Open-access Entrevista: Teresa Ramos

Interview: Teresa Ramos

Resumos

A aula inaugural de Tereza Ramos, proferida no início do ano letivo na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, no Rio de Janeiro, constituiu uma autêntica lição de participação política. Agente comunitário de saúde (ACS) desde 1978, atualmente Tereza é a presidente da Confederação Nacional de Agentes Comunitários de Saúde, que reúne as federações estaduais, abrangendo dez estados brasileiros, algumas anteriores ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs). Nesta entrevista¹, concedida um dia antes da palestra, Tereza conta um pouco sobre a luta protagonizada pelos agentes comunitários de saúde em busca de 'desprecarização' de seu trabalho. Essa luta culminou na edição da emenda constitucional nº 51, de fevereiro de 2006, e da lei 11.350, de outubro de 2006, que regulamenta a emenda, marcos legais de amparo à profissão de agente comunitário de saúde e exemplo de exercício de cidadania de Tereza e do grupo de ACS liderado por ela. Militante histórica do setor saúde, que cruzou o caminho de Sergio Arouca na VIII Conferência Nacional de Saúde, também opina sobre a formação que os ACS vêm recebendo em curso técnico. Essa formação é considerada fundamental, junto com a 'desprecarização' dos vínculos e a regularização do acesso, para a efetiva profissionalização e reconhecimento dos direitos desses trabalhadores.


The inaugural class given by Tereza Ramos to kick the school year off at the Joaquim Venâncio/Fiocruz Polytechnic Health School, in Rio de Janeiro, was a genuine lesson in political participation. A community health agent (CHA) since 1978, Tereza is currently the president of the National Community Health Agent Confederation, which brings state federations from ten Brazilian states, a few of which existed before the Community Health Agent Program (CHAP), together. In this interview, granted a day before the lecture, Tereza talks a little about the community health agents' battle in search of reducing the precarious nature of their work. This battle culminated in constitutional amendment number 51, dated February 2006, and in law 11.350, dated October 2006, which regulates the amendment, the legal guidelines that support the community health agent's profession and is an example of the exercise of citizenship not only by Tereza, but of the group of CHAs she leads. A historical heath sector militant, who crossed paths with Servio Arouca in the 8th National Health Conference, Tereza also opines on the training the CHAs have been getting in technical courses. This training is considered as vitally important, alongside the elimination of the precarious nature of job ties and regularizing access, for these workers' actual professionalization and to the acknowledgement of their rights.


ENTREVISTA

Entrevista: Teresa Ramos

Interview: Teresa Ramos

RESUMO

A aula inaugural de Tereza Ramos, proferida no início do ano letivo na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, no Rio de Janeiro, constituiu uma autêntica lição de participação política. Agente comunitário de saúde (ACS) desde 1978, atualmente Tereza é a presidente da Confederação Nacional de Agentes Comunitários de Saúde, que reúne as federações estaduais, abrangendo dez estados brasileiros, algumas anteriores ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs). Nesta entrevista1, concedida um dia antes da palestra, Tereza conta um pouco sobre a luta protagonizada pelos agentes comunitários de saúde em busca de 'desprecarização' de seu trabalho. Essa luta culminou na edição da emenda constitucional nº 51, de fevereiro de 2006, e da lei 11.350, de outubro de 2006, que regulamenta a emenda, marcos legais de amparo à profissão de agente comunitário de saúde e exemplo de exercício de cidadania de Tereza e do grupo de ACS liderado por ela. Militante histórica do setor saúde, que cruzou o caminho de Sergio Arouca na VIII Conferência Nacional de Saúde, também opina sobre a formação que os ACS vêm recebendo em curso técnico. Essa formação é considerada fundamental, junto com a 'desprecarização' dos vínculos e a regularização do acesso, para a efetiva profissionalização e reconhecimento dos direitos desses trabalhadores.

ABSTRACT

The inaugural class given by Tereza Ramos to kick the school year off at the Joaquim Venâncio/Fiocruz Polytechnic Health School, in Rio de Janeiro, was a genuine lesson in political participation. A community health agent (CHA) since 1978, Tereza is currently the president of the National Community Health Agent Confederation, which brings state federations from ten Brazilian states, a few of which existed before the Community Health Agent Program (CHAP), together. In this interview, granted a day before the lecture, Tereza talks a little about the community health agents' battle in search of reducing the precarious nature of their work. This battle culminated in constitutional amendment number 51, dated February 2006, and in law 11.350, dated October 2006, which regulates the amendment, the legal guidelines that support the community health agent's profession and is an example of the exercise of citizenship not only by Tereza, but of the group of CHAs she leads. A historical heath sector militant, who crossed paths with Servio Arouca in the 8th National Health Conference, Tereza also opines on the training the CHAs have been getting in technical courses. This training is considered as vitally important, alongside the elimination of the precarious nature of job ties and regularizing access, for these workers' actual professionalization and to the acknowledgement of their rights.

