RESUMO
Este artigo descreve e analisa a nasalidade vocálica produzida por coda e onset nasal em lung’Ie, língua crioula falada em São Tomé e Príncipe. Assim, observamos o comportamento fonotático da língua, investigando a aplicação dos processos de nasalização conforme o acento lexical e a possibilidade de ressilabificação dos segmentos. Ademais, através de um teste perceptivo, visamos identificar o modo que a nasalidade engatilhada por coda é concebida em lung’Ie. Nesse caso, os resultados indicam que, com a exclusão da consoante em onset da sílaba seguinte à sílaba que continha nasalização, os falantes compreendiam o apêndice nasal como uma consoante plena [n] ressilabificada na posição de onset nasal, reforçando, portanto, a interpretação bifonêmica da nasalidade no lung’Ie (AGOSTINHO, 2015). A análise fonotática, por sua vez, indica que o acento é primordial para o engatilhamento da nasalização a partir de onset silábico, ao passo que a nasalização em coda pode ocorrer independentemente da maior proeminência lexical envolvida. O acento como fator importante na concretização deste processo sugere a existência de um sistema suprassegmental misto em lung’Ie, constituído por tom e acento, sendo o acento a categoria suprassegmental mais importante (AGOSTINHO, 2015).
Nasalização; Lung’Ie; Suprassegmentos; Acento
ABSTRACT
This study describes and analyses vocalic nasality triggered by nasal elements in codas and onsets in Lung’Ie, a Portuguese-based Creole spoken in São Tomé and Príncipe. We observed the language’s phonotactic behavior and investigated the occurrence of vocalic nasalization processes according to their segmental and suprasegmental aspects. In this regard, we considered the lexical stress and the possibility of segmental resyllabification. We designed a perceptual test in order to identify the way in which coda nasality was perceived by native speakers. By omitting a consonant in the onset position of the next syllable in relation to the nasalized syllable, speakers interpreted the nasal appendix as a full consonant [n]. The nasal consonant in the coda was therefore resyllabified into an onset position. This syllabic restructuration is an indication of a biphonemic interpretation of nasality in Lung’Ie (AGOSTINHO, 2015; BALDUINO et al., 2015; BANDEIRA, 2017). The phonotactic analysis indicates lexical stress as an essential factor in the performance of the nasalization process triggered by an onset. On the other hand, nasalization processes triggered by the coda are possible in stressed and unstressed syllables. The importance of the stress in the application of this process supports a mixed suprasegmental system in Lung’Ie constituted by lexical stress and tones, albeit stress is the primary suprasegmental category (AGOSTINHO, 2015).
Nasality; Lung’Ie, Suprasegments; Stress
Introdução
O objetivo deste trabalho é descrever os processos de nasalização a partir da coda e do onset nasais em lung’Ie (código ISO 639-3: PRI). Com base no estudo realizado por Moraes (2003) , sobre a nasalidade vocálica em português brasileiro (PB), buscamos também discutir o estatuto fonológico da nasalidade promovida por coda. Assim, pretendemos estabelecer uma análise fonológica acerca do processo, cotejando discussões anteriores em relação a esta questão em lung’Ie ( AGOSTINHO, 2015 ), língua crioula de base portuguesa, falada na República Democrática de São Tomé e Príncipe4 . Segundo Agostinho (2015) , o lung’Ie (LI) é uma língua com um sistema misto de tom e acento. Sistemas prosódicos mistos são atestados na literatura ( HYMAN, 2014 ), e, embora pouco estudados ( MICHAEL, 2011 ), continuam a representar desafios descritivos e teóricos ( HYMAN, 2006 ).
Em termos fonológicos, a nasalidade vocálica é interpretada, basicamente, de duas formas: (i) como um processo fonológico engatilhado por uma consoante nasal, ou (ii) como vogais fonológicas propriamente ditas ( MORAES; WETZELS, 1992 ; MEDEIROS, 2007 ). Focaremos, nesta revisão teórica, no processo de nasalização promovido por uma consoante nasal.
As vogais nasalizadas podem receber o traço [+nasal] em decorrência do espalhamento da nasalidade de uma consoante nasal tautossilábica ou heterossilábica, de forma regressiva ou progressiva. No geral, observa-se que, embora o processo seja o mesmo, diferenças acústicas subjazem os correlatos fonéticos dos diferentes tipos de nasalização. Na nasalização vocálica provocada por um onset nasal, não há perda segmental e nem é identificado o murmúrio. Além disso, do ponto de vista da duração, a vogal nasalizada a partir da coda, justamente por conter uma porção equivalente ao apêndice nasal, tende a ser mais longa em relação à vogal nasalizada por onset. Estas, por apresentarem um valor baixo para o primeiro formante, como resultado da elevação da mandíbula na produção de nasalidade, são, inclusive, menos longas em relação às vogais orais ( MORAES; WETZELS, 1992 , para o português brasileiro (PB) e BALDUINO, 2018 , para o português santomense (PST) e para o português principense (PP)). Por fim, tais tipos de nasalização respondem, distintamente, à produção de contraste lexical e à sensibilidade ao acento lexical para a produção do fenômeno. No geral, a nasalização engatilhada por coda produz distinção de significado entre pares opositores e não dependem da proeminência lexical para ocorrer, ao passo que este é um fator essencial na aplicação da nasalização por onset em português (CÂMARA JR., 1970; WETZELS, 1997 ; MIGUEL, 2006 ). Com base nesta discussão, este estudo visa, justamente, descrever e discutir a distribuição fonotática das vogais nasalizadas em lung’Ie, focando no processo de nasalização como um todo, seja este promovido por uma coda, seja por um onset. Para tanto, levaremos em conta estudos anteriores, os quais, a respeito da nasalização engatilhada por coda, concordam com a presença de vogais [+nasais] em lung’Ie, porém divergem acerca da interpretação fonológica atribuída ao fenômeno. No geral, enquanto para Maurer (2009) a nasalidade é interpretada como fonológica, trabalhos como os de Agostinho (2015) , Balduino et al . (2015) e Bandeira (2017) , a interpretam como bifonêmica, ou seja, decorrente da estrutura subjacente /VN/. A fim de contribuir com essa discussão, este estudo se propõe a analisar a manifestação deste fenômeno com base em diferentes dados do lung’Ie, bem como avaliar, por meio de testes perceptivos, como os falantes de lung’Ie identificam esse tipo de nasalização, discutindo qual o papel do murmúrio nasal neste julgamento. Por fim, para a nasalização engatilhada por onset, nos pautaremos, sobretudo, em Agostinho (2015) , atentando à importância do acento lexical para delimitar sua aplicação.
Considerando, então, a ecologia linguística na qual o lung’Ie está inserido, pretendemos descrever e analisar a nasalidade engatilhada por coda e onset nasal nesta língua. Para tanto, este artigo é dividido em três seções. Na seção O lung’Ie em contexto , explanamos o contexto social e linguístico no qual o lung’Ie está alocado. Em seguida, na seção O processo de nasalização em lung’Ie – Discussão , apresentamos os procedimentos metodológicos e descrevemos o fenômeno de nasalização vocálica na língua, propondo uma análise fonológica para os dois processos de nasalização identificados em lung’Ie. Por fim, as Considerações Finais são apresentadas na última seção.
O lung’Ie em contexto
São Tomé e Príncipe (STP) é um país multilíngue da costa oeste africana. Além do português, língua oficial do arquipélago desde 1975, são faladas três línguas autóctones, o santome (código ISO 639-3: CRI), o angolar (código ISO 639-3: AOA) e o lung’Ie. O kabuverdianu (código ISO 639-3: KEA) foi levado às ilhas de STP a partir do final do século XIX e ao longo do século XX. Das línguas autóctones, enquanto o santome e o angolar são falados na ilha de São Tomé, o lung’Ie é encontrado mormente na Ilha do Príncipe (ou Príncipe, como é referido pela população local).
A ilha do Príncipe está localizada a 140km ao nordeste da ilha de São Tomé e a 200km da costa oeste africana. Possui uma população de 7.542 habitantes ( INE, 2012 ). A origem do lung’Ie está relacionada ao processo de colonização implantado pela Coroa Portuguesa no fim do século XV e início do XVI. Inicialmente, surge na ilha de São Tomé o protocrioulo de base lexical portuguesa do Golfo da Guiné. Posteriormente, essa língua se ramifica, dando origem a quatro línguas filhas: o santome, o angolar, o lung’Ie e o fa d’Ambô (código ISO 639-3: FAB). Assim, tendo sido levado à Ilha do Príncipe e com as contribuições do isolamento e de novas populações africanas chegadas à Ilha, o PGG se transforma no lung’Ie ( BANDEIRA, 2017 ), instrumento linguístico de um novo grupo étnico, os principenses ( BANDEIRA, 2017 ). Atualmente, o lung’Ie passa por um processo de obsolescência e há poucos falantes nativos. Agostinho (2015) pontua que não há mais falantes monolíngues, sendo a língua da Ilha do Príncipe empregada por menos de 200 pessoas, todas com mais de sessenta anos.
