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Notas sobre trabalho e sacrifício

Notes on work and sacrifice

Resumos

O objetivo deste ensaio é refletir sobre o trabalho a partir da Teoria Crítica da Sociedade. Examinam-se alguns conceitos associados a ele, tais como o de práxis, sacrifício e dominação.

Teoria Crítica da Sociedade; trabalho; sacrifício


The aim of this essay is to discuss the concept of labour, having at reference the Critical Social Theory. The concepts of praxis, sacrifice and domination are also examined.

Critical Social Theory; labour; sacrifice


ARTIGO ARTICLE

Notas sobre trabalho e sacrifício1 1 O autor agradece ao CNPq pelo apoio financeiro que vem recebendo.

Notes on work and sacrifice

José Leon Crochík2 2 Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do Instituto de Psicologia da USP; e Docente dos Programas de Estudos Pós-Graduados em Educação (História, Política, Sociedade) e em Psicologia Social da PUC-São Paulo; Pesquisador do CNPq. < jlchna@usp.br>

RESUMO

O objetivo deste ensaio é refletir sobre o trabalho a partir da Teoria Crítica da Sociedade. Examinam-se alguns conceitos associados a ele, tais como o de práxis, sacrifício e dominação.

Palavras-chave: Teoria Crítica da Sociedade; trabalho; sacrifício.

ABSTRACT

The aim of this essay is to discuss the concept of labour, having at reference the Critical Social Theory. The concepts of praxis, sacrifice and domination are also examined.

Key words: Critical Social Theory; labour; sacrifice.

Introdução

Este ensaio tem como objetivo apresentar alguns apontamentos para pensar a questão da formação pelo trabalho a partir da Teoria Crítica da Sociedade, em especial a partir de alguns dos textos de Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse. Ele se propõe a ser um indicativo de algumas leituras para a reflexão sobre o tema e apresenta alguns conceitos associados a ela: a práxis, o sacrifício, a dominação, a adaptação. O trabalho é compreendido como forma de adaptação social e individual ao mundo que é por ele transformado segundo as necessidades sociais, considerando-se a forma de poder existente: o capital.

A distinção entre trabalho manual e intelectual - que, com o progresso, possibilita a práxis que se vincula à liberdade - é enfraquecida, quando o primeiro torna-se o modelo do último, na submissão aos interesses da reprodução do modo burguês de existência. É o tempo livre do trabalho, que visa à produção de bens imediatos à reprodução da vida individual, que possibilita o trabalho intelectual, quer como melhor forma de realizar aquele, por meio da organização e da administração, quer como reflexão para além de uma vida calcada no trabalho de subsistência. E, nesse sentido, o trabalho vincula-se à práxis:

"A práxis nasceu do trabalho. Alcançou seu conceito quando o trabalho não mais se reduziu a reproduzir diretamente a vida, mas sim pretendeu produzir as condições desta: isto colidiu com as condições então existentes. O fato de se originar do trabalho pesa muito sobre toda práxis" (Adorno, 1995, p. 206).

O trabalho cria as condições para que as condições de existência sejam alteradas, dentre essas, a sua configuração. A práxis surge do trabalho para indicar uma existência além dele. Assim, ela se define pelo não-trabalho e o seu fim é a liberdade dele. Ocorre que, por sua vinculação ao trabalho, transforma o seu fim - a liberdade - no seu contrário: atividade pretensamente imediata e espontânea. O momento de não-liberdade que a práxis herdou do trabalho colide com o princípio do prazer:

"Até hoje, acompanha-a (a práxis) o momento de não-liberdade que arrastou consigo: que um dia foi preciso agir contra o princípio do prazer a fim de conservar a própria existência, embora o trabalho, reduzido a um mínimo, entretanto não mais precisasse continuar acoplado à renúncia" (Adorno, 1995, p. 206).

