Resumo
Objetivo Verificar o conhecimento do familiar cuidador frente ao paciente com demência e avaliar a sobrecarga proveniente do cuidado.
Método Trata-se de pesquisa qualitativa, desenvolvida no ambulatório de um hospital de referência em neurologia na cidade do Recife, PE, Brasil. Os dados foram coletados por meio da entrevista semiestruturada, questionário sociodemográfico e da aplicação da Escala de Zarit, os dados foram tratados pela análise de conteúdo proposta por Bardin e discutidos de acordo com os constructos da problematização e autonomia de Paulo Freire. Os participantes assinaram o TCLE atestando o consentimento para a pesquisa
Resultados Da análise das entrevistas com 17 familiares cuidadores, emergiram três categorias temáticas: desconhecimento sobre a doença, percepção do familiar cuidador frente às necessidades do paciente e sobrecarga familiar. Com a progressão da doença, torna-se imprescindível a presença do cuidador, entretanto a maioria não possui suporte necessário para assistir aos seus familiares.
Conclusão O estudo verificou o despreparo e a dificuldade do cuidador com manejo de seus familiares que possuem alguma síndrome demencial. Assim, torna-se necessária a continuidade de mais produções sobre essa temática e suas repercussões na vida dos familiares cuidadores, a fim de auxiliar nas estratégias de promoção à saúde para essa população.
Palavras-Chave: Demência; Cuidadores; Família; Educação em Saúde
Abstract
Objective To verify the knowledge of the family caregiver before the patient with dementia, in addition to assessing the burden resulting from care.
Method This is a qualitative research, developed at the outpatient clinic of a reference hospital in neurology in the city of Recife, PE, Brasil. The data were collected through a semi-structured interview, a sociodemographic questionnaire and the application of the Zarit Scale and discussed through the content analysis proposed by Bardin and according to the constructs of Paulo Freire’s problematization and autonomy. The participants signed the informed consent form attesting the consent for the research
Results From the analysis of the interviews with 17 family caregivers, three thematic categories emerged: lack of knowledge about the disease, perception of the family caregiver regarding the patient’s needs and family burden. With the progression of the disease, the presence of the caregiver becomes essential, however most do not have the necessary support to assist their family members.
Conclusion The study verified the unpreparedness and difficulty of the caregiver in managing his family members who have some dementia syndrome. Thus, it is necessary to continue more productions on this theme and its repercussions on the lives of family caregivers, in order to assist in health promotion strategies for this population.
Keywords Dementia; Caregivers; Family; Health Education
INTRODUÇÃO
O aumento na expectativa de vida da população mundial é uma das grandes conquistas da sociedade moderna. Consequentemente, percebe-se o crescente envelhecimento populacional e a presença de patologias resultantes desse processo, podendo surgir o declínio natural das funções orgânicas e o aparecimento de doenças crônico-degenerativas, incapacitantes e involutivas, como no caso das demências1,2.
Com relação às síndromes demenciais, pode-se destacar a doença de Alzheimer (DA), correspondendo entre 60% a 70% dos casos, seguindo-se da demência vascular (DV), demência por corpos de Lewy e demência frontotemporal3. Existem estudos também indicando, especialmente em faixas etárias mais avançadas, anormalidades cerebrais associadas a mais um tipo de demência, nomeada de demência mista3.
De acordo com o relatório de Alzheimer’s Disease International em 2015, estima-se que 46,8 milhões de pessoas em todo o mundo atualmente têm demência, com previsão de atingir 74,7 milhões em 2030, e 131,5 milhões em 2050. Além disso, o total de casos novos de demência a cada ano no mundo é de quase 9,9 milhões, o que significa um diagnóstico a cada 3 segundos4,5.
No Brasil, o envelhecimento populacional vem ocorrendo de forma acelerada. A proporção de pessoas idosas idosas na população brasileira está próxima de 12,5%, aumentando a probabilidade de serem acometidos pela síndrome demencial6. Estudo realizado em 195 países entre 1990 a 2016, apontou que a demência foi a quinta causa principal de morte, com prevalência duplicada entre pessoas acima de 60 anos. Portanto, com o crescimento populacional, as tendências demográficas do envelhecimento tendem a aumentar, bem como a carga sobre os cuidadores e para as áreas dos sistemas de saúde dedicados ao cuidado dessa população7.
