Resumos
A indústria farmacêutica, agências de publicidade, empresas de comunicação e o comércio varejista têm implementado uma intensa estratégia de marketing com vistas a elevar o consumo de medicamentos. A revolução científica e tecnológica, por sua vez, altera o padrão de enfrentamento terapêutico de doenças e seu impacto no setor saúde faz surgir o fenômeno da medicalização e da lógica de que estes bens e serviços devam ser considerados mercadorias como as demais. Esta realidade impõe um desafio: na utilização de medicamentos, até onde prevalece a exigência terapêutica estritamente voltada para o controle de enfermidades e começa a pressão mercadológica a estimular o seu consumo? A exploração do valor simbólico do medicamento pela grande mídia passa a representar um poderoso instrumento de indução de hábitos para elevar seu consumo. A magnitude do problema levou a que o Estado há muito busque regular a propaganda de medicamentos por meio de leis, decretos e códigos, que vêm sendo desrespeitados ao longo do tempo. Em 30 de novembro de 2000, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publica a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 102, tentando novamente impor limites ao setor. Para além de um maior esforço fiscalizador, este trabalho discute o próprio modelo regulador adotado, que não tem conseguido alcançar o objetivo a que se propõe.
medicamento; vigilância sanitária; ética na propaganda; regulação; mídia
The pharmaceutical industry, advertising agencies, communication companies, and the retail market have implemented an intense marketing strategy aimed at boosting medication consumption. The scientific and technological revolution, in turn, changed illnesses treatment standards and its impact on the health sector gave rise both to the medicalization phenomenon and to the logic that these goods and services should be considered as merchandise, as any other. This fact brings a challenge about: in medication use, to what extent should therapeutic requirements aimed strictly at controlling diseases prevail? At what point does market pressure begin encouraging drug consumption? The media's exploitation of the symbolic value there is behind the drugs is a powerful instrument to induce behavior to increase product consumption. The magnitude of the problem has forced the State to regulate drug advertisements via laws, decrees, and codes which, through the years, have been being disrespected. On November 30 2000, the National Health Surveillance Agency (Anvisa) published Collegiate Board Resolution (CBR) 102, once again in an attempt to impose limits on the sector. Over and beyond the stepped-up inspection efforts, this article discusses the regulation model itself, which has been unable to reach the goals it was designed to achieve.
medication; health surveillance; ethics in advertising; regulation; media
ENSAIO
Propaganda de medicamentos: como conciliar uso racional e a permanente necessidade de expandir mercado?
Medication advertising: how to reconcile rational use and the permanent need for market expansions?
Álvaro Nascimento1 1 Tecnologista do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), Rio de Janeiro, Brasil. Mestre e doutorando em Política, Planejamento e Administração em Saúde pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj). < alvaron@ensp.fiocruz.br>
RESUMO
A indústria farmacêutica, agências de publicidade, empresas de comunicação e o comércio varejista têm implementado uma intensa estratégia de marketing com vistas a elevar o consumo de medicamentos. A revolução científica e tecnológica, por sua vez, altera o padrão de enfrentamento terapêutico de doenças e seu impacto no setor saúde faz surgir o fenômeno da medicalização e da lógica de que estes bens e serviços devam ser considerados mercadorias como as demais.
Esta realidade impõe um desafio: na utilização de medicamentos, até onde prevalece a exigência terapêutica estritamente voltada para o controle de enfermidades e começa a pressão mercadológica a estimular o seu consumo? A exploração do valor simbólico do medicamento pela grande mídia passa a representar um poderoso instrumento de indução de hábitos para elevar seu consumo. A magnitude do problema levou a que o Estado há muito busque regular a propaganda de medicamentos por meio de leis, decretos e códigos, que vêm sendo desrespeitados ao longo do tempo. Em 30 de novembro de 2000, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publica a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 102, tentando novamente impor limites ao setor. Para além de um maior esforço fiscalizador, este trabalho discute o próprio modelo regulador adotado, que não tem conseguido alcançar o objetivo a que se propõe.
Palavras-chave: medicamento; vigilância sanitária; ética na propaganda; regulação; mídia.
ABSTRACT
The pharmaceutical industry, advertising agencies, communication companies, and the retail market have implemented an intense marketing strategy aimed at boosting medication consumption. The scientific and technological revolution, in turn, changed illnesses treatment standards and its impact on the health sector gave rise both to the medicalization phenomenon and to the logic that these goods and services should be considered as merchandise, as any other.
This fact brings a challenge about: in medication use, to what extent should therapeutic requirements aimed strictly at controlling diseases prevail? At what point does market pressure begin encouraging drug consumption? The media's exploitation of the symbolic value there is behind the drugs is a powerful instrument to induce behavior to increase product consumption. The magnitude of the problem has forced the State to regulate drug advertisements via laws, decrees, and codes which, through the years, have been being disrespected. On November 30 2000, the National Health Surveillance Agency (Anvisa) published Collegiate Board Resolution (CBR) 102, once again in an attempt to impose limits on the sector. Over and beyond the stepped-up inspection efforts, this article discusses the regulation model itself, which has been unable to reach the goals it was designed to achieve.
Keywords: medication; health surveillance; ethics in advertising; regulation; media.
Medicamento: marketing de alto risco
Os medicamentos são, desde 1995, o primeiro agente de intoxicação humana no país (Icict/Fiocruz, 1995-2004). Para se ter idéia da magnitude do problema, apenas em 2004 foram oficialmente notificados 23.700 casos. São 65 casos diários de intoxicação por medicamento: um caso a cada 24 minutos oficialmente registrados apenas no Sistema Único de Saúde (SUS). Estes números devem ser ainda mais alarmantes, já que é necessário considerar três importantes fatores: 1) somente os casos mais graves de intoxicação levam a que o paciente procure assistência médica no SUS; 2) a subnotificação é um fato relevante no Sistema; 3) a rede privada de saúde, hoje responsável por cerca de 40 milhões de brasileiros que possuem algum tipo de plano de saúde, na maioria esmagadora dos casos, não notifica este tipo de evento.
Todo medicamento possui significativo potencial de risco e as reações adversas se multiplicam com o seu uso incorreto e indiscriminado. Idosos, crianças e portadores de doenças crônicas formam um enorme contingente exposto à propaganda de medicamentos. Estas propagandas não contêm, em geral, advertências quanto ao uso de substâncias nocivas a estes grupos.
Para se aquilatar a importância do marketing no desenvolvimento do mercado farmacêutico, nos referenciamos em Philip Kotler, professor de marketing internacional da Kellog Graduate School of Management, da Universidade de Northwestern (Estados Unidos) e autor de 25 livros sobre o tema. Ele foi presidente do College on Marketing do Institute of Management Sciences e Diretor da American Marketing Association. Presta consultorias estratégicas de marketing a dezenas de empresas norte-americanas e européias, entre elas o laboratório Merck, IBM, General Electric, Bank of America, AT&T e Michelin.
Para Philip Kotler, a principal tarefa do marketing é "alcançar o crescimento lucrativo para a empresa". Para ele, o marketing deve identificar, avaliar e selecionar "oportunidades de mercado". Deve, também, "formular estratégias para capturar essas oportunidades". Segundo Kotler, o desenvolvimento de qualquer setor industrial, seja na produção de sapatos, carros ou produtos biotecnológicos, deve considerar o fato de que, hoje e no futuro, "boas empresas satisfazem necessidades, ótimas empresas criam mercados". Ele ensina que "a função do marketing, mais do que qualquer outra nos negócios, é lidar com os clientes" (...), sendo os principais objetivos do marketing "atrair novos clientes, prometendo-lhes valor superior, e manter os clientes atuais, propiciando-lhes satisfação". O "cuidar bem do cliente", na visão do marketing moderno, é fator essencial para "elevar a participação no mercado e aumentar lucros" (Kotler, 2005, p. 3).