O início do declínio do número de falantes de lung’Ie remonta historicamente ao início do século XX, período em que a ilha foi afetada por uma epidemia de doença do sono. Durante esse surto epidêmico, a população principense foi quase dizimada, restando apenas cerca de 300 pessoas ( MAURER, 2009 ). Ao mesmo tempo, a expansão da cultura cacaueira na Ilha gerou uma demanda por mão-de-obra para o trabalho nas agroindústrias rurais implantadas no Príncipe. Os senhores coloniais importaram, dessa forma, um grande contingente de trabalhadores contratados, principalmente das ilhas de Cabo Verde ( BANDEIRA, 2017 ). Como consequência, o número de falantes de lung’Ie não somente sofreu uma redução drástica, mas também se viu pressionado pelo kabuverdianu, empregado na ilha por esses trabalhadores contratados e, posteriormente, por seus descendentes. Por essa razão, há na atualidade mais falantes do kabuverdianu do que do lung’Ie no Príncipe. Além dessa questão histórica, a redução do emprego do lung’Ie também está associada ao cenário social no qual a língua autóctone está inserida, principalmente no que tange a questões de política linguística. O português é a língua oficial de STP e, por conseguinte, é a língua mais prestigiosa do país, exercendo grande pressão sobre as demais línguas nacionais e promovendo um crescente abandono destas ( CHRISTOFOLETTI, 2013 ; BALDUINO, 2018 ). Porém, nos últimos anos, Agostinho, Bandeira e Araujo (2016) pontuam que a atitude da comunidade de fala de lung’Ie tem sido modificada em razão do apoio do governo regional. A vinculação entre língua e identidade vem sendo difundida e com ela a consciência de que o lung’Ie reflete a herança étnica-cultural dos habitantes da ilha do Príncipe é consolidada, inclusive, entre as gerações mais jovens. A população, dessa forma, tem sido incentivada, por meio de eventos culturais, pela difusão semanal na rádio local de programas em lung’Ie e pelo ensino escolar da língua nas escolas da Ilha, a empregar o lung’Ie com mais frequência nas diversas situações sociais (AGOSTINHO; BANDEIRA; ARAUJO, 2016).
O processo de nasalização em lung’Ie – Discussão
Nesta seção, buscamos descrever os processos de nasalização vocálica promovidos a partir de uma coda e de um onset nasal. Ambos os processos são opcionais, engatilhados por uma consoante [+nasal] e restritos à rima silábica, isto é, incidem sobre o núcleo e os offglides . Todavia, a despeito dessas similaridades, também são perceptíveis algumas diferenças. A nasalização vocálica engatilhada por uma coda nasal é tautossilábica, pode produzir distinção de significado, ocorre independentemente do acento lexical da palavra e, frequentemente, tem a consoante nasal em coda apagada, o que leva alguns autores a analisar as vogais nasais como fonológicas (ver MAURER, 2009 ). Por outro lado, a nasalização vocálica decorrente de um onset nasal não promove o apagamento da consoante que espalha o traço de nasalidade, ultrapassa a fronteira silábica e, por isso, pode ser heterossilábica ou tautossilábica, dependendo do acento lexical para sua aplicação. Esta seção descreverá e proporá uma análise fonológica para os dois processos de nasalização. Assim, na subseção Nasalização a partir de coda [+nasal] , nos deteremos na nasalização vocálica induzida por uma coda nasal, sustentando uma interpretação bifonêmica da nasalidade, pela qual assumimos a inexistência de vogais nasais intrínsecas em lung’Ie. Já na subseção Nasalização vocálica a partir de onset [+nasal] , nos dedicaremos à descrição da nasalidade vocálica engatilhada por onset nasal. Tais fenômenos foram analisados de acordo com uma perspectiva multinivelar da língua, pois fatores de ordem não-linear, como a sílaba e o acento, revelam-se cruciais para o fenômeno. Dessa forma, nos pautaremos sobretudo na teoria autossegmental ( GOLDSMITH, 1976 , 1995 ) e na fonologia CV ( CLEMENTS; KEYSER, 1983 ), para a representação formal dos processos.
Métodos e Corpus
O corpus deste estudo é constituído por gravações de fala espontânea e fala controlada, coletadas no Príncipe. Por meio dos dados de fala controlada, os processos de nasalização a partir da coda e do onset foram identificados e analisados com o auxílio de frases-veículo. Essas frases eram Ê faa X dôsu vêsê ‘Eu falo X duas vezes’ e Ê faa X momoli ‘Eu falo X baixinho’, onde X era substituído pelo item lexical-alvo que continha a vogal nasalizada. As frases eram repetidas três vezes por cada informante e a primeira rodada de repetições foi descartada. No total, trabalhamos com a gravação de quatro informantes, sendo todos nativos do Príncipe e falantes de lung’Ie.
Para a descrição da nasalização vocálica em lung’Ie, também consideramos os dados retirados da fala espontânea do corpus de Agostinho (2015) . Observamos, neste momento, a aplicação do processo atentando a fatores de ordem segmental, como a direção do espalhamento da nasalidade e os segmentos coarticulados à vogal nasalizada, assim como fatores suprassegmentais, como o acento lexical, o tom e o domínio da sílaba no qual os processos são aplicados. Pautados nos padrões identificados a partir da descrição do fenômeno, comprovamos, por meio do uso das frases-veículo, quais fatores atuam no processo de nasalização, permitindo a especificação deste em (i) nasalização a partir da coda e (ii) nasalização a partir do onset. Ambos os processos possuem a mesma natureza, porém apresentam algumas singularidades em sua aplicação.
Por fim, de modo a contribuir com a discussão dedicada à definição do estatuto da nasalidade vocálica em lung’Ie, como base no estudo de Moraes (2003) para o PB, aplicamos um teste perceptivo. Esse teste foi realizado a partir dados de fala cuja nasalidade, de acordo com nossa interpretação, decorria de uma coda silábica, como em (1):
(1) a. /fiNta/ [ˈfĩtɐ] ~ [ˈfĩntɐ] ~ [ˈfintɐ] ‘finta’
b. /kaNta/ [kɐ̃ˈta] ~ [kɐ̃nˈta] ~ [kanˈta] ‘cantar’
c. /kaNsa/ [kɐ̃ˈsa] ~ [kɐ̃nˈsa] ~ [kanˈsa] ‘cansar’
d. /kaNsu/ [ˈkɐ̃sʊ] ~ [ˈkɐ̃nsʊ] ~ [ˈkansʊ] ‘asma’
A preparação do material para a aplicação dos testes perceptivos foi realizada a partir do software Praat (BOERSMA; WEENICK, 2015). Na primeira etapa, gravamos a repetição da frases-veículo Ê faa X momoli ‘Eu falo X baixinho’ por um falante de lung’Ie. Posteriormente, usamos a ferramenta de cortar e extraímos do áudio a consoante em onset da sílaba seguinte à estrutura-alvo. Assim sendo, apagamos digitalmente o fone [t] da palavra /fiNta/ [ˈfĩtɐ], por exemplo. Feito isso, apresentamos os itens lexicais, já modificados, aos falantes de lung’Ie, e era pedido para que estes reproduzissem o que ouviam. A partir dessas reproduções, observamos se a percepção dos informantes sugeria a presença de uma consoante nasal plenamente realizada como em [ˈfĩnɐ], ou a presença de um traço nasal fonológico da vogal /ĩ/, correspondendo à percepção [ˈfĩɐ]. A primeira opção corroboraria a interpretação bifonêmica da nasalidade, indicando que em lung’Ie não há vogais nasais fonológicas, ao passo que a segunda atestaria a existência de vogais nasais intrínsecas.
Nasalização a partir de coda [+nasal]
Maurer (2009) , tendo em vista a existência da nasalidade vocálica no lung’Ie, bem como a possibilidade de distinção de significado a partir da oposição segmental entre [ṽ] e [v], assume a presença de vogais nasais fonológicas na língua. Agostinho (2015) , com base no comportamento fonotático do lung’Ie, refuta tal pressuposto. Para a autora, em lung’Ie não há pares mínimos do tipo /ã/ e /aN/ e, em alguns contextos, a oposição entre uma vogal oral e nasalizada não é capaz de alterar o significado entre o item lexical nasalizado e não nasalizado ( AGOSTINHO, 2015 ), o que caracterizaria a nasalidade vocálica nesta língua como bifonêmica /VN/, isto é, promovida por uma coda nasal. Esse ponto de vista é corroborado por Agostinho (2015) que, analisando empiricamente o contraste da duração dos segmentos nasalizados e orais, constatam que a vogal nasalizada por coda é recorrentemente mais longa em relação a sua contraparte oral, sugerindo que [ṽ] seja composta pela duração de /VN/ ( AGOSTINHO, 2015 ).