Destaca-se nesse cenário a responsabilidade da família como coparticipante nesse decurso de mudança, tanto na vida do paciente, quanto no ambiente familiar, pois requer tempo, atenção e esforço. O cuidador familiar é carente de informações e de preparo para exercer sua nova atribuição, necessitando de amparo dos profissionais de saúde nesse processo, para que se sinta seguro e confiante8.
Frente a essa nova circunstância vivenciada pelo familiar cuidador, a visão de Paulo Freire é sempre atual, pelo entendimento de que o ser humano não pode ser compreendido fora do seu contexto. Ele é considerado um sujeito social e histórico, protagonista da sua própria formação, e desenvolve-se por meio da contínua reflexão sobre sua realidade9,10. Nessa perspectiva, a educação em saúde torna-se possível quando é proporcionada autonomia aos componentes envolvidos. Assim, o presente trabalho tem como objetivos verificar o conhecimento do familiar cuidador frente ao paciente com demência e avaliar a sobrecarga proveniente do cuidado.
MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória e analítica, com abordagem qualitativa. A pesquisa foi realizada em um hospital de referência para neurologia localizado na cidade do Recife, Pernambuco, Brasil.
Participaram do estudo 17 familiares cuidadores que possuíam qualquer grau de parentesco com o paciente. Foram convidados a participar do estudo os familiares cuidadores presentes no momento da consulta, e foram excluídos os familiares que não estavam envolvidos diretamente com o cuidado dos pacientes, e ainda, os familiares de pacientes de primeira consulta, visto que não possuíam diagnóstico.
Os dados foram coletados por meio de um instrumento semiestruturado, construído pelos pesquisadores, que foi previamente testado com 05 familiares cuidadores antes da realização do estudo, para verificar sua adequação e possibilidade de adaptações para responder ao objetivo do estudo. Nesse instrumento, foram incluídos dados sociodemográficos para caracterização dos participantes quanto à idade, escolaridade, profissão e dados de parentesco com o paciente, além de questões abertas, respondidas de forma descritiva: O que você sabe sobre a demência? Quais as necessidades que você percebe no seu familiar com a demência? Como você se sente cuidando do seu familiar com essa doença? Já recebeu alguma instrução de como cuidar do seu familiar com a doença? Se sim, de quem recebeu essa instrução?
Aplicou-se, concomitantemente, o Inventário de Sobrecarga de Zarit reduzido, traduzido por Scazufca e, validado em pesquisas já realizadas no Brasil, com a finalidade de avaliar a sobrecarga do familiar cuidador. Denomina-se de sobrecarga “um conjunto de problemas físicos, psicológicos, emocionais, sociais e financeiros, vivenciados pelos membros da família e prestadores de cuidados as pessoas idosas com incapacidades”, isto é, quando a adaptação no processo de saúde-doença não ocorre de forma saudável11,12. Utiliza-se a escala de Zarit para avaliar a sobrecarga, explorando a percepção do cuidador acerca da forma como o cuidado impacta sua vida.
Essa escala é composta por sete questões fechadas em que o cuidador deve indicar a frequência que se sente em relação ao que foi perguntado (nunca, raramente, algumas vezes, frequentemente ou sempre). As categorias de sobrecarga avaliadas nesse instrumento incluem o impacto da prestação de cuidados, relação interpessoal, expectativas com o cuidar e percepção de autoeficácia12.
Os dados foram coletados entre os meses de agosto a outubro do ano de 2017, durante o período diurno. As entrevistas foram realizadas após a consulta com neurologista, em ambiente privativo nos consultórios do ambulatório. Os familiares foram convidados a participar do estudo, atestando a voluntariedade com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As falas foram gravadas com auxílio de um gravador digital e, posteriormente, transcritas na íntegra em grelhas de análise. Os participantes foram codificados com a letra F de familiar com sequência numérica entre 1 e 17. O tempo médio de cada entrevista variou entre 25 a 30 minutos.