Revista

Conte-nos sobre a sua trajetória e as circunstâncias que a tornaram uma liderança nacional dos agentes comunitários de saúde.

Tereza Ramos

Comecei a ser agente comunitário de saúde em 1978. Nessa época, não era agente comunitário de saúde, era agente de saúde. A palavra 'comunitário' foi criada muitos anos depois. Nas comunidades mais pobres do Recife havia projetos de saúde realizados pela Pastoral e pelo Instituto Materno-Infantil de Pernambuco (Imipe). Eram grupos de pessoas comuns da comunidade que queriam trabalhar, e essas instituições faziam treinamento para que elas trabalhassem com grupos de mulheres e gestantes, grupos de crianças entre um mês e cinco anos, principalmente, além de grupos de pessoas idosas com hipertensão e diabetes. Então, num primeiro momento, nós, agentes, trabalhávamos com projetos de saúde da Pastoral da Saúde ou do Imipe. As comunidades, as associações de moradores, os conselhos de moradores interessados assinavam um termo de adesão e selecionavam pessoas para formar um grupo que nós chamávamos de 'grupo de agentes de saúde'.

Revista

Quem eram os agentes de saúde? Como se organizavam?

Tereza Ramos

Como já disse, eram pessoas da comunidade. Havia o grupo técnico, que nos acompanhava, com enfermeiro, médico, padre e freira. A religião era muito forte. Os projetos eram do Imipe e das dioceses, inclusive o de Olinda e Recife, liderado por dom Hélder Câmara. Eu participava do diocesano. No final do ano de 1978, juntamos todos esses grupos e fizemos o primeiro Encontro Nacional de Experiências Comunitárias, promovido pela diocese da cidade de Lins, em São Paulo. Não participei dessa reunião, porque na época eu era operária de fábrica e não consegui liberação. Reuniu setecentas pessoas. Foi o primeiro encontro em que houve a participação de pessoas da comunidade. No segundo, em Olinda, no Recife, em 1979, do qual participei, saiu o nome Movimento Popular de Saúde (Mops), que representava mais o conjunto dos participantes. Em nível nacional, só vamos ter um encontro novamente no final de 1982. Decidimos que não queríamos mais continuar MOPS e criamos a Associação Nacional dos Agentes de Saúde. Nesse encontro, havia muito mais pessoas das comunidades do que médicos e freiras. Os médicos que lá estavam concordavam que a gente devia largar essa história de que saúde tinha que ficar ligada exclusivamente à Pastoral da Saúde, ou a uma instituição, que a gente deveria discutir saúde como condição de vida, o que não significava apenas estar bem fisicamente, sem dor, mas também ter onde morar. Então, no final de 1982, conseguimos acabar com a história de Pastoral e misturamos todos os agentes de pastorais com todos os agentes que apareceram. Podia vir de terreiro de umbanda, de onde viesse, era agente de saúde e juntávamos ali no Movimento Popular de Saúde. A equipe médica que, até então, continuava nos acompanhando ficou na qualidade de assessora do movimento. A coisa começou a andar de forma mais organizada. Mas o momento mais importante que vivi, antes de chegar ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde, foi no ano de 1985. Passamos esse ano todo trabalhando proposta para levarmos para a VIII Conferência Nacional de Saúde, que aconteceria em 1986. Trabalhamos por esse país afora, onde houvesse grupos de agentes comunitários, estávamos lá para dizer: "Vai ter a conferência, a conferência vai voltar, a gente tem que participar e a gente tem que ir com propostas". E, finalmente em 1986, a Conferência Nacional de Saúde foi a retomada de tudo o que temos hoje.

Revista

Como foi a participação na VIII Conferência Nacional de Saúde?

Tereza Ramos

Fui delegada da conferência contra a vontade do meu estado. O governo estadual (de Pernambuco) não queria que os agentes de saúde saíssem como delegados de jeito nenhum. Só que, quando chegamos na conferência, o Sergio Arouca, que era o coordenador, disse: "Não, espera aí! Está aqui escrito, tem ata, tem tudo, então a gente vai colocar essa questão em votação. O plenário é quem vai decidir. Os delegados dos outros estados é que vão decidir se os dez agentes de saúde de Pernambuco são ou não são delegados". O Arouca colocou em votação. Então o plenário votou e aprovou. Foi assim que recebemos o crachá de delegado. Aquela conferência foi uma coisa fantástica, porque se você ler o relatório final e ler a lei que cria o SUS, vai ver que quase tudo da conferência nós aprovamos na lei nº 8.080/90, e a conferência foi em março de 1986 e, em 1988, a Constituição. Aí você tem a certeza de que se o cidadão, de fato, começar a participar de forma organizada, consegue fazer as coisas acontecerem.

