Resumos
O artigo focaliza um recorte da pesquisa "Termos e Conceitos da Museologia", âmbito da Linguagem de Especialidade, representando teoria e prática de um conhecimento que se expressa sob a forma de comunicação científica (contexto informacional/comunicacional). Sob perspectiva histórica, enfoca o entrelace Museologia-Museu e Patrimônio a partir dos fundamentos da formação do Museu, campo museológico e Patrimônio. Destaca processos de institucionalização de bens culturais (bens simbólicos), isto é, Patrimonialização e Musealização, e as significações construídas, ao longo do tempo, legitimando ações de 'apropriação' por instâncias culturais. O respaldo teórico envolveu estudos da Museologia, teoria comunicativa da terminologia, socioterminologia, teoria da economia dos campos e poder simbólico, Direito e Ciência da Informação. Os objetivos incluíram a identificação e análise das dinâmicas de criação, ressignificação, variação de termos/conceitos, com resultados que também servem à linguagem documentária. A metodologia desenvolveu análise comparada de fontes ligadas às representações e práticas dos cenários museológico, patrimonial e terminológico. Os resultados apontaram uma base comum para a interação entre Museologia e Patrimônio: a imagem divulgando a necessidade de salvaguardar os bens para transmissão às gerações futuras - preservação, consubstanciada no sentido emprestado de ato social ligado à questão das identidades, mas cuja face real é a prática do poder simbólico.
Teoria Museológica; Museologia; Museu; Patrimônio; Patrimonialização; Musealização
The article presents a part of the research "Terms and Concepts of Museology", subject of Specialty Language, addressing the theory and practice that represent an area of knowledge, and which is expressed by the scientific communication (context of information/communication). In historical perspective, focuses on the intertwining Museology-Museum and Heritage from the training grounds of the Museum, museological field, and Heritage. Highlights processes of institutionalization of cultural objects (symbolic goods), namely Patrimonialization and Musealization, and its constructed meanings, over time, legitimizing the actions of 'ownership' of cultural bodies. The theoretical support has involved theoretical studies of Museology, communicative theory of terminology, socioterminology, economic theory of fields and symbolic power, Law, and Information Science. The objectives included analyzing the dynamics of creation, redefinition, change of terms/concepts, with results that provide subsidies for documentary language. The methodology developed comparative analysis of sources relating to representations and practices of the museological, heritage and terminological scenarios. The results showed one common basis for interaction between Museology and Heritage: the image publicizing the need to safeguard the assets for transmission to future generations - preservation, embodied in the sense borrowed from social act on the issue of identity, but whose real face is the practice of symbolic power.
Theoretical Museology; Museology; Museum; Heritage; Patrimonialization; Musealization
DOSSIÊ MUSEOLOGIA E PATRIMÔNIO
Museologia-Museu e patrimônio, patrimonialização e musealização: ambiência de comunhão
Museology-Museum and heritage, patrimonialization and musealization: environment of communion
Diana Farjalla Correia Lima
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Autor para correspondência Autor para correspondência: Diana Farjalla Correia Lima Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/Museu de Astronomia e Ciências Afins Av. Pasteur, 458, sala 410. Urca. Rio de Janeiro, RJ, Brasil CEP 22290-240 diana@skydome.com.br
RESUMO
O artigo focaliza um recorte da pesquisa "Termos e Conceitos da Museologia", âmbito da Linguagem de Especialidade, representando teoria e prática de um conhecimento que se expressa sob a forma de comunicação científica (contexto informacional/comunicacional). Sob perspectiva histórica, enfoca o entrelace Museologia-Museu e Patrimônio a partir dos fundamentos da formação do Museu, campo museológico e Patrimônio. Destaca processos de institucionalização de bens culturais (bens simbólicos), isto é, Patrimonialização e Musealização, e as significações construídas, ao longo do tempo, legitimando ações de 'apropriação' por instâncias culturais. O respaldo teórico envolveu estudos da Museologia, teoria comunicativa da terminologia, socioterminologia, teoria da economia dos campos e poder simbólico, Direito e Ciência da Informação. Os objetivos incluíram a identificação e análise das dinâmicas de criação, ressignificação, variação de termos/conceitos, com resultados que também servem à linguagem documentária. A metodologia desenvolveu análise comparada de fontes ligadas às representações e práticas dos cenários museológico, patrimonial e terminológico. Os resultados apontaram uma base comum para a interação entre Museologia e Patrimônio: a imagem divulgando a necessidade de salvaguardar os bens para transmissão às gerações futuras preservação, consubstanciada no sentido emprestado de ato social ligado à questão das identidades, mas cuja face real é a prática do poder simbólico.