As falas foram tratadas por meio da análise de conteúdo de modalidade temática proposta por Bardin13. Houve a transcrição na íntegra das entrevistas para identificar os núcleos de sentido, fazendo uso dos critérios da exaustividade e representatividade. Os dados foram discutidos de acordo com os constructos teóricos da problematização e autonomia de Paulo Freire. O presente estudo encontra-se em consonância com a Resolução 466/12 CNS/MS, sob número do parecer: 2.146.218.
RESULTADOS
Entre os 17 participantes do estudo, a maioria 16 (94,11%) eram do sexo feminino, casadas 9 (52,94%), com idades entre 18 a 68 anos, com média de idade de 47 anos. Mais da metade 11 (64,70%) não possuía fonte de renda e são filhas dos pacientes. Oito (47,05%) possuem o ensino médio completo e 5 (29,41%) ensino superior completo.
Quanto às respostas dos participantes relacionadas aos cuidados com os seus familiares, a maior parte dos respondentes disseram contar com ajuda de outro membro/outras pessoas, 13 (76,47%) dos respondentes disseram contar com ajuda de outro membro/pessoa e 12 (70,58%) referiram terem recebido instrução para o cuidado. Entre estas, 10 (83,33%) disseram que foram orientados apenas por médicos, e 2 (16,66%) disseram que foram orientados por outros profissionais que não eram da enfermagem.
No que se refere ao diagnóstico da doença dos familiares, 12 (70,58%) pacientes apresentavam demência mista, 3 (17,64%) demência vascular, 1 (05,88%) demência frontotemporal e 1 (05,88%) demência de Alzheimer. Em relação ao tempo da doença, apenas 5 (29,41%) pacientes possuíam o diagnóstico há mais de cinco anos, os demais variaram em ordem decrescente entre cinco anos a menos de um ano. E por fim, quando aplicado o questionário de Zarit, 7 (41,17%) familiares cuidadores apresentavam sobrecarga do cuidado moderada, 6 (35,29%) sobrecarga leve e 4 (23,52%) sobrecarga grave. A partir do que emergiu das falas dos participantes, foi possível construir três categorias temáticas: a) Desconhecimento sobre a doença; b) Percepção do familiar cuidador frente às necessidades do paciente; c) Sobrecarga familiar.
Tema I: Desconhecimento sobre a doença
Os familiares cuidadores demonstraram conhecimento insuficiente sobre a patologia, possuindo dificuldades e muitas dúvidas para responder quando questionados a respeito da temática, como pode ser observado nas falas a seguir:
“Assim (suspiro), é difícil eu falar, porque quando surgiu assim o diagnóstico, a gente não teve nenhum apoio para saber direito o que é. Eu não tenho conhecimento não!” (F2).
“Muito pouco. É...eu tenho na verdade, eu tenho muitas dúvidas com relação a doença, porque eu não sei assim...minha preocupação é a questão de fases, existem fases...é...quanto tempo ela vai ficar assim, quando ela pode piorar, quando....mas é....eu tenho muita dúvida na verdade” (F5).
Alguns familiares salientam que a doença acomete o cérebro, reconhecem o neurônio como a unidade morfofisiológica afetada e até tentam conceituar a doença utilizando termos da literatura, contudo, visualiza-se um entendimento ainda limitado, e por vezes confuso quando explicam.
“É uma doença que afeta o cérebro, que a pessoa não fica praticamente em si, fica lembrando coisa do passado ou coisas que aconteceu, que pode ter afetado” (F10).
“Eu sei que a demência vai ser...é um tipo de doença, né?![...] Vai ter um momento...Eu acho que os nervos, alguma coisa, né?! Os neurônios, alguma coisa. Que a demência é uma parte, eu acho, que vem da cabeça...afeta membro, afeta tudo, é, é...mexe com todo o neurônio, com....com todos os órgãos” [...] (F11).
Na fala a seguir, além de reforçar o desconhecimento que o entrevistado possui sobre o tema, fica em evidência que ele delimita a demência apenas à doença de Alzheimer.
[...] “Eu só sabia de nome “o Alzheimer, o Alzheimer...” agora, agora que eu tô vendo assim...porque a gente fica notando a diferença dela. Ela esquecendo as coisas, se perdendo assim [...] Eu sei que tem um processo bem mais rigoroso, até por filmes que já assisti, mas conhecimento ao pé da letra eu não tenho, não!” (F1).