A investigação do fenômeno, a partir dos dados coletados em trabalho de campo no Príncipe, revela que o alongamento na duração não é o único correlato fonético de /VN/ em lung’Ie, havendo a possibilidade, inclusive, de produção de uma consoante nasal homorgânica em posição de coda, bem como de não nasalização da vogal adjacente à consoante [+nasal]. Como a consoante nasal identificada na coda é sempre homorgânica, nota-se sua subespecificação para o ponto de articulação e, por isso, o nó equivalente ao Ponto de C é compartilhado com o nó do Ponto de C da consoante seguinte, promovendo, assim, o espraiamento do traço [labial], ou [coronal], ou [dorsal], que passa a ser associado à /N/. O processo de nasalização, promovido por uma coda silábica, ocorre, então, quando o arquifonema nasal5 /N/ tautossilábico nasaliza a vogal que o precede, espalhando seu traço [+nasal] para a esquerda. Este tipo de nasalização é aplicado independentemente da tonicidade e pode distinguir significado nas realizações com vogal oral e nasalizada, como demonstrado em (2).
(2) a. /fita/ [ˈfitɐ] ‘fita’ - /fiNta/ [ˈfĩtɐ] ‘finta’
b. /kadja/ [kaˈdja] ‘cadeia’ - /kaNdja/ [kɐ̃ˈdja] ‘candeeiro’
O estabelecimento dos pares mínimos, em (2), é dado somente pela oposição entre a vogal nasalizada e a vogal oral, quer em contexto tônico, onde há a oposição entre [i] e [ĩ] (2a), quer em contexto pretônico, assinalado pela oposição entre [a] e [ɐ̃] (2b). Contudo, essa condição contrastiva não é observada em toda vogal nasalizada em decorrência de uma coda nasal e, portanto, itens como glutan [gluˈtɐ̃] ‘comilão’, destituído de um par mínimo estabelecido por uma vogal oral em contraste a uma vogal nasalizada, também são identificados.
De acordo com Günther (1973) , as vogais nasalizadas só ocorrem sem a consoante nasal em final de palavra, ou precedendo fricativas, ou líquidas: [laˈvi᷈] ‘navio’, [fi᷈ˈʒi] ‘fingir’, [ˈɔ̃ra] ‘honra’.6 Nos outros contextos, a vogal nasalizada ocorre com uma consoante nasal homorgânica ou a vogal se torna oral e ocorre com uma consoante homorgânica: [ˈmɛ̃ndu] ∼ [ˈmɛndu] ‘medo’.7Maurer (2009) argumenta que as vogais [+nasal] podem ser realizadas como nasais em todos os contextos, mas que a nasalização não é obrigatória. Para o autor, a palavra ‘pão’ pode ser realizada como [ũˈpɐ̃], [ũmˈpɐ̃], [umˈpɐ̃].8 Em nossa análise, por outro lado, constatamos que a nasalização diante de /N/ é obrigatória em vogais que precedem tal consoante em final de palavra, mas é facultativa se a vogal que precede /N/ não estiver no final da palavra. Já a realização da consoante homorgânica é sempre opcional, como mostrado em (3).
(3) a. /kaNsa/ [kɐ̃ˈsa] ~ [kɐ̃nˈsa] ~ [kanˈsa] ‘cansar’
b. /kɔsaN/ [kɔˈsɐ̃] ~ [kɔˈsɐ̃ŋ], *[kɔˈsaŋ] ‘coração’
Em (3a), temos um exemplo de nasal no meio da palavra em /kaNsa/, que pode ser realizada de três formas: vogal nasalizada [kɐ̃ˈsa], vogal nasalizada + consoante nasal homorgânica [kɐ̃nˈsa] e vogal oral + consoante nasal homorgânica [kanˈsa]. Por outro lado, /kɔsaN/, em (3b), que possui /N/ no final da palavra, pode ser produzida de duas formas: vogal nasalizada [kɔˈsɐ̃], e vogal nasalizada + consoante nasal homorgânica [kɔˈsɐ̃ŋ]. A forma com vogal oral + consoante nasal homorgânica *[kɔˈsaŋ] não é possível. Em lung’Ie, não foram identificadas sílabas átonas portando vogais nasalizadas em posição final de palavra.
Os exemplos em (3) apresentam a vogal nasalizada em sílabas com proeminências lexicais distintas, o que poderia suscitar a hipótese de que, na verdade, é o acento que impede a não nasalização de [ɐ̃] em (3b). Todavia, considerando dados como /ubaNku/ [uˈbɐ̃ŋkʊ] ∼ [uˈbaŋkʊ] ~ [uˈbɐ̃kʊ] ‘banco’ (4), em que observa-se a possibilidade de não nasalização mesmo a vogal-alvo do fenômeno estando posicionada na sílaba proeminente da palavra, confirmamos que o bloqueio da nasalização ocorre em decorrência da fronteira direita da palavra e não do acento lexical.
O contexto assinalado pela sequência vogal, coda nasal e oclusiva surda, favorece a não realização do processo, considerando o espalhamento da nasalidade a partir da coda nasal. Em casos deste tipo, podemos ter foneticamente [ṽ] ou [vN], como apontado em (4).9
(4) a. /ubaNku/ [uˈbɐ̃ŋkʊ] ∼ [uˈbaŋkʊ] ~ [uˈbɐ̃kʊ] ‘banco’
Com base nos outputs distintos das vogais nasalizadas por coda silábica, podemos formalizar o processo considerando o (i) espalhamento da nasalidade para a vogal precedente com a manutenção da consoante nasal em coda desde que haja assimilação do ponto de articulação da consoante seguinte, o que resultará na variabilidade da consoante nasal, a depender da consoante se dorsal, coronal ou labial, (ii) a manutenção da consoante nasal em coda, cujo ponto de articulação é assimilado da consoante homorgânica, porém sem o espalhamento regressivo da nasalidade para a vogal e (iii) o espalhamento da nasalidade seguido pelo apagamento da consoante nasal em posição de coda sem assimilação do ponto da consoante seguinte. As possibilidades estão representadas em (4). No exemplo (5a), identificamos a possibilidade de nasalização vocálica mais a manutenção da coda nasal. Nesse caso, além da vogal assimilar o traço de nasalidade da coda, a própria coda assimila o ponto de articulação da consoante seguinte, realizando-se como uma nasal homorgânica. Já em (5b), observamos a opcionalidade na nasalização em meio de palavra. Nesse exemplo, a vogal não é nasalizada, porém a coda manifesta-se como uma nasal homorgânica. Por fim, em (5c), é demonstrado o espalhamento da nasalidade para a vogal precedente e a queda da coda na camada segmental. Em decorrência desse apagamento, a vogal nasalizada passa a ser mais alongada por corresponder a duas unidades temporais (ver AGOSTINHO, 2015 ).
(5) a. /ubaNku/ [uˈbɐ̃ŋkʊ] ‘banco’
b. /ubaNku/ [uˈbaŋkʊ] ‘banco’
c. /ubaNku/ [uˈbɐ̃kʊ] ‘banco’
No exemplo (5c), concebemos que o apagamento segmental de /N/ não implica perda temporal silábica e, por isso, as durações silábicas de CVN ou de C[ṽ] são equivalentes. O alongamento na duração (ver AGOSTINHO, 2015 ) e a realização segmental da coda, identificada na análise dos dados apresentados, apontam para a existência de uma unidade temporal dentro da estrutura silábica que corresponde à posição de coda. Dessa maneira, considerando a possibilidade de manifestação fonética de uma coda nasal em dados como nos exemplos (5a) e (5b), assumimos, então, que primeiro há o espalhamento regressivo da nasalidade para a vogal à direita, para após haver o apagamento de /N/. A realização homorgânica de /N/ adquirindo o ponto de articulação da consoante em onset subsequente, indica que este fonema é subespecificado. Portanto, o segmento nasal /N/, embora não tenha seu ponto de articulação licenciado pela coda, detém unidade temporal e é ressilabificado na rima, mais especificamente na coda silábica, e assume o traço referente ao ponto de articulação do onset seguinte.10 Logo, em relação ao domínio de aplicação do processo, concluímos que a nasalização, engatilhada por uma coda nasal, ocorre no domínio da rima, ou seja, no núcleo e na coda. Sendo assim, os segmentos passíveis de serem nasalizados são as vogais e os offglides . Em (6), podemos observar a nasalização nos offglides .
(6) a. /treN/ [ˈtrẽ] ~ [ˈtrẽj̃] ‘trem’
b. /oleN/ [oˈlẽ] ~ [oˈlẽj̃] ‘além’
c. /obeN/ [oˈbẽ] ~ [oˈbẽj̃] ‘bens’
Com base nos itens lexicais expostos em (6), notamos que /N/ espalha sua nasalidade para a vogal nucleica de [oˈlẽ] ‘além’, [oˈbẽ] ‘bens’ e [ˈtrẽ] ‘trem’, entretanto, pode, ainda, nasalizar o offglide [j] das palavras em evidência, produzido posteriormente no output fonético.11 Os onglides , de modo distinto, não podem ser nasalizados pelo fonema nasal na coda da sílaba, pois estão posicionados no onset e, consequentemente, fora do domínio de aplicação da regra de nasalização. Esse bloqueio é indicado em (7), onde observamos a impossibilidade da aplicação do processo além da rima.