Palavras-chave: Teoria Museológica. Museologia. Museu. Patrimônio. Patrimonialização. Musealização.
ABSTRACT
The article presents a part of the research "Terms and Concepts of Museology", subject of Specialty Language, addressing the theory and practice that represent an area of knowledge, and which is expressed by the scientific communication (context of information/communication). In historical perspective, focuses on the intertwining Museology-Museum and Heritage from the training grounds of the Museum, museological field, and Heritage. Highlights processes of institutionalization of cultural objects (symbolic goods), namely Patrimonialization and Musealization, and its constructed meanings, over time, legitimizing the actions of 'ownership' of cultural bodies. The theoretical support has involved theoretical studies of Museology, communicative theory of terminology, socioterminology, economic theory of fields and symbolic power, Law, and Information Science. The objectives included analyzing the dynamics of creation, redefinition, change of terms/concepts, with results that provide subsidies for documentary language. The methodology developed comparative analysis of sources relating to representations and practices of the museological, heritage and terminological scenarios. The results showed one common basis for interaction between Museology and Heritage: the image publicizing the need to safeguard the assets for transmission to future generations preservation, embodied in the sense borrowed from social act on the issue of identity, but whose real face is the practice of symbolic power.
Keywords: Theoretical Museology. Museology. Museum. Heritage. Patrimonialization. Musealization.
INTRODUÇÃO
O artigo relaciona-se à pesquisa acadêmica1 1 Pesquisa "Termos e Conceitos da Museologia", desenvolvida desde 2005 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS), em parceria com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST). cujo tema, no cenário do entrelace Museologia-Museu e Patrimônio, aborda a terminologia utilizada pelo campo museológico, ou seja, a Linguagem de Especialidade, linguagem profissional, modelo que reflete as questões teóricas e práticas por meio dos termos e conceitos (bens simbólicos de valor patrimonial/museológico) considerados próprios e outros apropriados para seu uso. Envolve o conjunto da diversidade de modelos conceituais desenhados pelas instituições museológicas na abrangência das áreas/disciplinas ditas culturais e da natureza, a pluralidade tipológica das coleções/acervos e demais formas patrimoniais, e compõe o que se pode nomear de 'binômio' Museologia e Patrimônio.
A Linguagem de Especialidade, comunicação específica ao modo de um sistema codificado, empresta sentido e valor às inter-relações e produtos do campo. Diz respeito ao procedimento informacional/comunicacional dos membros das comunidades especializadas. Faz-se expressa, em particular, no contexto da comunicação científica, representando a produção do domínio do conhecimento. Pela consistência no manejo da fraseologia entre os pares, ou seja, sem apresentar ambiguidades para reconhecimento dos sentidos (definições) atribuídos aos termos, revela o processo de consolidação científica alcançado pela área ao longo do tempo.
A investigação, por relacionar-se à comunicação científica, também contempla a linguagem documentária aplicada à área da Museologia, por se tratar de instrumento mediador na relação que se estabelece entre a demanda e a oferta de fontes de consultas.
O apoio teórico destaca estudos teóricos da Museologia e do Patrimônio, teoria comunicativa da terminologia, socioterminologia, teoria da economia dos campos e poder simbólico, Direito e Ciência da Informação.
