em teorias criminológicas anteriores, como aprendizado social, anomia, controle social e associação diferencial.
Há algumas conclusões comuns derivadas dos estudos da DLC, a saber: (a) o pico do cometimento de crimes ocorre na fase final da adolescência, entre 15 e 19 anos de idade; (b) o início do cometimento de atos criminosos ocorre entre 8 e 14 anos de idade, e a desistência do crime dá-se geralmente entre 20 e 29 anos de idade; (c) a idade prematura de ingresso em atividades criminosas é preditora de longa duração da carreira criminosa do indivíduo como também do cometimento de vários tipos de crimes; (d) há tendência de continuidade de cometimento de comportamentos criminosos e antissociais da infância até a fase adulta, passando pela adolescência; (e) uma pequena fração da população criminosa, os criminosos crônicos, comete grande parte dos crimes registrados; (f) os criminosos crônicos, em geral, iniciam na atividade criminosa bastante jovens, mantêm elevada frequência no cometimento de crimes e mantêm longa carreira criminal; (g) a atividade criminosa na adolescência tende a ser bastante versátil, e não propriamente especializada; (h) criminosos são versáteis também no cometimento de vários tipos de comportamentos antissociais; (i) o cometimento de atos criminosos tende a ocorrer em grupos até o final da adolescência, e na fase adulta tende a prevalecer uma carreira individual; e (j) as motivações para o cometimento de crimes até o final da adolescência são diversas (utilitárias e expressivas) e na fase adulta prevalecem as motivações utilitárias.
Pode-se destacar como uma das mais influentes no âmbito da criminologia desenvolvimental a taxonomia do comportamento delinquente juvenil proposta por Terrie Moffitt.
Segundo Moffitt (1993)MOFFITT, T. E. Adolescence-limited and life-course-persistent antisocial behavior: a developmental taxonomy. Psychological Review , n. 100, p. 674-701, 1993. , existem dois padrões distintos de trajetória infracional de adolescentes, com diferentes razões para o ingresso nessa trajetória, com diferentes frequências de cometimento de atos infracionais e com durações também diferentes no curso de vida. O primeiro padrão de adolescentes infratores é denominado infratores persistentes no curso de vida ( life-coursepersistents ), constituído de um pequeno número de indivíduos que cometem infrações com elevada e crônica frequência e durante todo o curso de vida. Segundo Moffitt, os fatores de risco associados aos life-coursepersistents emergem ainda na infância, sendo marcados por problemas neuropsicológicos e por experiências em ambientes familiares e de vizinhança caracterizados por maiores vulnerabilidades sociais. Essa interação é adversa à medida que crianças com diversos déficits vivem em famílias que não dispõem de recursos necessários para superá-los. E é por isso que tais crianças tendem a manifestar comportamentos infracionais muito precocemente, persistindo nas fases posteriores do curso de vida.
O segundo padrão de adolescentes infratores é qualificado por Moffitt como limitado à adolescência ( adolescence-limited ) e compreende grande número de infratores que não experimentam infâncias traumáticas como são típicas do primeiro grupo. Para estes, o cometimento de atos infracionais restringe-se ao período da adolescência. E as razões primárias para tanto incluem a influência de pares e o gap de maturidade. Tendem a cometer infrações como forma de se sentirem livres das amarras da adolescência e, consequentemente, fazendo-os sentirem-se como adultos. É típico desse padrão de adolescentes infratores o uso e abuso do consumo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas, assim como o cometimento de pequenos furtos, além de outros tipos de atos delinquentes. Não o fazem com frequência e, o mais importante, estão restritos à adolescência. Desistem do cometimento de atos infracionais tão logo obtêm status social via profissionalização já no início da vida adulta.
A criminologia desenvolvimental e do curso de vida, a despeito de ter gerado relevantes estudos empíricos e o reforço de teorias e conceitos, não pode ser considerada pronta e acabada. Diversas dúvidas e controvérsias ainda persistem em seu âmbito, merecendo aprofundamentos posteriores. E é nesse gap de conhecimento que se inserem os estudos da reiteração de atos infracionais. Os reais efeitos da restrição de liberdade e das medidas em meio aberto impostas a adolescentes que cometem atos infracionais no desenrolar de suas carreiras infracionais ainda são nebulosos. A questão teórica em pauta pode ser formulada nos seguintes termos: em que medida a experiência do adolescente no cumprimento de medidas determinadas pela justiça juvenil tende a interromper a trajetória infracional posterior no seu curso de vida? ( FARRINGTON, 2003FARRINGTON, D. P. Developmental and life-course criminology: Key theoretical and empirical issues. The 2002 Sutherland award address. Criminology , v. 41, p. 221-255, 2003. , p. 247).
2. A reiteração de atos infracionais em âmbito internacional
Os patamares de reiteração de adolescentes infratores obtidos por estudos internacionais são bastante variados. Conforme se constata no Quadro 1 , as taxas variam entre 23%, obtida na Espanha, província de Castelló, e 58%, obtida na Austrália. São poucos os estudos de abrangência nacional, prevalecendo os que calculam as taxas para regiões específicas do país.
O caso norte-americano é emblemático nesse sentido. Não existe uma taxa nacional de reiteração de atos infracionais nesse país. O indicador é elaborado por estado e geralmente sob a responsabilidade dos respectivos departamentos correcionais juvenis. E há diferenças não negligenciáveis entre as taxas de reiteração entre os estados norte-americanos, variando de 22%, no estado da Pensilvânia, até 45%, no estado de Ohio.
Isso também ocorre na Espanha, que tem se notabilizado pelas pesquisas produzidas pelo Centro de Estudios Jurídicos y Formación Especializada (CEJFE), vinculado ao Departamento de Justicia de la Generalidad de Cataluña. O CEJFE tem atualizado as taxas de reiteração de atos infracionais anualmente, desde 2005, restringindo-se, contudo, à Comunidade Autônoma da Catalunha. Em seu estudo mais recente, o CEJFE identificou taxa de reiteração de 31%, superior à revelada por pesquisadores da Universidade Jaime I para a província de Castelló.
Em outros países europeus, por sua vez, os dados de reiteração de atos infracionais abrangem a realidade nacional. Na Inglaterra, a taxa está no patamar de 38%, ao passo que na Holanda obteve-se 32%.
As diferenças nas taxas internacionais não podem ser compreendidas como sintomáticas de efetividades distintas dos aparatos nacionais ou regionais de justiça juvenil. Qualquer conclusão nessa perspectiva é temerária. Elas são mais reveladoras de diferenças nas definições metodológicas de reiteração. Isso porque as taxas tendem a variar de acordo com o critério de definição da reiteração e o período de follow up ( NCJJ, 2014NATIONAL CENTER FOR JUVENILE JUSTICE (NCJJ). Juvenile Offenders and Victims: 2014 National Report. Pittsburgh, EUA, 2014. ; FAGAN e PIQUERO, 2007FAGAN, J.; PIQUERO, A. R. Rational Choice and Developmental Influences on Recidivism Among Adolescent Felony Offenders. Journal of Empirical Legal Studies , v. 4, n. 4, p. 715-748, 2007. ).
