“Junho acabou, mas seus dilemas seguem nos atravessando nas veredas ali abertas” (p. 11). Assim termina a apresentação de Carolina Freitas, Douglas Barros e Felipe Demier, organizadores e autores de oportuno livro sobre as Jornadas de Junho de 2013. A sentença antecipa a multiplicidade de significados e desdobramentos de Junho, que o leitor desfrutará na sequência. Ao longo de mais de 300 páginas, 15 autores se distribuem por 14 textos que analisam as conjunturas precedentes a Junho e que fornecem elementos explicativos relevantes. Passam em revista, no calor da hora dos acontecimentos, os posicionamentos de atores políticos individuais e coletivos (incluindo o destacado papel desempenhado pela imprensa) em meio aos protestos, e alcançam importantes desdobramentos pós-Junho para o desenrolar de lutas sociais de relevo, como as dos movimentos negro, feminista, LGBTQ+, sem-teto e pelo direito à cidade, além de uma análise sobre o campo da cultura durante e depois das manifestações.
A despeito das diferentes abordagens, os leitores mais desavisados se surpreenderão, ou talvez até se decepcionem, com a unidade teórica e política entre os autores. Nesta obra não se encontrará nada parecido com o teor da crítica feita por frações hegemônicas da esquerda sobre a ocupação das ruas, seus ocupantes e a crise política que dali se desdobrou até o golpe de 2016: os black blocs tinham “inspirações fascistas”; as manifestações resultaram de “interferências externas de grandes corporações com o intuito de desestabilizar o governo”; “Junho foi o ovo da serpente” que abriu alas para a insurgência da extrema-direita e outras semelhantes. Não. A unidade, que dialeticamente se manifesta no terreno comum dos diferentes marxismos e da teoria crítica que o conjunto dos autores expressa, se conforma também precisamente pela recusa - bem fundamentada - das perspectivas desqualificantes sobre Junho.
A frustração de um certo perfil de leitor talvez se justificasse, já que não seria mau que uma obra pudesse reunir, para contrapor, interpretações frontalmente divergentes sobre um fenômeno desafiante como este. Mas como diria o saudoso Florestan Fernandes, é aí que mora o ‘busílis da questão’. Isto imporia às forças políticas que vêm hegemonizando a esquerda brasileira nos últimos quarenta anos, que protagonizaram e protagonizam governos de conciliação - e que não por coincidência são também autoras dos desabonos às Manifestações de Junho -, a pôr sobre a mesa suas cartas de estratégia e tática, a submeter os resultados de sua prática política à crítica e a, eventualmente, produzirem uma autocrítica pública. Tudo, exatamente, o que não têm feito - o que ajuda a explicar Junho, diga-se de passagem. Mas não se aflija, leitor, ainda assim o seu apreço pelo contraditório será satisfeito pela honestidade teórica, política e metodológica dos autores que, cientes da lição de Walter Benjamin, escovarão bem na sua frente a história do Brasil na última década a contrapelo.
A questão candente, e que subjaz ao debate agora mais uma vez enriquecido com a publicação deste livro, a nosso ver, é: ao fim das contas, as massas se levantaram em 2013 pelo que os governos petistas deixaram de fazer ou pelo que realizaram? Os que foram às ruas por dias seguidos e em diferentes capitais do país, enfrentando, por vezes, uma violência policial inaudita, em sua maioria o fizeram desejando manter ou mesmo ampliar os empregos conquistados, os ganhos reais do salário mínimo, o crédito farto a franquear o acesso ao ensino superior privado e ao consumo de bens duráveis e serviços ou expressavam a face real da dita ‘nova classe média’, com empregos majoritariamente de alta rotatividade, vínculos precários e baixos salários, alto grau de endividamento bancário, além de vítimas do aumento do custo de vida, da piora significativa da qualidade de vida nas cidades, das remoções forçadas para dar lugar aos equipamentos necessários para os ‘grandes eventos’ (Copa do Mundo, Olimpíadas à frente) e da consequente intensificação da já intolerável violência de Estado nas favelas e periferias? (Braga, 2016, 2014; Luce, 2013).