O trabalho prazeroso perderia o seu caráter de sacrifício, não seria meio para a subsistência, mas fim em si mesmo, teria como atrativo principal o lúdico que pertence ao jogo. Porém, deixando de se associar com a autoconservação, o trabalho não seria mais trabalho que torna a natureza um para si humano e o homem obra de si mesmo, mas atividade que tem no prazer o seu fim; a relação com a natureza deixaria de ser a de expropriação, ou, ao menos, essa seria reduzida ao máximo, e tornar-se-ia possível um estado de paz entre homem e natureza, entre sujeito e objeto:

"Se fosse permitido especular sobre o estado de reconciliação, não caberia imaginá-lo nem sob a forma de indiferenciada unidade de sujeito e objeto nem sob a de sua hostil antítese: antes, a comunicação do diferenciado. Em seu lugar de direito estaria, também do ponto de vista da teoria do conhecimento, a relação entre sujeito e objeto na paz realizada, tanto entre os homens como entre eles, e o outro que não eles. Paz é um estado de diferenciação sem dominação, no qual o diferente é compartido" (Adorno, 1995, p. 184).

O trabalho como sacrifício do princípio do prazer associa-se à troca já presente nos rituais primitivos: para se acalmar a fúria dos deuses, ofereciam-se oferendas, entre elas, a vida de alguém. Sua origem, assim, é a desigualdade entre homens e deuses, sua aparência, a igualdade expressa pela troca. Se, no trabalho, o prazer é sacrificado na submissão ao capital, ele não deixa de existir, mas associa-se ao que lhe é contrário: a destruição; ou se torna mera compulsão, retirando o sentido da ação; ou fragmenta a vida humana, expulsando a humanidade que a atividade traz. Como sacrifício, o trabalho entrega a vida em troca da possibilidade da subsistência.

O espírito burguês é o que se vale da astúcia; a natureza, os deuses, os selvagens, os trabalhadores são suas vítimas. Os trabalhadores são os sucessores da natureza dominada para o espírito burguês e, como herdeiros da natureza, da qual o senhor quer se distanciar, são alvos daquela astúcia. Essa, contudo, lembra continuamente a fragilidade do senhor:

"Todo esclarecimento burguês está de acordo na exigência de sobriedade, realismo, avaliação correta de relações de força. O desejo não deve ser o pai do pensamento. Mas isso deriva do fato de que, na sociedade de classes, todo poderio está ligado à consciência incômoda da própria impotência diante da natureza física e de seus herdeiros sociais, a maioria" (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 62).

Ulisses, personagem da Odisséia, de Homero, não enganou somente os representantes mitológicos, ou os pretendentes de Penélope, mas também os seus comandados, que não eram informados sobre os perigos que corriam e não participavam dos planos do senhor para o regresso a Ítaca. Nas palavras de Horkheimer e Adorno:

"Ulisses e Robinson têm ambos a ver com a totalidade: aquele a percorre, este a produz. Ambos só a realizam em total separação de todos os demais homens. Estes só vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada, como inimigos ou como pontos de apoio, sempre como instrumentos, como coisas" (Horkheimer e Adorno, 1985, pp. 66-67).

A divisão do trabalho apresentada na Odisséia separava o trabalho da dominação e tinha como base a propriedade fixa: o reino de Ítaca. O senhor faz o planejamento e elabora as estratégias para enfrentar os perigos; os seus homens deveriam obedecer, quando desobedeceram geraram o infortúnio. Esses últimos, protótipos do trabalhador moderno, deviam renunciar não só ao prazer, mas à pretensão de conhecer o que poderia gerá-lo; o senhor o conhecia, mas não podia usufruí-lo: o canto das sereias podia ser ouvido pelo senhor, que deveria resistir à sua sedução, uma vez que colocava em risco a autoconservação. O tempo que constitui a história social e dos indivíduos é negado aos trabalhadores, que assim não podem ser donos de seus destinos; para o senhor, a divisão do tempo em passado, presente e futuro permite a negação do passado, entendido como algo que não exerce mais nenhuma influência. Os trabalhadores fixam-se no presente, a sua autoconservação deve ser imediata; o senhor fixa-se no futuro e o presente, no qual o desejo é sacrificado, serve de passagem. Assim, o tempo se torna espaço, pode ser percorrido. As promessas, as esperanças, os desejos contidos no passado e que levaram à diferenciação do "eu" são sacrificados em nome da sobrevivência, em um tempo inacessível, quase que semelhante à morte.