Revista

Qual foi a importância da VIII Conferência Nacional de Saúde para a causa do agente comunitário de saúde?

Tereza Ramos

Na época, entregamos ao governo federal um projeto que tínhamos elaborado, no qual o governo deveria arcar com as despesas, pagamento de salário. Nesse momento, rachamos com as pastorais de agentes comunitários. Cobramos esse documento algumas vezes. Em junho de 1991, o ministro Alceni Guerra nos convidou para uma reunião. Cheguei e encontrei as pessoas de outros estados, os delegados na conferência. E aí Alceni Guerra nos apresentou o projeto do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS). Quase morremos quando vimos o projeto, pois tinha tudo para não dar certo. Já começava com dez mil no Nordeste. Ele apresentou o projeto e disse: "Olhe, começa em setembro deste ano e vocês discutam aí como é que vão fazer, se vão colaborar ou se não vão". E deixou a gente e foi embora. Então ficamos com o Unicef, o pessoal do ministério e umas secretárias até de madrugada. Decidimos que o melhor era participar, para poder fiscalizar. Vamos estar em cada município, mobilizar as organizações dos municípios, principalmente os conselhos municipais de saúde e os sindicatos. Vamos fiscalizar e não deixar ser essa coisa que eles estão querendo fazer, que achávamos que ia dar num grande elenco de cabos eleitorais. E conseguimos fiscalizar. A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) participou com muita seriedade, coordenando provas e entrevistas. O Movimento Popular ficou como fiscal de todo o processo. E o Nordeste inteiro foi fiscalizado. Quem implantou em 1991 foi fiscalizado. Agora, quem veio de 1993 em diante, não sei mais como é que foi.

Revista

O que se modificou a partir de 1993?

Tereza Ramos

Tanto o presidente quanto o ministro não queriam que o programa fosse o que ele acabou sendo. É uma impressão que eu tenho. Antes de 1993, o agente comunitário de saúde levava pancada de todos os lados, inclusive das organizações de esquerda do país, que chamavam todos nós, Agentes Comunitários de Saúde, de cabos eleitorais de Fernando Collor. Por outro lado, apanhava do próprio estado que o criou, mas não queria ser pai do projeto de jeito nenhum. Só que os agentes comunitários se mostraram capazes de reduzir a mortalidade infantil, e o Unicef mostrava estudos claros a esse respeito. Aprendemos muito nessa época a pesquisar e a registrar. Porque a gente não valorizava nada mesmo. Com os dados que o Unicef apresentou, bem como os do governo do Ceará, apesar de estes na época terem sido questionados - os do Unicef não, eram dados sem paixão, sem politicagem - comprovou-se claramente uma redução de mortalidade infantil, um número de crianças que estavam com todo o esquema de imunização em dia, reidratação oral, das mães fazendo pré-natal. Então essas três coisas que foram apresentadas com números concretos pelo Unicef começaram a fazer um monte de gente pensar diferente. Diante dos resultados, o governo teve que assumir de verdade. Em 1992, surge o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs). No final de 1993, começa-se a ouvir falar em Programa de Saúde da Família. O governo caiu mesmo, não adiantou, mas o programa se sustentou.

Revista

É então que começa a luta pela 'desprecarização' e por formação?

Tereza Ramos

Assume o Itamar Franco e tínhamos dados comprovando a eficácia do trabalho dos agentes. Então começamos a nos sentir importantes também e a buscar uma forma de 'desprecarizar' a nossa situação. Éramos bolsistas. Passei um ano, dois anos, três anos como bolsista. Quando entrei, em 1993, os ACS ainda eram bolsistas. E se a gente tinha conseguido reduzir mortalidade, convencer as gestantes a fazerem pré-natal, imunizar as crianças no esquema completo, então nada mais justo do que sermos melhor assalariados por isso. E também ter treinamentos, reciclagens... Houve um treinamento inicial, dado pelo Imipe em Pernambuco, por estados, prefeituras e pela Fundação Nacional de Saúde. Só que era um treinamento inicial. Depois ficamos praticamente sem nenhum. Então, começamos também a brigar para ter treinamento, e os treinamentos vieram. Mas, assim, sobre assuntos específicos: curso de hipertensão, aí vai todo mundo fazer curso de hipertensão. Quando termina, recebe o certificadozinho. Curso de dengue, curso de cólera, e recebe o certificado-zinho. Eu tenho uma pilha de certificados, acho que vinte e dois. E não tem um que diga que eu sou agente comunitário de saúde. É aí que surge a Izabel Santos, em 1994, se não me engano, tentando montar uma grade curricular de um curso técnico para agente comunitário de saúde. Havia pessoas também da Fiocruz, do Unicef e da Fundação Nacional de Saúde.