Embora não devamos tratar Junho como um todo homogêneo, desconsiderando as especificidades regionais das manifestações, como corretamente nos lembra Rafael B. Vieira em seu artigo nesta coletânea, foi possível constatar com destaque, nas ruas, “a presença de frações jovens, de escolaridade média e salários mais baixos, da classe trabalhadora, com suas pautas” (p. 15-16) - como atesta Marcelo Badaró Mattos no texto de abertura. Ainda com base em um dos poucos estudos de campo que foram produzidos durante as manifestações, realizado pelo Ibope no dia 20 de junho, em sete grandes capitais, cabe lembrar que entre os cinco primeiros motivos declarados pelos manifestantes entrevistados para justificar a sua presença nas ruas estavam, nessa ordem: a redução das tarifas e a melhoria da qualidade dos transportes públicos; a recusa do ambiente político em função sobretudo da corrupção; os gastos excessivos com a Copa do Mundo e Copa das Confederações; a qualidade e o acesso à Saúde e, por fim, o repúdio às ações violentas da polícia contra os manifestantes.1 Corriqueiros foram, dessa forma, os cartazes que condenavam os gastos públicos com os grandes eventos e não garantiam ‘escolas’, que reivindicavam ‘transportes públicos e hospitais padrão FIFA’, bem como os que denunciavam a violência policial. Sem negação da sensível melhoria das condições de vida das camadas mais subalternas da classe trabalhadora durante os governos petistas do período 2003-2016, a presença de elementos frontalmente contraditórios em relação aos próprios ganhos - agravados pelos efeitos da crise econômica internacional, que finalmente aportou por cá durante o primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014) e diminuiu consideravelmente a margem de manobra do governo para promover a conciliação - fornece importantes pistas que nos permitem responder à questão colocada acima (Singer, 2018, 2012; Singer e Loureiro, 2016).
Dito isto, o mérito do livro torna-se ainda mais evidente, qual seja o de recolocar Junho no seu devido lugar, como uma luta de massas disruptiva que foi portadora de bandeiras progressistas diretamente associadas à piora da qualidade de vida dos trabalhadores que ocupavam (e ainda ocupam) os estratos sociais mais baixos, embora acompanhada de baixíssima consciência de classe e dramaticamente desorganizada, carente de estratégia, de programa e de instrumentos organizativos para a luta política consequente e duradoura. A disputa por esse legado não é irrelevante, posto que os seus detratores, à esquerda, são os mesmos que carregam uma importante parcela de responsabilidade no desarme da classe. Apagando Junho da memória coletiva, ou distorcendo o seu sentido fundamental, ocultam também as suas pegadas na trajetória do desastre que veio se desdobrando a seguir.
Merecem destaque ainda outros dois elementos, um presente e outro ausente do livro: o caráter espontâneo das manifestações e o tema da corrupção na política. Sobre o primeiro ponto, o livro nos oferece todas as peças de conjuntura precedentes a Junho, com a mobilização organizada dos trabalhadores voltando à cena já desde 2012 e ampliando consideravelmente o número de greves contra os patrões e contra as políticas de austeridade do governo - o que nos permite reconhecer, como já ensinava Gramsci (2007), que a espontaneidade dos subalternos nunca existe em estado ‘puro’, embora não possa ser negada como parte constitutiva importante das manifestações de Junho. Esta observação é válida porque permite analisar Junho sem a condenação a priori da sua desagregação, sem o julgamento de que só se prestou à manobra - seja porque o movimento de massas é sempre mais rico e complexo do que a leitura que os operadores individuais e coletivos da classe são capazes de fazer, seja porque a desagregação, em maior ou menor grau, resulta da própria condição dos subalternos, da ausência ou da pouca “consciência histórica autônoma” (Gramsci, 2001, p. 52).
O segundo elemento diz respeito à bandeira de luta contra a corrupção, já presente em Junho (mas logo capturada e insuflada pela direita, mais notadamente a partir de 2015) e não abordada pelos organizadores e autores (nem tampouco pelas esquerdas em geral) como problema portador de identidade própria, tendo sido tomada apenas como elemento característico das forças de direita e extrema-direita. É fato que o brado anticorrupção frequentemente capturado pelo senso comum e pela direita, em geral padece de superficialidade e falta de visão de conjunto ou tem a intenção deliberada de diversionismo. No entanto (e, aliás, exatamente por essa razão), também é fato que o espaço há muito negligenciado pelas esquerdas ao tema vem sendo inteiramente preenchido pela direita. A aceitação aparentemente generalizada de que esse tema não nos pertence é um equívoco (Giraldes, 2017), e a obra poderia ter sido uma iniciativa importante para chamar a atenção também para este problema.