O sacrifício dos trabalhadores - o trabalho manual - e o sacrifício do senhor - a organização da dominação e do combate - são distintos. Ambos são necessários no combate aos mitos, para a constituição do homem como dono de seu destino. Ou seja, todos os perigos enfrentados na volta a Ítaca são necessários para o fortalecimento da pátria, o lugar daquele que escapa e que se encontra em segurança:

"No entanto, ele (Ulisses) é ao mesmo tempo uma vítima que se sacrifica pela abolição do sacrifício. Sua renúncia senhoril é enquanto luta com o mito, representativa de uma sociedade que não precisa mais da renúncia e da dominação: que se tornou senhora de si, não para fazer violência a si mesma e aos outros, mas para a reconciliação" (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 61).

Mas a necessidade de autoconservação não é abandonada; quando os desafios são vividos, ela é introjetada como fim. A felicidade, a abdicação do poder, o fim dos sacrifícios e do trabalho cedem lugar à perpetuação do sacrifício, reproduzido na separação entre o trabalho e a dominação.

Se a narrativa do regresso de Ulisses a Ítaca testemunha a luta contra os mitos em nome do esclarecimento que permite o homem tornar-se dono de si mesmo e não ter de exercer a violência e a dominação sobre quem quer que seja, esse fim não foi logrado e o sacrifício tornou-se segunda natureza do homem. A base da constituição do indivíduo burguês é o sacrifício. Situado entre o desejo e a autoconservação, Ulisses sacrifica a vida que procurou salvar.

Na Odisséia, o representante da astúcia e da liberdade não eram os trabalhadores, mas o senhor. Aquele que consegue se distanciar da sobrevivência imediata. A práxis pôde surgir quando não se precisou mais trabalhar continuamente, quando se conseguiu planejar e efetivar, por exemplo, a plantação e a criação de animais. É no tempo livre do trabalho que a possibilidade de liberdade ocorre, mas é o trabalho que a permite. A liberdade, assim, se encontra fora do mundo do trabalho destinado à reprodução, ainda que o tenha como base:

"A teoria de alienação demonstrou o fato de que o homem não se realiza em seu trabalho, que a sua vida se tornou um instrumento de trabalho, que o seu trabalho e os respectivos produtos assumiram uma forma e um poder independentes dele como indivíduo. Mas a emancipação desse estado parece requerer não que se impeça a alienação, mas que esta se consuma; não a reativação da personalidade reprimida e produtiva, mas a sua abolição. A eliminação das potencialidades humanas do mundo de trabalho (alienado) cria as precondições para a eliminação do trabalho do mundo das potencialidades humanas" (Marcuse, 1981, p. 103).

Uma sociedade que não tenha dado conta da produção necessária, por meio do trabalho, à satisfação das necessidades de seus indivíduos não é propícia à liberdade. A carência é sua inimiga. Claro, a liberdade é histórica, e quanto mais as forças produtivas avançam, mais ela se torna real, mas como a sociedade também tem progredido em sua forma de dominação, a liberdade só pode se constituir em oposição à forma social estabelecida. O avanço obtido pelo progresso, que permite uma vida mais digna, deve ser irmanado com a felicidade e a liberdade que já seriam possíveis, como negação determinada, e não com a felicidade e a liberdade existentes. O usufruir dessas últimas fortalece a resignação. A felicidade, na sociedade existente, só é possível na negação de todo sofrimento que essa sociedade gera, e assim é permeada por esse mesmo sofrimento, e a alienação psíquica e a alienação social, ainda que não se confundam, trabalham para o mesmo senhor.