No contexto do objetivo para identificar e analisar as dinâmicas de criação, ressignificação, variação de termos e conceitos por meio das designações dos respectivos sentidos, dos contextos de uso em que foram e/ou são aplicados, indica-se que os resultados obtidos atuam também como subsídios à normalização terminológica, pois o campo, pela sua formação recente e em movimento de consolidação teórica, está vulnerável no que concerne às suas interpretações, ainda com sentidos nebulosos, o que leva a 'ruídos' no capítulo da comunicação científica.
No plano metodológico, foram realizados levantamento, leitura e análise comparada de fontes ligadas às representações e práticas dos cenários museológico, patrimonial e terminológico, consultando-se artigos, teses, diretrizes técnicas, legislação nacional e internacional, entidades nacionais e supranacionais, repositórios eletrônicos, glossários, listas de termos e tesauros (vocabulários controlados), além de obras de referência (dicionários idiomáticos e de especialidade).
No presente texto, para focalizar o trabalho sob a forma de narrativa histórica, selecionou-se um recorte abordando os termos/conceitos Museologia-Museu/Musealização, Patrimônio/Patrimonialização e as implicações existentes com Preservação.
Em se tratando da Museologia, o Patrimônio identificado ao conjunto de bens simbólicos, relacionado à ambiência cultural e integrado ao complexo natural, espaço-mundo coletivo dos mais diferentes grupos e coisas, não se afigura só como um tema. Representa um contexto para interseções museológicas fundado nas relações existentes nos níveis da teoria e prática. Desse modo, o panorama do campo da Museologia reveste-se de configuração singular: uma composição cujos elementos constituem-se de manifestações do Patrimônio.
Ao Patrimônio e seus correlatos (bem, herança/herança cultural e monumento) (Desvalées, 2000) são atribuídos o caráter de "formação cultural" (Falcon, 1992, p. 13) e "formação simbólica" (Bourdieu, 1986; Cassirer, 2001) de teor musealizável, portanto, com condição de trato museológico, quando, então, adquire a feição de Museu, o mesmo que patrimônio musealizado. A partir de tal entendimento, as representações de Museu e de Patrimônio, "bens simbólicos" (Bourdieu, 1986, p. 105), compartilham significações de base comum.
No longo caminho para formalizar a compreensão dada ao Patrimônio e ao Museu, constituem-se como aspectos fundadores os modelos culturais arcaicos praticados na Antiguidade. Manifestados sob dois aspectos, dizem respeito, por um lado, ao poder social (simbólico) de que era dotada a figura do pater familias no mundo romano, o 'senhor do patrimônio', donatário dos bens materiais e espirituais transmitidos aos descendentes; por outro lado, a referência é encontrada nos espaços, integrando ciências, artes e religião, nos quais o conhecimento era uno. Locais em que o poder detido pelos 'homens de saber', os sábios, representou domínios em que a tradição da transmissão do conhecimento se forjou em cenas históricas.
Nos dois ambientes, na célula doméstica ou externamente, e ligados a um específico grupo, sedimentou-se para determinados agentes a condição de relevância e de legitimidade social outorgada tanto na esfera da vida familiar como no grupo de pares, compreendendo-se esta imagem como "competência" (Bourdieu apud Miceli, 1986, p. XIX) em responder pelos bens. O sentido envolveu critérios e normas para mantê-los e protegê-los na sua integridade física referência à questão da autenticidade tendo por finalidade legá-los aos herdeiros da família (ambiência individual) ou aos outros pósteros (ambiência coletiva). Neste contexto, já se encaminhava à percepção do valor de 'objeto de estudo', como se deu nos ambientes do saber.
A forma e o sentido cultural construídos para criar e estabelecer a ideia de 'preservação' e 'transmissão' do bem consolidaram a base do pensar e do agir que se identifica no conceito de Patrimônio, seja na condição de elemento musealizável ou quando já se apresenta musealizado, isto é, sob a forma de Museu.