Por fim, como fica bem evidenciado ao longo de todo o livro, Junho não nasceu fadado ao esvaziamento de suas bandeiras progressistas, nem à criação das condições para a ascensão dos movimentos de rua da direita e extrema-direita, com suas pautas conservadoras e reacionárias. Junho emerge como uma ruptura, tal como afirma Douglas Barros em seu artigo, mas uma ruptura inacabada, informe, motivada não por uma ação coordenada, mas como reação, espontânea em maior medida, às condições de vida e ao resultado (que sempre chega) do pacto de conciliação de classes patrocinado pelas direções dos principais instrumentos de luta nascidos do combate à ditadura nos anos 1970 e 1980, na forma de partidos políticos e estruturas sindicais. O processo de apassivamento da classe (Iasi, 2012), ainda que tenha razões múltiplas a serem destrinchadas, internacional e nacionalmente, por certo também comporta como elemento relevante para a análise o abandono gradativo do trabalho de base pela nova esquerda (que surge e se conforma nos anos 1970 e 1980), a burocratização de suas direções sindicais e partidárias, além da (in)consequente aposta de todas as fichas da luta política no jogo parlamentar. E como na política não há espaço que permaneça vago, nem tampouco a consciência de classe é estática (Gramsci, 2004), justo as expressões sindicais e partidárias - forças motrizes do ascenso das lutas sociais nos anos 1970 - foram retumbantemente recusadas pelos manifestantes em praça pública nesse mesmo Junho de massas e em grande medida progressista.
Tal como os autores deste livro, não podemos ignorar esta recusa e as suas motivações, que expressam uma derrota ainda não superada, e que, de maneira visível, para o bem e para o mal, apresentou a sua fatura naqueles intensos dias de dez anos atrás. Se Junho acabou, foi porque uma potentíssima energia de luta não só não pôde ser captada e posta em marcha, de maneira organizada e consequente, como tragicamente terminou absorvida pelas forças organizadas da direita e da extrema-direita, dando vez ao aprofundamento da tragédia que nos tem alcançado e está longe de ter um ponto final. Mas Junho ainda pode andar de pé como patrimônio da classe trabalhadora, como memória potente, desde que as ideias ganhem peso de força material, o que por sua vez requer a superação da política de conciliação, de seus dirigentes e de seus instrumentos e operadores coletivos. A despeito de todas as contradições e derrotas no processo, foi para isso que Junho se levantou e gritou. Na dimensão do que lhe cabe, essa também é, nos parece, a tarefa que este livro pretende cumprir.
Referências
- BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política São Paulo: Brasiliense, 1994. (Walter Benjamin: obras escolhidas, v. 1).
- BRAGA, Ruy. Terra em transe: o fim do lulismo e o retorno da luta de classes. In: SINGER, André; LOUREIRO, Isabel. As contradições do lulismo: a que ponto chegamos?. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 55-92.
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BRAGA, Ruy. Cenedic: uma sociologia à altura de Junho. Blog da Boitempo, 26 maio 2014. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2014/05/26/cenedic-uma-sociologia-a-altura-de-junho/. Acesso em: 13 dez. 2023.
» https://blogdaboitempo.com.br/2014/05/26/cenedic-uma-sociologia-a-altura-de-junho - GIRALDES, Marcus. O acaso e o desencontro: das manifestações de 2013 ao golpe de 2016. Rio de Janeiro: Garamond, 2017.
- GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
- GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere . v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2007.
- GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere . v. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2001.
- IASI, Mauro L. Democracia de cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora. In: SALVADOR, Evilasio et al (org.). Financeirização, fundo público e política social São Paulo: Cortez, 2012. p. 285-317.
- LUCE, Mathias S. Brasil: nova classe média ou novas formas de superexploração da classe trabalhadora?. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 169-190, 2013.
- SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Cia. das Letras, 2018.
- SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Cia. das Letras , 2012.
- SINGER, André; LOUREIRO, Isabel. As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? . São Paulo: Boitempo , 2016.
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Para os resultados completos da pesquisa, ver: [https://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/06/veja-integra-da-pesquisa-do-ibope-sobre-os-manifestantes.html]. Acesso em: 14 dez. 2023.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
15 Fev 2024 -
Aceito
21 Fev 2024