3. Fatores de risco da reiteração de atos infracionais
Os estudos internacionais, de modo geral, não se restringem a calcular a magnitude do fenômeno. Tem sido recorrente o objetivo adicional de explicitar as variáveis ou conjunto de variáveis que estão estatisticamente relacionadas com a maior probabilidade de reiteração por parte do adolescente. São os denominados fatores de risco da reiteração . Correspondem, portanto, a quaisquer fatores precedentes e adscritos que estão associados à probabilidade de ocorrência subsequente da reiteração de atos infracionais.
Segundo Capdevilla (2017)CAPDEVILLA, Manel. La reincidencia en la justicia de menores . Generalitat de Catalunya: Centro de Estudios Jurídicos y Formación Especializada, 2017. , Araya (2016)ARAYA, T. F. Factores que inciden en la reincidencia de los/as adolescentes infractores/as de ley penal . Santiago: Universidad de Chile, 2016. , Grunwald et alli (2010)GRUNWALD, H. E.; LOCKWOOD, B.; HARRIS P. W.; MENNIS, J. Influences of Neighborhood Context, Individual History and Parenting behavior on Recidivism Among Juvenile Offenders. Journal of Youth and Adolescence, v. 39, p. 1067-1079, 2010. e Cottle, Lee e Heilbrun (2001)COTTLE, C.; LEE, R.; HEILBRUN, K. The prediction of criminal recidivism in juveniles: a meta-analysis. Criminal Justice and Behavior , v. 28, n. 3, p. 367-394, 2001. , alguns fatores de risco têm sido salientados nos estudos internacionais com relativo grau de consenso, envolvendo dimensões individuais, psicológicas e de saúde, sociofamiliares, educacionais e laborais, trajetórias delitivas. Consideremos mais detalhadamente cada um desses agrupamentos de fatores de risco, referenciando-se nos autores citados.
Fatores de risco individuais: há consenso em considerar o gênero variável altamente preditiva da reiteração de adolescentes infratores, de modo que os adolescentes do gênero masculino reiteram mais do que os adolescentes do gênero feminino. No entanto, a idade tende a se constituir em fator de risco da reiteração quando é associada à primeira infração cometida pelo adolescente e registrada pela justiça juvenil. Nesse sentido, quanto menor a idade quando do primeiro contato com a justiça, maior é a probabilidade de reiteração. A variável raça, por sua vez, não constitui fator de risco do fenômeno, inexistindo evidências empíricas robustas de correlação entre as respectivas variáveis.
Fatores de risco psicológicos e de saúde mental: há uma variável que pode ser considerada consensual como fator de risco de reiteração, qual seja, o consumo de drogas. O consumo de drogas pelo egresso da justiça juvenil, assim como o início em idade prematura nessa atividade, constituem variáveis preditivas bastante consistentes da reiteração. Há evidências também de que essa variável acentua a gravidade do novo delito eventualmente cometido pelo adolescente que reitera no ato infracional.
Fatores de risco sociofamiliares: determinadas características das famílias dos egressos da justiça juvenil impactam a probabilidade da reiteração. Os estudos internacionais são praticamente consensuais nessa afirmação. E entre tais características, que se apresentam como fatores de risco, estão a existência de trajetória criminal da família do adolescente e experiências traumáticas vividas na infância, tais como maus-tratos físicos, abuso sexual e abuso emocional. O contexto social em que reside o adolescente egresso também tende a afetar o fenômeno. A probabilidade da reiteração é maior entre adolescentes que residem em territórios de maior vulnerabilidade social e onde o comércio das drogas ilícitas se faz presente. Soma-se a tais fatores a associação do adolescente a grupos de pares delinquentes nesses territórios, constituindo outro fator de risco.
Fatores de risco educacionais e laborais: o baixo desempenho escolar e a evasão escolar são variáveis com elevada capacidade preditiva da reiteração de atos infracionais. Entretanto, há evidências ainda parciais de que a preparação técnico-profissional dos jovens infratores durante o período de cumprimento das sanções judiciais reduz o risco da reiteração.
Fatores de risco relacionados à trajetória delitiva: fator que tem se revelado bastante associado à reiteração de atos infracionais é a existência de antecedentes delitivos ao cumprimento da sanção judicial pelo adolescente. No entanto, não há consenso no que se refere ao impacto do tipo de infração cometida pelo adolescente, se contra o patrimônio ou contra a pessoa, ou mesmo do grau de violência envolvida nessa infração.
4. A reiteração de atos infracionais no Brasil
O estudo da reiteração não tem merecido atenção por parte dos setores públicos federal, estadual e municipal responsáveis pelas políticas públicas direcionadas aos adolescentes autores de ato infracional na sociedade brasileira. No campo acadêmico, da mesma forma, são bastante rarefeitas as produções científicas sobre o tema. Em função dessa lacuna de conhecimento, não existem dados oficiais sobre a magnitude da reiteração de atos infracionais no Brasil.
Estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entre julho de 2010 e outubro de 2011 traçou um panorama da execução das medidas socioeducativas em meio fechado no país ( CNJ, 2012CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Panorama nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação. Brasília, 2012. ). Foram entrevistados 1.898 adolescentes internos, utilizando questionário específico como instrumento de pesquisa. Além disso, servidores de cartórios judiciais coletaram dados de 14.613 processos judiciais de execução de medidas socioeducativas de restrição de liberdade em tramitação nos 26 estados da Federação e no Distrito Federal.
Um dos itens considerados no estudo foi a reiteração, qualificada como reincidência nos processos . Procurou-se identificar se havia registro de reincidência dos adolescentes em conflito com a lei a que se referem os autos, ou seja, se os adolescentes que estavam cumprindo a medida socioeducativa apresentavam algum registro oficial anterior de cometimento de ato infracional. O estudo comprovou que em 54% dos processos analisados no território nacional os adolescentes podiam ser considerados reincidentes.
Merecem menção os estudos do Laboratório do Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial (GEPDIP). Vinculado à USP-Ribeirão Preto e sob a coordenação da professora Marina Rezende Bazon, tem se notabilizado pela produção de pesquisas sobre a prática de delitos na adolescência e pelo desenvolvimento de metodologias de avaliação e de intervenção jurídico-sociais.
