Resumo
Este artigo analisa criticamente a doutrina tributária no Brasil, iniciada na década de 1960, que rejeita qualquer inclusão de elementos e conceitos econômicos na interpretação do direito tributário. Essa corrente interpretativa, ainda predominante no país, sugere que regras de competência constitucional devem ser interpretadas à luz de categorias do direito privado, sem qualquer consideração do fenômeno econômico que o legislador constituinte pretendeu alcançar. A partir da teoria sistêmica luhmanniana, conforme a qual o fechamento operacional do sistema jurídico requer abertura cognitiva aos demais subsistemas sociais, o artigo sugere que essa corrente dogmática (aqui denominada privatista) apresenta dois importantes problemas. Em primeiro lugar, o privatismo tributário reforça uma exagerada tendência à interpretação literal do texto tributário. Em segundo lugar, ao repudiar elementos econômicos na interpretação do direito tributário, a dogmática jurídica deixa de cumprir um papel primordial no sistema jurídico, que é o de descrever o direito, e, com isso, estabilizar expectativas normativas.
Interpretação jurídica; corrente privatista; interpretação econômica do direito tributário; teoria dos sistemas; função social da dogmática jurídica
Abstract
In this paper, I point out that since the late 1960s, Brazilian tax law scholarship has increasingly rejected any attempt to integrate economic perspectives in the interpretation of tax legislation. The prevailing theory suggests that tax jurisdictions established in the Brazilian Constitution should be interpreted based on concepts from private law and should disregard any consideration of the economic context referred to by the constitutional legislator. Building on Luhmann’s systems theory, which suggests that operational closure of the legal system requires cognitive openness to other social subsystems, I argue that the predominant Brazilian tax theory (which I call private law approach) gives rise to two central problems. First, it reinforces an unseemly propensity toward literal interpretation. Second, by repudiating the economic context envisaged by the constitutional legislator, Brazilian tax scholarship fails to fulfill its primary role of describing the law and thereby stabilizing normative expectations.
Legal interpretation; private law approach; economic interpretation of tax law; systems theory; social function of legal doctrine
Introdução
A dogmática do direito tributário no Brasil observou, nos últimos tempos, o que se pode considerar uma “virada epistemológica”. Até a década de 1940, o direito tributário era geralmente considerado um capítulo da Ciência das Finanças, disciplina voltada à compreensão do fenômeno tributário sob óticas diversas, em que preponderavam métodos oriundos das ciências econômica e política. A tributação era percebida, mesmo entre juristas, como objeto de análise econômica, como um fenômeno distante da ciência jurídica. O resultado disso foi o que relata Paulo de Barros Carvalho (2009, p. 156): “falência, enquanto ‘conhecimento multidisciplinar’, da nossa velha ‘Ciência das Finanças’, que ousou ter a pretensão de relatar a atividade financeira do Estado sob todos os aspectos possíveis”.
Quando o direito tributário, a partir da década de 1940, passa a ser tratado como um verdadeiro ramo do direito, a influência da consideração dos elementos econômicos na interpretação jurídica é ainda acentuada. A doutrina da interpretação econômica do direito tributário é usualmente atribuída a Enno Becker, elaborador do anteprojeto do Código Tributário Alemão (Reichsabgabenordnung) de 1919 (BECKER, 2004, p. 131-137). O § 4o do Código Alemão estabelecia que “na interpretação das leis fiscais deve-se ter em conta a sua finalidade, o seu significado econômico e a evolução das circunstâncias”. No Brasil, essa doutrina foi acolhida, entre outros, por Amilcar de Araújo Falcão (1955) e Ruy Barbosa Nogueira (1974).1
A partir de meados da década de 1960, toma forma um movimento que se pretende estritamente jurídico, voltado a eliminar da interpretação do direito tributário qualquer consideração de natureza econômica. Esse movimento de repúdio passou a denominar a doutrina então vigente de “interpretação do direito tributário segundo a realidade econômica do fenômeno social” ou, mais comumente, “interpretação econômica do direito tributário” (BECKER, 2000, p. 136-137). O movimento, bastante significativo no Brasil, pode ser em parte explicado pela particularidade do sistema constitucional tributário brasileiro em relação a outros sistemas tributários no mundo. A Constituição brasileira é, em matéria tributária, extremamente analítica e disciplina individualmente e, não raro, exaustivamente cada tributo brasileiro.2
O repúdio à consideração de aspectos econômicos na análise jurídica da tributação se consolidou com a evolução doutrinária da dogmática tributária, notavelmente em São Paulo, por meio dos estudos realizados por Alfredo Augusto Becker (2000), Geraldo Ataliba (2003) e Paulo de Barros Carvalho (2007 e 2008). O repúdio à consideração de elementos econômicos se tornou central à então nova linha de pensamento doutrinário, que chegou a associar a corrente doutrinária então prevalente ao nazismo e ao fascismo (BECKER, 2004; BRITO, 2001).3
Esse movimento de repúdio teve relevância nas circunstâncias históricas em que foi desenvolvido, notadamente em tempos de regime militar. Cabe indagar porém se, em um Estado democrático de direito mais consolidado como o atual, o repúdio absoluto à consideração de elementos econômicos na interpretação do direito tributário se mantém adequado. Em outras palavras, deve a doutrina jurídica considerar elementos econômicos na interpretação do direito tributário? Alguns autores mais recentes têm se afastado da linha de interpretação “estritamente jurídica” e reconhecido a relevância de aspectos econômicos na análise jurídico-tributária.4 No entanto, o repúdio a elementos econômicos na interpretação tributária é ainda significativamente prevalente no direito brasileiro.
Este artigo pretende analisar criticamente a doutrina de repúdio a elementos econômicos sob a perspectiva da teoria dos sistemas, em particular a teoria luhmanniana. Tornou-se comum entre os defensores de uma interpretação “estritamente jurídica” – a partir daqui designada de interpretação privatista, por interpretar categorias tributárias estritamente à luz do direito privado – utilizar-se da teoria autopoiética luhmanniana para afastar considerações de ordem econômica na interpretação do direito tributário.5 Procura-se esclarecer neste artigo que o emprego da teoria luhmanniana para tal finalidade é equivocado, notadamente porque o fechamento operativo do direito não importa em seu fechamento cognitivo ao subsistema econômico. Pelo contrário, demonstramos que a interpretação privatista conduz a um exacerbado fechamento cognitivo que cria um paradoxo advertido por Luhmann: uma auto-observação do direito que se recusa a observar seu ambiente (neste caso, o subsistema econômico) acaba por não observar o próprio sistema jurídico.
A seção 1 introduz a distinção entre os modais operativo e cognitivo, esclarecendo por que o fechamento cognitivo na teoria luhmanniana exige a abertura cognitiva como condição autopoiética. A seção 2 trata da importância da abertura cognitiva no direito, em particular no que se refere à interpretação jurídica. A seção 3 ingressa propriamente na análise jurídico-tributária e sugere que a rejeição absoluta a elementos econômicos no direito tributário acaba por sujeitar a análise do direito constitucional a categorias do direito privado infraconstitucional e, com isso, torna-se uma interpretação privatista, mais do que estritamente jurídica. A seção final conclui apontando para a necessidade de se considerar elementos econômicos admitidos pela Constituição a fim de assegurar a função social da dogmática jurídica em matéria tributária.
1. O fechamento operativo do direito e sua abertura cognitiva
A sociedade moderna é caracterizada pela complexidade dos eventos físicos, psíquicos e sociais, que podem ser compreendidos e explicados de formas variadas.6 Poucas teorias dão conta de refletir adequadamente as relações existentes em uma sociedade complexa quanto o faz a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.