Na contramão da teoria de marketing preconizada por Kotler, deve-se atentar para o fato de que o vocábulo 'medicamento' se origina da palavra grega pharmakon, que também significa 'veneno'. O que diferencia as duas definições é a dose utilizada e as características pessoais dos que dela fazem uso. Ao ser incorporado, pelas estratégias de marketing, como um produto de uso comum, o medicamento perde sua nobre função no âmbito do processo terapêutico e passa a ser tratado como mero objeto de consumo e de elevação de lucros.
Hoje, assistimos, na grande mídia, a maciças campanhas publicitárias que tentam convencer, por exemplo, que os casos de gripe só devem ser enfrentados com Apracur®, já que a propaganda utilizada diz que "esse remédio caiu do céu". Mas caso você prefira outro medicamento, ao primeiro "Atchim!!!", "tome Benegrip®", para não atrapalhar as cenas de casamento, julgamentos em tribunais ou para não ser admoestado por sisudas bibliotecárias, exigindo silêncio nas cenas bem produzidas pelo marketing medicamentoso. E se o Apracur® e o Benegrip® não forem suficientes, "tem que tomar Bromil®, porque, há mais de 70 anos, o bom pra gripe é Bromil®". Mas também serve a Coristina D®, afinal, ela "resolve, é baratinha e vale por três, tá certo"? A indústria e a publicidade oferecem múltiplas possibilidades.
Já se o seu problema são as crianças que não comem o tanto que você acha necessário, Biotônico Fontoura® resolve isso. E mais. Para auxiliar você no convencimento para que as crianças tomem a dose diária do medicamento, o Didi (Renato Aragão) em pessoa está no vídeo, ajudando a meninada a tomar Biotônico para "comer como um leão... miaauuuuu" e dizendo que "mãe que sabe das coisas dá Biotônico pro seu filho". E a mãe que não dá Biotônico para os filhos corre o risco de ser interpretada como uma idiota, que não sabe das coisas.
Mas se sua gripe, resfriado, inapetência das crianças estão resolvidos, você precisa tratar desta azia que tanto o incomoda. Assim, "se o seu estômago está pegando fogo!, fogo!, fogo!!!", "chegou a hora de tomar Bisuisan®... e acabar com a queimação". Não gostou da música? Então opte por Gelmax®, pois além de resolver os exageros das refeições gordurosas e condimentadas "que não caem bem", ele "tira aquela sensação de peso no estômago e devolve seu bem-estar". Você nem precisa evitar comidas gordurosas. De quebra, o "Gelmax®" te faz se sentir "max" e, acredite ou não, faz surgir até uma linda modelo desnuda abraçada a você, saindo do restaurante, como a comprovar que você é realmente "max".
E para se prevenir da azia e má digestão, "tenha sempre um sachê de Gelmax® aí na sua casa, no escritório, na sua bolsa, tá?", pois é só tomar "um sachezinho antes e um após as refeições" para ter "alívio e bem-estar, nos sabores limão, papaia e abacaxi". E se você preferir algo mais sonoro, a indústria e o marketing prescrevem: vá de Sonrisal limão®, pois ele traz "o som do bem-estar".
Mas se a sua azia e má digestão se transformaram em uma diarréia que fez você "passar uma noite de rei, da cama para o trono, do trono para a cama", "finalmente existe um remédio contra a diarréia que você pode tomar: Peptozil®". Afinal, com Peptozil®, é "como tirar com a mão". Seu problema é inverso, tipo prisão de ventre? O que você está esperando para tomar Lacto Purga®? Afinal, "com Lacto Purga® o seu intestino funciona como um reloginho".
Cólicas? "Ninguém precisa mais ficar sofrendo de cólicas" já que "o novo Atroveran® elimina as cólicas assim, ó, rapidinho, rapidinho". Talvez mais rápido só mesmo o Bálsamo Bengué® para nevralgias, dores musculares e contusões. Ele traz "alívio imediato" porque "atua diretamente na dor".
Criança machucada? O novo Merthiolate® é a solução, oferecido por ninguém mais, ninguém menos, que a apresentadora Xuxa Meneghel: "Para vocês, baixinhos e baixinhas, que vivem brincando, correndo e se machucando, tenho uma notícia super legal". A notícia boa para os baixinhos é que a nova fórmula do medicamento, segundo Xuxa, tem "uma tal de clorexidina", que "é muito mais poderosa, acaba com as bactérias e, quer saber do melhor? Não arde".
Mas se você não tem crianças susceptíveis aos apelos de Xuxa, o "novo Merthiolate®" também é defendido pelo respeitado ator José Wilker, "mesmo para as pequenas contusões, que podem se transformar em grandes problemas".
Mas se a contusão não apresenta ferimentos, Carlos Massa (o Ratinho) garante que "Salompas® funciona mesmo", já que "chupa a dor", que "acaba imediatamente e na hora". Para convencê-lo disso, a simpática jogadora de vôlei Virna surge no palco do Programa do Ratinho para aconselhar o uso de Salompas®, "que é muito bom, pois eu uso como forma de aquecimento e prevenção de contusão".
E se você anda estressado, cansado e não tem exigências de que o produto seja 'natural', Pelé aconselha: Vitasay Stress®, que "dá uma sacudida em você e tira o cansaço muito mais rápido do que você imagina". E se o seu cansaço o faz vacilar em sair da poltrona e ir à farmácia comprar o medicamento, o próprio Pelé estimula: "Mexa-se!!! Tome Vitasay Stress®".
Mas o esforço de convencimento para o consumo de princípios ativos - muitas vezes de elevado risco para importantes segmentos da população - vai além das gripes, resfriados, azia, má digestão, diarréia, inapetência infantil, feridas, contusões, estresse e cansaço. Se o seu caso é a dificuldade de ereção, por exemplo, o mesmo apresentador Carlos Massa, também tem a solução: Tonoklen®, que "está há muitos anos no mercado", não possui "estas químicas que têm por aí", "já está recuperando o poder sexual de muitos homens" e, mais ainda, ao tomar Tonoklen® você verá "a sua moral levantaaaaaaaaaando com mais freqüência". E para convencê-lo definitivamente, depois de ressaltar que Tonoklen® "é pra homem, viu?", Ratinho declara que "está tomando Tonoklen® até para dançar, agora".
Mas se você preferir algo mais moderno para seu problema de ereção, que te faz 'falhar' nas horas mais impróprias, desconsidere o Ratinho e opte pelos conselhos de Pelé (de novo) ou mesmo do ator e roqueiro Evandro Mesquita: "tome uma atitude" e vá de Viagra®, cujo nome não é citado na propaganda (por proibição legal devido ao fato de ser medicamento sob prescrição), mas sim o do, na época, único laboratório produtor (Pfizer®), estampado em um comprimido cuja cor (azul) e formato (hexagonal) são os mesmos do medicamento mundialmente conhecido e largamente noticiado nos jornais e revistas. Os dois 'prescritores' (Evandro Mesquita e Pelé) indicam a direção certa a seguir, já que "quem melhora o seu desempenho sexual vive melhor" e os que "tomaram uma atitude resolveram o problema".
Para aqueles que, na hora dos intervalos comerciais da TV, saem da sala por qualquer motivo, o merchandising os alcança por meio da propaganda subliminar. Como, por exemplo, na inserção nos roteiros das novelas de cenas onde atores de meia idade fazem referência explícita ao "comprimido azul" na melhora de seu desempenho sexual, como em Mulheres Apaixonadas, recente novela exibida em horário nobre.
A RDC 102/2000 da Anvisa: mais uma tentativa frustrada de regular a propaganda de medicamentos
Um dos principais parâmetros internacionais para se formatar um modelo regulador para o setor da propaganda de medicamentos está descrito no documento Critérios éticos para a promoção de medicamentos, aprovado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1985, em sua 39a Assembléia Mundial, tendo como base a Conferência de Especialistas sobre Uso Racional de Medicamentos, realizada em Nairóbi, em novembro de 1985. Estes critérios éticos passaram a ser recomendados a todos os Estados membros da OMS, assim como a fiscalização de seu cumprimento.