O objetivo principal das pesquisas não é propriamente a mensuração da reiteração de atos infracionais, mas tão somente a identificação de variáveis psicossociais que impactam a probabilidade de sua ocorrência. Nesse sentido, merece destaque pesquisa que analisou uma amostra de adolescentes judicializados entre os anos de 1998 e 2006, na Comarca de Ribeirão Preto-SP, para os quais se teve acesso às informações do total de processos referentes a cada um dos adolescentes. A investigação incidiu sobre 521 processos, correspondendo a 178 sujeitos e 560 infrações. Desse total, 477 processos eram referentes a 155 adolescentes do sexo masculino, os quais compreendiam 512 atos infracionais, tendo as análises focalizado mais esse grupo. Os resultados principais indicaram que, dos 155 adolescentes, 52 (34%) seriam primários no sistema (não reiterantes) e 103 (66%) seriam reiterantes ( BAZON et alli , 2011BAZON, M. R.; KOMATSU, A. V.; PANOSSO, I. R.; ESTEVÃO, R. Adolescentes em conflito com a lei, padrões de comportamento infracional e trajetória da conduta delituosa: um modelo explicativo na perspectiva desenvolvimental. Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade , n. 5, p. 59-87, 2011. ).
O Instituto Sou da Paz realizou entre outubro de 2016 e agosto de 2017 pesquisa com adolescentes cumprindo medida de internação na Fundação CASA, estado de São Paulo ( INSTITUTO SOU DA PAZ, 2017INSTITUTO SOU DA PAZ. Aí eu voltei para o corre. Estudo da reincidência infracional do adolescente no estado de São Paulo . São Paulo, 2017. ). Foram entrevistados 324 adolescentes e 19 profissionais em 20 centros socioeducativos na capital, Grande São Paulo e interior do estado, tendo como objetivo revelar o perfil do adolescente em conflito com a lei no estado de São Paulo, as variáveis associadas à prática infracional e eventuais aprimoramentos necessários ao atendimento socioeducativo oferecido pela Fundação CASA. A pesquisa objetivou também identificar os principais fatores sociais e individuais associados à reiteração na amostra de adolescentes entrevistada. Ao final do processo de análise dos dados, a taxa de reiteração ficou no patamar de 32,6%.
5. Metodologia
A pesquisa empreendida adotou como critério para mensurar a reiteração de atos infracionais a existência de um ou mais registros de atos infracionais e/ou criminais do indivíduo após o cumprimento de medida socioeducativa. Nesse sentido, o novo ato delituoso eventualmente cometido pelos indivíduos que compõem a coorte, fato crucial para a confirmação da reiteração, foi estabelecido a partir de novo registro pela polícia civil do estado de Minas Gerais.
Optamos, portanto, por utilizar o conceito de reincidência policial, nos termos de Capdevilla (2017)CAPDEVILLA, Manel. La reincidencia en la justicia de menores . Generalitat de Catalunya: Centro de Estudios Jurídicos y Formación Especializada, 2017. . Não adotamos a definição jurídica de reincidência, conforme o artigo 63 do Código Penal. Para configurar a reincidência no aspecto jurídico-penal, é necessária uma sentença condenatória transitada em julgado, isto é, uma condenação por um crime para a qual não caiba mais recurso. Para tanto, seria necessário o acesso aos dados de sentenças proferidas na justiça juvenil em todas as comarcas de Minas Gerais, o que se mostrou inviável diante da inexistência de uma base de dados nesse sentido no TJMG. Temos clareza de que o ideal seria a verificação da reiteração de atos infracionais tanto nos dados da polícia civil quanto nos dados da justiça juvenil. Estudos posteriores poderão suprir essa limitação da presente pesquisa.
No entanto, entendemos que pautar os estudos da reiteração de atos infracionais ou mesmo da reincidência criminal, referente a adultos, no Brasil pelo critério exclusivamente jurídico acentua o risco de subestimar a magnitude do fenômeno. O destacado efeito funil na justiça criminal brasileira, assim como sua notória morosidade, fazem que os crimes efetivamente julgados e condenados anualmente constituam parte muito reduzida da criminalidade oficialmente registrada pelas organizações policiais ( SAPORI, SANTOS e WAN DER MAAS, 2017SAPORI, L. F.; SANTOS, R. F.; WAN DER MAAS, L. Fatores sociais determinantes da reincidência criminal no Brasil: o caso de Minas Gerais. RBCS, v. 32, n. 94, p. 1-18, 2017. ).
Tendo em mente tais considerações, quatro bases de dados foram consultadas, a saber:
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Relação de adolescentes que cumpriram medidas socioeducativas nas unidades de internação e de semiliberdade em todo o estado de Minas Gerais, no período de janeiro de 2013 a dezembro de 2017, conforme sistematização da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (Suase), vinculada à Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Estado de Minas Gerais.
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Relação de adolescentes que apresentaram registro de atos infracionais em todo o estado de Minas Gerais no período de janeiro de 2013 a dezembro de 2017, conforme sistematização do sistema PCNet da polícia civil de Minas Gerais.
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Relação de adultos que apresentaram registro de indiciamento em inquérito policial, e que tiveram registro anterior também de autoria de atos infracionais, no período de janeiro de 2013 a dezembro de 2017, conforme sistematização do sistema PCNet da polícia civil de Minas Gerais.
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A Certidão de Antecedentes Infracionais (CAI) dos adolescentes que foram julgados pelo CIA-BH no período de janeiro de 2013 a dezembro de 2017.
É importante ter em mente que esta pesquisa objetivou captar o fenômeno da reiteração não apenas no período restrito da adolescência. O eventual cometimento de crimes na fase adulta também foi considerado e devidamente captado.
5.1 Universo da pesquisa
O universo da pesquisa foi composto de todos os adolescentes internos das unidades socioeducativas administradas pela Suase em todo o território do estado de Minas Gerais que terminaram o cumprimento de medida socioeducativa no ano de 2013. Foram incluídos os adolescentes egressos que cumpriram dois tipos de medida socioeducativa, quais sejam, semiliberdade e internação. A pesquisa não trabalhou, portanto, com adolescentes que cumpriram medidas em meio aberto, a saber, liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade. Essa restrição do universo da pesquisa deveu-se à inexistência de uma base de dados sistematizada em âmbito estadual no que se refere à relação anual de adolescentes que cumpriram medidas de liberdade assistida e de prestação de serviço à comunidade. Esses dados existem apenas em âmbito municipal no estado de Minas Gerais.
A coorte de adolescentes egressos no ano de 2013 totalizou 435 adolescentes, sendo 393 egressos que cumpriram medida de internação e 42 egressos que cumpriram medida de semiliberdade. Neste estudo, todo esse universo foi considerado, de modo que não houve necessidade de cálculo amostral nem de testes de significância estatística.
Ressalte-se que desses 435 adolescentes 35 faleceram no período de acompanhamento, sendo 6 em 2013, 7 em 2014, 14 em 2015, 5 em 2016 e 3 em 2017, conforme consulta realizada no sistema REDS, administrado pela Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), e no Sistema de Controle de Óbitos (Sisobi). Para fins dos cálculos estatísticos empreendidos nesta pesquisa, esses 35 casos foram considerados. Isso porque os adolescentes poderiam reincidir entre a data do término do cumprimento da medida socioeducativa e a data do óbito. Desses 35 casos, 8 reincidiram antes da data de morte. O número médio de meses entre a soltura e o óbito desses 35 casos foi de 22 meses. Para os oito casos de reincidência antes da morte, essa média foi de 24 meses.