A evolução da sociedade, que culminou na atual complexidade das interações sociais, implicou uma diferenciação funcional que fosse capaz de lidar com a diversidade de possibilidades decorrentes dessas interações. Se na Idade Média o direito, a política e a religião eram assuntos altamente interdependentes, o advento da modernidade os distanciou. Direito, política, economia, religião passaram a formar subsistemas sociais funcionalmente autônomos. Cada subsistema passa a adotar estruturas seletoras próprias para lidar com as complexas relações sociais, reduzindo o campo de possibilidades.
A diferenciação funcional dos subsistemas da sociedade implicou uma redução de complexidade, permitindo, em contrapartida, o desenvolvimento de mais complexidades internas. O direito, ao se diferenciar funcionalmente da religião e da política, deixa de lidar de modo direto com certas questões (afetas a esses outros subsistemas). Com sua função específica, o direito passa a ter operações internas autônomas. Cuida-se de uma seleção (redução de complexidade) que toma para o sistema jurídico apenas parte das comunicações da sociedade. A diferenciação funcional do direito lhe permite, entretanto, construir comunicações mais complexas, inimagináveis em uma sociedade funcionalmente indiferenciada. Esse é o fenômeno que Luhmann denomina fechamento operativo.
Os subsistemas político, econômico, religioso – dentre outros subsistemas sociais – compõem, juntamente com o subsistema jurídico, a sociedade. A autonomia funcional de cada um deles os exterioriza reciprocamente. A política e a economia constituem ambiente para o subsistema jurídico, assim como o direito e a política compõem o ambiente do sistema religioso. Sistema e ambiente são conceitos mutuamente excludentes e se definem precisamente pela diferença recíproca.
O fechamento operativo do direito não significa, porém, completo isolamento dos demais subsistemas. Sequer significa fechamento causal. Como explica Luhmann (2004a, p. 20, tradução nossa), “a teoria dos sistemas tem, desde sempre, admitido que a abertura (dependência do sistema ao seu ambiente) quanto à matéria ou energia não conflita com a tese do fechamento semântico ou informacional. Portanto, nós distinguimos entre fechamento causal (isolamento) e fechamento operativo”.
Um sistema, ao constituir sua própria unidade, constitui reciprocamente seu ambiente, já que um não existe sem o outro. Falar em fechamento operativo do direito não implica, portanto, negar a existência dos demais subsistemas. Contudo, as relações entre o direito e seu ambiente somente podem ser estabelecidas por meio das atividades internas do próprio sistema jurídico, mediante a execução de suas próprias operações. Em palavras simples, diria Luhmann (2004a, p. 105, tradução nossa): “abertura somente é possível mediante fechamento”.
Por outro lado, acrescentamos: fechamento somente é possível mediante abertura. Com efeito, o fechamento absoluto do sistema jurídico ao seu ambiente impossibilitaria sua necessária adaptação. Um sistema jurídico incapaz de oferecer respostas que, em certa medida, se adaptem ao seu ambiente estaria fadado à destruição.7 A forma mediante a qual o direito se abre ao seu ambiente é por meio da cognição (abertura cognitiva). A abertura cognitiva ocorre no nível dos programas condicionais (constituição, leis, contratos). As “perturbações” promovidas pelos demais subsistemas são interiorizadas no sistema jurídico mediante operações próprias, seja ao avaliar fatos que se sujeitam à incidência jurídica (LUHMANN, 2004a, p. 20), seja ao incorporar conceitos e razões externas na interpretação jurídica (LUHMANN, 2004a, p. 115-116).
Essas reflexões preliminares são importantes para a análise que se fará a seguir. A compreensão desse duplo paradoxo – abertura mediante fechamento e fechamento mediante abertura – permitirá avaliar se a função social da dogmática jurídico-tributária nacional vem sendo exercida adequadamente.
2. A interpretação jurídica e a abertura cognitiva
A crítica ao formalismo jurídico deixou de ser uma novidade há muito tempo, comportando tantos significados quantas são as críticas orientadas pelo termo (RODRIGUEZ, 2010, p. 157). A despeito da divergência semântica, verifica-se que, embora caiba à dogmática jurídica adotar uma perspectiva que se limite ao direito vigente, há “quem faça do estudo do direito um conhecimento demasiado restritivo, legalista, cego para a realidade, formalmente infenso à própria existência do fenômeno jurídico como um fenômeno social”, traduzindo a dogmática jurídica por “uma espécie de prisão para o espírito” (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 48).
A questão é, em alguma medida, tangenciada pelo artigo de Niklas Luhmann (2004b) denominado “A restituição do décimo segundo camelo: do sentido de uma análise sociológica do direito”. Luhmann promove sua análise a partir de uma curiosa parábola, reconstruída à sua maneira. Um rico beduíno, em seu testamento, deixou metade dos camelos que possuía para seu filho mais velho, um quarto para seu segundo filho e um sexto para o filho mais novo. Tendo, contudo, ao final de sua vida, deixado 11 camelos como herança, restou a dúvida de como os repartir adequadamente, já que uma aplicação pura dos critérios de divisão contidas no testamento resultaria em números não inteiros de camelos.
Para solucionar o conflito, o juiz cede em empréstimo um camelo de sua propriedade, tornando possível a aplicação das regras testamentárias: dos 12 camelos (os 11 originais acrescidos do camelo emprestado), seis ficariam com o filho mais velho, três com o segundo filho e dois com o filho mais novo, restituindo-se em seguida o último camelo ao juiz.
A partir dessa situação emblemática, Luhmann propõe diversas indagações, tais quais: o décimo segundo camelo seria necessário? Se sim, em quais casos? Os juízes devem ter camelos para emprestar?
Outras questões aventadas por Luhmann são mais densas do que os limites do presente artigo permitem adentrar. Ao longo do texto de Luhmann, a figura do camelo simbólico é tomada como representação de conteúdos diversos, restando, ainda, a indagação: o que, de fato, representa o décimo segundo camelo para o direito?8 É certo que o décimo segundo camelo da parábola pode representar e suscitar diversas questões pertinentes ao direito. Todavia, uma questão que se pode extrair da parábola – e é a que se mostra relevante para o nosso propósito – é: qual a importância dos elementos não jurídicos na interpretação jurídica? É possível aplicar as normas jurídicas de modo puramente formal, sem considerar os elementos econômicos, políticos, sociais, entre outros, a elas subjacentes?
Nesse passo, retomamos a compreensão de que o direito, como sistema funcionalmente diferenciado, embora seja operativamente fechado, é cognitivamente aberto. A autonomia funcional do direito não significa, portanto, que o sistema jurídico somente promova autorreferência. O que assegura a autonomia do direito é que, ao se referir aos demais subsistemas sociais (heterorreferência),9 ele o faz por meio de seus mecanismos internos, isto é, por meio de suas normas jurídicas (LUHMANN, 2004a, p. 106).