O Brasil já possuía legislações que regulavam o setor. Entre elas, se destacam a lei 6.360/76; o decreto 79.094/77 e a lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). O texto regulador mais recente, consubstanciado na publicação da Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no 102 (de 30 de novembro de 2000, nasce da tentativa de pactuar uma regulação que refletisse, naquele determinado momento, as ações possíveis numa área historicamente regulada mas muito pouco fiscalizada.
Com um total de 25 artigos e algumas dezenas de alíneas e parágrafos, a RDC 102 é o resultado de um processo de negociação entre os vários setores e interesses que giram em torno do mercado publicitário de medicamentos e do impacto que o uso irracional de medicamentos traz à saúde pública.
Uma série de exigências (algumas com base nos Critérios Éticos preconizados pela OMS) voltadas para o controle da publicidade de medicamentos são incorporadas à RDC 102 da Anvisa. Entre elas, a que impõe que toda propaganda conterá, ao final, obrigatoriamente, a advertência indicando que "ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado".
Alguns itens da resolução merecem destaque. Entre os "Requisitos para a Propaganda de Medicamentos de Venda sem Exigência de Prescrição", o artigo 10, por exemplo, veda uma série de práticas comumente utilizadas pelo marketing medicamentoso para convencer o público leigo a elevar o consumo de produtos farmacêuticos.
É proibido, por exemplo:
"I - estimular e/ou induzir o uso indiscriminado de medicamentos e/ou emprego de dosagens e indicações que não constem no registro do medicamento junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária;
II - incluir mensagens de qualquer natureza dirigidas a crianças ou adolescentes, conforme classificação do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como utilizar símbolos e imagens com este fim;
III - promover ou organizar concursos, prometer ou oferecer bonificações financeiras ou prêmios condicionados à venda de medicamentos;
IV - sugerir ou estimular diagnósticos aconselhando um tratamento correspondente, sendo admitido apenas que sejam utilizadas frases ou imagens que definam em termos científicos ou leigos a indicação do medicamento para sintomas isolados;
V - afirmar que um medicamento é 'seguro', 'sem contraindicações', 'isento de efeitos secundários ou riscos de uso' ou usar expressões equivalentes;
VI - afirmar que o medicamento é um alimento, cosmético ou outro produto de consumo, da mesma maneira que nenhum alimento, cosmético ou outro produto de consumo possa mostrar ou parecer tratar-se de um medicamento;
VII - explorar enfermidades, lesões ou deficiências de forma grotesca, abusiva ou enganosa, sejam ou não decorrentes do uso de medicamentos;
VIII - afirmar e/ou sugerir ter um medicamento efeito superior a outro usando expressões tais como: 'mais eficaz', 'menos tóxico', ser a única alternativa possível dentro da categoria ou ainda utilizar expressões, como: 'o produto', 'o de maior escolha', 'o único', 'o mais freqüentemente recomendado', 'o melhor'. As expressões só poderão ser utilizadas se comprovadas por evidências científicas, e previamente aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária;
IX - afirmar e/ou sugerir ter um medicamento efeito superior a outro usando expressões tais como: 'mais efetivo', 'melhor tolerado'. As expressões só poderão ser utilizadas se comprovadas por evidências científicas, e previamente aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária;
X - usar de linguagem direta ou indireta relacionando o uso de medicamento ao desempenho físico, intelectual, emocional, sexual ou a beleza de uma pessoa, exceto quando forem propriedades aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária;
XI - sugerir que o medicamento possua características organolépticas agradáveis tais como: 'saboroso', 'gostoso', 'delicioso' ou expressões equivalentes'" (Brasil, 2000)
Já o artigo 12 obriga que "a propaganda, publicidade e promoção de medicamento de venda sem exigência de prescrição deverão incluir (...) o nome comercial do medicamento; o número de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária e o nome dos princípios ativos" do produto.
Em relação aos "Requisitos para a Propaganda de Medicamentos de Venda Sob Prescrição", isto é, aqueles medicamentos tarjados e que só poderiam ser comercializados pelas farmácias e drogarias mediante a apresentação de receita médica, o artigo 13 da Resolução determina que "qualquer propaganda, publicidade ou promoção de medicamentos de venda sob prescrição, fica restrita aos meios de comunicação dirigida, destinados exclusivamente aos profissionais de saúde habilitados a prescrever ou dispensar tais produtos".
Regulação? Que regulação?
A partir de uma análise crítica do atual modelo regulador da propaganda de medicamentos dirigida ao grande público no Brasil, pesquisa recente (Nascimento, 2005) demonstra, a partir da comparação das peças publicitárias de medicamentos com a legislação vigente, que a estrutura do atual sistema de regulação possui, pelo menos, quatro graves deficiências:
1a) A atual regulação é feita a posteriori, isto é, a Anvisa só atua, no âmbito de seu papel fiscalizador, depois de a veiculação da peça publicitária irregular ter submetido a população a risco sanitário concreto. Entre a colocação do anúncio no mercado (e a identificação da irregularidade) e a tomada de medidas no âmbito do modelo regulador (quando este é o caso), transcorre um período de mais de um mês, o que faz com que a ação reguladora se realize quando 'o mal já está feito'.
2a) As multas efetivamente arrecadadas pela Anvisa, quando ocorrem as irregularidades, têm valor irrisório frente ao total de gastos com propaganda realizados no setor. Para se ter uma idéia, em um ano e meio de regulação, a Anvisa recolheu em multas valores equivalentes a apenas dois anúncios no horário nobre da TV.
3a) Não há qualquer mecanismo, criado no âmbito ou mesmo fora do atual modelo regulador, que impeça que os valores relativos às multas aplicadas sejam transferidos pela indústria ou pelo comércio varejista para o preço dos medicamentos (o que ela já faz com o conjunto dos gastos com publicidade de seus produtos), vindo a ser pagos pelo próprio consumidor.
4a) Ao estampar a frase "ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado" ao final de cada propaganda, a pretendida regulação na verdade estimula pelo menos o primeiro consumo irracional de medicamentos, quando caberia ao Estado cumprir justamente a tarefa oposta, de acordo com o que é preconizado pela Política Nacional de Medicamentos (Brasil, 1998b) educando a população no sentido de "antes de consumir qualquer medicamento, consultar um médico". Na prática, a mensagem final da atual regulação deseduca e presta inestimável papel à indústria e ao comércio de medicamentos, e não à sociedade a quem deveria proteger. O que o atual modelo regulador transmite população pode ser traduzido pela seguinte mensagem: "primeiro tente encontrar o medicamento que lhe traga a cura, comprando o produto que julgar mais conveniente. Caso não obtenha sucesso, procure um médico para ajudá-lo".
Ao se considerarem estas quatro deficiências do atual modelo regulador, verifica-se que mesmo que a Anvisa multiplique várias vezes a sua atuação, as propagandas irregulares continuariam a ser reprimidas a posteriori, as multas continuariam a ser de um valor irrisório, seus custos continuariam sendo repassados aos preços dos medicamentos (e pagos pelo consumidor) e a advertência colocada a cada final de propaganda permaneceria estimulando pelo menos o primeiro uso irracional de medicamentos. Assim, pode-se afirmar que o atual modelo regulador da propaganda de medicamentos, na ótica do que significa um 'risco sanitário', apresenta substantiva fragilidade.
Essa fragilidade se torna ainda mais crítica - considerando a ótica da saúde pública - quando se constata que o conjunto de interesses representado pelos quatro importantes segmentos ligados à estratégica área de medicamentos no Brasil - a indústria farmacêutica, as agências de publicidade, as empresas de comunicação e o comércio varejista - tem implementado uma intensa estratégia de marketing com vistas a elevar o consumo de produtos farmacêuticos no país. Ao mesmo tempo, os constantes avanços tecnológicos têm alterado o padrão de enfrentamento terapêutico de doenças e o seu impacto no setor saúde tem aprofundado as conseqüências do fenômeno da medicalização e da lógica de que os medicamentos devam ser considerados mercadorias como as demais.