5.2 Período de acompanhamento
Outra definição metodológica imprescindível nos estudos de reiteração de atos infracionais é por quanto tempo se acompanha a trajetória do egresso após o cumprimento da medida estabelecida pela justiça juvenil. Optamos por trabalhar com o período de 2013 a 2017, contado a partir da data de soltura em 2013, ano de coorte do universo de egressos.
Em outras palavras, a reiteração foi considerada quando houve a identificação de pelo menos um novo registro de ato infracional ou de crime feito pela polícia civil entre janeiro de 2013 e dezembro de 2017. O ano de 2013 foi incluído porque alguns egressos voltaram a cometer atos infracionais no mesmo ano da soltura. Isso implica que o período de acompanhamento para observação da reiteração não foi o mesmo para toda a amostra, na medida em que a data de soltura pode ter ocorrido em qualquer momento do ano inicial.
5.3 Taxa de reiteração de atos infracionais
A taxa de reiteração de atos infracionais representa em termos proporcionais o quociente entre o número absoluto de egressos do sistema socioeducativo no ano t, com novos registros de atos infracionais ou indiciamentos no período entre t e t+5, e o número absoluto de adolescentes egressos do sistema socioeducativo no ano t, sendo t = 2013. Formalmente:
5.4 Variável dependente
Neste estudo, a variável dependente ou variável resposta – y – reflete exatamente os elementos utilizados no cálculo da taxa de reiteração, isto é, se o adolescente reiterou ou não reiterou. Portanto, essa variável é qualitativa categórica com duas opções de resposta: sim (1) ou não (0). Por esse motivo, esse tipo de variável é denominado binomial.
O método de regressão linear é amplamente utilizado para analisar a influência de uma variável independente ou explicativa – x – sobre uma determinada variável dependente quantitativa y . Nesse caso, tem-se um modelo de regressão simples. Caso o modelo utilize mais de uma variável independente x , ele é denominado múltiplo.
Para variáveis dependentes categóricas, o método de regressão linear não é eficiente nem consistente, pois o pressuposto de que y é uma função linear de x mais um termo de erro e de que a variância desse termo é igual para todas as observações não se aplica ( ALLISON, 1999ALLISON, P. D. Logistic Regression Using the SAS System: Theory and Application. Cary, NC: SAS Institute Inc., 1999. ). Portanto, se a variável dependente x é categórica, o método de regressão apropriado é a análise logística. Se x tem apenas duas categorias de resposta, esse método é denominado binomial – se mais de duas categorias, multinomial.
Antes de apresentar o modelo de regressão logística binomial, é importante ter em mente que em um modelo de regressão múltipla, digamos, com três variáveis independentes, x 1, x 2 e x 3, a influência dessas variáveis sobre a variável dependente y é dada pelos coeficientes de cada variável x, b 1, b 2 e b 3 estimados. A estimação de cada um desses deles leva em conta a presença das demais variáveis, e, consequentemente, b 1 é o efeito líquido de x 1 sobre y, b 2 é o efeito líquido de x 2 sobre y e b 3 é o efeito líquido de x 3 sobre y . De outra forma, cada coeficiente b indica a influência da respectiva variável x sobre y controlando-se pela presença das demais variáveis independentes incluídas no modelo.
5.5 Variáveis independentes
O estudo realizado não se restringiu ao objetivo de mensurar a magnitude da reiteração no estado de Minas Gerais. Procurou-se também verificar o impacto de diversos fatores sociais e individuais na probabilidade de ocorrência da reiteração por parte do adolescente egresso do sistema socioeducativo. Referenciando-se no conceito de fatores de risco , sistematizamos um conjunto de variáveis relacionadas a aspectos variados do adolescente egresso que poderiam, hipoteticamente, impactar a chance de ocorrência do fenômeno.
Boa parte das variáveis selecionadas obedeceu ao critério das evidências empíricas já obtidas em estudos internacionais, conforme Capdevilla (2017)CAPDEVILLA, Manel. La reincidencia en la justicia de menores . Generalitat de Catalunya: Centro de Estudios Jurídicos y Formación Especializada, 2017. , Araya (2016)ARAYA, T. F. Factores que inciden en la reincidencia de los/as adolescentes infractores/as de ley penal . Santiago: Universidad de Chile, 2016. , Grunwald et alli (2010)GRUNWALD, H. E.; LOCKWOOD, B.; HARRIS P. W.; MENNIS, J. Influences of Neighborhood Context, Individual History and Parenting behavior on Recidivism Among Juvenile Offenders. Journal of Youth and Adolescence, v. 39, p. 1067-1079, 2010. e Cottle, Lee e Heilbrun (2001)COTTLE, C.; LEE, R.; HEILBRUN, K. The prediction of criminal recidivism in juveniles: a meta-analysis. Criminal Justice and Behavior , v. 28, n. 3, p. 367-394, 2001. . Estão incluídas nesse critério as variáveis idade, raça, renda familiar, convivência familiar, escolaridade, consumo de drogas lícitas e ilícitas, entre outras.
Outras variáveis foram incorporadas dada a disponibilidade destas nas bases de dados consultadas, mais particularmente na base de dados fornecida pela Suase. Esta continha não apenas a relação dos adolescentes que cumpriram medidas socioeducativas em todo o estado de Minas Gerais, apresentando rico conjunto de dados sobre a trajetória infracional, familiar e do próprio cumprimento da medida referentes a eles. Nesse sentido, incorporamos ao estudo a variável cidade do cometimento do ato infracional , o que nos possibilitou analisar eventuais diferenças espaciais na incidência da reiteração. Utilizamos também as variáveis tipo de medida socioeducativa cumprida e tempo de cumprimento da medida socioeducativa , viabilizando a análise do eventual impacto da medida socioeducativa na interrupção de trajetórias infracionais ( FARRINGTON, 2003FARRINGTON, D. P. Developmental and life-course criminology: Key theoretical and empirical issues. The 2002 Sutherland award address. Criminology , v. 41, p. 221-255, 2003. ).
Agregamos as variáveis em sete grandes conjuntos de fatores, quais sejam: (a) fatores individuais; (b) fatores ambientais; (c) fatores sociofamiliares; (d) fatores educacionais/laborais; (e) fatores relacionados a uso/abuso de drogas; (f) fatores relacionados à trajetória delituosa; e (g) fatores relacionados ao cumprimento da medida socioeducativa. O Quadro 2 descreve cada uma das variáveis selecionadas para o estudo.
Algumas variáveis relevantes não foram consideradas no estudo, como são os casos das variáveis sexo; trabalho antes da medida socioeducativa; idade de início do consumo de drogas , entre outras. Isso ocorreu porque o número de unidades da variável era insuficiente para a realização dos testes estatísticos de regressão logística binomial ou mesmo porque o número de missing era muito elevado.