PATRIMONIUM PATRIMÔNIO
L'ensemble des créations et des produits conjugués de la nature et de l'homme, qui constituent le cadre de notre existence dans le temps et dans l'espace. Une réalité, une propriété à dimension collective et une richesse transmissible qui favorisent une reconnaissance et une appartenance (ICOMOS, 1982).
Remonta ao mundo romano, era republicana (510 a.C. - 27 d.C.), o marco histórico para entendimento do termo Patrimônio, Patrimonium (Faria, 1962, p. 709), como referência ao conjunto de bens transmitido ao filho pelo pai de família, pater familias (Faria, 1962, p. 708), consignando ao primogênito o direito à herança pela via da sucessão e respaldada na Lei das XII Tábuas (462-450 a.C.) que, no contexto das fundações do Direito Romano, estabeleceu em lei escrita os princípios do direito de família e das sucessões (Nóbrega, 1968, p. 123-154) embasados nos antigos padrões do modelo consuetudinário.
O pater familias detinha o status social de 'senhor do patrimônio' e exercia na vida romana, como chefe de família, dono da casa (do domus), o papel de mantenedor das tradições, entre as quais o culto aos mortos e às divindades protetoras que se realizava no próprio lar, em cômodo destinado para tal fim e no qual se depositavam oferendas.
Cabia, quando da sua morte, que o herdeiro assumisse as mesmas prerrogativas sociais e religiosas que imperavam, revelando o exercício do poder simbólico. O Patrimônio correspondia (Faria, 1962, p. 708) ao "conjunto de direitos aos bens e às atribuições sociais do pai, herdado pelo primogênito". Costumes e crenças regiam a vida e as trocas culturais como um hábito socialmente legitimado. Praticado desde o período arcaico, influenciou a criação das leis do Direito Romano (Coulanges, 1976, p. 11-20).
A relação semântica entre as palavras pater familias (pai de família), pai (pater-patris) e patrimonium (que lhe pertencia), em razão dos valores culturais que a figura paterna ostentava, aponta para uma condição que vai além do mesmo radical que lhes dá origem.
Na construção do vocábulo em sua forma original (latim), a presença do elemento monium, variação fonética de múnus cujo sentido indica "ocupação", "função ou ainda benefício" (Faria, 1962, p. 627), leva ao entendimento que "patrimonium era a missão do pai: gerar e manter os bens de Roma (...) sem desvio algum" (Barros, 2010, grifo do autor). O aspecto da ideia da manutenção permite considerar que ao instrumento regulador da sucessão/herança associou-se o instituto da Preservação permanência, terminando por solidificar-se em outro tempo da história do Patrimônio, a ser explicitado mais adiante. E o significado de 'sucessão', emprestado ao termo Patrimônio, persiste no tempo presente mantendo-se a imagem fixada no conceito de algo transmitido por direito de herança.
Outro momento histórico no estudo do Patrimônio insere-se no final do século XVIII. O cenário é o período da Revolução Francesa, cujos resultados gerados pelas transformações sociais e políticas de ampla repercussão ecoam na atualidade. Na ocasião, mereceu realce o alargamento conceitual que alcançou o entendimento do termo Patrimônio.
Anteriormente ligado à condição do agente individual romano, o 'senhor do patrimônio', o conceito deflagrado pela Revolução transferiu o entendimento para o âmbito de um 'novo senhor' e sob forma grupal: o agente coletivo emanando da nova figura do Estado francês, representando a nação, 'o povo', determinando caráter de ordem nacional para o Patrimônio.
A feição de nacionalização dos bens e instaurada no mesmo processo de solidificação da inserção do 'cidadão' no espaço social abriu frente para o instituto da Patrimonialização. Isto se deu como resultado da ação dos comitês e assembleias populares (Choay, 2001, p. 97) e através da institucionalização dos bens reais que estabeleceu, alicerçada na noção da tutela com suas regras para a prática da custódia, a legitimação do ato de patrimonializar. Esse procedimento foi seguido durante anos e de maneira sistemática pela incorporação nacional dos bens da nobreza, do clero e atendendo a ótica de um Estado laico.