O trabalho tem se associado à dominação ao longo da história. A dominação, por sua vez, foi a forma encontrada pelos homens para se defender dos perigos encontrados na natureza, ou seja, para garantir a sobrevivência. Submetendo-se à natureza, os homens conseguem dominá-la. Submetendo-se à sua regularidade, presente na percepção de sua repetição, o homem torna-se regular e repetitivo. A dominação possibilitada pelo esclarecimento consiste em prever o movimento do que está fora de si. O homem, no entanto, é também natureza, e, assim, precisa ser dominado e dominar os outros homens, que também o são. A diferenciação da natureza, a diferenciação dos outros homens e a diferenciação de si mesmo ocorrem pelo controle da repetição percebida na natureza, quer externa, quer inerente aos homens. O tempo, no entanto, base da história social e individual, não existe na natureza, é projeção da natureza humana e, quando é objetivado, impõe também a cadência da repetição. Assim, a natureza se vinga: ao querer se libertar da repetição percebida na natureza, o homem é submetido a ela:

"Só a adaptação conscientemente controlada à natureza coloca-a sob o poder dos fisicamente mais fracos. A ratio, que recalca a mimese, não é simplesmente seu contrário. Ela própria é mimese: a mimese do que está morto. A imitação se põe a serviço da dominação na medida em que até o homem se transforma em um antropomorfismo para o homem" (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 62).

O produto do trabalho intelectual - o conceito - pela distância do objeto e pela regularidade que atribui a ele não é só pertinente ao progresso, mas também à morte. Assim, o trabalho intelectual que gera a teoria e contém a possibilidade da liberdade não é menos afeito à regressão, uma vez que é fruto da sociedade que tem como base a dominação. No entanto, "apesar de toda sua própria não-liberdade, ela [a teoria] é, num mundo livre, lugar-tenente da liberdade" (Adorno, 1995, p. 207). A divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual já se apresentava na antigüidade, e é fruto do movimento do esclarecimento; assim, ela é permeada quer pela necessidade de autoconservação, quer pela necessidade de liberdade, que se situa além da autoconservação. Quando a teoria serve à autoconservação, o faz também pela racionalidade que deve exigir menos sacrifícios, mas, como a autoconservação na história da civilização foi atrelada à dominação, ainda atualmente ela tende a servir à perpetuação da escravização. O trabalho, a autoconservação são necessários para a liberdade, mas se perpetuam em seu lugar.

Para que o trabalho possa operar sobre a natureza para conseguir a produção necessária à sobrevivência humana, essa precisa se tornar uma identidade sem diferenciação, à qual corresponde outra identidade igualmente não diferenciável, o 'eu'. O trabalho do conceito, em oposição à mimese, requer afastamento para que os objetos a ser dominados possam ser identificados entre si e diferenciados do homem, ao passo que, na mimese, a proximidade implica uma igualdade representada que diferencia as diversas forças da natureza. Renunciando à diferenciação presente na natureza, o conceito sacrifica a própria diferenciação, a individuação, com a qual os homens conseguiriam sacrificar a repetição. A sociedade humana, por sua vez, só pode ser diferenciada de outras formas de coletividade, encontradas no reino animal, pelo surgimento do indivíduo, que simultaneamente é produto social e antítese da sociedade. O trabalho coletivo, contudo, que exige continuamente o sacrifício dos indivíduos para a preservação da coletividade, pode não diferenciar a humanidade de uma colméia ou de um formigueiro:

"Enquanto os indivíduos forem sacrificados, enquanto o sacrifício implicar a oposição entre a coletividade e o indivíduo, a impostura será uma componente objetiva do sacrifício. Se a fé na substituição pela vítima sacrificada significa a reminiscência de algo que não é um aspecto originário do eu, mas proveniente da história da dominação, ele se converte para o eu plenamente desenvolvido em uma inverdade: o eu é exatamente o indivíduo humano ao qual não se credita mais a força mágica da substituição" (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 58).