Assim, o fechamento normativo do direito não implica ignorância absoluta de elementos (fatos) de outros subsistemas sociais. Ele toma conhecimento dos fatos externos (do ambiente) mediante produção interna de informação. Como esclarece Luhmann (2004a, p. 112, tradução nossa), “o sistema jurídico pode compartilhar conhecimento, mas não normas, com o ambiente. Contudo, mesmo esse compartilhamento ocasionado inicialmente de uma perturbação proveniente de seu ambiente é meramente uma operação interna e não uma operação de ‘transferência’ de informação”.10
No que concerne à interpretação jurídica, o sistema jurídico recorre também a razões externas para a construção das normas jurídicas, tais como as intenções do legislador. Tal referência, contudo, é necessariamente filtrada pelo próprio sistema jurídico, que incorpora apenas parte desses elementos externos, sempre mediante operações internas, isto é, operações próprias do sistema jurídico.11 O fechamento operativo do direito é assegurado por seu código (binário), mas as normas do sistema jurídico (no nível de programação) podem determinar em que medida e sob quais fundamentos o sistema deve processar cognições,12 o que pode conduzir, em sociedades que se tornam cada vez mais complexas, a situações de elevada abertura em relação ao ambiente, mas nunca à dissolução da unidade do direito, enquanto estiver presente no sistema um único código binário (LUHMANN, 2004a, p. 118-119).
Avaliando os limites da abertura cognitiva na interpretação jurídica, Celso Campilongo (2011, p. 187) pontua que o fechamento operativo do sistema não implica isolamento da interpretação jurídica de elementos políticos ou econômicos. A interpretação jurídica constitui modo de observação da sociedade, conferindo e extraindo sentido da sociedade. A interpretação jurídica, pois, não ocorre de forma autossuficiente. O fechamento operativo do direito não implica isolamento ou abstração do intérprete apenas ao texto da lei ou precedente judicial. Em suas palavras: “O que se interpreta é a sociedade, com as ferramentas e com o sentido do direito” (CAMPILONGO, 2011, p. 192). Cabe à interpretação jurídica, orientando-se pela unidade do próprio sistema jurídico, ocupar-se das condições sociais da interpretação do direito. A interpretação jurídica não se resume à autodescrição do direito. Ela responde pela função de, ao descrever o direito, descrever a própria sociedade. A interpretação jurídica é também um “olhar do direito sobre a sociedade e da sociedade sobre o direito” (CAMPILONGO, 2011, p. 185).
3. A interpretação do direito tributário e a necessidade de abertura cognitiva a elementos econômicos
Retomando o exposto na introdução, a partir de meados da década de 1960, houve um proeminente movimento de repúdio, no Brasil, a toda interpretação do direito tributário que considerasse elementos de natureza econômica. Para Alfredo Augusto Becker (2000, p. 136-138), um dos mais acentuados críticos da “interpretação do direito tributário segundo a realidade econômica do fenômeno social”, tal corrente interpretativa levava à destruição da certeza jurídica e à praticabilidade do direito tributário e à inversão da fenomenologia jurídica.
É certo que, em um contexto social de notável autoritarismo estatal, a abertura a elementos econômicos e políticos na interpretação jurídica pode ocasionar insegurança jurídica. A possibilidade de se interpretar as normas jurídicas tributárias com base nesses critérios, sob o pretexto de atender a interesses estatais (políticos e econômicos), na vigência de um Estado que desrespeita direitos individuais mínimos (como os definidos pelo rótulo de direitos fundamentais de primeira geração), tende a ser uma poderosa ferramenta para o arbítrio e o confisco. Com efeito, o risco de sobreposição do direito pela economia ou pela política poderia mesmo eliminar a autonomia funcional do sistema jurídico. Nesse sentido, Celso Campilongo (1999, p. 92) esclarece que “reduzir o direito à economia ou à política é sucumbir a formas difusas de autoritarismo”.13
Porém, não podemos, em contrapartida, ignorar os avanços democráticos das últimas décadas. No cenário contemporâneo, o fechamento cognitivo extremado da auto-observação do direito (dogmática jurídica) deixa de se justificar e, mais do que isso, impossibilita o direito de exercer sua função social de estabilização de expectativas normativas.14
Como pretendemos demonstrar a seguir, o exacerbado fechamento cognitivo da dogmática jurídico-tributário tem suscitado dois graves problemas: o primeiro está em interpretar as figuras e categorias legislativas sob uma perspectiva exageradamente literal, impossibilitando uma compreensão adequada de institutos do direito tributário; o segundo decorre do primeiro e está na lacuna que se criou na dogmática nacional quanto à interpretação das leis tributárias, implicando, em alguns casos, a absoluta ausência de auto-observação do sistema jurídico em matéria tributária.
3.1. A interpretação privatista e o problema do fechamento cognitivo
O fechamento cognitivo excessivo importou em interpretar o direito tributário exclusivamente à luz das categorias do direito privado (BECKER, 2000, p. 136-137). Mais do que isso, interpretar passou a significar praticamente uma leitura lógico-gramatical do texto normativo.
Um exemplo que bem representa essa corrente doutrinária está na interpretação dos limites da incidência do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Cuida-se de imposto que, em oposição a seu antecessor (Imposto sobre Vendas e Consignações [IVC], que era cumulativo) e à semelhança do TVA francês (Taxe sur la Valeur Ajoutée, de incidência não cumulativa), deve incidir nas diversas etapas de uma cadeia mercantil, desde a produção até o consumo de uma mercadoria, evitando-se a tributação em cascata (isto é, a sobreposição de incidências sobre uma mesma mercadoria).
É imposto, como se vê, de característica marcadamente econômica. Conceitos como o de “não cumulatividade” (como oposição à tributação em cascata) e de “operação relativa à circulação de mercadorias” (no âmbito de uma cadeia mercantil) só são compreensíveis se se observa o fenômeno em sua existência econômica. Contudo, ao interpretar os limites constitucionais à instituição do ICMS (à época designado ainda ICM), Geraldo Ataliba – crítico ferrenho da consideração de elementos econômicos na interpretação jurídica –, em artigo conjunto com Cléber Giardino (1983, p. 102), defendeu que o método pelo qual o jurista deveria interpretar a norma constitucional definidora desse imposto é o da decomposição articulada dos enunciados normativos:
[…] importa, em primeiro lugar, decompor articuladamente esse enunciado – de modo a apreender o sentido jurídico imanente a cada palavra, ou expressão utilizada – para, só depois, empreender a interpretação sistemática dos seus respectivos conteúdos. (ATALIBA e GIARDINO, 1983, p. 102)
A partir disso, em lugar de procurar compreender o que o constituinte pretendeu significar por “operação relativa à circulação de mercadorias”, esses autores passam a analisar, isoladamente (ou, em suas palavras, “articuladamente”), cada um dos termos que compõem a sigla do imposto – ICMS –, cada qual à luz do direito civil. Procuram, portanto, compreender inicialmente o que significa “operação” à luz do direito civil, concluindo que se trata de “negócio jurídico” (ATALIBA e GIARDINO, 1983, p. 104-109). Em seguida, observam que, conforme o direito civil, o termo “circulação” somente poderia significar “transferência de domínio” (ATALIBA e GIARDINO, 1983, p. 109-114). Por fim, agregam esses significados, mediante um procedimento matemático de adição, e concluem que o ICMS deve incidir sobre “negócios jurídicos que importem transferência de domínio de mercadorias”. A esse procedimento de adição denominam “interação sistemática”:
Nessa tarefa cumpre ter presente que a chamada exegese literal não é ainda uma verdadeira interpretação; constitui simples pressuposto de interpretação, que deve necessariamente preceder qualquer trabalho hermenêutico, como ensina Paulo de Barros Carvalho.