Revista

Sabemos que para você é uma bandeira de luta, mas por que a opção pela formação técnica?

Tereza Ramos

A formação técnica, a meu ver, tem que ser uma ferramenta para o agente comunitário poder servir melhor à sua comunidade, prestar um serviço de melhor qualidade. Tem que servir para isso. Se ela não servir para isso, então é melhor que não se faça. Tem que servir para dar ênfase, para subsidiar o agente comunitário em seu trabalho junto aos usuários, ou, como a gente chama, as minhas famílias, as nossas famílias. Assim, o Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde me preocupa porque há estados que já começaram, há os que ainda não iniciaram, há o que começou errado e o que começou e terminou essa primeira etapa. E aí surge a conversa de que a segunda e a terceira etapas não vão acontecer.

Revista

Quais são os principais opositores, as dificuldades para fazer acontecer essa formação técnica integralmente?

Tereza Ramos

Há argumentos estranhos. Já ouvi uma pessoa dizer que a lei nº 11.350, de outubro de 20062, estabelece que não é preciso fazer curso técnico para ser agente comunitário de saúde. Ora, eu tenho cópia da lei nº 11.350. Não existe nessa lei, em nenhum lugar, em nenhum momento sequer, nada que dê a entender isso. Também não é questão de entendimento. A outra coisa que se fala é que se a capacitação técnica do agente comunitário de saúde vai elevar o nível de conhecimento desse agente, ele naturalmente vai querer ser melhor remunerado. Outra grande besteira, porque vamos brigar por salário, independente de termos curso técnico ou não.

Revista

Mas quem é que faz essas afirmações?

Tereza Ramos

São vários grupos ou setores. Não é todo o mundo desse ou daquele segmento, mas setores. Com relação ao curso técnico especificamente, ouvi claramente do pessoal do Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde) e do Conass (Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde). Agora, não me convenceu, porque não ficou claro para mim por que motivo não pode ter curso técnico para agente comunitário de saúde. Não ficou, em nenhum momento, por mais que eles falassem. Então, na verdade, o que existe é uma questão cultural no Brasil, que é a seguinte: um médico está trabalhando no PSF (Programa Saúde da Família) ou na unidade da prefeitura, e tem um curso X para ele fazer. Ele vai e faz. E todos acham certo o médico ir fazer curso. Quando é a enfermeira ou o enfermeiro, vai, mas pergunta-se: "A enfermeira vai fazer curso?" Quando é o auxiliar, o coitado não vai de jeito nenhum. Se for o agente de saúde, ninguém quer nem saber. Quer dizer, isso é incrível. É importante que o médico faça, não estou tirando essa importância. Mas é importante também que o enfermeiro faça o curso, o aperfeiçoamento, a qualificação, ou sei lá mais o quê, que nome se queira dar. É importante que o auxiliar de enfermagem faça e o agente comunitário também. E é importante que a comunidade seja bem informada. Porque quando está bem informada, ela reivindica os seus direitos.

Revista

Você mencionou alguns argumentos contra a formação técnica. Quais são os argumentos do ACS para defender a formação técnica, e não uma formação inicial, como está acontecendo hoje?

Tereza Ramos

Todo trabalhador, de qualquer área, precisa ser qualificado, porque precisa prestar um serviço de boa qualidade. Não só o trabalhador do serviço público, mas acho principalmente do serviço público. E o ACS está na ponta. É um sujeito que está lá, ele e a dona de casa. Ele e o jovem, o adolescente, a criança. Ele precisa estar qualificado, ter informação, para poder transmiti-la, para prestar esse serviço. E olha que são muitas informações. Acho até que o curso técnico, na segunda e na terceira etapa, deveria incluir algumas coisas que não apareceram na primeira, como, por exemplo, a questão relativa às leis e à previdência social. A aposentadoria, não. Quanto à aposentadoria, o pobre do trabalhador está bem informado sobre os seus direitos. Já com relação a outros benefícios, não. Os ACS precisam ter essa informação, porque somos muito cobrados na comunidade. Perguntam muito essas coisas para nós. Querem saber sobre as leis que punem a violência que sofrem no dia-a-dia, qual é o caminho que devem tomar para abrir um processo ou não, as leis sobre direitos a, por exemplo, alguns tipos de medicamentos que não têm na rede. Eu já terminei a primeira etapa do curso. O meu estado, graças a Deus, terminou a primeira.