O indivíduo não deve ser sacrificado em nome do todo, da coletividade. A substituição que teve origem no culto e que perdeu a sua especificidade ao longo da história, tornando todos substituíveis, isto é, descartáveis, pode retirar o homem do mundo da produção, tal como indica o argumento de Marcuse explicitado anteriormente. A coletividade deve servir ao indivíduo e não o contrário, ou, em outras palavras, as necessidades sociais e as necessidades individuais, que são produzidas socialmente, não deveriam se opor, mas se fundamentarem no indivíduo. Segundo Marcuse:

"Uma 'associação de indivíduos livres', para Marx, é uma sociedade na qual o processo material de produção não mais determina a configuração total da vida humana. A idéia de Marx de uma sociedade racional implica a existência de uma ordem em que o princípio da organização social não seja a universalidade do trabalho, mas a satisfação universal de todas as potencialidades individuais que constituem o princípio da organização social" (Marcuse, 1978, p. 269).

Importante para a diferenciação individual são os papéis surgidos com a divisão do trabalho, de sorte que quanto maior a divisão de trabalho, maior o número de papéis sociais e maior a possibilidade de individuação. Ocorre que, com o processo crescente de racionalização social, todos os trabalhos trazem uma racionalidade semelhante e, assim, não é difícil que um trabalhador mude de ocupação com um pequeno treinamento, dado que suas competências para a formalização são desenvolvidas em uma sociedade formal, e o que seria indicativo de diferenciação, só o é na aparência: a divisão do trabalho não é mais propícia ao desenvolvimento da individualidade, mas a seu antípoda. Mais uma vez, por motivos diferentes, pode-se dizer que a liberdade se encontra fora do mundo do trabalho. A liberdade se encontra hoje na possibilidade de se expressar no que foi produzido pelos homens e não mais nos papéis ocupados na divisão de trabalho, mas isso em uma sociedade livre da dominação, e não na atual: "Es imposible pensar, en una sociedade no libre, en la libertad sexual, así como en ninguna outra libertad" (Adorno, 1969, p. 94).

A ideologia da necessidade do trabalho para o desenvolvimento social é em nossa sociedade, cujas relações de produção são anacrônicas, mentira manifesta. O trabalho, como dito antes, é importante na ausência de bens necessários à sobrevivência. Com o avanço das forças produtivas, com o acúmulo de riquezas e conhecimentos, com o desenvolvimento da tecnologia, já seria possível eliminar a miséria da face da Terra, mas quanto mais isso é possível, mais a distância entre ricos e pobres aumenta, continuando a indicar a apropriação por alguns do que já poderia ser destinado a todos. Isso implica que os problemas relativos à pobreza existente não são de cunho econômico, mas político:

"Os próprios dominadores não acreditam em nenhuma necessidade objetiva, mesmo que às vezes dêem esse nome a suas maquinações. Eles se arvoram em engenheiros da história universal. Só os dominados aceitam como necessidade intangível o processo que, a cada decreto elevando o nível de vida, aumenta o grau de sua impotência. Agora que uma parte mínima do tempo de trabalho à disposição dos donos da sociedade é suficiente para assegurar a subsistência daqueles que ainda se fazem necessários para o manejo das máquinas, o resto supérfluo, massa imensa da população, é adestrado como uma guarda suplementar do sistema, a serviço de seus planos grandiosos para o presente e o futuro. Na medida em que cresce a capacidade de eliminar duradouramente toda miséria, cresce também desmesuradamente a miséria enquanto antítese da potência e da impotência" (Horkheimer e Adorno, 1985, pp. 48-49).

Assim, já poderíamos estar livres ou ter diminuído a um nível suportável o trabalho alienado necessário à autoconservação; não o somos devido à dominação do capital sobre todos.

Tendo em vista o desenvolvimento do esclarecimento, movimento destinado a livrar o homem do medo e a torná-lo senhor, a formação do trabalhador não se opõe à formação burguesa, fica aquém dela. Não há esperança naqueles que têm de, a cada dia, renovar os seus esforços para garantir a sobrevida:

"cuando las teorías socialistas trataban de despertar al proletariado a la conciencia de sí mismo, éste no se encontraba en absoluto más avanzado subjetivamente que la burguesía, y por algo los socialistas han alcanzado su posición clave histórica basándose en su puesto económico objetivo, y no en su contextura espiritual. Los poseedores han dispuesto del monopolio de la formación cultural incluso en una sociedad formalmente ecuante: la deshumanización debida al proceso capitalista de producción ha denegado a los trabajadores todos los supuestos para la formación y, ante todo, el ocio" (Horkheimer e Adorno, 1971, p. 240).