Um fato observado no decorrer das entrevistas é que os familiares expressam seu entendimento pela doença referindo-se às manifestações clínicas durante sua rotina de cuidados, das quais predomina o esquecimento que os pacientes apresentam. Tal situação ressalta a superficialidade no saber a respeito da demência e suas variedades: as fases, os sinais característicos e a forma de tratamento em cada caso, como explanado nas falas abaixo:
“O que eu estou sabendo agora é por causa desse problema que como eu tô vendo nele, né?! A reação dele, que ele muda, de...de...ele tá maravilha uma hora, de repente ele muda totalmente e fica agressivo” (F7).
“Sobre a demência é que (pausa) assim (pausa). Deu agora um branco (pausa). É (pausa). Que assim que...não consegue fazer as coisas, né?! Tem...tem dificuldade de ir ao banheiro, de não falar direito, se expressar, né?! [...] tem hora que ele não, não, nem pede comida, a gente tem que tá oferecendo as coisas a ele, porque se der comida ele come, também se não der....pronto, é isso!” (F13).
Tema II: Percepção do familiar cuidador frente às necessidades do paciente
O familiar compreende as mudanças na vida da pessoa com a doença por meio das alterações gradativas nas atividades de vida diária (AVD’s), e nas atividades instrumentais de vida diária (AIVD’s). Nas falas adiante são relatadas algumas mudanças nas AVD’s, como a capacidade do banho, alimentação, vestimenta e deslocamento de um lugar para outro.
[...] “Antigamente ela fazia tudo. E agora minha filha ela não faz mais é nada [...] Ela não anda. Ela não tem como se deslocar. Tem que tá deslocando ela de lugar, tem que dar banho nela, tem que dar comida na boca dela, que ela não consegue elevar a mão até a boca” (F11).
“Tomar banho e comer. Ela não faz, e não lembra que faz. A gente é que tem que ir levar ela pra dar banho nela e comer também. A gente é que tem que botar comida pra ela e ficar insistindo [...] Ela faz assim: “Será que eu comi?” Ela fica perguntando, entendeu?!” (F12).
Nos relatos abaixo, além de ser destacada a questão da higienização, nutrição e apraxia, atenta-se também para as modificações esfincterianas.
“Se ela andar sozinha, ela cai. Ela precisa que dê banho nela. Ela precisa que esteja trocando ela, porque fica fazendo xixi nas calças. Às vezes vai no banheiro pra defecar, mela tudo. Então ela precisa sempre de uma pessoa perto dela” (F8).
“Não consegue fazer mais nada, nem comer sozinha, tem que dar comida dela e dar a ela. É porque a mão dela não tá ajudando, não! [...] Tem que botar ela pra fazer xixi, que ela não faz mais. Tem que ser na fralda. Às vezes ela esquece, nem lembra. Ela faz e diz que não faz. Aí eu vou olhar, ela já tem feito” (F9).
Nas falas seguintes, o familiar cuidador demonstra estado de alerta e receio do ambiente que a pessoa com demência reside, pois se identifica um cenário de perigo por objetos que possam a vir causar algum acidente.
“A gente tem muita preocupação, é....os materiais que ela...que ela utiliza, pra não ter problema, ter cuidado com gás, pra não deixar ligado, com fósforo, fogão, alicate, faca...” (F3).
“É mais assim...tipo: agora eu tenho que ter mais cuidado com relação à fogo, por exemplo, fogão, de deixar...ter o cuidado de observar, de não ficar...não deixar ela mexer só, sem ninguém observar” (F5).
Os familiares também percebem que a doença afetou algumas tarefas relacionadas às AIVD’s, tais como o ato de gerir, tendo eles que participarem ou assumirem completamente essa responsabilidade.
[...] “Ela sempre foi muito dinâmica, né?! [...] De levar neto pra colégio, de ir buscar, e tudo ela era que resolvia [...] Então a gente foi notando que ela vai ficando dependente, que no momento a gente vai pensando que é por conta da idade. Então a gente já ficou sem confiança de deixar ela sair só [...] mas assim...ela bota o jantar dos meninos quando chegam a noite do trabalho, ela esquenta a comida, ela faz tudo assim” (F1).