Revista

Dê um exemplo de algo que mudou na sua rotina de trabalho ou na compreensão sobre o seu trabalho, em decorrência do término da primeira etapa do curso.

Tereza Ramos

Concretamente, a questão da burocracia do trabalho do agente comunitário de saúde. Todos os agentes detestam a burocracia. Detestamos fazer relatório, preencher ficha A, ficha B, ficha C. Detesto isso. Pensávamos assim: essa porcaria tem que ser feita, porque se não fizer o dinheiro não vem. E, com o curso, a gente aprofundou essa discussão. Então, vimos o seguinte: as fichas que tínhamos que preencher, A, B, C, até o Z, se for preciso, têm um propósito muito maior do que simplesmente vir o dinheiro do ministério. É a partir das minhas fichas e das fichas dos meus colegas que o município tem um retrato, um diagnóstico da minha comunidade. Ali está o retrato da minha comunidade. E, a partir disso, dependendo do gestor, podem ser traçadas políticas na área de saúde, o que é importante para a qualidade de vida dessa comunidade. Descobrimos isso no curso, depois de dez, doze anos trabalhando e fazendo as danadas das fichas.

Revista

Você conhece o currículo completo do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde? Em caso afirmativo, considera adequada a sua organização?

Tereza Ramos

Está falando da segunda e da terceira etapa? Eu conheço. Veja bem, devíamos rever agora, aproveitar o final da primeira etapa para implementar uma revisão, ouvir a avaliação feita pelos agentes nos estados, a das escolas que aplicaram o curso e a das supervisoras que estavam nas salas com os ACS. Seria bom ouvir isso. Porque tenho a impressão de que vamos precisar reorganizar o currículo para ele ficar melhor.

Revista

Que papel as escolas técnicas têm desempenhado nessa formação?

Tereza Ramos

Afora as escolas técnicas, não vejo quem faça, não. Acredito que a qualificação profissional do agente comunitário tem que ser a do trabalhador em saúde. Mas, nesse momento, estamos falando de agente comunitário... Sem as escolas de saúde pública, sem as escolas técnicas, não sei, não há condições de fazer. Outros tipos de escola poderiam fazer, mas naturalmente vão querer ser pagas. Sai mais caro para o Estado e não vão ter o mesmo empenho que as escolas técnicas estão tendo de chegar até as comunidades mais remotas. Enfim, de dar o curso para todo mundo. No meu estado, o curso foi dado para todos os agentes comunitários de saúde. Todos eles, sem exceção, já terminaram a primeira etapa. E o que me preocupa muito são os estados que nem começaram. Em alguns, não começou por inoperância das escolas; em outros, por brigas de escolas particulares para também poder fazer. Às vezes, eu fico me perguntando por que uma organização financia uma coisa e deixa tão solta. Se eu não vi o Ministério da Saúde fiscalizar esse curso, ficar no pé, será que é por que não tem gente? Enfim, eu não entendo às vezes por que, mas deixam solto.

Revista

Você poderia comentar sobre as exigências de escolaridade para o acesso aos módulos do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde.

Tereza Ramos

Na primeira etapa, não há exigência. Nesse momento, não deveria haver exigência. Nem na primeira, nem na segunda e nem na terceira etapa.

Revista

Não fica muito 'frouxo'? Se não tiver uma política de elevação de escolaridade, o ACS chegará ao final e não terá direito ao certificado.