(7) a. /bɛtu waN/ [ˈbɛtʊ ˈwɐ̃], *[ˈbɛtʊ ˈw̃ɐ̃] ‘muito aberto’
b. /ljaN/ [ˈljɐ̃], *[ˈlj̃ɐ̃] ‘leão’
Günther (1973) também comprova este fato, mostrando o sândi com ditongação dentro da frase fonológica em que o onglide não é nasalizado, pois podemos ter [swɐ̃ˈre], mas não *[sw̃ɐ̃ˈre], já que a nasalização está restrita à rima, conforme indicado em (8).
(8) a. /suN are/ [swɐ̃ˈre] ‘senhor rei’
A nasalização promovida pela coda nasal em lung’Ie é regressiva. Assim sendo, /N/ poderia nasalizar, a princípio, a vogal nucleica /u/ de /suN/. Todavia, a aplicação do sândi vocálico promove uma reestruturação silábica e, portanto, /u/ passa a ser realizado como um onglide [w], compondo o onset da sílaba e, consequentemente, ficando fora do domínio de aplicação do processo de nasalização. Portanto, o processo de sândhi engatilha a mudança da vogal [w] para o onset, o traço [nasal] permanece na rima e com a posterior docagem de [a] ao núcleo, vazio com a saída de [u], cria-se o contexto para a nasalização da rima [ɐ̃].
Já em relação às vogais longas, por estarem na rima, a nasalização é espalhada normalmente, como indicado em (9).
(9) a. /ubaaNku/ [uˈbɐ̃ːku] ~ [uˈbaːŋku] ‘branco’
O fato de a nasalização ser espalhada nas duas vogais é um argumento para considerá-las como parte do núcleo da mesma sílaba, já que a palavra /kaiN/ não pode ser realizada como *[kɐ̃ˈĩ], mas apenas como [kɐˈĩ], o que demonstra que a nasalização não ultrapassa a fronteira da sílaba e que o lung’Ie apresenta vogais longas. Além dos reflexos fonéticos do processo de nasalização pontuados até o momento, foi identificado que a nasalização da vogal [ẽ] diante de /N/ pode gerar um processo de ditongação. Nesses casos, se a vogal [e] que precede a consoante nasal for realizada como uma vogal nasalizada, há a epêntese do glide [j], que também é nasalizado pela consoante /N/, por estar na rima.
(10) a. /treN/ [ˈtrẽ] ~ [ˈtrẽj̃] ‘trem’
b. /oleN/ [oˈlẽ] ~ [oˈlẽj̃] ‘além’
c. /obeN/ [oˈbẽ] ~ [oˈbẽj̃] ‘bens’
Outro processo recorrente envolvendo a coda nasal, corresponde ao seu apagamento final antes do espalhamento da nasalidade, fazendo com que a vogal permaneça oral. Esse apagamento é limitado às sílabas tônicas finais, como podemos observar em (11).
(11) a. /ozeN/ [oˈzẽ] ~ [oˈze] ‘joelho’
b. /iNpiN/ [ĩ ˈpĩ] ~ [ĩˈpi] ‘espinho’
Conforme (11), o apagamento final é facultativo e ambas as formas são aceitas pelos informantes sem alteração de significado. O apagamento da coda, no entanto, não é reservado à fronteira de palavra e, em sílaba pretônica, a queda da coda nasal também pode ser verificada em meio de palavra, como exposto em (12).
(12) a. [kɐ̃ˈta] ~ [kaˈta] ‘cantar’
b. [lɛ̃ˈta] ~ [lɛˈta] ‘entrar’
Conforme Selkirk (1982) , a coda silábica é mais suscetível a mudanças, como o apagamento, e à variação dialetal, pois corresponde à posição mais fraca da estrutura silábica ( SELKIRK, 1982apud PEDROSA; HORA, 2010). Conforme Pedrosa e Hora (2010) a possibilidade de variação ocorre em qualquer posição dentro da palavra, porém acentua-se mais na posição final. Assim, sobre a possibilidade de engatilhamento do apagamento da coda em fronteira de palavra, Hora; Pedrosa e Cardoso (2010) pontuam: “[...] a posição final de palavra é extremamente débil, por isso evita segmentos consonantais. Ademais, qualquer que seja o segmento que ocupe essa posição, há uma forte tendência a seu apagamento ou, ainda, à busca pelo padrão CV.” (HORA; PEDROSA; CARDOSO, 2010). Assim, a não nasalização dos segmentos finais pode decorrer da ausência do espalhamento da nasalidade para a vogal tautossilábica, a qual é elidida antes da reassociação do traço [+nasal] ao nó vocálico. Em lung’Ie, o locus desse apagamento, se em fronteira ou meio de palavra, está relacionado ao acento lexical: o primeiro tipo de apagamento é restrito a tônicas, enquanto o segundo é aplicado em pretônicas.
Em suma, observamos que o fenômeno de nasalização vocálica a partir de uma coda nasal, pode produzir diferentes outputs que, de forma geral, refletem a estrutura bifonêmica do processo. Assim, a nasalização vocálica por meio de uma coda nasal.
(13)
(i)não depende da proeminência lexical para sua aplicação;
(ii)pode produzir ou não distinção de significado pela oposição de pares mínimos;
(iii)é obrigatória em final de palavra;
(iv)é opcional em meio de palavra, sendo que sua não produção é favorecida pelo contexto segmental vogal oral + consoante homorgânica + consoante oclusiva surda;
(v)pode ser manifestada por meio da nasalização da vogal contígua, pela presença de uma coda nasal homorgânica ou, simultaneamente, por meio dos reflexos fonéticos;
(vi)apresenta espalhamento da nasalidade regressivo;
(vii)é limitada ao domínio da rima;
(viii)pode não ocorrer, caso /N/ seja elidido da coda antes do espalhamento da nasalidade no final de palavra;
(ix)pode produzir ditongação da vogal média [e] pela inserção de [j] em fronteira de palavra.
A seguir, a discussão sobre o estatuto das vogais nasalizadas por coda nasal é ampliada. Para tanto, teremos como base a percepção dos informantes, falantes nativos de lung’Ie, em relação a itens lexicais modificados digitalmente.
Em consonância com os resultados identificados a partir da descrição dos dados, visamos investigar a relevância perceptiva da nasalização vocálica para a interpretação bifonêmica da nasalidade tautossilábica no lung’Ie. Dessa forma, trabalhamos com itens lexicais, tônicos e pretônicos, modificados eletronicamente, e os disponibilizamos para julgamento de quatro falantes. A preparação do material para a aplicação dos testes perceptivos foi realizada a partir do software Praat (BOERSMA; WEENICK, 2015), com o emprego da ferramenta de recorte de elementos, a qual permitiu que extraíssemos do áudio a consoante em onset da sílaba seguinte à estrutura-alvo. Assim sendo, na palavra /fiNta/ [ˈfĩtɐ], por exemplo, apagamos, digitalmente, o fone [t]. Esse processo pode ser visualizado a partir do espectrograma na figura 1 , em que o segmento [t] é delimitado pelo silêncio que antecede a explosão da oclusiva e pela própria explosão. Ademais, observamos que a consoante [t] é antecedida pelo apêndice ou murmúrio nasal, assinalado por /N/ no espectro.
O apêndice nasal, nos espectrogramas das figuras 1 e 2 , corresponde a uma faixa menos escura quando contraposto à vogal [ĩ], sendo caracterizado por uma perda abrupta de energia, em que F2 equivalente à vogal passa a ser quase imperceptível. Sua presença tem sido interpretada como o correlato fonético de uma consoante subjacente nasal, na posição de travamento da sílaba ( BARBOSA; MADUREIRA, 2015 ). A partir da aplicação do teste, procuramos verificar como este apêndice é captado pelo falante de lung’Ie, se este é considerado como uma consoante nasal, resultando na percepção de [ˈfĩnɐ], ou se é percebido, ainda, como um traço nasal da vogal [ĩ], correspondendo à percepção [ˈfĩɐ]. Conforme Moraes (2003) , a primeira alternativa indicaria que /N/ é, de fato, percebido como heterossilábico, indicando que há uma consoante nasal em coda, ressilabificada e transformada numa consoante plena em onset. Por outro lado, caso a segunda alternativa seja confirmada, o apêndice corresponderia a uma transição acústica de uma vogal nasal para a consoante oral [t], justificando, assim, a interpretação monofonêmica da nasalidade ( MORAES, 2003 ).
Dessa forma, notamos que, de acordo com Moraes (2003) , o apêndice nasal desempenha um papel fundamental na caracterização da nasalidade vocálica a partir de coda em português. Corroborando esse ponto de vista, alguns autores caracterizam, acusticamente, a vogal nasalizada por coda, estabelecendo duas fases distintas: (i) início oral, marcado pela produção vocálica de fato, e (ii) fim nasal, locus onde ocorre a transição para os formantes nasais e a consequente produção do murmúrio nasal ( DOMINGOS, 2011 ; BARBOSA; MADUREIRA, 2015 ). Entretanto, ainda que o murmúrio nasal possa ser visível no espectrograma, como na figura 3 , ele nem sempre é detectado. Adicionalmente, em geral, no português, a língua lexificadora do lung’Ie, quando a vogal nasalizada é sucedida por consoantes fricativas, o apêndice não é identificado espectralmente ( CAGLIARI, 1977 ; SEARA, 2000 ; MEDEIROS, 2007 ; VALENTIM, 2009 ; ROTHE-NEVES; VALENTIM, 2012 ). Em lung’Ie, o murmúrio nasal pode ou não ser produzido antes de fricativas. Em relação aos itens lexicais utilizados no teste, vemos que este é sempre produzido, como demonstrado por /kaNsu/ [ˈkɐ̃sʊ], na figura 3 , em que o F2 de [ɐ̃] se estende até o último pulso da vogal, contudo, antes da produção da fricativa [s], observamos a faixa menos escura caracterizando o murmúrio.