Da interação sistemática de todos estes termos – alguns substantivos, outros adjetivos, outros circunstanciais ou restritivos – resultará, finalmente, o aspecto material da hipótese de incidência do ICM, como engendrado pela Constituição. (ATALIBA e GIARDINO, 1983, p. 102, grifos nossos)
Com isso, Ataliba e Giardino deixam de procurar compreender o desígnio do legislador constituinte ao usar a expressão “operações relativas à circulação de mercadorias”, bem como as regras estabelecidas em outros dispositivos constitucionais que cuidam da incidência do ICMS. Em vez disso, eles definem a natureza do imposto a partir da análise, em um primeiro momento, desarticulada dos termos da sigla “ICMS” e, em um segundo momento, mediante a recomposição frásica da sigla.
Com o devido respeito a esses autores, duas das mais importantes figuras da literatura jurídico-tributário nacional, não se pode seriamente considerar esse procedimento uma interpretação jurídica, e menos ainda uma interpretação jurídico-constitucional. Como um mero exercício mental, poderíamos tentar vislumbrar como esse método de “decomposição articulada dos enunciados normativos” se aplicaria na interpretação de um dispositivo constitucional relacionado ao direito econômico, a exemplo do art. 172 da Constituição de 1988: “A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros”.
Seria necessário primeiro determinar, de acordo com o direito privado, o que significa “interesse”, “investimento”, “capital”, “incentivo”, “reinvestimento”, “remessa” e “lucro”, convertendo-os em “interesse jurídico”, “capital jurídico”, “incentivo jurídico”, “reinvestimento jurídico”, “remessa jurídica” e “lucro jurídico” para somente então os reintegrar e compreender essa disposição constitucional? Seria assim que determinaríamos, como defende a corrente privatista, o sentido jurídico dessa disposição normativa, “como engendrado pela Constituição”? O resultado seria certamente uma leitura pouco plausível do texto constitucional, se não ininteligível.15
Problema semelhante se dá com o imposto de renda. A Constituição determina em seu art. 153, III, que compete à União instituir imposto sobre a “renda e proventos de qualquer natureza”. “Renda” e “proventos” são vocábulos empregados pelo constituinte a partir de categorias de origem técnica extrajurídica (contábil/econômica). Como interpretar a competência federal para a instituição do imposto de renda? Deveria o intérprete resgatar no direito privado o significado “renda jurídica” e “proventos jurídicos” para então passar a compreender a materialidade do imposto? Certamente não. Atender ao desígnio constitucional implica identificar a referência não jurídica utilizada pelo constituinte e incorporar os conceitos contábil e comercial de renda e proventos na interpretação do direito tributário. Isso não significa que a interpretação contábil prevalecerá sobre a interpretação jurídica, mas simplesmente que a interpretação jurídica não pode se furtar de considerar categorias contábeis na definição desses vocábulos, já que são essas as acepções referidas pelo legislador constituinte.
Um clássico exemplo de distorção decorrente da interpretação privatista está na questão da incidência do Imposto sobre Serviços (ISS) sobre a atividade de locação. Nos diversos sistemas tributários ao redor do mundo, a tributação sobre o consumo, seja de bens ou de serviços, é realizada por meio de um único imposto, em alguns países denominado “imposto sobre vendas” (como é o caso dos Estados Unidos, de Honduras e do Paquistão), em outros denominado “imposto sobre bens e serviços” (como é o caso da Austrália, do Canadá e da República Dominicana), em outros denominado “imposto sobre valor adicionado” (como é o caso da China, dos países da União Europeia e muitos dos países latino-americanos) e em outros denominado “imposto sobre o consumo” (como é o caso do Japão e de São Tomé e Príncipe). A despeito das diferentes características do imposto sobre consumo nesses diversos sistemas tributários, todos têm em comum tributar de modo amplo o consumo de bens e serviços.
No Brasil, por razões políticas, decidiu-se cindir a tributação do consumo em dois impostos: aos Estados coube tributar o consumo de bens e aos Municípios coube tributar o consumo de serviços. E, assim, após ter estabelecido no art. 155, III, a competência estadual para instituir o ICMS, a Constituição dispõe, em seu art. 156, III, que competem aos Municípios instituir imposto sobre “serviços de qualquer natureza”, tendo a expressão “qualquer natureza” o evidente propósito de abranger serviços de modo amplo, qualquer que seja sua natureza. Contudo, a adoção da corrente privatista no direito tributário brasileiro implicou considerar que “serviços” devem ser compreendidos à luz do direito civil. Como serviços são “prestados”, a natureza jurídica da “prestação de serviços” consiste em uma obrigação de fazer, em oposição a uma obrigação de dar.
A consequência dessa criativa construção interpretativa — hoje tão solidificada na dogmática tributária brasileira que é de conhecimento comum mesmo dos mais iniciantes na área de direito tributário — é de que o imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS) não incide sobre locação ou cessão de bens, pois estas são atividades que envolvem obrigação de dar, e não obrigação de fazer. Não consistindo em prestação “jurídica” de serviços, a locação e a cessão de bens não se sujeitam à incidência do ISS. Porém, da mesma forma, não se sujeitam à incidência do ICMS, pois não se trata propriamente de circulação de mercadorias. Com isso, dada a prevalência dessa interpretação privatista no Judiciário brasileiro, o Brasil tem o único sistema tributário no mundo com um imposto sobre o consumo que não alcança a locação ou cessão de bens.
O curioso caso da locação de bens demonstra a dificuldade imposta ao legislador constitucional pela corrente privatista. Qualquer designação utilizada pelo constituinte fica sujeita a uma interpretação redutiva a categorias do direito privado que impossibilita a tributação do consumo de bens e serviços de modo amplo, como ocorre em outros sistemas tributários. Veja-se que mesmo a adoção pelo legislador constituinte da expressão ampla “imposto sobre o consumo” poderia ser interpretada à luz do direito privado para afastar seu alcance à locação de bens. Não seria impensável desenvolver-se na dogmática privatista a seguinte sequência lógica: 1o – um imposto sobre o consumo deve incidir sobre a relação jurídica de consumo; 2o – as relações de consumo são reguladas no âmbito do direito privado pelo Código de Defesa do Consumidor; o Código de Defesa do Consumidor não se aplica ao contrato de locação, conforme entendimento consolidado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ);16 logo, o conceito de locação está excluído do conceito de consumo, e assim não cabe a incidência do imposto sobre consumo nas atividades relativas a locação de bens. Essa interpretação hipotética que acabamos de sugerir não destoa da leitura privatista hoje prevalente na dogmática tributária brasileira. Mais do que isso, adotada a concepção subjacente à corrente privatista, a interpretação que sugerimos parece até mais plausível e convincente do que muitas das hoje existentes em relação a outros tributos. Esse exercício hipotético ilustra o desafio enfrentado pelo legislador constituinte na tarefa de desenhar competências tributárias de modo a evitar o reducionismo privatista, que acaba por limitar o direito tributário (e o direito constitucional) a categorias do direito civil.
A concepção de interpretação jurídica que se vê subjacente à corrente privatista é, em muitos aspectos, semelhante à antiga Escola da Jurisprudência dos Conceitos, que concebia o sistema jurídico como unidade lógica e autônoma e endossava o método formalista, conforme o qual o direito seria passível de ser conhecido e interpretado a partir da investigação das normas, sem consideração de seu contexto fático e social. A jurisprudência dos conceitos serviu a seus representantes para ver a lei como uma unidade fecunda por si mesma e alheia às situações da vida (KAUFMANN, 2002, p. 167-168). A escola privatista de direito tributário não parece muito distante de uma versão contemporânea da antiga Escola da Jurisprudência dos Conceitos.