Tereza Ramos

Sim. Eu não certifico, mas deixo que faça o curso. Primeiro, quero afirmar a minha discordância quanto ao fato de só fazer a primeira etapa do curso quem tem o segundo grau, mesmo quando o curso era permitido a todas as escolaridades. Acho que é preconceito. Os estados que fizeram isso perderam a oportunidade de dar um grande estímulo aos agentes que não têm o segundo grau de ir para a escola estudar. Houve estado que fez a primeira etapa com os agentes que têm o segundo grau. Quem não tem, senta aqui, não vai agora não. Quem fica para depois neste país acaba ficando para nunca mais. Se a lei dissesse que o agente que está na profissão será aproveitado, mas ele precisa de uma determinada escolaridade, tudo bem. Mas não tem. A lei nº 11.350 só exige o primeiro grau para quem vai entrar. Para quem já está, não exige nada. Veja só se não é injusto: você é agente de saúde da microárea 2, eu sou da microárea 1. Você tem segundo grau e termina a segunda e a terceira etapa e recebe o seu certificado. Eu não faço nem a segunda e nem a terceira porque só tenho o primeiro grau. Mas você está prestando serviço aqui na comunidade e eu nesse outro pedaço da mesma comunidade. E aí? Esse grupinho aqui da sua comunidade vai ter um serviço diferenciado... Na minha opinião, o curso tem que ser para melhorar a qualidade do serviço. Se não for, não vale a pena existir. Estou dizendo que todos os trabalhadores vão ter que passar por esse aprendizado. Agora, ganhar o certificado implica, a meu ver, outras questões. Como não tenho o segundo grau, de fato não devo ser certificada. Mas o conhecimento na minha cabeça deve existir. Eu penso assim. Mas não vou botar fogo nisso. São coisas polêmicas. Eu sou uma das pessoas que foi para a escola. Estou estudando também. Veja bem, isso serviu de estímulo porque ninguém quer terminar um curso e não ter o certificado. Agora, se eu digo que não pode fazer a segunda e a terceira etapa, é o mesmo que dizer para a pessoa: "não estude, fique assim mesmo". Mas se eu disser que pode fazer, mas não vou certificar, ela vai querer. Se quiser, ela também vai para a escola. Podiam estar oferecendo esse estímulo.

Revista

O que você definiria como o trabalho do ACS?

Tereza Ramos

A visita domiciliar é a síntese do trabalho do ACS. Não estou falando de entregar contas de luz ou de água. Porque isso é diferente. Uma coisa é passar numa casa para entregar uma conta, outra é visitar a família. Na visita, o agente observa as condições de higiene da casa, se a mãe está lavando roupa ou se tem o que comer naquele dia. Isso é uma visita. Há meses em que fica complicado fazer uma visita bem-feita. Em outros, tudo corre bem. Às vezes, chegamos na casa e a primeira coisa que encontramos é uma penca de problemas para resolver. Nesse momento, perdemos um tempo enorme. Em geral, é preciso ir unidade porque o funcionário de lá não resolveu algo que poderia ter feito. Em vez disso, mandou a pessoa de volta procurar o ACS. As pessoas já procuram, normalmente. Quando a unidade manda de volta, é mais cruel ainda, porque a pessoa já esteve lá.

Revista

Que diferenças marcam o trabalho no Pacs e no PSF?

Tereza Ramos

Há diferenças enormes. A primeira coisa é o horário de trabalho. O Pacs não dizia que o agente tinha que trabalhar de 9 da manhã às 12 horas. Parar de 12 até 14 horas e depois largar às 17 horas. Não tínhamos essa coisa rígida. Eu podia pegar só de manhã e era muito mais exigida. Por exemplo, eu precisava, e até hoje preciso, sair muito. Então, eu trabalhava sábado, domingo e ia cobrindo a minha área e pronto. O PSF exige uma jornada de oito horas de segunda a sexta, com horário fixo. Que nem se enquadra muito na real necessidade da comunidade. Agora, existe um horário em que você está visitando junto com o médico. E tem que ser aquele horário porque é o horário do médico.

Revista

As funções do ACS e do PSF têm alguma variação? O ACS tem mais autonomia? Ele era autorizado a fazer mais coisa e o trabalho educativo dele era mais forte?

Tereza Ramos

Era. O que é que eu falo para uma moradora quando chego na casa dela com a enfermeira? Quando chego com a médica? O que eu falo? E o que eu falo quando chego sozinha? Está entendendo? Quando chego sozinha, é uma coisa. A visita é minha, sou eu que falo. Mas se chego com a médica, a visita é dela. Estou ali apenas acompanhando a médica, porque ela tem medo de ir sozinha. Não é o programa que diz para eu ir com ela. Mas em Recife também não vai só, não. Não vão de jeito nenhum. Mas a visita é deles. Eles falam. De fato, tem essa diferença. Outra diferença é que somos obrigados a resolver e, às vezes, nem conseguimos resolver alguns problemas entre a unidade e o usuário. Porque na condição de Pacs não nos envolvíamos nessa história. Certa vez houve uma mãe que foi mandada à unidade e voltou sem ser atendida. Eu ia lá, falava com a direção da unidade e resolvia o que tinha de resolver. Com o PSF, não. Com o PSF não tem liberdade de nada. A unidade diz uma coisa e faz outra. Ela diz tem isso, isso e isso, e não tem coisa nenhuma. Só tem a metade. E sabe quem fica mal na história? O ACS.

Revista

Você falou que sente falta na formação de conteúdos que abordem o que é demandado dos agentes. Nesse sentido, como ajudar a qualificar a visita domiciliar?