6. Análise dos resultados
A Tabela 1 apresenta a distribuição dos adolescentes infratores que foram liberados por término de cumprimento de medida socioeducativa de internação e de semiliberdade em 2013 no estado de Minas Gerais segundo a reiteração, isto é, a existência de pelo menos um novo ato infracional ou crime registrado pela polícia civil de Minas Gerais no período de janeiro de 2013 a dezembro de 2017. Dos 435 indivíduos acompanhados, 131 reiteraram no período analisado contra 304 que não o fizeram, configurando uma taxa de reiteração de atos infracionais para o estado de Minas Gerais de 30,1%. É importante esclarecer que a incorporação dos 35 casos que vieram a óbito antes do término do período de acompanhamento incluiu proporcionalmente mais observações no denominador da taxa do que no numerador. Não fossem eles utilizados, a taxa de reiteração seria de 30,7%, levemente mais alta do que a reportada.
Adolescentes liberados após cumprimento de medida socioeducativa de internação e semiliberdade segundo reiteração. Minas Gerais, 2013 a 2017
Foi possível aferir a dinâmica da reiteração de atos infracionais ao longo dos cinco anos de acompanhamento dos egressos, conforme a Tabela 2 . Dos 131 que reiteraram, 30 adolescentes o fizerem ainda no ano de 2013; 50, no ano de 2014; 20, no ano de 2015; 17, no ano de 2016; e 14 adolescentes reiteraram em 2017. Constata-se que 61% da reiteração ocorreu nos dois primeiros anos após liberação dos adolescentes por cumprimento de medida socioeducativa. A partir do terceiro ano de acompanhamento, que é o ano de 2015, o ritmo da reiteração diminui.
Distribuição dos adolescentes reiterantes segundo o ano do cometimento do ato infracional/criminoso que caracterizou a reiteração. Minas Gerais, 2013 a 2017
A idade média do universo estudado é de 17,3 anos, com desvio padrão de 1,2 anos. A idade média dos reiterantes, por sua vez, ficou em 18,9 anos, com desvio padrão de 1,2 anos. Considerando as idades médias como parâmetros, constata-se que o tempo médio decorrido entre o término do cumprimento da medida socioeducativa e o ato infracional ou criminoso da reiteração foi de 1,6 anos, ou seja, um ano e sete meses. Chama a atenção o fato de que 91,6% dos que reiteraram já se encontravam na fase adulta. Apenas 11 dos 131 indivíduos reiterantes ainda se encontravam abaixo dos 18 anos de idade.
6.1 Análise logística binomial
A partir dos resultados da subseção anterior foram identificadas e selecionadas as variáveis independentes consistentes e relevantes para a análise da reiteração em Minas Gerais a partir dos adolescentes que cumpriram medida socioeducativa em 2013, conforme o Quadro 2 .
Dado que as variáveis consumo de álcool, consumo de maconha, consumo de cocaína e consumo de crack são colineares à variável consumo de drogas, isto é, são altamente correlacionadas, pois consumo de maconha, cocaína e/ou crack são casos incluídos nas categorias consumo de “drogas ilegais” e “drogas legais e ilegais” da variável consumo de drogas, e consumo de álcool são casos incluídos nas categorias consumo de “drogas legais” e “drogas legais e ilegais”, elas não devem ser utilizadas simultaneamente. Dessa forma, foram estabelecidos dois modelos: o Modelo 1 inclui a variável consumo de drogas e exclui as quatro variáveis de consumo de drogas específicas; e o Modelo 2 inclui consumo de álcool, maconha, cocaína e crack e exclui a variável “consumo de drogas”, especificando apenas se legais, ilegais ou ambas. Além desses dois modelos, foi estimado um terceiro, utilizando apenas os adolescentes cujo ato infracional ocorreu no município de Belo Horizonte. Para esse modelo, foram utilizadas as variáveis enquadramento prévio a 2013, idade ao enquadramento prévio a 2013 e tratamento toxicológico .
Os resultados do Modelo 1 são apresentados no Quadro 3 . A primeira coluna refere-se às variáveis do modelo. A segunda coluna especifica a categoria de interesse da variável e a categoria de referência, nos casos das variáveis categóricas. A variável idade é quantitativa discreta e seu efeito refere-se à variação da chance de reiteração de acordo com a variação de uma unidade (ano) da variável. A terceira coluna apresenta a razão de chance. A quarta coluna informa a significância estatística de cada efeito (PR > ChiSq). É importante ter em mente que a significância estatística é apenas indicativa do peso da categoria, uma vez que não se trata de uma amostra aleatória probabilística, mas da população de adolescentes que terminaram a medida socioeducativa em Minas Gerais em 2013. Os resultados são discutidos, segundo o efeito líquido de cada variável explicativa incluída, em seguida.
Modelo 1 – Análise logística da chance de reiteração (sim versus não) por variáveis selecionadas e consumo de drogas. Minas Gerais, 2013 a 2017
Idade: quanto maior a idade do adolescente quando do término do cumprimento da medida socioeducativa, menor a chance de reiteração. A cada ano adicional na idade do adolescente a chance de reiteração diminui em 10%.
Raça/cor: tem pequeno efeito sobre a chance de reiteração. A chance dos que se declararam brancos é 8,6% maior do que os que se declararam negros.
Escolaridade: a escolaridade do adolescente quando do início do cumprimento da medida socioeducativa influencia a chance de reiteração. A chance de reiteração dos adolescentes com escolaridade até o ensino fundamental é menor em relação aos que estavam no ensino médio, porém a chance de reiterar do adolescente no ensino fundamental até o 5° ano é 15% inferior à chance do adolescente que cursava o ensino médio, ao passo que a chance de reiteração daqueles com escolaridade entre a 6ᵃ e a 9ᵃ série é 53% inferior aos adolescentes com ensino médio. De outra forma, a menor chance de reiteração se encontra entre aqueles com escolaridade entre a 6ᵃ e a 9ᵃ série.
Renda familiar per capita: as razões de chance dessa variável não apresentam um padrão, crescente ou decrescente, segundo o nível de renda. Adolescentes oriundos de famílias com renda per capita entre 1/4 e 1/2 do salário mínimo têm chances de reiterar 40% menor do que adolescentes oriundos de famílias com renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. Supostamente, então, quanto maior o grau de pobreza da família do adolescente, maior seria a chance de reiteração. Entretanto, na categoria entre 1/2 e 3/4 do salário mínimo, a chance de reiteração é 46% superior à categoria inferior a 1/4 do salário mínimo. Ou seja, nesse patamar um pouco mais elevado de renda familiar, a chance maior de reiteração desloca-se dos mais pobres para os menos pobres. Nas categorias seguintes dessa variável, a mesma oscilação de resultados aparece. A menor chance de reiteração em relação à categoria de referência encontra-se na categoria de 3/4 a menos de um salário mínimo, elevando-se no último nível. Assim, não se pode inferir que, quanto menor a renda familiar per capita do adolescente, maior a chance da reiteração ou o contrário.