Esta realidade impõe às autoridades sanitárias, gestores do sistema de saúde, parlamento, instituições de ensino, de pesquisa, órgãos de defesa do consumidor e organizações da sociedade o enfrentamento de, pelo menos, dois desafios. Primeiro: no uso de medicamentos, até onde prevalece a exigência terapêutica estritamente voltada para a prevenção, controle e cura de enfermidades e começa a pressão mercadológica a estimular o seu consumo? Segundo: até que ponto a exploração do valor simbólico do medicamento pela grande mídia passa a representar um poderoso instrumento de indução de hábitos para elevar seu consumo?
Medicamentos de 'venda livre': o risco isento de prescrição
Como o aprofundamento do conhecimento dos fármacos hoje utilizados em todo o mundo já comprova, todo medicamento - mesmo os que podem ser comercializados sem a apresentação da receita médica - possui significativo potencial de risco e as reações adversas multiplicam-se com o seu uso incorreto, irracional, inconsciente e perigoso.
A literatura científica e os compêndios de farmacologia ensinam que todo medicamento traz algum risco, não existindo droga que, dependendo da forma de administração, quantidade, período utilizado e das características de cada organismo, não seja perigosa.
Assim, diabéticos, hipertensos, crianças, idosos, grávidas, lactentes, cidadãos que fazem uso de medicamentos de uso contínuo e outras faixas da população estão expostas a risco na medida em que pratiquem a automedicação. Em uma sociedade de baixo índice educacional e desinformada, estes riscos são ainda maiores. O 'bombardeio' patrocinado pelo marketing medicamentoso para manter e elevar o consumo só agrava esta realidade.
Entre as doenças que o marketing induz a serem tratadas com os medicamentos isentos de prescrição (MIPs), estão as denominadas 'de menor gravidade', como as dores de cabeça, acidez estomacal, azia, febre, tosse, prisão de ventre, aftas, dores de garganta, assaduras, hemorróidas e congestão nasal.
Para ilustrar alguns riscos contidos nas drogas consideradas 'mais simples' e indicadas para estes males, podemos nos socorrer em estudo realizado pelo Centro de Apoio à Terapia Racional pela Informação sobre Medicamentos da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal Fluminense (Ceatrim/FF/UFF) (Riopharma, 63, 2004).
Listamos, a seguir, quatro exemplos de MIPs, todos de grande consumo no mercado, com as reações adversas já bastante descritas na literatura. Nós nos restringimos ao impacto que algumas dessas drogas podem provocar, pelos mais diversos motivos, no sangue, no aparelho cardiovascular; no sistema nervoso central (SNC); no aparelho gastrointestinal; nos rins e no aparelho genitourunário; no sistema respiratório; alguns efeitos dermatológicos e finalmente no fígado (Quadro 1).
A magnitude das questões e dos interesses que giram em torno da propaganda de medicamentos no Brasil fez com que esta área fosse constantemente citada como um dos principais problemas relacionados ao mercado farmacêutico no país, durante o desenvolvimento dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de Medicamentos da Câmara dos Deputados, que teve seus trabalhos finalizados em maio de 2000. Refletindo a luta de interesses que caracteriza o setor farmacêutico no Brasil, a CPI terminou com dois relatórios: um oficial e outro consubstanciado em um voto em separado apresentado por seis dos 18 parlamentares que compunham a CPI (Brasil, 2000a).
Este 'voto em separado', que aprofunda a análise e a crítica relativas aos graves problemas identificados pelas investigações realizadas no âmbito da CPI, cita, como desafios a serem enfrentados pelo Estado brasileiro: o superfaturamento no preço das matérias-primas adquiridas nas matrizes das indústrias no exterior, a cartelização do setor no Brasil, o abuso nos preços praticados pelo comércio varejista, o estímulo à 'empurroterapia' e a comercialização de produtos sem comprovação científica de seu real impacto na saúde, denominados como 'B.Os', isto é, 'Bons para Otário'. Os deputados indicaram, ainda, o estímulo à automedicação; a lentidão na implantação dos genéricos; a falta de investimentos no parque industrial farmoquímico público (hoje composto por 18 laboratórios oficiais); a inexistência de uma política voltada para a pesquisa científica e o sucateamento do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, como questões a serem enfrentadas pelo poder público. Junto a estes problemas, o documento aponta, explicitamente, a inexistência de regulação da propaganda de medicamentos como uma questão a ser urgentemente tratada (Brasil, 2000b).
A tentativa mais recente de regular o setor se dá com a edição, pela Anvisa, da RDC 102, em 30 de novembro de 2000, que tenta novamente impor limites à propaganda de medicamentos.
Propaganda como combustível da medicalização
A discussão sobre uma presença mais interventora do poder público na área da propaganda de medicamentos é travada, no Brasil, pelo menos desde a lei 6.360 de 23 de setembro de 1976. Desde então, várias instituições representativas de consumidores (como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - Idec), de profissionais de saúde (como o Conselho Regional de Farmácia do Estado do Rio de Janeiro), de sociedades científicas (como a Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos - Sobravime), da academia (como a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, ambas da Fiocruz; a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - Abrasco - e o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde - Cebes), a Acción Internacional para la Salud (AIS-LAC) e muitas outras, defendem a utilização de medicamentos de acordo com as necessidades da população e não determinada pela interferência dos mecanismos de promoção destes produtos realizada pelos seus fabricantes (Herxheimer e Collier, 1990).
Na tentativa de elevar o consumo dos medicamentos, o conjunto de interesses representados pela indústria, agências de publicidade, empresas de mídia e comércio varejista tem lançado mão de diferentes formas de propaganda, dirigidas tanto ao público chamado de 'leigo' como aos profissionais de saúde, principalmente os prescritores (médicos e odontólogos).
Para se medir a magnitude dos interesses que cercam o setor da publicidade de medicamentos, segundo a Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Febrafarma), no ano de 2006 o mercado farmacêutico no Brasil movimentou um total aproximado de R$ 23,7 bilhões (Febrafarma, 2007). Já segundo dados da última CPI de Medicamentos, cerca de 30% dos recursos faturados pelo setor são gastos com promoção e publicidade a cada ano (Brasil, 2000b), o que demonstra que o setor da promoção de medicamentos movimentou cerca de R$ 7 bilhões só em 2006, no Brasil.
Para além dos gastos com propaganda para o grande público, nos recursos investidos na chamada 'promoção' estão incluídas as despesas com 'representantes' ou 'consultores', que visitam de forma periódica os profissionais que prescrevem ou funcionários que compram medicamentos para o setor saúde (incluindo material impresso e eletrônico, salários, financiamento para participação em congressos, viagens - algumas ao exterior - brindes etc.).
Conforme já demonstrado por vários autores, a propaganda consegue alterar o padrão da prescrição dos médicos, sendo considerada, ainda, uma das principais fontes para a sua atualização terapêutica (Temporão, 1986). Os prescritores "confrontam-se, constantemente, em sua prática de trabalho, com incertezas sobre o diagnóstico, sobre os possíveis prognósticos de um quadro diagnosticado, bem como sobre os benefícios e os riscos de sua intervenção em cada paciente ou grupo de pacientes" (Pepe, 1995, p. 3). Por outro lado,
"as práticas de marketing dos medicamentos foram se diversificando no decorrer dos anos. Atualmente, há uma variedade de formas promocionais. As mais simples são a distribuição de brindes, amostras grátis e veiculação de vários tipos de informação como panfletos, guias de produtos, propagandas em revistas médicas e em meios de comunicação de massa como televisão, rádios e outdoors. Entre as mais complexas estão o financiamento da educação médica continuada, de pesquisas para desenvolvimento de protocolos de uso para fármacos de interesse e a promoção de eventos ditos científicos financiados pela indústria farmacêutica. (...) Apesar de os médicos acharem que sua decisão no ato prescritivo é baseada na literatura científica, as fontes de informações comerciais se mostram, ainda que subjetivamente, de importante influência" (Pepe, 1995, p. 6-7).
Para viabilizar este processo de convencimento aos prescritores, a indústria utiliza diversas técnicas, como o financiamento para a participação do profissional em congressos, visitas de propagandistas aos consultórios, anúncios em revistas técnicas e até o financiamento de viagens para que o profissional "conheça parques industriais farmacêuticos" dentro e fora do país (Temporão, 1986), muitas vezes com direito de levar a família.