A solidariedade, a fraternidade, a igualdade, que são, freqüentemente, atribuídas aos trabalhadores, são valores burgueses; e nem por isso são menos necessários ao desenvolvimento da humanidade ainda não realizada. A formação burguesa contém uma contradição interna: serve quer à libertação, quer à dominação. Falta a ela a auto-reflexão, que desenvolveu outrora, e que esteve presente, de formas distintas, nas obras de Kant, de Hegel, de Nietszche, de Marx, para reconhecer a violência que exerce sobre todos os seres vivos. No reconhecimento dessa violência, a razão burguesa pode se converter em força material que subverta as condições que geram a regressão social e individual. Isso não significa que a consciência substitua a ação política, mas que deva ser a sua base para que uma possível revolução não redunde em outra sociedade opressiva.

Se a contradição se expressa na formação burguesa e não na contraposição entre formação do trabalhador e formação burguesa, é nessa última que a esperança da consciência deve se situar. Ou seja, o pensamento, os conhecimentos obtidos ao longo do movimento do esclarecimento devem ser universalizados, não menos que a apresentação de suas contradições:

"Os instrumentos da dominação destinados a alcançar a todos - a linguagem, as armas e, por fim, as máquinas - devem se deixar alcançar por todos. É assim que o aspecto da racionalidade se impõe na dominação como um aspecto que é também distinto dela. A objetividade do meio, que o torna universalmente disponível, sua 'objetividade' para todos, já implica a crítica da dominação da qual o pensamento surgiu, como um de seus meios" (Horkheimer e Adorno, 1985, pp. 48-49).

O que deve ser universalizado, assim, não é a cultura como um fim em si mesmo, que não é menos pseudoformação do que a formação para o trabalho, mas o próprio esclarecimento com suas contradições para que essas possam ser superadas, não somente no plano do pensamento, mas no plano da ação.

O trabalho, como constituinte do homem, por ser alheio ao consumo do produto do trabalhador, não o forma, antes o deforma, pois no momento que produz, é expropriado. Reconhecer-se na expropriação é se identificar com o opressor. O trabalhador não deveria identificar-se com o senhor, mas com a promessa de libertação do trabalho que a formação burguesa, contraditoriamente, possui. Ao contrapor a pseudoformação atual à formação clássica, Adorno argumenta:

"si el espíritu no ejecuta lo socialmente justo más que en cuanto que no se fusione en una identidad sin diferencias com la sociedad, estamos en la época del anacronismo: aferrarse a la formación cultural después que la sociedad le ha privado de su base - pero la cultura carece de toda otra posibilidad de sobrevivir fuera de la autorreflexión crítica sobre la seudocultura, en la que se ha convertido necesariamente" (Adorno, 1971, p. 261).

Na sociedade atual, o trabalho é defendido por tendências conservadoras e por tendências progressistas. As primeiras o defendem em nome do capital, e não cabe a elas a distinção entre trabalho e trabalho alienado. As últimas se dividem: uma parte consegue visualizar, mesmo no trabalho alienado, contradições que permitiriam a formação da consciência necessária à superação da alienação, outra parte contrapõe o trabalho ao trabalho alienado e confere a possibilidade de emancipação unicamente ao primeiro.