A presença do apêndice nasal, nas figuras 3 e 4 , pode reforçar a hipótese inicial de que o murmúrio é possivelmente percebido como uma consoante nasal. De modo a observarmos, pelo teste de percepção, se esse é o caso, também operamos com dados em que [ṽ] era seguido por uma consoante fricativa. Logo, o [s] de itens como /kaNsu/ [ˈkɐ̃sʊ] foi removido, e verificamos se, mesmo sem a do murmúrio, haveria a possibilidade de /kaNsu/ ser percebido como [ˈkɐ̃nʊ], ou se os falantes de lung’Ie perceberiam a nasalidade do item modificado como [ˈkɐ̃ʊ]. Os itens lexicais usados no teste continham vogais nasalizadas, porém não possuíam uma coda nasal foneticamente realizada. Em grande parte dos dados, identificou-se a presença do apêndice nasal seguinte à [ṽ]. As percepções dos falantes são elencadas na tabela 1 .
Os dados e seus respectivos valores, expostos na tabela 1 , demonstram que, na maioria das vezes, os falantes de lung’Ie interpretam a nasalidade por coda como contendo uma consoante nasal, a qual, com a ausência de [t] ou [s], é ressilabificada para a posição de onset, quer em tônica, quer em pretônica. Ao considerar todas as ocorrências de cada informante, notamos que em 14/16 ou 87,5% das vezes, os informantes admitiram a presença de uma consoante nasal plena em onset nos itens lexicais abarcados. Por outro lado, os dados que fugiram ao padrão da ressilabificação de [n] em onset, decorrem do julgamento perceptivo dos informantes II e IV.
O informante II interpreta o item lexical kan[s]a, originalmente [kɐ̃nˈsa], como [kaˈɾa]. Assim, mesmo não compreendendo a presença de um segmento [+nasal], o falante preenche a posição de onset com a consoante [ɾ], a qual compartilha o ponto de articulação com o onset [n], identificado pelo mesmo falante nos outros dados. Nesse caso, embora o falante não interprete o apêndice nasal como [n], ele reconhece a existência de um item consonantal dentro da palavra, isto é, o apêndice nasal é assumido como uma unidade temporal dentro de sua estrutura interna. Esse fato, por si só, já constitui uma evidência para a possibilidade de uma nasalização bifonêmica, pois, ao reconhecer a presença de um segmento, o falante não computa o murmúrio nasal como uma transição não fonológica decorrente da nasalidade fonêmica da vogal, mas como um segmento posicionado em coda que, posteriormente, é ressilabificado em onset.
Já o informante IV mantém a nasalidade vocálica de kan[s]u [ˈkɐ̃sʊ], interpretando a palavra como [ˈkɐ̃], ou seja, não aponta a presença de uma coda nasal, tampouco interpreta o item como [ˈkɐ̃w̃], como esperado no caso de interpretação monofonêmica. Para esta mesma palavra, a única terminada em /u/ do teste, os demais informantes identificam a coda nasal, porém não a ressilabificam como onset, sustentando sua posição em travamento silábico. Em todos os casos, podemos observar a presença de um padrão: a sistemática exclusão de /u/ na percepção dos falantes. Com base na figura 6, na qual [s] foi recortada do original kan[s]u, notamos que isso pode ser justificado pelo ensurdecimento do [u].
Na Figura 5 , podemos observar, logo após /N/, o [ʊ̥] desvozeado. Esse ensurdecimento vocálico corresponde, possivelmente, ao resultado de uma dessincronização engatilhada pela manutenção da abertura das cordas vocais (CABRAL; RODRIGUES; CARVALHO, 2010) necessária para a articulação da fricativa surda [s]. A abertura das cordas vocais seria, então, mantida mesmo durante a produção da vogal que a sucede, o que dificultaria sua compreensão pelos falantes, resultando na interpretação de [ˈkɐ̃n] por grande parte dos informantes.
De outro modo, em relação ao informante IV, podemos levantar duas hipóteses explicativas. A primeira apontaria na direção de uma interpretação monofonêmica, pois [ˈkɐ̃] seria assim compreendido por [ɐ̃] corresponder a uma vogal nasal intrínseca, nesse caso, a realização da vogal final seria imprescindível para atestarmos a validade de tal premissa, o que não ocorre. De modo distinto, a segunda hipótese remete às possibilidades de outputs identificadas para a nasalização vocálica provocada por coda silábica em lung’Ie. Em nossos dados, todas as ocorrências de /N/, em coda final de palavra, nasaliza a vogal à esquerda, e esta pode ser expressa com a nasalização vocálica + apagamento da coda nasal ou a partir da nasalização vocálica + manutenção da coda nasal, como em /kɔsaN/ [kɔˈsɐ̃] ~ [kɔˈsɐ̃ŋ], mas não *[kɔˈsaŋ] ‘coração’. Como o [u], por estar ensurdecido, não é captado pelos falantes, não haveria a possibilidade de ressilabificação e, por isso, o informante IV reconheceria a nasalização da vogal provocada pela coda, porém elidiria /N/ em sua produção, já que esta é uma possibilidade da língua. Isso seria corroborado pelas demais interpretações atribuídas às palavras modificadas pelo informante IV, as quais, invariavelmente, acusam a presença de uma coda nasal ressilabificada em posição de onset. Essa última explanação, ao combinar as demais interpretações do próprio falante e as possibilidades fonotáticas do lung’Ie, nos parece mais plausível.
Diante dos resultados obtidos a partir do teste de percepção, confirmamos, então, o estatuto bifonêmico da nasalidade vocálica a partir de coda silábica em lung’Ie. O processo de ressilabificação realizado é formalizado em (14) e em (15).
(14)
(15)
Em (14a) temos, portanto, a representação fonológica de finta ‘finta’. Como pode ser notado, a primeira sílaba é fechada por uma coda nasal subespecificada /N/. Essa primeira forma foi manipulada por meio da exclusão do onset da segunda sílaba, como indicado em (14c). Assim, esperávamos que os falantes ressilabificassem-no para CV.CV, caso percebessem uma coda nasal, ou para um hiato CV.V, caso a nasal não fosse percebida. Todavia, os falantes ressilabificam como CV.CV, indicando, perceptualmente, uma coda nasal [coronal] na posição de onset (15b e 15c). Desse modo, o fato de o falante ouvir [ˈfi.nɐ] demonstra que, anteriormente à ressilabificação, o [t] espalha o traço [coronal] para a coda, antes de seu efetivo apagamento, a qual deixa de ser subespecificada, assimila o mesmo ponto de articulação de [t] e se realiza como [n] (14b).
O exame fonotático dos dados em consonância com os resultados do teste perceptivo, indicam que uma das possibilidades de nasalização vocálica em lung’Ie é, de fato, engatilhada por uma coda nasal. A seguir, investigaremos a nasalidade vocálica produzida a partir de um onset nasal.
Nasalização vocálica a partir de onset [+nasal]
O segundo tipo de nasalização é engatilhado, em lung’Ie, por um onset nasal, o qual pode ser ocupado por uma das consoantes nasais [m], [n] ou [ɲ], atestadas na língua. Nesses casos, não há diferença de significado nas realizações com vogal oral e nasalizada em nenhum caso, como em /mana/ [ˈmɐ̃nɐ] e [ˈmanɐ] ‘irmã’. O traço nasal não está presente na forma fonológica dessas vogais e sua realização nasalizada provém de uma consoante nasal em onset da mesma sílaba ou da adjacente, plenamente especificada, e não de uma coda nasal sem ponto de articulação definido. Dessa forma, este segundo tipo de nasalidade pode ultrapassar a fronteira silábica, mas ainda está restrito à rima, ou seja, apenas segmentos da mesma sílaba ou de sílabas adjacentes que estejam dentro da rima poderão ser nasalizados. Este tipo de nasalidade é sempre opcional e, diferente da nasalização produzida a partir da coda, o espalhamento pode ser regressivo ou progressivo.