No âmbito das estratégias de marketing direto ao consumidor, parte importante dos recursos destinados à promoção de medicamentos é gasta na veiculação de publicidade em rádios, redes de televisão, mídia impressa, produção de anúncios pelas agências de publicidade, cachês pagos a artistas, atletas e personalidades de destaque na sociedade, que se transformam em garotos e garotas-propaganda da indústria de medicamentos, freqüentemente sem ter idéia do risco sanitário que sua imagem e representatividade social provocam junto à população. Neste aspecto, a propaganda para o grande público é utilizada como mais um instrumento de reforço da já existente cultura da medicalização. Este fator atua fortemente associado à ideologia de consumo - disseminada na sociedade - como caminho mais rápido de se alcançar saúde, bem-estar e, em última instância, a felicidade.
Este conjunto de práticas indutoras à elevação do consumo de produtos farmacêuticos favorece e estimula uma relação utilitarista entre cidadãos e medicamentos, que "produzidos em escala industrial de acordo com especificações técnicas e legais, alcançaram papel central na terapêutica e, simbolicamente, ultrapassaram as fronteiras do que se pode entender como mero recurso terapêutico" (Nascimento, 2002, p. 4).
Vale ressaltar, por exemplo, o fato de que estudos farmacológicos demonstram que se medicalizam, cada vez mais, fenômenos ligados à vida cotidiana e não à prevalência de alguma doença, como o estímulo à utilização de preparados polivitamínicos como substitutos de uma dieta adequada, que não é valorizada como fonte privilegiada de nutrientes. Ou a prescrição de hipnosedantes para tratar insônia e ansiedade, em casos associados ao estresse gerado pelos hábitos de vida da sociedade moderna (Barros, 1995).
A população passa a aceitar, quase por consenso, a idéia de que alguém requeira cuidados médicos, e a conseqüente administração de fármacos, tão somente por estar grávida, ser recém-nascido, estar no período da menopausa ou na terceira idade (Illich, 1975). Como se, nestas fases, a vida se convertesse em uma seqüência de períodos a exigir, cada um deles, uma forma particular de consumo terapêutico (Barros, 1995).
A ótica liberal dos anos 90 e seu impacto na criação das agências reguladoras
Para se analisar a fragilidade do modelo regulador da área da propaganda de medicamentos, hoje sob responsabilidade da Anvisa, é necessário levar em conta a conjuntura vivida pelo Estado brasileiro quando do surgimento do conjunto de agências reguladoras, criadas na esteira da reforma do aparelho estatal, impactada diretamente pelo processo de globalização. Apesar das tentativas de demonstrar a 'novidade' que este processo traz, o caráter global do mercado, a desnacionalização da indústria, a internacionalização do processo produtivo, a interdependência das nações e mesmo a precarização e rebaixamento dos limites dos contratos sociais não são uma novidade, e já foram descritos por Marx e Engels em 1848, em O manifesto comunista.
Segundo os autores,
"a burguesia, através da exploração do mercado mundial, deu caráter cosmopolita para a produção e consumo em todos os países. Para grande desgosto dos reacionários, rebaixou a base nacional das indústrias até o rés do chão. As indústrias nacionais antigas foram destruídas ou seguem sendo destruídas dia após dia. Elas são desalojadas por novas indústrias, cuja introdução torna-se questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas; por indústrias que não mais trabalham com matéria-prima nacional, mas matéria-prima extraída de zonas remotas; cujos produtos são consumidos não só no próprio país, mas em todos os cantos do globo. Em lugar da antiga reclusão e auto-suficiência local e nacional, temos conexões em todas as direções, uma interdependência universal das nações. E tanto em produção material como em produção intelectual" (Marx e Engels, 1848, p. 14-15)
Portanto, longe de ser um termo que retrata uma 'realidade inovadora', a globalização dos anos 90 e seguintes dá continuidade ao modelo histórico de acumulação internacional de poder e capital, cujas marcas indeléveis são "a hegemonia conquistada, em alguns países, pelos princípios neoliberais" e "a ofensiva contra os direitos sociais e o Estado de bem-estar, construídos desde a década de 1930, como a alternativa capitalista à redução das desigualdades sociais" (Santos, 2000, p. 39).
Isso se torna política de Estado quando, em novembro de 1989, há um marco no chamado processo de globalização no continente latino-americano, consubstanciado no que se passa a chamar Consenso de Washington, cujas dez principais medidas são: 1) controle do déficit fiscal; 2) cortes nos gastos públicos; 3) reforma tributária; 4) administração das taxas de juros; 5) administração da taxa de câmbio; 6) abertura de mercado e ampla liberdade para importações; 7) liberdade para entrada e saída de investimentos externos; 8) privatização das empresas estatais; 9) desregulamentação da economia e das normas trabalhistas; 10) garantia do direito de propriedade industrial e intelectual.
O 'consenso' foi o resultado de reunião que discutiu políticas econômicas e sociais para a América Latina, que passaram a ser defendidas por instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, integralmente incorporadas à maioria dos governos dos países sob a influência dos Estados Unidos.
O fortalecimento do mercado em detrimento da presença do Estado como ente político traduz um significativo fortalecimento da economia em relação à política. O Estado passa a abrir mão de parte de sua soberania, reduzindo o seu poder e a sua capacidade reguladora, passando a depender de novos pactos a serem negociados em torno de cada setor. Obviamente, este 'imperativo para o desenvolvimento', preconizado pelo 'consenso', se traduz em discurso exclusivamente para consumo externo e aplicação nos chamados 'países em desenvolvimento' ou 'emergentes', já que em grande parte dos países centrais este receituário ou simplesmente não é considerado ou é aplicado de forma a assegurar que os interesses locais e nacionais sejam preservados (Costa, 1998).
Sob a ótica de que país confiável é aquele onde o Estado não interfere no mercado, inicia-se nos anos 90, no Brasil, a Reforma Administrativa, cuja lógica determina que o Estado deve funcionar melhor e gastar menos, "fazendo mais com menos recursos". As iniciativas essenciais, que se sobrepõem às demais, podem ser descritas como: "flexibilização do regime administrativo de servidores e instituições públicas", "maior proximidade de modelos de gestão das esferas pública e privada" (tendo o privado como exemplo a ser seguido), "relações contratuais em substituição ao modelo racional-legal weberiano", e "redução dos gastos públicos e do tamanho do aparato estatal" (Santos, 2000, p. 45).
Neste âmbito, ganha força o debate sobre administração gerencial versus administração burocrática, que parte de um pressuposto: o patrimonialismo está superado, a administração burocrática está esgotada e a flexibilização do modelo racional-legal requer novos modelos de gestão. Segundo documentos elaborados pelo então Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (Mare), a concepção gerencial visa "fortalecer estrategicamente o Estado", colocando-o no "controle das políticas públicas, exercendo funções regulatórias onde o mercado não o faz e respondendo com agilidade às demandas sociais, buscando uma comunicação direta com sociedades cada vez mais complexas" (Brasil, 1998, p. 7).
No Brasil, essas propostas, defendidas na ocasião pelo Ministro Bresser Pereira mas respaldadas pelo conjunto do governo Fernando Henrique Cardoso, partem do diagnóstico de que a Reforma do Estado envolve quatro questões essenciais: 1) delimitação do tamanho do Estado; 2) redefinição de seu papel regulador; 3) recuperação de sua capacidade financeira e administrativa de implementar decisões políticas tomadas pelo governo (apelidadas de 'governança'); 4) aumento da capacidade política do governo de intermediar interesses, garantir legitimidade e governar (governabilidade) (Santos, 2000).