[...] “A doença ela...prejudicou porque ela não consegue fazer algumas...não consegue fazer nada dentro de casa. A comida, arrumar a casa, lavar roupa, essas coisas” (F10).
Outro aspecto evidenciado na pesquisa foi sobre a dependência na administração de medicamentos.
[...] “Às vezes ela diz: “eu não tomei, não! E eu tomei?” Então a gente começou a tirar a medicação dela. Porque aí tem hora que ela realmente esquece. Por isso agora que a gente tá dando a medicação” (F1).
“Tem uns remédios que ele estava tomando a mais. Dois do mesmo, e o outro não! Ele confunde. Ele confunde, sabe?! Entendeu?! Isso aí, eu separei justamente por conta disso” (F17).
Tema III: Sobrecarga familiar
O surgimento de um parente com demência gera um ambiente conflituoso, podendo afetar a dinâmica familiar. O comprometimento das AVD’s/AIVD’s, principalmente nos estágios mais graves da doença, é capaz de acarretar sobrecarga física e emocional na vida do cuidador. Os entrevistados expõem a respeito dos seus sentimentos ao desempenhar o exercício do cuidado.
“Eu em 1 ano...eu realmente limitei, sabe?! [...] Mesmo tendo as meninas, uma que possa me render e outra, mas aí minha cabeça ficou muito nela. Mas aí eu saio, eu viajo, saio final de semana, tenho meu namorado [...] Eu aproveito, mas fico ligando” (F1).
“Ai eu me sinto assim...fico preocupada, né?! [...] Me preocupo demais porque eu fico só com ela. Às vezes não chega ninguém lá. Às vezes meus filhos vão lá. Às vezes não vai. Essa minha irmã também é difícil ir lá” (F9).
Nas falas supracitadas, notam-se a restrição social e o estresse gerado pela assistência realizada. Outro ponto que chama atenção é o impacto que a demência proporciona no cotidiano da família/doente. O cuidador familiar F2 traz a sensação da perda de identidade e a falta de interação do seu ente com a família, causando sentimento de frustação diante das suas limitações. O familiar F3 ainda refere o quanto é difícil aceitar e conviver com uma pessoa ainda jovem com a patologia. Além disso, revela seu quadro de depressão somado ao cuidado com a mãe, que também possui uma doença degenerativa. Tais situações reforçam a desestruturação emocional do cuidador.
[...] “O problema maior é...é também vê, né?! A pessoa daquela forma, porque ele era normal [...] Você sente que vai perdendo a pessoa, né?! E....é, fora o cansaço, é isso! Você sente muito isso...que a pessoa não está mais ali” (F2).
“É difícil (choro)...muito difícil (choro). Porque a gente vê uma pessoa tão nova, né?! Nessa situação...a gente quer resolver e não...(choro) [...] Já tenho depressão, aí já junta a situação da minha mãe [...] Tem mal de Parkinson, ela já tá em cima de uma cama e tem...a preocupação também com a filha dela de 14 anos [...] É um cuidado triplicado pra gente” (F3).
Os relatos a seguir mencionam que no início do diagnóstico foi um momento muito difícil, porque gerou uma situação ainda não enfrentada pela família, marcada pelo medo do desconhecido. Contudo, fica visível o sentimento de prazer e satisfação em cuidar, mesmo que em algumas circunstâncias, esse trabalho seja árduo e cansativo.
“No início dá um choque assim na família, porque limita você com suas atividades diárias e particulares, logicamente. Mas assim, tudo que é com tratar com carinho e amor, principalmente um ente seu [...] Então assim, faço tudo com muito prazer [...] Logicamente tem essa sobrecarga, mas no fundo parece que a gente sente o prazer, a necessidade de tá junto, de fazer, entendesse?! (risos)” (F6).
“Olhe...no meu...no...no meu coração eu me sinto bem, tá entendendo?! Porque só o prazer de que eu tenho de cuidar dele, do meu pai e da minha mãe [...] No começo, quando como eu não tinha totalmente o, o...aquela noção, aí realmente tava difícil [...] Mas agora eu tô conseguindo lidar com esse problema muito bem, tá entendendo?!” (F7).