A tendência conservadora, além da apologia que faz ao trabalho pela dignidade que permite ao homem, procura associá-lo ao prazer possível nesta sociedade. Como esse prazer é associado à sobrevivência, refere-se mais a evitar o desprazer do que à satisfação prazerosa. Essa última ainda é percebida como possível naqueles que podem escolher o seu trabalho. Em uma sociedade contraditória, no entanto, teríamos de admitir que esse trabalho 'livremente escolhido' se associa mais com os desejos individuais do que com o mundo da produção material ou cultural, e, se assim for, estaríamos ainda falando de trabalho alienado. Se o trabalho não alienado (do sujeito), numa sociedade contraditória como a nossa, é um fim em si mesmo, então é alienado dessa sociedade. Adorno expõe a sua experiência em relação a seu trabalho e a seu tempo fora do trabalho:

"Sem dúvida, estou consciente de que estou falando como privilegiado, com a cota de casualidade e de culpa que isto comporta; como alguém que teve a rara chance de escolher e organizar seu trabalho essencialmente segundo as próprias intenções. Esse aspecto conta, não em último lugar, para o fato de que aquilo que faço fora do horário de trabalho não se encontre em estrita oposição em relação a este. Caso um dia o tempo livre se transformasse efetivamente naquela situação em que aquilo que antes fora privilégio agora se tornasse benefício de todos - e algo disso alcançou a sociedade burguesa, em comparação com a feudal - , eu imaginaria este mesmo tempo livre segundo o modelo que observei em mim mesmo, embora esse modelo, em circunstâncias diferentes, ficasse, por sua vez, modificado" (Adorno, 1995, p. 72).

Como negação determinada, é possível visualizar algo do que seria a atividade livre, num mundo livre, com o acréscimo do frankfurtiano que em um mundo livre essa mesma atividade seria outra. Do que surge a questão: é possível a existência do trabalho não alienado em uma sociedade que vive da alienação? Em outras palavras, existe formação fora da formação burguesa? Como dito antes, a contradição que os frankfurtianos examinam não é a existente entre a formação burguesa e a formação do trabalhador, mas aquela que é interna à formação burguesa, assim qualquer trabalho existente deve ser pensado dentro dessa contradição.

A tendência progressista que percebe a contradição no trabalho alienado, isto é, que simultaneamente dirige-se ao aprisionamento e à libertação da consciência, tem de se dar conta que a consciência que surge do trabalho alienado é a de que se deve libertar desse trabalho e não a de que foi expropriado do produto de seu trabalho e, dessa maneira, a consciência não se dirige a uma consciência de classe, mas à do sacrifício da vida; caso contrário, teríamos de admitir que o trabalho indigno existente nas fábricas e nos serviços é digno do homem, ou seja, ao tentar libertá-lo, o colocamos em outra prisão. O trabalho alienado não é propício à reflexão, somente fora dele podemos refletir. Assim, não é possível defender que a consciência possa surgir do trabalho alienado, mesmo porque:

"São as condições concretas do trabalho na sociedade que forçam o conformismo e não as influências conscientes, as quais por acréscimo embruteceriam e afastariam da verdade os homens oprimidos. A impotência dos trabalhadores não é mero pretexto dos dominantes, mas a conseqüência lógica da sociedade industrial, na qual o fado antigo acabou por se transformar no esforço de a ele escapar" (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 47).

Do trabalho alienado, assim, resultam o conformismo e a impotência do trabalhador.

A tendência progressista que contrapõe trabalho ao trabalho alienado reconhece que esse último embrutece o homem, retira a essencialidade humana, a sua ontologia, que reside no trabalho. Esse último, contudo, ao longo de nossa história, só esteve presente em conjunto com a dominação e, no capitalismo, não pode ser pensado sem a sua relação imanente com o capital, de tal forma que crítica ao capital deve ser crítica ao trabalho e vice-versa. Em uma sociedade que supere as contradições da atual, nem o capital, nem o trabalho devem existir. Nas palavras de Marcuse:

"A abolição do proletariado equivale, portanto, à abolição do trabalho como tal. Marx faz disto uma formulação expressa quando fala da realização da revolução. As classes devem ser abolidas 'pela abolição da propriedade privada e do próprio trabalho'. Em outro lugar, Marx afirma a mesma coisa: 'A revolução comunista se dirige contra o modo precedente de atividade, acaba com o trabalho'. E, outra vez, 'a questão não é a libertação, mas a de abolição do trabalho'. A questão não é a da libertação do trabalho porque o trabalho já é 'livre'; o trabalho livre é a conquista da sociedade capitalista. O comunismo só pode curar os 'males' do burguês e a miséria do proletário 'pela extinção da sua causa, isto é, do 'trabalho' " (Marcuse, 1978, p. 268).