Entre as várias alternativas desenhadas no processo de reforma (agências executivas, organizações sociais etc.), as agências reguladoras recebem um tratamento específico no âmbito da administração autárquica. De acordo com o modelo bresseriano, elas são autarquias 'especiais', voltadas a permitir o exercício de atividades reguladoras essenciais à proteção dos interesses dos usuários de serviços recém-privatizados e voltadas para a fiscalização de atividades econômicas. As agências reguladoras, ainda na concepção de Bresser Pereira, teriam sua gestão orientada pelos princípios da administração gerencial, com sua autonomia, portanto, revigorada (Santos, 2000).
Entretanto, estas agências - embora tenham obtido autonomia financeira e administrativa por força de lei - não conseguem ocupar um real papel regulador, compatível com os argumentos e justificativas utilizados quando de seu surgimento. O ideário liberal da Reforma do Estado, que tem na flexibilização de contratos um de seus principais pilares, as impacta desde o nascedouro.
Entre os problemas enfrentados por elas estão:
1) Inexistência de um quadro próprio de pessoal técnico qualificado, profissional, efetivo e protegido de interferências no exercício de suas atribuições. Na ausência deste quadro, as agências passam a se utilizar dos 'cargos em comissão'; da livre nomeação e exoneração; e das contratações temporárias por excepcional interesse público, precarizando as relações de trabalho com impacto direto no seu desempenho;
2) Inexistência de uma carreira para o quadro funcional;
3) Demora na constituição das agências reguladoras, algumas delas só constituídas muito depois do processo de privatização dos setores que deveriam regular, gerando um vácuo na presença do Estado no setor;
4) Importação de vícios e deficiências do antigo modelo regulador, seja no plano institucional ou material, que tem impedido que elas cumpram um efetivo papel de regulação e fiscalização frente ao mercado;
5) Inexistência de sistemas de informação que permitam ao Estado responder, com rapidez e eficácia, a problemas que tragam impacto à sociedade (ex. 'apagão' energético, medicamentos falsificados, real cumprimento de metas pelas empresas privatizadas etc.) (Santos, 2000).
Assim, o "novo paradigma de atuação da esfera pública", preconizado pela Reforma do Estado nos anos 90, pelo menos no que diz respeito às agências reguladoras, e em particular à Anvisa, passados oito anos de sua criação, perpetua velhos problemas do setor, como procuramos demonstrar a seguir.
Depois da RDC 102/2000, mais do mesmo
Passados alguns anos da implantação da RDC 102/2000, pesquisa voltada para a análise da forma de atuação das empresas de produção e distribuição de produtos farmacêuticos, assim como das agências de publicidade, empresas de comunicação e do comércio varejista, frente ao impacto da resolução da Anvisa, demonstra que, para além da inserção da frase obrigatória ao final de cada propaganda (que na verdade estimula o consumo irracional e perigoso), pouca coisa mudou no setor em relação à magnitude das irregularidades cometidas (Nascimento, 2005).
A pesquisa coletou um total de 100 peças publicitárias de medicamentos, veiculadas em rádio, televisão, jornais, revistas, folhetos e outdoor entre os meses de outubro de 2002 e julho de 2003 (dois anos depois da efetiva vigência da RDC 102 da Anvisa). Selecionados dados como o nome fantasia do medicamento anunciado, o tipo de mídia em que a propaganda foi veiculada, o nome do laboratório farmacêutico produtor, a indicação sugerida na publicidade, o texto publicitário que sustenta o anúncio e finalmente fazendo uma comparação deste conjunto de elementos constantes nas peças publicitárias com os artigos da RDC 102, constatou-se que em 100% das peças examinadas havia algum tipo de irregularidade, demonstrando que o cumprimento da regulamentação mais recente voltada para o controle da propaganda de medicamentos no Brasil simplesmente não é observado.
Entre os grupos terapêuticos mais anunciados no universo estudado, do total de 100 anúncios, 12 são de analgésicos; 12 de antigripais; 11 de tônicos/fortificantes/vitamínicos; 10 de antiácidos; 9 são expectorantes/antitussígenos; 9 emagrecedores; 6 antiinflamatórios tópicos; 6 são para disfunções eréteis; 6 antitérmicos; 4 anti-sépticos; 3 descongestionantes; 3 antivaricosos/circulação venosa; 3 antiinflamatórios; 2 são vitaminas tópicas; 2 antiespamódicos, 2 antiescabiose/piolhos; 2 laxativos/purgativos e um anúncio para cada um dos seguintes grupos: antimicrobiano, antimicótico, hepatoprotetor, anti-helmíntico, antidiarréico, anti-reumático, calmante, antialopecia/calvície, terapia de reposição hormonal e um cuja classificação não se pôde definir, devido às múltiplas indicações referenciadas na publicidade.
Entre os laboratórios que mais anunciaram, o Dorsay Monange (DM) Indústria Farmacêutica está presente em 21 dos 100 anúncios; 15 são de laboratórios não informados na propaganda; 5 da Belém Jardim Fitoterápicos; 4 da E.M.S. Indústria Farmacêutica; 4 da Smithkline Beecham do Brasil; 4 do Laboratório Wyeth-Whitehall Ltda; 3 da Procter e Gamble do Brasil; 3 da Schering-Plough; 3 do Laboratório Catarinense; 3 do Laboratório Aventis Pharma; 3 da Pfizer do Brasil; 3 da Boehringher do Brasil; 2 da Roche do Brasil; 2 da Luper Farmacêutica; 2 da Indústria Farmacêutica Milian; 2 da Staford Miller Indústria Ltda.; 2 da Bristol Myers-Squibb; 2 do Zurita Laboratório Farmacêutico Ltda.; 2 da Janssen-Cilag Farmacêutica Ltda.; e uma inserção publicitária das seguintes indústrias: Laboratório Bauer, Laboratório Vitalab Ltda., Merck S.A., Laboratório Klinger do Brasil, Newlab Indústria Farmacêutica Ltda., Altana Pharma Group, Sankio Pharma Brasil, Laboratório Hepacholan do Brasil, Eurofarma, Indústria Farmacêutica Farmabraz Beta Atalaia, Asta Médica Ltda., Laboratório Farmacêutico Vitamed Ltda., União Química Farmacêutica Nacional Ltda., Stem Pharmaceutical e Zest Farmacêutica.
Um fato grave deve ser ressaltado quando se analisam os artigos da RDC 102/2000 mais descumpridos nas 100 peças de propaganda analisadas. A norma mais infringida é o artigo 3o, alínea I (que obriga que conste "de forma clara e precisa a contra-indicação principal" do medicamento anunciado, mesmo os chamados de 'isentos de prescrição' ou de 'venda livre'). Este artigo em particular foi descumprido em 94 dos 100 anúncios analisados.
Outros artigos 'campeões' em descumprimento são o 10o, parágrafo IV (que veda que a publicidade venha a "sugerir ou estimular diagnósticos, aconselhando um tratamento correspondente"), descumprido 52 vezes; o artigo 12, alínea A (que determina que "a propaganda, publicidade e promoção de medicamento de venda sem exigência de prescrição deverão incluir, além das informações constantes no inciso I do artigo 3º desta regulamentação: a) o nome comercial do medicamento; o número de registro na Anvisa e o nome dos princípios ativos segundo a DCB e na sua falta a DCI"), descumprido 50 vezes; e o artigo 10, parágrafo 1 (que veda "na propaganda, publicidade e promoção de medicamentos de venda sem exigência de prescrição" a ação de "estimular e/ou induzir o uso indiscriminado de medicamentos e/ou emprego de dosagens e indicações que não constem no registro do medicamento junto à Anvisa"), descumprido 33 vezes.
Também vale registrar a quantidade de vezes em que ocorreu o descumprimento do artigo 10, parágrafo X (que proíbe o uso "de linguagem direta ou indireta relacionando o uso de medicamento ao desempenho físico, intelectual, emocional, sexual ou à beleza de uma pessoa, exceto quando forem propriedades aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária"), descumprido 26 vezes; e o artigo 4º, parágrafo X (que veda a ação de "sugerir ausência de efeitos colaterais ou adversos ou utilizar expressões tais como: "inócuo", "seguro" ou "produto natural", exceto nos casos registrados na Anvisa), descumprido 20 vezes.