Quando é regressivo, o espalhamento é para a esquerda, este processo ocorre em vogais em sílaba tônica que antecedem uma consoante nasal em onset na próxima sílaba à direita, como podemos observar em (16):
(16) a. /kama/ [ˈkamɐ] ~ [ˈkɐ̃mɐ] ‘cama’
b. /afikanu/ [afiˈkɐnʊ] ~ [afiˈkɐ̃nʊ] ‘africana’
c. /kɔnɔ/ [ˈkɔnɔ] ~ [ˈkɔ̃nɔ] ‘vagina’
Quando é progressivo, o acento lexical condiciona a aplicação da nasalização a partir de onset nasal, posto que, considerando dados como /bana/ ‘banana’, notamos que a nasalização não ocorre em sílabas átonas como [ba]. Assim, /bana/ ‘banana’ apresenta duas possibilidades de realização: sem qualquer tipo de nasalização como em [baˈna]; ou com a nasalização da sílaba tônica [baˈnɐ̃]. Em geral, em casos como este último, quando o espalhamento da nasalidade é progressivo, observamos o espalhamento do traço nasal da consoante em onset nasalizando a vogal tônica à direita, dentro da mesma sílaba, como demonstram os exemplos, em (17):
(17) a. /umwɛ/ [uˈmwɛ] ~ [uˈmwɛ̃] ‘mar’
b. /unwa/ [uˈnwa] ~ [uˈnwɐ̃] ‘lua’
c. /kanwa/ [kaˈnwa] ~ [kaˈnwɐ̃] ‘canoa’
d. /nɔ/ [ˈnɔ] ~ [ˈnɔ̃] ‘3ª pessoa plural’
e. /bana/ [baˈna] ~ [baˈnɐ̃] ‘banana’
f. /kumi/ [kuˈmi] ~ [kuˈmĩ] ‘lugar, caminho’
g. /kajma/ [kajˈma] ~ [kajˈmɐ̃] ‘goma de mandioca’
h. /lɛma/ [lɛˈma] ~ [lɛˈmɐ̃] ‘experimentar’
i. /ɲa/ [ˈɲa] ~ [ˈɲɐ̃] ‘sim’
j. /ɲɛ/ [ˈɲɛ] ~ [ˈɲɛ̃] ‘apertar’
k. /kɔɲa/ [kɔˈɲa] ~ [kɔˈɲɐ̃] ‘pênis’
l. /giɲa/ [giˈɲa] ~ [giˈɲɐ̃] ‘galinha’
Em (17), é possível observar que diferindo, mais uma vez, do processo de nasalização engatilhado por uma coda nasal, a nasalização produzida por onset nasal, independentemente do tipo do ponto de articulação que caracterizava a nasal em onset, não foi produzida em sílabas átonas em nosso corpus. Isso demonstra que o acento lexical deve ser considerado nesta língua, pois, no caso do processo analisado, este é um fator crucial para prevermos a aplicação da nasalização vocálica engatilhada por um onset nasal, bem como para distinguirmos a origem dos processos de nasalização, posto que o fenômeno promovido por coda nasal apresentará comportamento um pouco distinto. Essa interpretação é reforçada em (18), onde indicamos alguns dados que ilustram a importância do acento, apontando a agramaticalidade de nasalização vocálica em átonas.
(18) a. /kana/ [kaˈna], *[kɐ̃ˈna] ‘cana-de-açúcar’
b. /bana/ [baˈna] ~ [baˈnɐ̃], *[bɐ̃ˈna] ‘banana’
c. /kama/ [ˈkamɐ] ~ [ˈkɐ̃mɐ], *[ˈkamɐ̃], *[ˈkɐ̃mɐ̃] ‘cama’
d. /ama/ [ˈamɐ] ~ [ˈɐ̃mɐ], *[ˈamɐ̃], *[ˈɐ̃mɐ̃] ‘ama’
De acordo com Maurer (2009) , nomes dissilábicos podem conter quatro tons subjacentes: LL, HL, LH ou HH.12 As palavras /kànà/ e /bànà/ têm dois tons baixos LL e a palavra /kámá/ tem dois tons altos HH, segundo Maurer (2009) .13 Como palavras dissílabas LL têm acento final, ou seja, a primeira sílaba é átona, a nasalização não pode ser espalhada à esquerda nessas palavras. Porém, a nasalização de uma palavra LL pode ser espalhada à direita, como no exemplo /bana/, em que podemos ter [bàˈnɐ̃̀], mas não *[bɐ̃̀ˈnà]. Em outras palavras, não é possível explicar o fato de [bàˈnɐ̃̀] ser possível e *[bɐ̃̀ˈnà] não, se levarmos apenas o tom, e não o acento em consideração. Podemos observar que o mesmo ocorre com a palavra /kama/, em que [kɐ̃̀mɐ̀] é possível, mas *[kàmɐ̃̀] não. Como a nasalização deste tipo pode ser espalhada para a esquerda e direita, e como podemos ter nasalização para a esquerda em uma sílaba H, por que não poderíamos ter a nasalização para a direita, em uma sílaba que também é H? Sendo assim, a noção de acento se mostra essencial para a compreensão do espalhamento de nasalidade. Além disso, a nasalização mostra que não existe consoante pré-nasalizada e que, em uma sequência de consoante nasal + consoante, cada segmento está em uma sílaba, porque nasaliza sílabas átonas, fazendo necessariamente parte da coda e não no onset, posto que a nasalização engatilhada por esta última posição é condicionada pela maior proeminência lexical. Para uma discussão sobre tom e acento em lung’Ie, ver Maurer (2009) e Agostinho (2015) .
O único caso identificado, onde a vogal átona incorpora a nasalização de uma consoante nasal, ocorre com a pré-vocalização. Em lung’Ie, opcionalmente, a vogal epentética [i] assimila a nasalidade da consoante em algumas palavras iniciadas, exclusivamente, por /ɲ/, como demonstrado em (19):
(19) a. /ɲɔ/ [ˈɲɔ] ~ [ˈɲɔ̃] ~ [iˈɲɔ] ~ [ĩˈɲɔ̃] ‘nenhum’
b. /ɲa/ [ˈɲɐ] ~ [ˈɲɐ̃] ~ [iˈɲɐ] ~ [ĩˈɲɐ̃] ‘sim’
c. /ɲaNSi/ [ˈɲɐ̃ʃɪ] ~ [ĩˈɲɐ̃ʃɪ] ‘sim’
A vogal [ĩ] é nasalizada por conta da ambissilabicidade de [ɲ], uma vez que o onset não nasalizaria a vogal à esquerda em sílaba átona.14 Nesses casos, [ɲ] estaria associado tanto à posição do onset, quanto à posição da coda, como demonstrado em (20), resultando em uma sílaba formada somente por uma coda, como indicado no diagrama em (20a). Por consequência dessa formação silábica, haveria a possibilidade inserção de um elemento epentético na sílaba de modo a preencher a posição de núcleo. Este elemento epentético seria o [i], como demonstrado em (20b). A inserção da vogal epentética, no caso de pré-vocalização, promove a nasalização vocálica progressiva e regressiva, posto que [ɲ] é ambissilábico. Assim, [ɲ], como coda, nasaliza a vogal nucleica [i], e, como onset, nasaliza [a]. O resultado dessa articulação complexa é representado pelo espalhamento de [+nasal] à esquerda e à direita em (20c).
(20)
A nasalização regressiva e progressiva das vogais circuncidantes à [ɲ], bem como a inserção de [i] como vogal epentética na posição de núcleo, sustentam a natureza ambissilábica da consoante nasal palatal. A própria natureza de [i] nasalizado reside na fissão da consoante palatal que projeta um nó vocálico para a esquerda ( WETZELS, 1993 ). Ademais, nesses casos de nasalização, também há opcionalidade, e a consoante ambissilábica pode espalhar ou não o traço de nasalidade para a vogal protética [i] ou para a vogal que ocupa o núcleo da sílaba seguinte. A nasalidade promovida por coda, desde que não tenhamos /N/ em final de palavra, é opcional em lung’Ie e, portanto, [i] pode ser ou não nasalizado. Essa opcionalidade é ainda observada na nasalização engatilhada por onset.
Retomando alguns dados exposto em (21), é possível identificar que a nasalização em onset é engatilhada por diferentes consoantes nasais, sejam estes /n/, /m/ ou /ɲ/.
(21) a. /kanwa/ [kaˈnwa] ~ [kaˈnwɐ̃] ‘canoa’
b. /bana/ [baˈna] ~ [baˈnɐ̃] ‘banana’
c. /kumi/ [kuˈmi] ~ [kuˈmĩ] ‘lugar, caminho’
d. /kajma/ [kajˈma] ~ [kajˈmɐ̃] ‘goma de mandioca’
e. /ɲa/ [ˈɲɐ] ~ [ˈɲɐ̃] ~ [iˈɲɐ] ~ [ĩˈɲɐ̃] ‘sim’
f. /kɔɲa/ [kɔˈɲa] ~ [kɔˈɲɐ̃] ‘pênis’
Assim como a nasalização promovida por coda silábica, o onglide não é nasalizado, como em [kaˈnwɐ̃], restringindo a nasalização vocálica engatilhada por onset também ao domínio da rima, ou seja, o onglide parece fazer parte do onset e por isso não é alvo ( AGOSTINHO, 2015 ). Dessa forma, a análise aqui apresentada fornece uma generalização sobre a rima como um domínio relevante para o processo de nasalidade no lung’Ie.