A compreensão de institutos jurídicos que incidam sobre fatos do subsistema econômico exige do sistema jurídico uma mínima abertura cognitiva a esse subsistema. Não se pode compreender a tributação sem vislumbrar a existência de outras perspectivas provenientes de outros subsistemas sociais. Veja-se que, conforme destacamos anteriormente, a observação externa do direito somente pode ser promovida por operações internas. Com efeito, é a Constituição (em nível de programa) que estabelece a abertura ao subsistema econômico ao considerar, na tributação, características eminentemente extrajurídicas (econômicas ou contábeis), como a não cumulatividade (que implica evitar a incidência em cascata de tributos plurifásicos), a circulação de mercadorias, a renda e o serviço.
Não se trata de fazer uma interpretação econômica do direito tributário, mas uma interpretação jurídica que não ignore elementos econômicos inerentes ao fenômeno da tributação e aos fatos sociais por ela alcançados.17
3.2. A abertura interpretativa a elementos econômicos não se confunde com a adoção de métodos da ciência econômica
Adeptos da escola privatista comumente incorrem no equívoco de confundir a abertura da interpretação jurídica a elementos econômicos com a direta aplicação de métodos da ciência econômica ao direito. Convém, pois, tecer alguns breves comentários sobre a distinção entre esses dois aspectos.
Discussão extensa e relevante no âmbito da metodologia jurídica diz respeito à autonomia dos métodos científicos utilizados na pesquisa jurídica.18 Há décadas se discute se o direito possui metodologia científica própria ou se se utiliza de métodos também aplicáveis a outros campos científicos. Afinal, quando se trata de metodologia científica, fala-se em métodos empíricos, quantitativos, qualitativos, analíticos, conceituais, entre outros, desvinculados de um específico domínio científico (SIEMS e SÍTHIGH, 2012). Não se fala propriamente em método econômico, histórico ou físico. Os diversos segmentos científicos se utilizam de métodos em geral aplicáveis aos demais. Não temos, por exemplo, pesquisa qualitativa econômica, zoológica ou astronômica, mas sim pesquisa qualitativa aplicada à economia, aplicada à zoologia e aplicada à astronomia. Da mesma forma, métodos estatísticos são igualmente utilizados em sociologia política ou em biologia molecular, sem distinção metodológica. O direito, contudo, reclama para si um método exclusivamente jurídico – o da hermenêutica jurídica (WESTERMAN, 2013; HAGE, 2013; SMITS, 2018).
A especificidade do método jurídico em relação às demais disciplinas do conhecimento se deve em parte a seu desenvolvimento histórico (SCORDATO, 2008). A hermenêutica jurídica durante séculos teve prestígio superior aos métodos que hoje reputamos científicos. Na Idade Média, a hermenêutica era tomada como método de referência para se outorgar o status de ciência a uma área do saber e o direito era então tido como a ciência por excelência (VAN HOECKE, 2013). Apenas a partir do século XVII, a hermenêutica jurídica passou a dar lugar à pesquisa empírica como método científico. Com o desenvolvimento do positivismo no século XIX, a física se torna o novo modelo de referência científica no mundo ocidental e o conceito de ciência passa a exigir uma combinação de dados empíricos, testes de hipóteses e teorias com validade universal (VAN HOECKE, 2013). O direito, contudo, manteve-se até recentemente afastado dos desenvolvimentos metodológicos observados em outras áreas de pesquisa científica.
Entre outras questões relevantes, um dos pontos centrais discutidos no âmbito da metodologia de pesquisa jurídica está na aceitação ou não do uso no direito desses métodos universalmente aceitos em outras áreas do conhecimento (BRADSHAW, 1997; SUCHMAN e MERTZ, 2010; DUBBER, 2015). Em outras palavras, é o direito uma área científica assim distinta das demais a não comportar o uso de metodologias externas ao direito? Pode-se considerar a hermenêutica jurídica um método científico próprio ao direito? A pesquisa jurídica assim desenvolvida é afinal ciência? A essas questões podemos designar o problema da cientificidade do direito.
Contudo, a questão da inclusão ou não de elementos ou conceitos econômicos na interpretação jurídica não guarda relação com o problema da cientificidade do direito. Interpretar normas jurídicas tomando em consideração elementos externos ao direito é ainda hermenêutica jurídica, e não se confunde com a adoção de métodos externos ao direito. Ainda que se ignorem os desenvolvimentos científicos realizados em outras áreas do saber e se entenda que a pesquisa jurídica comporta exclusivamente a hermenêutica jurídica, cabe solucionar uma questão primordial: quais elementos deve o intérprete considerar na hermenêutica jurídica? Deve o intérprete, na tarefa de interpretar o direito, se limitar em seu campo gnosiológico às normas jurídicas postas ou pode (deve) olhar também para fatos, elementos e conceitos externos ao direito?
Essa é a principal diferença entre interpretar o direito juridicamente considerando elementos econômicos relevantes ao direito e interpretar o direito economicamente. A expressão “interpretação econômica do direito” já conduz a essa última perspectiva, como se o intérprete do direito que leva em conta elementos, categorias ou conceitos econômicos está a deixar o ofício de intérprete do direito para se transmutar em economista.19 O que se está a discutir não é o uso de uma interpretação econômica do direito, mas sim o de uma interpretação jurídica aberta a conceitos a ele externos, entre os quais os de natureza econômica.
Ao regular o mundo social e econômico, o legislador se empresta naturalmente de uma amálgama de termos jurídicos e não jurídicos. Não há como normatizar o mundo social sem se referir ao próprio universo fático que se está a regular. Quando legisla, por exemplo, sobre o meio ambiente, o legislador irá se referir a conceitos e termos técnicos próprios à área ambiental. Da mesma forma, o legislador necessariamente se empresta de linguagem e conceitos externos a ele quando regula telecomunicações, mineração, vigilância sanitária, petróleo, aviação civil. Não se há de esperar que vá o legislador encontrar na legislação preexistente o léxico e conjunto de definições necessários para se referir a fenômenos complexos inerentes às específicas áreas objeto de regulação. E quanto mais geral o nível de normatização, menos técnica a especificação semiológica. Um diploma técnico como uma portaria ou resolução tenderá a definir (e, com isso, juridicizar) com precisão um maior conjunto de termos e definições do que um diploma geral e político como a Constituição.
Feitas essas considerações, não é de se esperar que o legislador constituinte tenha procurado se limitar ao vernáculo jurídico previamente existente ao empregar vocábulos como “livros” e “jornais” (art. 150, VI, d), “pleno emprego” (art. 170, VIII), “hidrocarbonetos fluidos” (art. 177, I), “bem-estar” (art. 182, caput) e “desenvolvimento equilibrado do País” (art. 192). O constituinte procura utilizar termos que tornará amplamente compreensível sua intenção reguladora, outorgando ao legislador infraconstitucional, a ele lógica e cronologicamente posterior, a especificação semântica dos termos empregados na Constituição. Ao constituinte se faz necessária a referência a termos não jurídicos (de origem popular ou técnico-científica) em virtude da ausência de termos próprios no vernáculo jurídico preexistente que lhe permita expressar o desígnio constitucional. A vagueza semântica é inerente (e inevitável) à tarefa de normatização generalizadora exercida pelo constituinte. Ao estabelecer competências para instituir impostos sobre a “renda”, a “importação”, a “propriedade”, os “serviços de qualquer natureza”, estava o legislador constituinte de 1988 a considerar uma série de razões e finalidades de ordem política, econômica e social que não podiam ser expressas por meio do vernáculo jurídico preexistente. À exceção da “propriedade”, os demais impostos incidem sobre fatos definidos pelo Constituinte a partir de termos não exclusivos ao direito. Para se compreender o que é “renda”, “serviços de qualquer natureza” ou “circulação”, não cabe ao legislador infraconstitucional ou ao intérprete jurídico limitar sua investigação a termos previamente existentes na legislação privada. A eles cabe verificar qual a intenção do constituinte ao empregar esses vocábulos e, a partir disso, delimitar (e assim juridicizar) o campo de competência tributária estabelecido no texto constitucional em termos gerais e não jurídicos.