Uma comparação, feita no âmbito desta pesquisa, entre o conteúdo das 100 peças publicitárias e as determinações da RDC 102/2000 da Anvisa demonstra existir uma média de 4,13 irregularidades por anúncio, com alguns anúncios chegando a conter até 10 tipos de infrações à legislação.
A análise do conteúdo das mensagens de texto e das imagens da grande maioria delas mostra uma tendência a superestimar as qualidades dos produtos anunciados e omitir seus aspectos negativos. Os anúncios enaltecem as características favoráveis do medicamento, muitas vezes atribuindo a ele uma onipotência duvidosa e uma posição central na terapêutica, sem apresentar uma sustentação com base em dados científicos.
Por outro lado, a ausência de contra-indicações (o artigo mais ferido pelas publicidades analisadas) reflete o quanto as informações sobre riscos, efeitos adversos, advertências e precauções são negadas ao consumidor. Não é exagero concluir que, do ponto de vista publicitário, veicular informações sobre riscos e possíveis agravos é visto, pelo marketing medicamentoso, como uma contrapropaganda do produto.
Os argumentos mais utilizados na propaganda analisada ressaltam, principalmente, a eficácia, a segurança, o bem-estar, a comodidade na administração, a rapidez da ação do medicamento, além do bom humor, da energia, do prazer e da felicidade que eles trazem, minimizando ao máximo, ou simplesmente excluindo, qualquer referência a riscos, possíveis interações medicamentosas ou contra-indicações. Estas, quando aparecem, na maioria esmagadora das vezes, são exibidas em letras minúsculas, que surgem muito rapidamente e expostas em milésimos de segundo, frisando apenas que aquele determinado medicamento "é contra-indicado para as pessoas com hipersensibilidade aos componentes da fórmula", evitando-se determinar especificamente os grupos populacionais que não devem tomar o medicamento, como idosos, crianças, diabéticos, hipertensos e outros.
Freqüentemente, a propaganda voltada para o grande público se utiliza de apresentadores de programas de rádio e televisão, artistas e atletas famosos, como forma de induzir o consumo de determinado medicamento, utilizando o padrão de beleza, a confiabilidade ou o desempenho físico demonstrado por eles.
Seja em relação à magnitude das irregularidades (100% do universo analisado indica pelo menos um tipo de infração), seja em relação à pouca eficácia das ações reguladoras (poucos são os anúncios retirados do ar e ínfimos os valores das multas aplicadas), a realidade do setor mostra que não é apenas um maior rigor na esfera da fiscalização onde reside o problema. A questão é mais ampla e se localiza na própria forma como se estrutura o modelo regulador vigente.
Um modelo regulador mais rígido deve incorporar a lógica da prevenção ao risco sanitário
Os fatos que cercam a questão da propaganda de medicamentos demonstram a urgência de um esforço regulador mais rígido e abrangente, que contribua para a diminuição do uso incorreto de medicamentos, a redução dos casos de reações adversas e dos índices de intoxicação humana provocadas por produtos farmacêuticos, elevando o nível de informação e consciência da população sobre a questão e evitando o contínuo crescimento de agravos à saúde.
A propaganda de medicamentos para grande público hoje realizada no Brasil entra em clara contradição com a atual Política Nacional de Medicamentos (Brasil, 1998b), segundo a qual o uso de produtos farmacêuticos deve se dar de forma racional, ética e correta, preconizando explicitamente um maior "controle da propaganda dos medicamentos de venda livre".
Sendo assim, faz-se necessária uma revisão profunda dos atuais mecanismos reguladores do setor, com vistas à superação das enormes fragilidades existentes, com a finalidade de minimizar e mesmo superar um modelo de propaganda voltado a persuadir o consumidor psicologicamente, utilizando-se de mensagens que se situam no campo da vulnerabilidade humana.
Um enfrentamento da questão não pode deixar de considerar o aspecto cultural que a permeia, que através do tempo se arraigou entre prescritores, pacientes e no conjunto da sociedade, segundo o qual o medicamento é fator essencial em qualquer terapêutica. Por isso, uma reforma no sistema de ensino e de assistência - que acople uma visão crítica da prática médica e da educação sanitária da população - faz-se necessária, com vistas a alterar os atuais padrões de comportamento e formar uma consciência que estimu-le novos hábitos relativos ao consumo de produtos feitos para promover a saúde, prevenir e curar doenças, mas que trazem em si o componente da ineficácia terapêutica e, pior, das reações adversas.
Outro fator importante a ser suprimido da publicidade é o estímulo a maus hábitos alimentares que alguns produtos trazem em suas mensagens. Em algumas delas, ingerir comidas gordurosas e em excesso não traz problema, desde que acompanhado de determinado sal de fruta ou droga contra azia e má digestão. Beber em demasia tampouco precisa ser evitado, bastando tomar "um Engov® antes e outro depois".
No terreno específico da propaganda, o conflito de interesses entre a realidade demonstrada na pesquisa citada e a política de Estado voltada para o uso racional do medicamento pode ser enfrentado através de ações de caráter público. Estas ações podem articular os interesses dos segmentos industriais, dos profissionais de saúde responsáveis pela prescrição (médicos e odontólogos) e dispensação (farmacêuticos), além de representantes dos órgãos de defesa do consumidor e gestores do SUS, no sentido de construir um novo modelo regulatório que assegure a disseminação de informações cientificamente embasadas e isentas. Estas ações se materializariam em formulários terapêuticos nacionais, boletins independentes e demais instrumentos de educação em saúde. Resumindo, a implantação de políticas globais que utilizem os instrumentos de informação e comunicação voltados para o uso correto e racional de medicamentos é uma diretriz fundamental a ser assumida pela Política Nacional de Saúde.
Além disso, faz-se necessário que a Anvisa assuma com tenacidade o seu papel de vigilância, fiscalização e instrumento de punição das irregularidades. Hoje, a Agência, diante dos dados alarmantes da pesquisa encomendada por ela própria, privilegia seu papel de implementadora "de políticas de educação e conscientização da população sobre os perigos da automedicação" e de "mudança no perfil dos profissionais envolvidos no projeto dentro da universidade", minimizando o seu papel de polícia sanitária.
Rozenfeld lista algumas diretrizes essenciais a serem assumidas pela Anvisa ou pelo órgão que eventualmente vier a assumir um efetivo papel regulador na área:
"1. Concentrar-se nas atividades fins, no chamado exercício de polícia sanitária, dirigida aos campos de maior risco para a saúde. Agir segundo parâmetros epidemiológicos, isto é, selecionar grupos vulneráveis e protegê-los em caráter prioritário, sobretudo idosos, doentes crônicos, crianças e gestantes;
2. Trabalhar com a atual legislação sanitária que, embora possa ser melhor detalhada, é mais do que suficiente para sanear o mercado;
3. Enfrentar, com coragem, os fabricantes de produtos e prestadores de serviço que afetam a saúde. Verificar as inconformidades, as fraudes, os erros e as inadequações, punindo severamente os infratores;
4. Articular a formação de recursos humanos às diretrizes da política de vigilância sanitária. O treinamento e a capacitação dos profissionais deve subordinar-se às metas de proteção à saúde dos usuários;
5. Envolver a sociedade e os órgãos de defesa do consumidor na educação para a saúde;
6. Evitar ações dispersas. Os problemas estão diagnosticados há décadas;
7. Proceder a revisões técnicas de produtos farmacêuticos, por classes terapêuticas, segundo o risco, com ações saneadoras significativas. Cancelamento do registro de produtos ineficazes ou danosos, seguido de um rigoroso 'cumpra-se';
8. Evitar pulverização dos recursos em atividades meio;
9. Inspecionar e fiscalizar regularmente os laboratórios fabricantes e demais agentes econômicos, divulgando os resultados;
10. Estabelecer integração com os níveis estadual e municipal, para além das relações de copatrocínio" (Rozenfeld, 2003, p. 15).