Tereza Ramos

Por exemplo, com relação à questão das leis. Creio que as leis relacionadas ao ACS podem ser reunidas em apostilas e ir para a sala de aula para nosso conhecimento. O que é mais difícil? É quando se trata de abordagem. Quem é que vai ensinar abordagem para agente comunitário? É mais difícil. Há pouco estava discutindo com companheiros sobre a cara nova da família brasileira. Nessa primeira etapa do curso se tocou pouco nesse assunto. Quando o IBGE fizer o censo, vai ver que ela está menor. Só que a gente já viu que está menor. A média hoje de cada casa é de três pessoas. Não são mais quatro, como apurado pelo IBGE na última pesquisa. Hoje, encontramos a mulher e os filhos. Não encontramos mais a casa que culturalmente a gente tinha: a mulher, o marido e os filhos. Ou a avó e os netos. E encontramos os casais homossexuais. Então, essa é uma cara nova que temos. Vamos ter que abordar esse assunto no curso. Porque quando começamos a discutir entre nós, um grupo de vinte a trinta agentes, nas salas de aula, aprendemos um com o outro. "Ah, fulano fez assim e deu certo..."

Revista

Quais as principais dificuldades do trabalho do ACS hoje?

Tereza Ramos

A principal, que ocorre desde o começo, é a falta de resposta. O trabalho do ACS só funciona cem por cento se o serviço responder com a parte dele. Na maioria das situações, não temos a resposta do serviço. Por exemplo, se encaminho uma mãe para fazer o pré-natal e ela chega na unidade, mas acaba voltando... Que trabalho eu fiz? Meu trabalho se perde ali, vai por água abaixo. Se mando uma criança para vacinar e ela volta sem ser vacinada... Primeiro, a mãe não a leva de novo espontaneamente. Vou ter que começar do zero e fazer com que ela vá novamente. Segundo, meu trabalho fica pela metade. A unidade tem que responder, o serviço tem que dar resposta. Não pode deixar de dar. Por isso, às vezes brigamos nas prefeituras e ficam achando que estamos sendo chatos e não sei o quê. Outro dia, eu disse ao secretário da minha cidade: "Olhe, estou cobrando o meu serviço, não estou cobrando o seu. Porque se o senhor não faz a sua parte, a minha vai a zero. E eu não quero o meu serviço em zero. O senhor não se importa com o seu, mas eu me importo com o meu". Ele até ficou zangado comigo porque fui meio grossa. Eu tenho claro na minha cabeça o seguinte: o dinheiro que eu ganho sai do bolso daquelas pessoas.

Revista

Preconiza-se que o fato de o ACS residir na comunidade faz diferença no trabalho que ele realiza. Essa convivência influencia na forma de cuidar da população?

Tereza Ramos

Uma das coisas que influencia muito é o conhecimento. São os seus vizinhos. São pessoas que já te conheciam antes. Aí fica mais fácil de conversar, de estabelecer um clima de confiança. Eles nos encontram com facilidade, pois sabem onde moramos. Defendemos isso na emenda constitucional nº 51. Defendemos também na lei nº 11.350 e vamos continuar defendendo. Por quê? Porque é necessário residir na área. O que não podemos deixar passar é a exigência de que o agente resida na microárera. Há gente defendendo que o ACS tem que residir na micro-área. Aí eu acho brincadeira! Não é necessário. Isso é demais. Agora, morar na área em que trabalha, sim. Se não morar na minha comunidade, eu me torno, naquela em que trabalho, a mesma coisa que o médico. Largo às cinco da tarde, vou embora e acabou-se a história. Então, perco essa identidade. Na medida em que eu moro lá, sou parte dela. Por isso, em alguns momentos é difícil separar. Em todo canto, compramos briga com prefeito e secretário, por causa de atenção na unidade, da limpeza que não foi feita ou do carro de lixo que não passou. Mas é muito difícil a gente separar o 'eu' morador do 'eu' trabalhador. Sou moradora também. Trabalho, sim, mas sou moradora também. Antes do trabalho, já era moradora. Acho que isso une muito a comunidade, cria um elo muito forte entre o ACS e a comunidade.

Revista

As pessoas falam muito do ACS como mobilizador social. Qual é a sua opinião sobre esse tema?

Tereza Ramos

Temos orientado os agentes a não fazer. Porque os agentes têm arranjado muita confusão com essa história de mobilizar. Defendo que a comunidade precisa saber exatamente como as coisas funcionam. Mas a informação deve ser passada sem paixão e sem lado político. Se você quer estar em tal lugar, reúna e vá buscar. Por esse lado, acho que deve ser feito. Por outro lado, existem alguns agentes comunitários que lideravam as equipes de reivindicação nas prefeituras. Para mim, não deveriam fazer. Eu vou junto com os moradores da minha comunidade reivindicar a limpeza do canal. Agora, não vou liderando o grupo. Para isso, a comunidade tem o seu conselho de moradores e a sua associação.