A análise dos dados que continham vogais nasalizadas a partir de um onset silábico, nos leva, então, a concluir que tal processo:
(22)
(i)ocorre apenas em sílabas tônicas e, portanto, o acento lexical é crucial para seu estabelecimento;
(ii)não produz distinção de significado;
(iii)é opcional, independentemente, da consoante nasal envolvida ([m], [n] e [ɲ]);
(iv)o espalhamento da nasalidade pode ser regressivo ou progressivo, sendo que a direcionalidade do processo é determinada pelo acento lexical da palavra;
(v)é limitada ao domínio da rima.
Esse processo, portanto, pode ser representado em (23), onde temos, primeiro, a nasalização progressiva de /a/ da sílaba tônica em decorrência do espraiamento do segmento [n] tautossilábico em (23a) e, a nasalização regressiva de /a/ da sílaba tônica em decorrência do espraiamento do onset [n] heterossilábico em (23b).
(23)
Em qualquer possibilidade de nasalização a partir do onset nasal, o segmento nasal é mantido no output, não havendo qualquer apagamento segmental, como previsto para a nasalização promovida por uma coda /N/. O acento, nesse caso, delimitará a ocorrência ou não do processo, indicando que, conforme indica Agostinho (2015) , o sistema suprassegmental do lung’Ie é misto e não pode ser considerado como apenas tonal, como fora proposto por Günther (1973) e Maurer (2009) .
Considerações Finais
A análise fonotática dos dados e os resultados do teste perceptivo corroboram a presença de dois processos de nasalização vocálica em lung’Ie decorrentes do espalhamento do traço [+nasal] de consoantes nasais: (i) a nasalidade vocálica engatilhada por uma coda nasal, já descrita na literatura, e (ii) a nasalidade vocálica promovida por onset nasal, descrita originalmente aqui. O lung’Ie, portanto, não apresenta vogais nasais fonológicas, mas vogais nasalizadas ( AGOSTINHO, 2015 ; BALDUINO et al., 2015; BANDEIRA, 2017 ).
No primeiro tipo de nasalização, além da possibilidade de distinção de significado nas realizações com vogal oral e nasal, como nas palavras [fiˈka] ‘ficar’ e [fĩˈka] ‘fincar’, o espalhamento do traço [+nasal] é regressivo e a obrigatoriedade do fenômeno é restrita à fronteira de palavra. Assim, constatamos que a nasalização diante de /N/ é obrigatória em vogais que precedem /N/ em final de palavra, mas é facultativa se a vogal que precede /N/ não estiver no final da palavra. A coda nasal pode ou não ser produzida no processo de nasalização por coda, entretanto, caso seja realizada, seu ponto de articulação será definido pelo onset seguinte, caracterizando tal fonema como subespecificado para o ponto de articulação. De outro modo, caso a coda não seja realizada, a vogal contígua à esquerda será sempre nasalizada e duracionalmente mais longa em relação à sua contraparte oral ( AGOSTINHO, 2015 ). Nesses casos, /N/ é elidida da camada segmental após o espalhamento de seu traço de nasalidade para a vogal anterior, a qual passa a ocupar duas unidades temporais dentro da sílaba. Quando há apagamento da coda /N/ antes da transferência do traço de nasalidade, o processo de nasalização não é realizado, e, por isso, a vogal não é nasalizada. Em relação ao teste perceptivo, pôde ser constatado que em 87,5% das vezes, os falantes interpretaram o apêndice nasal, perceptível no espectrograma, como uma consoante nasal ressilabificada na posição de onset. Tal resultado confirma a interpretação bifonêmica da nasalidade, porém precisa ser relativizado ao número de informantes que é baixo, apontando a necessidade de um experimento perceptivo que considere uma amostra mais ampla.
Em relação ao segundo tipo de nasalização, notamos que o espalhamento da nasalidade da consoante nasal em onset pode ocorrer para a esquerda (heterossilábica) ou para a direita (tautosilábica), sendo a assimilação da nasalidade pela vogal sempre opcional. Similar à nasalização por coda, o traço nasal não está presente na forma fonológica dessas palavras e a nasalidade provém de uma consoante nasal em onset da mesma sílaba ou de sílaba adjacente. Sendo assim, a nasalidade pode ultrapassar a fronteira silábica, mas é restrita à rima, bem como nos casos de nasalização engatilhada por coda ( AGOSTINHO, 2015 ). Nestes processos de nasalização, não há diferença de significado nas realizações com vogal oral e nasalizada, como na palavra [ˈmɐ̃nɐ] e [ˈmanɐ] ‘irmã’. Além disso, o processo de espalhamento, embora possa ser engatilhado por uma consoante nasal em onset de uma sílaba tônica ou átona, tem como alvo as vogais tônicas e não é previsto em sílabas átonas. A importância do acento indica que este deve ser considerado no sistema suprassegmental do lung’Ie, o qual não é apenas tonal, como fora proposto por Günther (1973) e Maurer (2009) .
Em decorrência da limitação dos dados do teste perceptivo, este artigo deixou algumas questões em aberto. Em pesquisas futuras, seria necessário ampliar o escopo dos dados e analisar a percepção da nasalidade engatilhada por coda considerando mais contextos segmentais circuncidantes, bem como distintas proeminências lexicais. É preciso observar a manifestação do apêndice nasal diante de diferentes contextos consonantais, atentando, principalmente, à sequência /VN.S/, onde /S/ corresponde a qualquer consoante fricativa em onset silábico, pois o comportamento do apêndice nasal, como apontado pela literatura ( SOUSA, 1994 ; MEDEIROS, 2007 ; VALENTIM, 2009 ), nem sempre é uniforme neste contexto. Por fim, é interessante, ainda, investigar a percepção das vogais nasalizadas por onset nasal, contrapondo os resultados com a percepção das vogais nasalizadas por coda, de modo a analisarmos os possíveis efeitos perceptivos que as diferentes fontes de engatilhamento - se a coda, ou se o onset - podem ocasionar, conforme o julgamento do falante nativo de lung’Ie.
Agradecimentos
Ana Lívia Agostinho agradece ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, à Universidade de São Paulo, à FAPESP (bolsa 2011/06107-6) e ao CNPq (bolsa 200519/2019-0). Amanda Macedo Balduino agradece à Universidade de São Paulo e Gabriel Antunes de Araujo agradece ao CNPq (bolsa 310463/2016-5), à Universidade de São Paulo e à Universidade de Macau (SRG-2019-00153-FAH) pelo suporte financeiro e acadêmico.
REFERÊNCIAS
- AGOSTINHO, A. L. Fonologia e método pedagógico do lung’Ie . 2015. 417f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
- AGOSTINHO, A. L.; BANDEIRA, M.; ARAUJO, G. A. de. O Lung’Ie na educação escolar de São Tomé e Príncipe. Trabalhos em Linguística Aplicada , Campinas, v.55, n. 33, p. 591-618, 2016.
- ARAUJO, G. A. de. Ideofones no são-tomense. Papia, Brasília, v. 19, p 23-37, 2009.
- BALDUINO, A. M. A nasalidade vocálica no português falado em São Tomé e Príncipe . 296f. Dissertação (Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
- BALDUINO, A. M.; AGOSTINHO, A. L.; ARAUJO, G. A. de; CHRISTOFOLETTI, A. A nasalidade vocálica em santome e lung’ie. PAPIA , São Paulo, v. 25, n. 1, p. 7-25, 2015.
- BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné . 2017. 440 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
- BARBOSA, P.; MADUREIRA, S. Manual de fonética acústica e experimental . São Paulo: Cortez, 2015.
- BARTENS, A. Ideophones and sound symbolism in Atlantic Creoles . Helsink: Academia Scientiarum Fennica, 2000.
-
BOERSMA, P.; WEENICK, D. Praat: doing phonetics by computer. [Computer program]. Version 5.4.08. Restaurado em: 24 mar. 2015. Disponível em: http://www.praat.org/ Acesso em: 05 jun. 2020.
» http://www.praat.org/ - CABRAL, A.; RODRIGUES, A.; CARVALHO, F. Ensurdecimento vocálico em Zo’é. Estudos Linguísticos , Belo Horizonte, v. 18, n. 1, p. 51-60, 2010.
- CAGLIARI, L. An experimental study of nasality with particular reference to Brazilian Portuguese . 1977. Tese (Doutorado em Linguística) - University of Edinburgh, Edimburgo, 1977.
- CÂMARA-JR, J. Estrutura da Língua Portuguesa . Rio de Janeiro: Vozes, 1970.
- CHRISTOFOLETTI, A. Ditongos no português de São Tomé e Príncipe . 2013. 109 f. Dissertação (Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
- CLEMENTS, N.; KEYSER, S. CV Phonology: a generative theory of the syllable. Cambridge, MA: MIT Press, 1983.
- DOMINGOS, M. Nasalidade vocálica em Português: pistas para identificação forense de falantes. 2011. 189 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011.
- GOLDSMITH, J. Autossegmental phonology. 1976. Tese (Doutorado em Linguística) - Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1976.
- GOLDSMITH, J. Autossegmental and metrical phonology . Oxford: Blackwell, 1995.