Proposições para um novo modelo regulador da propaganda de medicamentos no Brasil
As preocupações que cercam a regulação da propaganda de medicamentos no Brasil já produziram um conjunto de propostas capazes de, pelo menos, minorar o atual quadro de fragilidade na regulamentação do setor. Várias entidades e mais de uma centena de profissionais ligados à área da saúde assinaram uma proposta oficial, enviada à Anvisa no âmbito de uma consulta pública realizada em março de 2006 (Disponível em: <http://www4. anvisa.gov.br/base/visadoc/CP/CP[12663-1-0].PDF>), com vistas à promoção de alterações para defender os interesses dos cidadãos frente propaganda irregular e enganosa. Passado mais de um ano, entretanto, as regras permanecem inalteradas.
Entre as principais propostas para criar um modelo regulador que proteja o cidadão, podemos destacar a que indica que o órgão regulador deve, "por intermédio de dispositivo legal adequado, garantir a proibição da propaganda de medicamentos (...) em todos os meios de comunicação", conforme o item 43 das proposições inseridas no relatório final da 1ª Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, realizada em Brasília, de 26 a 30 de novembro de 2001 (Brasil, 2001b, p. 63). Vale ressaltar que as conferências nacionais de saúde são um dos mais importantes fóruns de controle social do SUS.
Tendo em vista as dificuldades políticas de viabilização que essa proposta encerra - e considerando os poderosos lobbies que caracterizam o setor - , o documento enviado à Anvisa propõe que o órgão regulador (caso opte por não impor o fim da propaganda de medicamentos) estabeleça mecanismos que permitam que o Estado brasileiro passe a aprovar previamente as peças da publicidade farmacêutica, como forma de proteger a população dos anúncios enganosos e prevenir o uso incorreto, irracional, inconsciente e perigoso de medicamentos, já que esta prática não conseguiu ser coibida com a série de tentativas realizadas nos últimos trinta anos, por meio da análise das peças publicitárias somente após a sua veiculação pela grande mídia. A iniciativa visa justamente corrigir o atual modelo regulador num de seus aspectos mais problemáticos, que é a repetição das irregularidades, a cobrança das multas por parte da Anvisa e a sua incorporação, pela indústria, aos preços dos medicamentos (sendo finalmente pagas pelo próprio consumidor), criando um círculo perverso no qual a indústria, as agências, os meios de comunicação e o comércio varejista fingem que são regulados, a Agência responsável consegue no máximo diagnosticar parte das irregularidades cometidas e a sociedade permanece exposta a agravos. A aprovação prévia das peças publicitárias, vale ressaltar, já ocorre em maior ou menor grau em países como Espanha, França, Reino Unido, Austrália, Suíça, Canadá, México e Equador (Brasil, 2005). Este mecanismo teria a estratégica função de prevenir o risco, ao invés de dirigir todo seu esforço para identificar o mal já feito, o risco já estabelecido.
Uma terceira proposta exige do órgão regulador o simples cumprimento do artigo 118, parágrafo 2º, do decreto 79.094/77, que determina, claramente, quando trata da propaganda de medicamentos, que:
"No caso de infração, constatado a inobservância do disposto nos itens I, II e III deste artigo, independentemente da penalidade aplicável, a empresa ficará sujeita ao regime de prévia autorização previsto no artigo 58 da Lei 6.360, de 23 de setembro de 1976, em relação aos textos de futuras propagandas" (Brasil, 1977).
Assim, caso o laboratório produtor viesse a cometer a primeira irregularidade, todas as demais peças publicitárias de seus produtos teriam que passar por controle prévio antes de seguirem para os meios de comunicação. Isso já é lei.
A quarta proposta determina que só poderão ser feitas propagandas de produtos cuja eficácia e segurança estejam comprovadas cientificamente com a melhor relação benefício-risco, com base em periódicos científicos classificados como 'A' no Sistema Qualis da Capes, exigência que deve ser feita já no processo de registro do medicamento. Na propaganda destinada aos prescritores, não poderão ser utilizadas referências bibliográficas que não cumpram este critério e, além disso, a referência bibliográfica deverá estar traduzida para o português e anexada à peça publicitária distribuída ao prescritor.
A classificação 'A' no Sistema Qualis tem como propósito tornar a referência a mais precisa, sem equívocos, inconsistências e ser um instrumento que verdadeiramente auxilie a comunidade científica e a própria sociedade a identificar os periódicos de maior vigor científico e, portanto, mais adequados a servirem de base para a utilização como norteador técnico-científico. A tradução da íntegra da referência bibliográfica para o português e sua distribuição obrigatória aos prescritores, em conjunto com a peça publicitária, se justifica pelo fato de o prescritor muitas vezes não ter o domínio de outras línguas ou não conseguir acessar a referência citada.
Uma outra proposta já encaminhada à Anvisa busca superar as falsas propagandas de medicamentos travestidas de 'matérias jornalísticas', cada vez mais comum na mídia brasileira. Pela proposta, o futuro modelo regulador deve obrigar que, em todas as reportagens e textos de opinião que tratem de produtos farmacêuticos, seja dado espaço para que o órgão regulador também seja ouvido sobre o tema e o princípio ativo objeto da matéria. Essa proposta pode ser realizada por meio de uma ação coordenada entre a Anvisa e os centros de informação sobre medicamentos já existentes no Brasil.
Outra proposição indica a necessidade de, quando houver a reincidência nas infrações, a Agência aplicar penas de forma cumulativa e sempre maior a cada infração cometida, chegando à cassação da licença de funcionamento com vistas a obrigar o cumprimento da legislação. A implementação da proposta contribuiria para um maior empenho da indústria, agências de publicidade, empresas de comunicação e comércio varejista, no sentido de evitar a magnitude das irregularidades hoje verificadas.
Também foi ressaltada a necessidade do órgão regulador patrocinar, junto com outras instituições, uma ação afirmativa do Estado brasileiro junto à população, no sentido de elevar a consciência do que vem a ser 'uso correto do medicamento', a exemplo do que foi feito quando houve a introdução de produtos genéricos no mercado.
Aliado a isso, caberia, ao Estado brasileiro, usar do espaço institucional de governo nos meios de comunicação para divulgar as punições às empresas que infringem as normas da propaganda de medicamentos, os motivos dessas punições, a marca e o nome da empresa responsável pelo produto irregularmente anunciado.
Outra proposta que ajudaria a coibir os atuais abusos - e ao mesmo tempo engajar os responsáveis pelos anúncios publicitários na busca do real cumprimento da legislação - determina que o órgão regulador incorpore, no cotidiano das inspeções relativas às boas práticas de produção, um item sobre propaganda. Caso a empresa regulada infrinja de forma contumaz a legislação, o seu certificado de boas práticas seria cancelado, ficando a empresa impedida de funcionar, independente das sanções resultantes da irregularidade constatada na peça publicitária. Para eventuais contraprovas, as empresas deveriam manter em seus arquivos todo o seu material publicitário por um prazo de cinco anos.
Os dados da pesquisa aqui analisados, assim como os próprios números expostos pela Anvisa em sua página eletrônica, demonstram a urgência de um esforço regulador mais rígido e abrangente, que contribua para a diminuição do uso incorreto, irracional, inconsciente e perigoso de medicamentos. Este esforço resultará na redução dos casos de reações adversas e dos índices de intoxicação humana provocadas por produtos farmacêuticos, elevando o nível de informação e consciência da população sobre a questão e evitando o contínuo crescimento de agravos à saúde.
Para isso, é urgente a superação do atual modelo regulador da propaganda, com o estabelecimento de novos, efetivos e mais rigorosos mecanismos de controle público desta prática no Brasil, assim como o acompanhamento de sua implementação e a avaliação de seu impacto na saúde da população. Um tratamento prioritário a estas questões, no conjunto da sociedade e no interior do SUS, pode superar a perversidade da lógica atual, onde os interesses econômicos de expansão de mercado e acumulação de capital se sobrepõem aos interesses da cidadania e da saúde pública.
Notas
Recebido em 04/05/2007
Aprovado em 25/06/2007
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Out 2012 -
Data do Fascículo
Jul 2007
Histórico
-
Aceito
25 Jun 2007 -
Recebido
04 Maio 2007