Apesar de toda repercussão negativa que a doença ocasiona na vida do cuidador e do doente, há um componente emocional que revela a satisfação pessoal e a solidariedade na assistência realizada. Os exemplos abaixo mostram a motivação que cada familiar tem para continuar assumindo o cuidado, sendo o vínculo afetivo e a gratidão do cuidador para o cuidado os elos mais fortes do compromisso.
[...] “Não consigo ter uma vida como os outros jovens. Às vezes me afasto de uns amigos, eles se afastam de mim. Mas eu sei que eu tô fazendo não é pro mal. É pro bem de uma pessoa, de um parente, de uma pessoa que gosto, que não me virou as costas quando eu precisei, mesmo estando doente” (F10).
[...] “Eu sinto que eu preciso cuidar dele, porque a gente...38 anos de casados, sempre a gente foi muito unido [...] então, como é que eu iria jamais deixar ele de lado. Tinha que cuidar, e cuido com amor. Eu quero cuidar dele com amor, até os últimos dias de vida” (F17).
DISCUSSÃO
O gênero feminino foi predominante nos familiares cuidadores de pacientes no ambulatório, corroborando com achados semelhantes a outros estudos encontrados na literatura em que o gênero feminino comumente realiza o papel de cuidadoras no ambiente familiar14, 15,16.
Os dados sociodemográficos expõem que grande parte dos participantes entrevistados não possui trabalho e nenhuma outra fonte de renda, contando apenas com o benefício/aposentadoria do paciente. Essa realidade mostra duas vertentes: a abdicação da sua profissão para cuidar do seu ente, assim como mostra o valor insuficiente para a demanda do cuidado exigido pela pessoa com demência. Todas essas circunstâncias podem favorecer ao aparecimento do estresse nos cuidadores17,18.
Um estudo realizado no ambulatório de um hospital de referência, com 31 cuidadores de pessoas idosas com demência, identificou que um dos fatores estressores foi a falta de recurso financeiro para prover as às medidas necessárias para a realização dos cuidados. Os cuidadores relataram dificuldades para adequar o ambiente domiciliar, adquirir tecnologias assistivas e recursos materiais de consumo19,20.
Apesar das demências degenerativas constituírem 80% de todas as demências, com maior incidência/prevalência para DA21, esta pesquisa identificou que no diagnóstico dos pacientes, prevaleceu a demência mista. Esse resultado distinto pode ser justificado pela história pregressa dos pacientes com doenças como hipertensão, diabetes, síndromes metabólicas, entre outras, que predispõem ao aparecimento de outros quadros demenciais, aumentando o número de diagnósticos de demências associadas22.
Para que seja efetivada a assistência, é preciso que o cuidador conheça a patologia, as etapas da evolução, as características de cada uma delas, e as ações que poderão ser realizadas de acordo com a necessidade. Assim, saberá lidar com a pessoa que possui a síndrome demencial23. O pensamento freireano estimula a reflexão da realidade de vida e a condição em que o cuidador está envolvido. A construção do pensamento crítico perpassa na condição de que o familiar deve aguçar seus questionamentos sobre a temática abordada.
Para Paulo Freire, o conhecimento da realidade possibilita a identificação dos elementos necessários para intervenções eficazes. Portanto, se faz necessária a ação de problematizar para enfatizar a práxis, pois o sujeito busca soluções para a realidade, transformando-a com a sua própria ação, ao mesmo tempo em que se transforma e passa a detectar novos problemas, e a buscar transformações. Neste sentido, o conhecimento sobre a realidade vivenciada proporciona autonomia, consciência crítica e capacidade de decisão9,10.
Ao compreender os sinais clínicos da demência, o familiar possui a oportunidade de refletir sobre as situações do dia a dia, e com isso atentar para as modificações na capacidade funcional, conseguindo decidir suas ações de maneira autônoma e independente. A declinação da cognição estaria relacionada às perdas funcionais, envolvendo as AVD’s e AIVD’s. Quando estas estão comprometidas, podem requisitar maiores intervenções para quem cuida24,25.