Revista

Algumas ACS aqui do Rio relataram que há colegas delas adoecendo devido ao cotidiano de trabalho. Quais são as possíveis soluções? Pagar adicional pela insalubridade?

Tereza Ramos

Pagar pela insalubridade seria uma saída, mas prefiro ter a minha saúde a ter dinheiro. Porque o dinheiro não vai me manter viva nem sã. Porém, se não tiver outro jeito, que pelo menos tenha o dinheiro. Imagine a situação de um PSF, dando um exemplo concreto. Num PSF, a equipe está há um ano sem médico. Todos os encaminhamentos médicos de determinado município - incluindo a ida a um especialista - para o usuário ser atendido são feitos pelo médico. Os medicamentos de hipertensão, diabetes e até mesmo anticoncepcionais eram feitos pela enfermeira. Recentemente, as enfermeiras foram proibidas de fazer isso. Imagine a situação que fica um agente de saúde nisso. Porque é aquilo que eu falei. O médico e o enfermeiro, no final da tarde, vão embora. Sexta-feira à noite acabou. Agora, eu fico lá ouvindo isso. Se eu entrar no botequim, a turma está falando disso. Se eu for para a festa, a turma vai estar falando disso. Se eu chegar no forró, a turma vai me perguntar sobre isso. Você pira. Eu conheço um agente que pirou. Ele ligou para a secretaria e disse: "arranje um advogado para me soltar porque estou entrando na farmácia e dando remédio para os meus hipertensos e diabéticos".

Revista

Que problema de saúde é mais recorrente no trabalho que o ACS desenvolve?

Tereza Ramos

É o emocional. Os agentes estão se ferrando. Sabe onde estão se ferrando? Nessa história de morar no mesmo lugar. A miséria está ali, no fundo do quintal, e a pessoa não vê. Então, quando passa a trabalhar como agente de saúde, ele começa a ver. Aí chega um e diz: "Tereza, vamos juntar um grupo e fazer uma cestinha básica para fulana". Eu respondo: "Olhe, deixe de frescura que isso estava na sua cara o tempo todo e você não olhava". Infelizmente, há agentes comunitários que, como têm o pão para comer, nunca viram que o vizinho não tinha. Quando passam a ver, eles se angustiam e endoidam.

Revista

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio tem um projeto para a produção de material didático para docentes do Curso Técnico de ACS. O que todo ACS precisa saber? Qual é o conhecimento que unifica a formação do ACS?

Tereza Ramos

Considero fundamental conhecer o sistema de saúde como lei. Artigo por artigo. Na primeira etapa do curso técnico, isso foi dado de forma muito ligeira. É preciso aprofundar. A outra coisa é a questão da saúde da criança, saúde da mulher e saúde na terceira idade. Esses temas e mais o meio ambiente são fundamentais. E o país todo deveria fazer isso.

Revista

Qual é a sua avaliação da conjuntura atual? Considera que o cenário de hoje está mais favorável ou mais difícil para a pauta de luta do ACS, incluindo a formação técnica, a questão do vínculo e a questão da seleção.

Tereza Ramos

Nunca esteve tão favorável. O cenário é bom e estamos num momento de organização. É um momento forte. A maioria das pessoas não sabe, mas tivemos três projetos de lei antes do que foi finalmente aprovado. Foram votados e perdemos. Um nem chegou a ir votação, aliás dois. O terceiro chegou a ir votação e perdemos. Inclusive, nesse terceiro, que antecedeu o último que aprovamos, o Sergio Arouca era o relator. Hoje, eu analiso o seguinte: perdemos naqueles projetos não porque a Câmara tinha uma cara diferente ou coisa parecida. Éramos nós que estávamos desorganizados. Levamos dez anos para aprender como a Câmara e o Senado funcionam. Era um projeto menos audacioso do que o que foi aprovado. Esse é um momento bom, muito bom mesmo para afinar as escolas e os trabalhadores. Principalmente, as escolas que cuidam da capacitação, da formação e da qualificação dos trabalhadores.

Notas

  • 1
    Entrevista concedida a Márcia Valéria Morosini, do Laboratório de Educação Profissional em Atenção Saúde, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz.
  • 2
    Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2º da emenda constitucional nº 51, de 14 de fevereiro de 2006, e dá outras providências.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Jul 2007
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