Convivência familiar: influencia a chance de reiteração na medida em que adolescentes com trajetória de rua antes do cumprimento da medida socioeducativa têm chance 32% maior de reiterar do que adolescentes com convivência de família de origem, ou seja, desde o nascimento até o cumprimento da medida socioeducativa estiveram vinculados a laços familiares.
Ato infracional: a categoria tráfico de drogas foi utilizada como referência para estimar a chance da reiteração. Constata-se que o adolescente que cumpriu medida socioeducativa por furto apresenta chance de reiterar bem superior, 176% maior do que a chance dos adolescentes que cumpriram medida socioeducativa por tráfico de drogas. O ato infracional porte ilegal de arma de fogo também apresenta chance de reiteração superior à categoria tráfico de drogas, cerca de 40%. O ato infracional roubo, por sua vez, não tem efeito sobre a chance de reiteração, controlando-se pelas demais variáveis do modelo. Já os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa por homicídio têm chance menor de reiterar do que os que cumpriram por tráfico de drogas, no patamar de 46%.
Região do ato infracional: apresenta efeito relevante na chance de reiteração. Os adolescentes que cometeram os atos infracionais responsáveis pelas respectivas medidas socioeducativas em Belo Horizonte e demais municípios da região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) têm chance de reiteração superior aos adolescentes que cometeram os atos infracionais em municípios do interior do estado. O município de Belo Horizonte destaca-se nesse sentido, pois os adolescentes que cometeram atos infracionais na capital têm chance de reiterarem 100% superior em comparação aos do interior. Nos demais municípios da RMBH, por sua vez, a chance de reiteração é 40% maior do que nos municípios do interior.
Medida socioeducativa: o tipo de medida socioeducativa privativa de liberdade cumprida pelo adolescente infrator apresenta influência expressiva na chance de reiteração. Os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de internação tendem a reiterar menos do que os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de semiliberdade. A chance de reiteração dos que cumpriram medida de internação é 36% menor comparativamente à semiliberdade.
Tempo da medida socioeducativa: esta é a variável de impacto mais relevante na chance de reiteração, categorizada de acordo com o número de dias cumpridos pelo adolescente infrator quando da respectiva medida socioeducativa determinada pela justiça juvenil. Comparando-se a chance dos adolescentes que cumpriram medidas superiores a 731 dias com as dos adolescentes que cumpriram medidas até 180 dias, de 181 a 365 dias, de 366 a 345 dias e de 346 a 730 dias, constata-se que a chance de reiteração diminui à medida que aumenta o número de dias cumpridos pelo adolescente infrator. Nesse sentido, a chance de reiteração do adolescente que cumpriu medida até seis meses é 560% maior do que a do adolescente que cumpriu medida acima de dois anos. Entre seis meses e um ano, a chance de reiteração é 340% maior do que acima de dois anos, ao passo que os adolescentes que cumpriram medida entre um ano e um ano e seis meses também têm chance maior de reiteração no patamar de 290%. Por fim, entre um ano e seis meses e dois anos de medida socioeducativa, a chance de reiteração é 87% maior do que a chance da medida socioeducativa acima de dois anos.
Participação em oficinas: a eventual participação ou não do adolescente em oficinas diversas durante o cumprimento da medida socioeducativa não tem efeito sobre a chance de reiteração. As oficinas referem-se a qualificações profissionalizantes, bem como a atividades artísticas e esportivas oferecidas aos adolescentes nas unidades de internação nas quais cumpriram as medidas socioeducativas privativas de liberdade.
Consumo de drogas: revela impacto importante na chance de reiteração. É notória a diferença do impacto do eventual consumo de drogas ilegais em relação ao consumo de drogas legais por parte do adolescente antes do cumprimento da medida socioeducativa. A chance de reiteração dos adolescentes que consumiam apenas drogas ilegais é 40% maior do que a chance de reiteração dos adolescentes que consumiam apenas drogas legais.
Como mencionado anteriormente, o Modelo 2 ( Quadro 4 ) substitui a variável consumo de drogas por quatro variáveis que remetem ao consumo de álcool, maconha, cocaína e crack . Com relação às demais variáveis incluídas no modelo – as mesmas do Modelo 1 –, essa alteração não afeta os resultados apresentados acima. O que ocorre apenas são pequenas alterações nas magnitudes das razões de chances dessas variáveis. No que se refere ao impacto do consumo de álcool, maconha, cocaína e crack sobre a chance de reiteração, constata-se que a droga de maior efeito sobre a chance de reiteração é a cocaína, 47% maior entre os que reportaram uso em relação aos que reportaram não terem utilizado. O consumo da maconha tem pequeno efeito na chance de reiteração. Os adolescentes que relataram consumo dessa droga apresentaram chance de reiteração 9% menor do que a dos adolescentes que não relataram seu consumo. No mesmo sentido, os que reportaram consumo de álcool apresentam chance de reiteração 35% inferior aos que relataram não consumir, controlando-se pelo uso – ou não – de maconha, cocaína e crack . É importante ter em mente que as categorias “consumo de álcool” e “consumo de maconha” não estão comparando aqueles que consumiam bebida alcoólica ou maconha com os que não consumiam nenhum tipo de droga legal ou ilegal. Todos os adolescentes do universo da pesquisa relataram o consumo de algum tipo de droga. Na verdade, o resultado referente ao consumo de bebida alcoólica reforça a constatação do Modelo 1, qual seja, a chance de reiteração dos adolescentes que consumiam apenas drogas legais é menor do que a chance de reiteração dos adolescentes que consumiam apenas drogas ilegais.
Modelo 2 – Análise logística da chance de reiteração (sim versus não) por variáveis selecionadas e consumo de álcool, consumo de maconha, consumo de cocaína e consumo de crack . Minas Gerais, 2013 a 2017
No Modelo 3 ( Quadro 5 ), restrito aos adolescentes que cometeram ato infracional no município de Belo Horizonte, três novas variáveis são adicionadas, a saber, enquadramento anterior a 2013, idade ao enquadramento anterior e tratamento toxicológico . Os adolescentes com enquadramento infracional anterior ao que motivou sua medida socioeducativa têm 27% mais chance de reiteração em relação aos que não possuem tal passagem anterior pela justiça juvenil, e, quanto menor a idade do adolescente quando dessa primeira passagem pela justiça juvenil, maior a chance de reiteração. Por fim, os adolescentes que relataram ter recebido tratamento toxicológico anterior a 2013 manifestam chance menor de reiteração em relação aos que não receberam tal tratamento, com 18% menos chance. Os efeitos das demais variáveis anteriores sobre a chance de reiteração são reforçados, sem alterações expressivas.