Entender que o texto constitucional deve ser interpretado sempre à luz da legislação civil preexistente, como se o legislador constituinte não empregasse vocábulos não jurídicos ao desenhar competências tributárias, implica ignorar a importância da intenção do legislador constituinte (mens legis). Ainda mais grave, implica sugerir que o constituinte não teria liberdade para outorgar sentidos próprios a expressões que tenham em algum momento anterior sido empregadas pelo legislador ordinário privado – e, mais do que isso, empregadas pelo legislador ordinário no contexto de normatização de relações privadas, não para fins de política tributária.
Uma interpretação constitucional adequada deve estar aberta à linguagem jurídica e não jurídica empregada no texto constitucional. A abertura cognitiva do intérprete jurídico aos subsistemas externos ao subsistema jurídico não corresponde à sobreposição do direito pela economia. Não se trata de fazer uma interpretação econômica do direito tributário, mas de se promover uma interpretação jurídica que considere o desígnio do legislador constituinte no contexto social, econômico e político em que está inserido.
3.3. O problema do descumprimento da função social da dogmática jurídico-tributária
A dogmática jurídica, como instância de auto-observação do sistema jurídico, tem por principal função promover a estabilização das expectativas normativas. Com efeito, nos tempos atuais, as disposições normativas, por seu caráter de generalidade (bem como em razão de sua assistematicidade), são compreendidas com muita dificuldade por seus destinatários. Cabe, pois, à dogmática jurídica, diante da pluralidade de sentidos possíveis decorrentes das disposições normativas, especificar os sentidos juridicamente viáveis, estabilizando expectativas quanto aos comportamentos que serão considerados, pelo próprio sistema, conformes ao direito (GONÇALVES, 2010a, p. 208).
Essa necessidade é ainda mais premente no direito tributário. A legislação tributária é modificada e renovada diariamente, a um volume impossível de acompanhar sem um alto grau de especialização profissional. A corrente privatista do direito tributário, contudo, implica inviabilizar a função social da dogmática jurídica em matéria tributária. Na prática atual, tanto a Constituição quanto as leis e os demais atos infralegais relativos à tributação tomam por referência conceitos econômicos usualmente refutados pela corrente privatista. Ao rejeitar o uso desses conceitos e reputar todos esses atos normativos ilegais ou inconstitucionais, a corrente privatista não se permite enxergar o direito e, por consequência, cumprir sua função de especificar conteúdos normativos tributários e orientar expectativas normativas.
O caso do ICMS é lapidar. Toda legislação relativa ao imposto foi construída sob a premissa de que por “operações com circulação de mercadorias” devem ser compreendidas as operações que envolvam circulação econômica de mercadorias. Ao rejeitarem essa interpretação, os adeptos da corrente privatista veem-se incapacitados de interpretar a legislação tributária. Com efeito, se parto da premissa de que a legislação tributária do ICMS é em sua maior parte inconstitucional, nego a possibilidade de que seja possível interpretá-la. O afastamento por inconstitucionalidade torna a dogmática jurídico-tributária cega à maioria das disposições legais relativas a esse imposto.
Assim, uma parte significativa da produção acadêmica sobre o ICMS se resume a afirmar a inconstitucionalidade de muitos dos dispositivos que disciplinam o imposto. Tal circunstância, que até certa medida representaria uma postura democrática contrária a arbitrariedades estatais, acaba por tornar ainda menos certas as expectativas normativas quanto ao comportamento que é conforme ou não ao sistema jurídico. Exemplo curioso desse fenômeno pode ser encontrado em Roque Antonio Carrazza (2005). A obra se tornou referência em matéria de ICMS, mas substancial parte do texto cuida mais de sugerir diversas inconstitucionalidades relativas à instituição do imposto do que de compreendê-lo e explicá-lo. Ao rejeitar a legitimidade de diversas normas legais relativas ao ICMS, as tarefas de descrição e análise dessas regras ficam significativamente limitadas.
Tais leis tributárias, não analisadas na literatura jurídica por serem tidas inconstitucionais, são, contudo, normalmente aplicadas pelos contribuintes e pelos tribunais. Sendo rara a adesão pelo Judiciário das teses que pleiteiam tais inconstitucionalidades, o que se tem, na prática, é a adoção das leis tributárias pelos contribuintes, como se legítimas fossem.
O exacerbado distanciamento que a dogmática jurídico-tributária se colocou diante da realidade jurídica faz com que sua auto-observação consista, em verdade, na observação de algo diverso do que deveria observar. Não se observa o direito como ele é, mas como poderia ser. Gera-se pouca utilidade quanto à função que caberia à dogmática jurídica – a de especificar sentidos normativos e orientar a pluralidade de expectativas individualizadas a respeito dos comportamentos considerados conformes ao direito.20
Essa lacuna obrigou outros profissionais – os contadores – a promover a interpretação das leis tributárias, profissionais devidamente habilitados nas ciências contábeis, mas pouco afeitos à interpretação jurídica. A premência de se aplicar a legislação tributária fez com que, ao invés de auto-observação, o direito fosse descrito por uma observação que lhe é externa (a dos profissionais da área contábil), revertendo, nesse aspecto, o processo evolutivo de diferenciação funcional da sociedade. Em vez de criar complexidade (tornando mais específicas e elaboradas as funções na sociedade) mediante a redução de complexidade (delimitação do objeto dos subsistemas pela autonomização funcional), faz o inverso, rompendo a delimitação por especialização (com profissionais contábeis exercendo funções que caberiam aos juristas) e diminuindo a capacidade do sistema jurídico de uma apropriada auto-observação.
Conclusão
Parece ainda predominar na dogmática jurídica brasileira o que estamos aqui designando de interpretação privatista do direito tributário. A corrente privatista sugere que qualquer termo utilizado pelo legislador constituinte em dispositivos constitucionais deve ser interpretado necessariamente à luz de normas e conceitos do direito privado. Entende-se que, ao se interpretar competências tributárias fixadas na Constituição, devem-se em primeiro lugar decompor os termos da designação utilizada pelo constituinte, interpretar cada vocábulo de acordo com o direito privado vigente, para então recombiná-los em uma frase completa. Assim, por exemplo, ao ler a previsão constitucional para a instituição do “imposto sobre serviços de qualquer natureza”, caberia ao intérprete do direito primeiro compreender o que “imposto”, “serviço” e “qualquer natureza” significam sob a ótica do direito privado para então recombinar os significados desses vocábulos na formulação final da interpretação jurídica. Só assim, sugerem os defensores da escola privatista, poder-se-ia compreender o sentido que o constituinte pretendeu outorgar ao texto constitucional.