O trabalho como fim em si mesmo deve mudar a sua definição, pois no capitalismo é forma de produzir valor e associa-se à mais-valia; a mudança de conceito implica a mudança do objeto, assim, as atividades existentes em um mundo livre devem ser substancialmente distintas das atuais:

"Marx, porém, prefigura um modo futuro de trabalho tão diferente do modo predominante, que ele hesita em usar a mesma palavra, 'trabalho', para designar o processo material da sociedade capitalista e o da sociedade comunista. Ele usa o termo 'trabalho' para significar o que o capitalismo na verdade entende que o trabalho, em última análise, signifique, ou seja, aquela atividade que cria a mais-valia na produção de mercadorias, ou que 'produz capital'. Outras espécies de atividade não são ' trabalho produtivo' e, portanto, não são trabalho no sentido próprio" (Marcuse, 1988, p. 268).

A distinção que Marcuse faz entre trabalho e labuta em um texto posterior - Eros e Civilização (1981) - pode ser entendida, parece-me, neste mesmo sentido: a labuta refere-se ao trabalho alienado, já o trabalho a uma atividade que tem um fim em si mesma. Se o trabalho deve se aproximar do lúdico, do jogo de cooperação entre os homens, o que está em questão não é mais o trabalho e sim o jogo. Essa atividade, assim, associa-se ao prazer individual, obtido coletivamente, e não ao processo de produção no trabalho. Dessa forma, o que permite a libertação pelo trabalho, em uma sociedade em que se verifica a carência de produção, não é o trabalho, mas o seu produto, e o que expressaria a liberdade numa sociedade livre não é o trabalho, mas atividades prazerosas como fins em si mesmas.

Se nenhuma das defesas do trabalho se sustenta, a não ser como ideologia, o tempo livre não deveria ser o seu complemento, pois, caso contrário, o trabalho, no mundo do capital, por produzir valor, seria o primordial, e o tempo livre seria destinado ou ao descanso ou para o desenvolvimento de novas habilidades também para o trabalho. Não deveria ser tampouco o tempo da alienação, pois teríamos um mundo de prisão ao trabalho e um outro pretensamente livre dele, mas só pretensamente. O tempo livre deveria ser utilizado como crítica e contraposição ao trabalho, como momento de tomar consciência da prisão existente.

A possibilidade de substituição do homem no trabalho se expandiu pela racionalização do mundo da indústria, de forma que todos poderiam ser, quase que totalmente, substituídos, não por outros homens, mas pelas máquinas, que são as substitutas do trabalho humano objetivado. Se isso não está ocorrendo, o sacrifício atual, diferente do de nossos antepassados, não é imediatamente o sacrifício da vida, mas da liberdade, sem a qual aquela não faz sentido. Liberdade de uma vida da miséria, liberdade do sofrimento, liberdade do sacrifício, e de seu representante, o trabalho.

Notas

  • ADORNO, Theodor W. 1969. Intervenciones Caracas: Monte Ávila Editores.
  • ____. 1995. Palavras e Sinais: modelos críticos 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes.
  • ____. 1971. 'Teoría de la seudocultura' In: HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W. Sociologica. 2Ş ed. Madrid: Taurus Ediciones, pp. 233-267.
  • HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W. 1985. Dialética do esclarecimento 2Ş ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • MARCUSE, Herbert. 1978. Razão e revolução.2Ş ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • ____. 1981. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar.
  • 1
    O autor agradece ao CNPq pelo apoio financeiro que vem recebendo.
  • 2
    Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do Instituto de Psicologia da USP; e Docente dos Programas de Estudos Pós-Graduados em Educação (História, Política, Sociedade) e em Psicologia Social da PUC-São Paulo; Pesquisador do CNPq. <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2003
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