Modelo 3 – Análise logística da chance de reiteração (sim versus não) por variáveis selecionadas e consumo de drogas. Belo Horizonte, 2013 a 2017
Conclusão
O estudo que realizamos para Minas Gerais pode ser considerado pioneiro em termos da metodologia empregada e da abrangência dos fatores associados ao risco contemplados. A coorte de adolescentes acompanhada após cumprimento das medidas socioeducativas restritivas de liberdade, o período de follow up e o critério adotado para definir a reiteração não têm precedentes nos estudos nacionais sobre o assunto. E isso não é casual, pois acreditamos na necessidade da formulação de uma metodologia de estudo da reiteração de atos infracionais mais ajustada aos parâmetros internacionais.
Aspecto controverso é o critério utilizado para definir a reiteração, qual seja, novo registro de ato infracional ou crime por parte da polícia civil. Não se ignora que os registros policiais dizem muito sobre os vieses e modos de operação das polícias, conforme relevante literatura nacional tem evidenciado. A despeito dessa limitação, entende-se que o registro de novo ato infracional ou de novo crime pela polícia civil constitui parâmetro defensável para o estabelecimento da reiteração de atos infracionais, sem desconsiderar o critério propriamente jurídico.
A taxa de reiteração de atos infracionais no estado de Minas Gerais revelada na pesquisa, cerca de 30,1%, não está entre as mais elevadas em termos internacionais. Ao contrário. Entretanto, como afirmado no artigo, qualquer comparação entre países deve ser realizada com muita cautela. As diferenças nas taxas internacionais não podem ser compreendidas como sintomáticas de efetividades distintas dos aparatos nacionais ou regionais de justiça juvenil. Qualquer conclusão nessa perspectiva é temerária. Elas são mais reveladoras de diferenças nas definições metodológicas de reiteração.
No que diz respeito aos fatores associados ao risco de reiteração, a pesquisa obteve evidências empíricas que reforçam os achados internacionais, quais sejam: (a) vínculos familiares são relevantes, de modo que adolescentes com trajetória de rua anterior ao cumprimento da medida socioeducativa têm chances maiores de reiterar comparativamente àqueles que mantinham convivência com suas famílias de origem; (b) a trajetória infracional precoce do adolescente constitui fator dos mais impactantes na reiteração, de modo que a existência de registro anterior de ato infracional registrado pela justiça juvenil aumenta a chance da reiteração. E, para complementar, quanto menor a idade do adolescente quando do registro desse ato infracional, maior também é a chance de reiteração; (c) o consumo de drogas ilícitas pelo adolescente em período anterior ao cumprimento da medida socioeducativa aumenta sua chance de reiteração. Conforme estudos internacionais, há uma estreita relação entre uso/abuso de drogas ilícitas e persistência de trajetória infracional durante a adolescência. E esta pesquisa adiciona uma variável a essa relação, revelando que o consumo da cocaína potencializa a chance de reiteração comparativamente ao consumo de outras drogas ilícitas, como é o caso da maconha; (d) a variável raça não se mostrou das mais relevantes na chance de reiteração. Nos estudos internacionais, ela também não é considerada fator associado ao fenômeno.
A pesquisa obteve evidências empíricas não observadas nos estudos internacionais, ou mesmo controversas, e que podem ser concebidas como específicas da realidade brasileira, quais sejam:
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A idade do adolescente quando do término do cumprimento da medida socioeducativa impacta a chance da reiteração. Quanto maior a idade do adolescente assim que finaliza o cumprimento da medida socioeducativa, menor a chance de reiteração.
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O impacto do perfil infracional do adolescente suscita muitas dúvidas, especialmente o tipo de infração cometida, contra o patrimônio ou contra a pessoa, ou mesmo do grau de violência envolvida nessa infração. No estudo realizado, os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa por furto apresentaram chance maior de reiteração comparativamente aos demais tipos infracionais.
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A eventual participação do adolescente em oficinas pedagógicas e/ou profissionalizantes durante o cumprimento da medida socioeducativa não teve efeito sobre a chance de reiteração. Essa evidência não nos permite concluir que a qualidade das medidas socioeducativas é irrelevante no processo de reinserção social do adolescente infrator, apenas revela que a simples participação ou não dos adolescentes nas oficinas tem efeito nulo. Estudos posteriores poderão matizar melhor esse aspecto do fenômeno.
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Os efeitos das variáveis tipo de medida socioeducativa e tempo de cumprimento da medida socioeducativa são os mais expressivos. Entre todas as variáveis contempladas no estudo, essas foram as que mais incrementaram as chances de reiteração. Adolescentes que cumpriram medida por semiliberdade tendem a reiterar mais do que adolescentes que cumpriram medida de internação. Além disso, quanto menor o tempo da medida socioeducativa, maior a chance de reiteração. São evidências que apontam para o relativo caráter dissuasório da medida socioeducativa restritiva de liberdade.
Deve-se considerar, entretanto, que o estudo realizado não comparou o efeito das medidas de internação e semiliberdade em relação ao efeito das medidas em meio aberto. Nesse sentido, não se pode concluir pela maior ou menor efetividade do primeiro tipo de medida socioeducativa em relação ao segundo tipo. Além disso, essa evidência, se conjugada com a evidência destacada anteriormente de que a trajetória precoce do adolescente no cometimento de atos infracionais, tanto do ponto de vista da idade quanto do número de atos infracionais registrados, constitui fator de risco da reiteração, sinaliza para a pertinência da abordagem de Moffitt (1993)MOFFITT, T. E. Adolescence-limited and life-course-persistent antisocial behavior: a developmental taxonomy. Psychological Review , n. 100, p. 674-701, 1993. . Segundo ela, existem dois padrões distintos de trajetória infracional de adolescentes, com diferentes razões para o ingresso nessa trajetória, com diferentes frequências de cometimento de atos infracionais e com durações também diferentes no curso de vida.
O primeiro padrão de adolescentes infratores é denominado infratores persistentes no curso de vida ( life-course persistents ), e o segundo padrão é qualificado como limitado à adolescência ( adolescence-limited ). Tudo leva a crer que as medidas socioeducativas restritivas de liberdade favorecem a interrupção da trajetória infracional do segundo padrão de adolescentes e a escolaridade do adolescente infrator impacta a razão de chance de reiteração e em uma perspectiva que contraria o senso comum. A chance de reiteração dos adolescentes com escolaridade até o ensino fundamental é menor em relação aos que estavam no ensino médio. Ou seja, os mais escolarizados tendem a reiterar mais do que os menos escolarizados. Eis uma questão a merecer estudos posteriores.
No que diz respeito à variável renda familiar per capita , a pesquisa não evidenciou efeito sobre a chance de reiteração. Não se pode concluir que, quanto menor a renda familiar per capita do adolescente, maior a chance da reiteração, ou o contrário. Tal resultado pode ser explicado pelo perfil socioeconômico relativamente homogêneo do universo de adolescentes egressos do sistema socioeducativo. Em sua ampla maioria, são oriundos de famílias pobres ou muito pobres.