Com a progressão da doença, é esperado maior grau de dependência, onde o familiar cuidador passa a auxiliar a pessoa idosa na realização das atividades diárias. Isso vai demandar um cuidado integrado, uma vez que alterações cognitivas geram impactos importantes na autonomia do paciente frente ao autocuidado. É importante salientar que o grau de dependência vai estar ligado a fase da doença em que a pessoa se encontra26,27.
Principalmente, na pessoa idosa com demência, torna-se imprescindível a presença do cuidador para auxiliar nessas atividades, já que no avanço da doença, as tarefas vão se tornado cada vez mais complexas. As alterações mais citadas pelos familiares neste estudo foram a questão do banho, alimentação, controle esfincteriano e administração medicamentosa. Todas essas funções exigem atenção, principalmente na oferta do medicamento, para não haver erros e atrasos28,29.
Além disso, um dos quadros mais comuns na síndrome demencial é o aparecimento das agnosias, caracterizada pela dificuldade em reconhecer objetos, imagens, pessoas, apesar de manter intacta a função sensorial. Por provocar distorção, esse sintoma poderá trazer riscos em alguns cômodos da casa, como por exemplo, na cozinha, ocasionando sentimento de medo e insegurança para quem cuida30.
Adicionalmente às questões abordadas, o cuidado da pessoa idosa com demência ocasiona inúmeras e distintas repercussões na vida dos cuidadores, destacando-se a exaustão e o desgaste físico e emocional. O cuidador sofre com o estresse gerado pelo cuidado e pode apresentar uma sobrecarga relacionada, implicando na sua saúde física e mental31,32. Frente a esse contexto, cabe a necessidade em vislumbrar espaços de orientações, suporte e apoio aos familiares cuidadores, com abordagem dialógica, que compreenda a realidade do núcleo familiar em que a pessoa com demência esteja inserida.
Ao avaliar a sobrecarga dos familiares entrevistados, nota-se que os cuidadores possuem níveis de sobrecarga moderado. A carga de emoções negativas ou positivas associadas ao cuidado podem estar relacionadas a fatores como as características clínicas do doente, os motivos que levam o familiar a assumir o cuidado, as características da divisão do trabalho de cuidado, etc. Nesse sentido, tem sido mostrado que o aspecto positivo associado ao bem-estar do cuidador é inversamente relacionado à sobrecarga envolvida na relação de cuidado33.
A pesquisa apresentou limitações importantes, pois as entrevistas foram realizadas após as consultas neurológicas, e por muitas vezes os familiares não possuíam disponibilidade em participar, sobretudo devido a ter transporte esperando para voltar para casa. Também houve dificuldades com relação ao local de aplicação da entrevista, devido às altas demandas de atendimento no ambulatório do hospital, o que culminou para dificuldade em se obter uma amostra mais significativa.
CONCLUSÃO
Os dados analisados e os resultados encontrados mostraram que o tema abordado ainda é bastante incipiente para o familiar cuidador, gerando muitas dúvidas e dificuldades para exporem suas ideias quando questionados. A maioria dos cuidadores está despreparada para o enfrentamento da doença, e o conhecimento é limitado pelas percepções do cuidado que realizam no dia a dia.
Assim, torna-se necessário que se estabeleçam espaços para o desenvolvimento de treinamentos e capacitações com os cuidadores, pois é por meio dessas ações que surgem planejamento e elaboração de estratégias para o enfrentamento das dificuldades diárias vivenciadas pelo cuidador familiar.
Na pesquisa foi possível observar também o nível de sobrecarga moderado dos cuidadores familiares, revelando que vários fatores contribuíram para o desgaste físico, emocional e social desse público, mas que apesar de todo estresse, o sentimento de prazer e gratidão prevaleceu, justificando que o vínculo afetivo estabelecido é a conexão mais sólida para continuidade da assistência.
Por fim, este estudo concluiu que, apesar das pesquisas já existentes, é necessária a continuidade de mais produções sobre as demências e suas repercussões na vida dos familiares cuidadores, a fim de auxiliar nas estratégias de promoção à saúde para essa população.
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Editado por
-
Editado por: Yan Nogueira Leite de Freitas
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Jan 2021 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
31 Ago 2020 -
Aceito
11 Nov 2020