Esse procedimento, que pode para alguns se assemelhar mais a uma operação aritmética do que a uma interpretação jurídica, provavelmente faria pouco sentido para um intérprete de outra área do direito, mas tornou-se lugar-comum na dogmática jurídico-tributária brasileira. Essa linha de pensamento não apenas ignora a importância da intenção do legislador constituinte (mens legis) quanto parece sugerir que o constituinte não teria liberdade para outorgar sentidos próprios a expressões que tenham em algum momento sido definidas pelo legislador ordinário privado. Trata-se de uma inversão hierárquica, que limita a criação (e interpretação) constitucional de sentidos normativos àqueles já fixados em legislação infraconstitucional.
Essa postura interpretativa, que se iniciou na década de 1960, representou um movimento de repúdio à corrente interpretativa que então imperava e admitia a consideração de elementos econômicos na interpretação do direito tributário. Passou-se então a recorrer a definições do direito privado para evitar interpretações da legislação tributária que incluíssem conceitos ou categorias de origem econômicos e, com isso, dar maior segurança jurídica aos contribuintes em uma época de vigoroso autoritarismo estatal. Nos dias atuais, porém, longe de proteger a segurança jurídica, a interpretação privatista tem conduzido a inesgotáveis litígios judiciais e complexidades que afligem, antes de tudo, o próprio contribuinte.
Além disso, como se procurou demonstrar neste artigo, a interpretação privatista do direito tributário impossibilita a dogmática jurídico-tributária de cumprir sua principal função, a de promover a estabilização das expectativas normativas. Com efeito, nos tempos atuais, as disposições normativas são compreendidas com dificuldade por seus destinatários, em especial em matéria tributária, que tem sua legislação modificada e renovada diariamente, em um volume impossível de acompanhar sem um alto grau de especialização profissional. Cabe, pois, à dogmática jurídica, diante da pluralidade de sentidos possíveis decorrentes das disposições normativas, especificar os sentidos juridicamente viáveis, estabilizando expectativas quanto aos comportamentos que serão considerados, pelo próprio sistema, conformes ao direito.
O que se percebe, contudo, é que a função social da dogmática jurídica não é devidamente exercida em matéria tributária. Voltada para afirmar a inconstitucionalidade de muitos dos dispositivos que disciplinam os impostos brasileiros, a corrente privatista deixa de tratar dos contornos das regras tributárias existentes que são cotidianamente aplicadas pelos contribuintes e tribunais como legítimas, gerando uma significativa lacuna quanto à demanda social por especificação de sentidos normativos e orientação quanto aos comportamentos considerados conformes ao direito tributário.
É certo que a interpretação jurídica não deve corresponder à sobreposição do direito pela economia. Não se trata, porém, de fazer uma interpretação econômica do direito tributário, mas de se promover uma interpretação jurídica que considere o desígnio do legislador constituinte, os elementos inerentes ao fenômeno da tributação e os fatos sociais por ela alcançados. Somente assim pode a dogmática jurídico-tributária exercer efetivamente sua função social.
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1
Um resumo dessa concepção pode ser extraído destas palavras de Nogueira (1974, p. 43-44, grifos do original): “Segundo já vimos, em nosso país, a Constituição estruturou cuidadosamente o princípio da legalidade tributária e quando se reportou à natureza econômica da lei tributária, traçou um comando ao legislador, o qual deverá atender à natureza econômica da lei fiscal, inclusive ao conceito da igualdade jurídico-tributária que está em relação com a capacidade econômica do contribuinte. Embora as formas de expressão do Direito sejam instrumentos jurídicos, no caso das leis tributárias, o conteúdo é incontestavelmente de natureza econômica, pois os índices de riqueza ou de capacidade contributiva é que são objeto da tributação. [...] Os fundamentos econômicos da lei tributária vinculam e condicionam os efeitos jurídicos”. Em sentido semelhante, ver Rothmann (1972, p. 259-263).
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2
A partir de uma perspectiva luhmanniana, que veremos a seguir, o direito tributário brasileiro possibilitou um menor grau de abertura cognitiva aos subsistemas econômico e político do que o verificado em outros países, já que fixou em programas de natureza super-rígida (somente passíveis de modificação com o advento de nova Constituição) características específicas quanto a determinados tributos.
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3
As palavras de Alfredo Augusto Becker (2004, p. 147) são elucidativas: “Nas asas vertiginosas dos imensos déficits orçamentários, os economistas passaram por cima da Teoria Geral do Estado e da Teoria Geral do Direito e foram lançados diretamente dentro do Direito Tributário. A ignorância dos economistas sobre a ciência jurídica casou-se com a ignorância dos juristas sobre a economia. E como os juristas espontaneamente estavam fugindo em direção à Economia, então, aconteceu – no mundo – um fenômeno inverso do da gênese bíblica, pois, no fim era o caos e dentro dele, patinhando grotescamente, o Direito Tributário Invertebrado”.
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4
Autores que têm especialmente admitido a inclusão de elementos econômicos na análise jurídico-tributária incluem, entre outros, Ricardo Lobo Torres, Luís Eduardo Schoueri, Heleno Taveira Torres, Cristiano Carvalho, Marciano Seabra de Godoi, Marco Aurélio Greco, Sérgio André Rocha e Tathiane Piscitelli.
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6
A esse respeito, para Lourival Vilanova, a causalidade não está no mundo circundante, mas é determinada pela cultura, já que a “natureza não é um complexo de coisas enormemente diversificadas que compõem o nosso mundo circundante. É um complexo de fatos segundo invariações causais. Ela mesma, a natureza transforma-se em cultura, se as leis causais passam a ser suportes de objetivações de valores. E o ser humano, com sua internidade psicológica, sujeito a leis causais – nisso, também, é natureza –, transita para o plano do ser-pessoa, criando ou apropriando-se das objetivações de valor, que nesses suportes se estabilizam. Sem essa estabilização, o ingênito fluir da corrente psíquica, com sua infixidez, tornaria impossível o discurso humano na espécie superior de história” (VILANOVA, 2000, p. 7).
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Se, por um lado, o sistema jurídico, por sua própria função de estabilização contrafática, não deve se adaptar às frustrações normativas, ele deve, de outro lado, manter um mínimo de adaptação ao ambiente. Nesse sentido, Luhmann (2004a, p. 79) esclarece que, embora a exigência de abertura ao ambiente – mediante crescimento em complexidade e manutenção de negentropia – seja tese propugnada pela teoria dos sistemas “mais antiga” (dos sistemas abertos), a teoria dos sistemas operativamente fechados (teoria luhmanniana) não a rejeita, mas simplesmente lhe outorga diferente ênfase.
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8
Em suas palavras: “O décimo segundo camelo tem muitos nomes, e nós ficamos, a cada vez, sempre numa posição de mudança. O décimo segundo camelo ‘é’ finalmente o terceiro excluído que é remetido para o interior do sistema; ele ‘é’ o parasita? Ele ‘é’ a condição de possibilidade de que fala a teoria transcendental, tal como a condição de possibilidade da decisão? Ele ‘é’ a violência ou ‘é’ a redundância? Pode alinhar-se estas questões uma seguida das outras e supor que ‘é’, e que o camelo forma uma unidade, e que [tudo] deve ser reunido. O camelo ‘é’ finalmente um camelo. Ou não? Mas o que é este ‘é’? (Was ist ‘ist’?)” (LUHMANN, 2004b, p. 104-105).
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Tecnicamente, a percepção dessa distinção (autorreferência e heterorreferência) pelo próprio sistema depende do fenômeno da reentrada: “Todavia, nosso ponto de partida é anterior a este. É a questão de como o direito pode sequer operar e como ele pode observar suas próprias operações e seus efeitos. Isso transfere o problema para a questão das formas de ‘internalização’ da distinção entre sistema e ambiente pelo próprio sistema. Em outras palavras: a questão da reentrada da distinção naquilo que a distinção distinguiu e o espaço virtual de possibilidades que o sistema abre a partir dessa operação” (LUHMANN, 2004a, p. 105-106, tradução nossa).