- GÜNTHER, W . Das portugiesische Kreolisch der Ilha do Príncipe . Marburg and der Lahn: Im Selbstverlag, 1973.
- HORA, D.; PEDROSA, J; CARDOSO, W. Status da consoante pós- vocálica no português brasileiro: coda ou onset com núcleo não preenchido foneticamente? Letras de Hoje , Porto Alegre, v. 45, n. 1, p. 71-79, 2010.
- HYMAN, L. M. Do all languages have word accent? In: HULST, H. V. D. (Ed.). Word stress: theoretical and typological issues. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p.56-82.
- HYMAN, L. M. Word-prosodic typology. Phonology, Cambridge, v. 23, n. 2, p. 225–257, 2006.
-
INE. São Tomé e Príncipe em números . São Tomé: Instituto Nacional de Estatística, 2012. Disponível em: http://http://www.ine.st/2012.html Acesso em: 05 jun. 2020.
» http://http://www.ine.st/2012.html - MAURER, P. Principense Grammar texts, and vocabulary of the afro-portuguese creole of the island of Príncipe, Gulf of Guinea. London: Battlebridge Publications, 2009.
- MEDEIROS, B. Vogais nasais do português brasileiro: reflexões preliminares de uma revista. Revista Letras , Curitiba, n. 72, p. 165-188, 2007.
- MICHAEL, L. The interaction of tone and stress in the prosodic system of Iquito (Zaparoan). Amerindia, Paris, v. 35, p. 53–74, 2011.
- MIGUEL, M. A. Vogais nasais e nasalizadas: uma falsa questão? In: ENCONTRO DE ESTUDOS DEIALECTOLÓGICOS, 1., 2003, Ponta Delgada. Actas […]. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2006. p. 183-206.
- MORAES, J.; WETZELS, L. Sobre a duração dos segmentos vocálicos nasais e nasalizados em português: um exercício de fonologia experimental. Cadernos de Estudos Linguísticos , Campinas, n.23, p. 153-166, 1992.
- MORAES, J. Produção e percepção das vogais nasais. In: ABAURRE, M. (Org.). Gramática do português culto falado no Brasil: a construção fonológica da palavra. São Paulo: Contexto, 2003. v. 2, p. 95-112.
- ROTHE-NEVES, R.; REIS, C. Uma bibliografia da nasalidade vocálica no português. Letras de Hoje , Porto Alegre, v. 47, p. 299-305, 2012.
- ROTHE-NEVES, R.; VALENTIM, H. On the duration of nasal vowels in Brazilian Portuguese. Revista Diadorim , Rio de Janeiro, v. 12, p. 108-128, 2012.
- SEARA, C. Estudo acústico-perceptual da nasalidade das vogais do português brasileiro . 2000. 270 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.
- SELKIRK, E. The syllable. In: HULST, H.; SMITH, N. (Ed.). The structure of phonological representations. Dordrecht: Foris, 1982. p. 337-383.
- SOUSA, E. Para a caracterização fonético-acústica da nasalidade no português do Brasil . 1994. 189 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994.
- TRAILL, A.; FERRAZ, L. The interpretation of tone in Principense Creole. Studies in African Linguistics, Portland, v. 12, n. 2, p. 205-215, 1981.
- VALENTIM, H. Duração dos segmentos vocálicos orais, nasais e nasalizados do português brasileiro . 2009. 112 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Teórica e Descritiva) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
- WETZELS, L. Comentários sobre a estrutura fonológica dos ditongos nasais no português do Brasil. Revista de Letras , Curitiba, v. 22, p. 25-30, 2000.
- WETZELS, L. The lexical representation of nasality in Brazilian Portuguese. Probus , The Netherlands, n. 9, p. 203-232, 1997.
- WETZELS, L. Prevowels in Maxacalí: Where they come from. Abralin , Campinas, v. 14, p. 39-63, 1993.
-
1
Parte da discussão aqui apresentada é um desdobramento da tese de doutorado de Agostinho (2015) .
-
2
Utilizaremos /N/ para representar a subespecificação dos fonemas nasais em coda, já que nesta posição a consoante nasal não possui ponto de articulação definido.
-
3
Transcrições de Günther (1973 , p. 37): “[lavi᷈́]; [fi᷈ʒí] e [ɔ̃́ra].”
-
4
Transcrição de Maurer (2009 , p. 08): “[mɛ̃́ndu] ~ [mɛ́ndu] ‘medo’.”
-
5
Transcrição de Maurer (2009 , p. 08): “[ũ̀pã́], [ũ̀mpã́] e [ùmpã́].”
-
6
A palavra /uNa/ ‘um’, realizada foneticamente como [ˈũa] ∼ [ˈw̃a] ∼ [ˈũwa], representa uma exceção, pois, nesse único caso, a consoante nasal na coda da primeira sílaba é realizada no interior da palavra e nasaliza a rima, obrigatoriamente. Pode se tratar também de um caso raro de lexicalização da nasalidade vocálica, como defendido para o português brasileiro por Wetzels (2000) , onde se argumenta a favor da hipótese segundo a qual todos os ditongos nasais do PB têm uma vogal alta nasal lexicalizada. Na língua co-irmã santome, a palavra < ũa > (ARAUJO; HAGEMEIJER, 2013) também se comporta de forma sui generis em relação a nasalidade geral, como em lung’Ie.
-
7
A subespecificação de tal segmento pode ser observada na realização do morfema de primeira pessoa do singular /N/, que ocupa o núcleo da sílaba, realizada como [ũŋ] e [ĩŋ] ou como uma nasal silábica, a qual assimila o ponto de articulação da consoante seguinte e pode nasalizar a vogal que o antecede quando ocorre após o verbo como em [ˈdãŋ kwiˈse]. Nesta posição, o morfema da primeira pessoa do singular também pode ser realizado como [ˈmi], como em [ˈda ˈmi kwiˈse]. A consoante nasal pode ser realizada, foneticamente, como silábica, não engatilhando, nesses casos, a nasalização vocálica. Por outro lado, ao ser realizada como uma consoante não silábica, comporta-se como coda da sílaba fonética e, por isso, nasaliza a vogal do núcleo que a antecede, como em (1). Outra análise possível seria considerar que a nasal silábica esteja em onset como pré-nasalização da consoante. (1) a. /da N kwise/ [ˈda ŋ̩ kwiˈse] ~ [ˈdãŋ kwiˈse] ~ [ˈdã kwiˈse] ‘me dê isto’ /da N dɔʃi se/ [ˈda n̩ ˈdɔʃɪ ˈse] ~ [ˈdãn ˈdɔʃɪ ˈse] ~ [ˈdã ˈdɔʃɪ ˈse] ‘me dê este doce’ Maurer e Günther não mencionam a nasal velar [ŋ] em seus trabalhos. Maurer (2009) descreve o pronome de primeira pessoa nesta posição como <n>, acrescentando que Günther utiliza a forma <m>. Segundo o autor, seus informantes rejeitam a forma <m>, aceitando apenas [n], como em da n kêtê ou da mi kêtê , mas não da m kêtê ‘Me dê o pequeno’. Em nossos dados, contudo, nestes casos é a nasal velar [ŋ] que aparecerá diante ds velares [k] e [g]. Sendo assim, [m] só apareceria diante de labiais [p, b, w]. Dessa forma, observamos que a consoante nasal assimilará o ponto de articulação da consoante que a sucede, sendo, portanto, realizada como [n̩] diante de coronais, como [m̩] diante de labiais e como [ŋ̩] diante de velares.
-
8
Ainda sobre a nasalização de offglides , podemos citar o exemplo de /ukuru kajNkajN/ [uˈkurʊ kɐ̃j̃ˈkɐ̃j̃] ‘muito escuro’, um ideofone da língua. Notamos que, nesse caso, a sílaba é fechada, na forma fonológica, por um glide (G) e uma coda nasal (N), indo contra o padrão silábico do lung’Ie, o qual não admite dois elementos na coda (cf. AGOSTINHO, 2015) . Em nosso corpus e na literatura, não são identificadas sílabas fonológicas do tipo (C)VGN ou mesmo (C)VGC, sendo a única exceção a essa regra o ideofone /kajNkajN/. Bartens (2000) defende que os ideofones podem apresentar fones que não aparecem no quadro fonológico da língua, bem como estruturas silábicas diferentes às de sua fonotática, infringindo as regras fonológicas e fonotáticas das línguas. Contudo, Araujo (2009) afirma, em relação ao santome, língua aparentada ao lung’Ie, os ideofones obedecem ao sistema geral da língua. Pelo fato de /kajNkajN/ ser um ideofone e o único caso de coda complexa encontrado em nosso corpus, tomaremos este caso como excepcional.
-
9
H = tom alto; L = tom baixo. Sem indicação de tonicidade, como no original.
-
10
Todas notações tonais foram retiradas de Maurer (2009) . É válido ressaltar que há disparidade entre os padrões tonais apresentados por outros autores, como Günther (1973) e Traill e Ferraz (1981) .
-
11
Wetzels (1997) propôs uma análise semelhante para as consoantes palatais do português.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Ago 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
18 Set 2018 -
Aceito
31 Mar 2019