A região do estado onde o adolescente cometeu o ato infracional que motivou a respectiva medida socioeducativa é variável considerada nesta pesquisa, apesar das poucas referências internacionais nesse sentido. E ficou evidenciado que os adolescentes que cometeram atos infracionais em Belo Horizonte apresentaram chances maiores de reiteração comparativamente aos que cometeram atos nos demais municípios da região metropolitana ou do interior do estado. O mesmo ocorreu quando da comparação entre os demais municípios da RMBH e os municípios do interior. Isso sugere especificidades da dinâmica da inserção e permanência do adolescente na atividade infracional nos municípios do interior, geralmente menos urbanizados. Algo a ser explorado em estudos posteriores.
Importante limitação da pesquisa reside no fato de que não foi considerado o eventual impacto de programas de reinserção social do egresso do sistema socioeducativo na probabilidade de reiteração de atos infracionais por causa da indisponibilidade de dados a respeito. Merece menção recente metanálise empreendida por Bouchard e Wong (2018)BOUCHARD, J.; WONG, J. S. Examining the Effects of Intensive Supervision and Aftercare Programs for At-Risk Youth: A Systematic Review and Meta-Analysis. International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology, v. 62, n. 6, p. 1509-1534, 2018. , concluindo que os programas de reinserção social sustentados na supervisão e no monitoramento dos egressos tendem a diminuir a atividade criminal subsequente.
Outra limitação diz respeito à não abordagem do eventual impacto do sistema de justiça juvenil na dinâmica da reiteração. Há relevante literatura criminológica internacional e mesmo nacional que destaca o efeito não negligenciável do processo de rotulação institucional na afirmação de uma identidade infracional por parte do indivíduo. O conceito de sujeição criminal é exemplar nesse sentido, conforme apresentado por Michel Misse em sua obra (2006). A dificuldade de acesso a dados empíricos específicos inviabilizou a análise desse aspecto do fenômeno.
Além disso, as evidências obtidas em Minas Gerais não podem ser generalizadas para o país como um todo. Existem certamente diferenças não triviais na magnitude e nos fatores de risco da reiteração de atos infracionais entre os estados brasileiros, algo a ser comprovado em estudos posteriores.
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Este artigo foi derivado de relatório de pesquisa desenvolvido pelos autores, disponível em: http://portal.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20181210100418 . Acesso em: 22 nov. 2020.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) pelo suporte financeiro e apoio institucional à realização da pesquisa, em especial à Desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz.
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ANEXOS Anexo 1 – Análise de regressão logística binomial
Como visto, a técnica de regressão não linear apropriada, isto é, consistente e eficiente, para variáveis dependentes binominais, é a regressão logística, estimada por meio do procedimento de máxima verossimilhança ( ALLISON, 1999ALLISON, P. D. Logistic Regression Using the SAS System: Theory and Application. Cary, NC: SAS Institute Inc., 1999. ). Estatisticamente, essa técnica e esse procedimento de estimação requerem a transformação da variável dependente em logito. O logito é o logaritmo natural da chance de y = 1 ( y = 0 como categoria de referência), tal que:
Logo, equação da regressão logística binomial assume a forma:
em que y é a variável dependente e xn representa as n variáveis independentes incorporadas no modelo de regressão ( BOHRNSTEDT, 1994BOHRNSTEDT, G. W.; KNOKE, D. Statistics for Social Data Analysis . 3. ed. Itasca, Illinois: F.E. Peacock Publishers, 1994. ).
Na expressão acima, os coeficientes b expressam a variação no logito da chance de y = 1 devida à variação em uma dada variável independente, condicional à influência das demais variáveis incluídas no modelo, ou seja, controlando-se por elas. Estima-se, assim, o efeito líquido de cada uma das variáveis independentes sobre a variável dependente.
Interpretar esse coeficiente b é contraintuitivo, pois requer uma interpretação em termos de logito, o logaritmo da chance da variável dependente, isto é, uma abstração matemática. Por conseguinte, é necessário retornar a variável dependente para a dimensão da chance realizando a operação inversa ao logaritmo natural, isto é, a exponenciação com constante de Euler como base ( BOHRNSTEDT, 1994BOHRNSTEDT, G. W.; KNOKE, D. Statistics for Social Data Analysis . 3. ed. Itasca, Illinois: F.E. Peacock Publishers, 1994. ). Ao exponenciar o lado esquerdo da equação, é necessário exponenciar também o lado direito. Assim, a equação da regressão logística binomial exponenciada toma a seguinte forma:
Ocorre que o coeficiente b exponenciado é a razão de chance da variável x em questão, controlando-se pela influência das demais variáveis incluídas no modelo ( ALLISON, 1999ALLISON, P. D. Logistic Regression Using the SAS System: Theory and Application. Cary, NC: SAS Institute Inc., 1999. ). Mais precisamente, ebn é a razão entre a chance de y = 1 na categoria k da variável independente xn e a chance de y = 1 na categoria j dessa mesma variável, controlando-se pelo efeito das demais variáveis independentes incluídas no modelo de regressão.
Para finalizar, a utilização em boa parte da literatura internacional do termo “fatores de risco” ( “risk factors” ) indistintamente em referência às variáveis explicativas (independentes) enseja uma nota final sobre a diferença entre a associação mensurada pela razão de chance, isto é, entre duas chances condicionais, e a associação mensurada pela medida de risco relativo, a razão entre duas probabilidades, ou, ainda, a estimação do risco de ocorrência ( hazzard ) de um evento de interesse.
No caso do risco relativo, amplamente usado nos estudos epidemiológicos, trata-se da comparação entre grupo tratamento e grupo controle, submetidos ao mesmo ou aos mesmos fatores de risco ( THOMPSON, MYERS e KRIEBEL, 1998THOMPSON, M. L.; MYERS, J. E.; KRIEBEL, D. Prevalence odds ratio or prevalence ratio in the analysis of cross sectional data: what is to be done? Occupational and Environmental Medicine , v. 55, n. 4, p. 272-277, 1998. ). O risco de ocorrência de um dado evento, por sua vez, é estimado no âmbito dos modelos lineares generalizados em análises de sobrevivência, isto é, em análises que incorporam o tempo decorrido entre o início do acompanhamento de uma determinada coorte até a ocorrência do evento de interesse ou o fim do período de observação. Nesse caso, utiliza-se o modelo de regressão de Cox ou Poisson ( SCHMIDT e KOHLMANN, 2008SCHMIDT, C. O.; KOHLMANN, T. When to use the odds ratio or the relative risk?. International Journal of Public Health , v. 53, n. 3, p. 165-167, 2008. ). Nesse sentido, é importante frisar que a técnica de regressão utilizada nesta pesquisa não incorpora o tempo decorrido entre o início do período de observação e a ocorrência do evento ou o fim do período de observação na estimação dos parâmetros. A estimação dos coeficientes na regressão logística leva em conta a probabilidade de ocorrência do evento a partir dos casos em que o evento foi observado em relação ao total de casos, considerando as características e os atributos de cada caso introduzidos por meio das variáveis independentes incluídas no modelo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Dez 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
06 Ago 2019 -
Aceito
29 Out 2020