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10
A esse respeito, após indagar quanto à possibilidade de, em certas circunstâncias, o sistema jurídico ser forçado pela sociedade a se modificar, Luhmann (2004a, p. 120, tradução nossa) esclarece que, “visto sob a posição do sistema jurídico, deve haver um filtro que permite ao sistema perceber uma mudança de opinião pública como uma razão para aprender – isto é, cognitivamente – e não como uma direta imposição de novas normas”.
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Como elucida Luhmann, “o mesmo argumento se aplica ao recurso a razões externas por normas jurídicas, tais como interesses subliminares, intenções, segundas intenções, motivações, especialmente na esfera legislativa. Aqui há também uma filtragem interna do que é ou não adequado para a interpretação jurídica conforme as circunstâncias. Nem todas as ‘motivações’ do legislador podem ser interiorizadas pelo direito. Nunca se encontrará escrita como razão de um julgamento a declaração de que a promulgação de determinada lei ocorreu devido a uma manobra de um partido político ou à circunstância de que agora é politicamente correto adotar uma postura anticapitalista. Mesmo na famosa discussão quanto à intenção original do constituinte (original intent), máxima na interpretação constitucional norte-americana, ninguém considera seriamente a possibilidade de promover uma pesquisa histórica” (LUHMANN, 2004a, p. 115, tradução nossa).
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Dada a abstração conceitual dessas reflexões, importa citar um exemplo fornecido pelo próprio Luhmann: “A partir do momento em que existem estatísticas atuariais sobre mortalidade, um juiz não pode mais se fiar exclusivamente em seu arbítrio ao avaliar uma questão relativa à expectativa de vida” (LUHMANN, 2004a, p. 114, tradução nossa).
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No mesmo sentido, afirma em outro trabalho: “De outra parte, igualmente descômodo admitir que construções externas ao direito possam ditar regras para a interpretação. Os mesmos operadores do direito reagiriam contra o juiz sociólogo, economista ou político. Reclamariam o retorno do juiz jurista. Soa mesmo ridículo, a par de geralmente errôneo, inútil e pedante invocar trabalhos de sociologia ou filosofia como argumento de autoridade em decisões judiciais. Filosofar não é o ofício do juiz. Nada contra a ampliação dos horizontes cognitivos dos práticos do direito, mas a técnica jurídica não se confunde com a metodologia sociológica ou filosófica. Reconhecer, interpretar e aplicar a norma jurídica válida exige referências cognitivas e capacitação profissional muito diversas dos planos de observação da sociedade ocupados por filósofos, sociólogos, mesmo que filósofos ou sociólogos do direito” (CAMPILONGO, 2011, p. 170).
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A esse respeito, cabe observar as reflexões de José Rodrigo Rodriguez (2013, p. 41-42): “A Dogmática Jurídica brasileira permanece em grande parte alheia ao trabalho desenvolvido pelas demais ciências humanas, autocentrada num formalismo que ignora o que ocorre nas demais esferas sociais. Para a Dogmática tradicional, é como se as normas jurídicas pudessem funcionar sem levar em conta problemas políticos e econômicos. Nessa perspectiva de análise, o Direito, soberano e autossuficiente, procura dar conta de todos os problemas, desrespeitando a racionalidade própria das demais esferas sociais. Apenas o trabalho interdisciplinar será capaz de redimensionar as questões e pensar as relações entre as esferas sociais de modo mais sofisticado. A manutenção da pureza da Dogmática Jurídica é um desserviço que os pesquisadores têm prestado à compreensão do Direito brasileiro e do país”.
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Ricardo Lobo Torres (2004) profere contundente crítica à interpretação privatista sob uma perspectiva histórico-cultural: “Problema que ocorre com frequência na cultura brasileira é a troca de sinais na recepção das ideias estrangeiras. A filosofia e a sociologia de Augusto Comte se transformaram em religião no Brasil. Rui Barbosa observava que às vezes nos envolvíamos ‘majestosamente no nosso nativismo constitucional’, considerando nacional o que nascera sob influência estrangeira, como era o caso da própria Constituição de 1891. Em 1988 o mandado de injunção, copiado da construção jurisprudencial americana, foi tratado como invenção brasileira, o que levou o STF, com justa razão, a inviabilizá-lo, diante da impossibilidade de aplicá-lo a qualquer direito que possuísse imbricação constitucional, ainda que destituído de jusfundamentalidade, como queria a doutrina brasileira. Na recepção do IVA ocorreu o mesmo fenômeno. Criou-se inclusive a interpretação desconhecida no direito comparado – que jamais foi adotada pelo STF, ressalve-se – de que o fato gerador do tributo teria que ser uma ‘operação jurídica’ de circulação de mercadorias”.
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Confiram-se os seguintes julgados do STJ: REsp 689266/SC; 2004/0127060-1, Relator Min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJ 14.11.2005, p. 388; AgRg no Ag 636897/SP; 2004/0143706-8, Relator Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 07.03.2005, p. 331; REsp 575020/RS; 2003/0125289-8, Relator Min. José Arnaldo Da Fonseca, Quinta Turma, DJ 08.11.2004, p. 273; REsp 329067/MG; 2001/0075647-2, Relator Min. Paulo Gallotti, Sexta Turma, DJ 02.08.2004, p. 576RSTJ, v. 182, p. 518; REsp 485664/MG; 2002/0151299-5, Relator Min. Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 29.03.2004, p. 285.
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Conclusão semelhante é alcançada por Marco Aurélio Greco (2010, p. 227-233).
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Confiram-se, entre outros, Feldman (1989), Rubin (1997), Scordato (2008), Siems e Síthigh (2012), Van Hoecke (2013), Westerman (2013), Brownsword (2018) e Walker (2018).
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Isso é, com efeito, o que sugere a corrente privatista. Confira-se a análise de um de seus maiores defensores, Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 455): “Com apoio nos argumentos que acabo de expor, na forma de premissas, torna-se intuitiva a conclusão segundo a qual os fatos, assim como toda construção de linguagem, podem ser observados como jurídicos, econômicos, antropológicos, históricos, políticos, contábeis etc.; tudo dependendo do critério adotado pelo corte metodológico empreendido. Existe interpretação econômica do fato? Sim, para os economistas. Existirá interpretação contábil do fato? Certamente, para o contabilista. No entanto, uma vez assumido o caráter jurídico, o fato será, única e exclusivamente, fato jurídico; e claro, fato de natureza jurídica, não econômica ou contábil, entre outras matérias. Como já anotado, o Direito não pede emprestado conceitos de fatos para outras disciplinas”.
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A esse respeito, Guilherme Leite Gonçalves (2010b, p. 65-64) esclarece: “O professor Tercio Sampaio Ferraz Jr. retrata muito bem, no livro Função social da dogmática jurídica, o problema que Niklas Luhmann busca responder. Segundo este autor, a dogmática jurídica é uma conquista evolutiva, uma construção social destinada a solucionar o seguinte problema social: como orientar a pluralidade de expectativas individualizadas, a complexidade, sem eliminar a incerteza? O mecanismo que a própria sociedade desenvolve para resolver este problema é o direito e a dogmática jurídica”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Out 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
21 Ago 2021 -
Aceito
21 Mar 2022