O caso do Patrimônio nacionalizado francês, cuja transferência da posse fora um poder legitimado pela competência outorgada à representação governamental, implicou, de imediato, a questão da manutenção dos bens incorporados. De início, pelo motivo do vandalismo perpetrado contra os imóveis e os saques ocorridos nos seus interiores; posteriormente, envolvendo as necessidades próprias da conservação física. Incluía o problema econômico da conservação do Patrimônio Nacional: edificações e objetos. E os bens de valor simbólico constituem "realidade com dupla face mercadorias e significações" (Bourdieu, 1986, p. 102). Por sua vez, significações representam "signos definidos em uma sociedade" (Lier, 1972, p. 152). Françoise Choay (2001, p. 98) expõe a questão:
O valor primário do tesouro assim devolvido a todo o povo é econômico. Os responsáveis adotam imediatamente, para designá-lo e gerenciá-lo, a metáfora do espólio. Palavras-chave: herança, sucessão, patrimônio e conservação. Eles transformaram o status das antiguidades nacionais. Integradas aos bens patrimoniais sob o efeito da nacionalização, estas se metamorfosearam em valores de troca, em bens materiais que, sob pena de prejuízo financeiro, será preciso preservar e manter.
A Patrimonialização, assim, configurou-se como ato que incorpora à dimensão social o discurso da necessidade do estatuto da Preservação. Conservação a ser praticada por instância tutelar, portanto, dotada de responsabilidade (competência) para custodiar os bens. E conservar, conceito que sustenta o Patrimônio, consiste em proteger o bem de qualquer efeito danoso, natural ou intencional, com intuito não só de mantê-lo no presente, como de permitir sua existência no futuro, ou seja, preservar. E a palavra salvaguarda, tão usada pelas entidades competentes nos seus documentos normativos, exprime, adequadamente, o pensamento e a ação que aplicam.
Nas palavras dos autores da Museologia, Desvallées e Mairesse (2010, p. 48, tradução nossa), a Conservação consiste em "princípio que repousa essencialmente na ideia de preservação de um objeto ou um lugar". O desejo por preservar extrapola a forma física do objeto, do território ou do exemplar patrimonializado. Preserva-se pelo interesse que suscita a representação culturalmente construída que tais signos-significações encerram e que é gerada no extrato da intangibilidade. A representação do imaterial, evidenciada nos traços mnésicos culturalmente construídos, estabelece os liames da contextualização como moldura para a imagem concreta, tangível, materializada do bem e instala-se como elemento interpretativo à forma cultural a ser estudada e salvaguardada.
As providências patrimonialistas (preservacionistas) que foram tomadas no episódio francês para as edificações como "conventos, igrejas, castelos, residências particulares" (Choay, 2001, p. 104-105), entre outras ações do exercício competente, compreenderam o inventário, estabelecendo a inscrição institucional e a reutilização dos espaços, ou seja, a troca de função arquitetônica original. Esses procedimentos têm servido como modelo para registros em catálogos tutelares dos bens ('apropriação' legítima...) e o reaproveitamento de imóveis patrimonializados nos tempos de agora.
Nos legados da Revolução inclui-se a denominação "monumento histórico" (Choay, 2001, p. 96) que se afirmou como valor patrimonial de referência e cuja menção data do período 1790-1795, ocasião dos primeiros trabalhos para solucionar, segundo a mesma autora, o "tratamento técnico e jurídico" para os bens. A Comissão de Monumentos Históricos (1837) englobou exemplares da tipologia, remanescentes da Antiguidade, que foram incorporados ao Patrimônio francês. Derivam do mesmo acontecimento e período as duas grandes categorias que até hoje são aplicadas ao Patrimônio Material: as classes Patrimônio Imóvel e Patrimônio Móvel.
O sentido de sucessão dado ao Patrimônio na passagem da Antiguidade para a Modernidade, que no episódio do Estado nacional francês já alcançara a perspectiva do modelo coletivo, chegou ao contemporâneo consolidado e como transmissão de um valor aplicado aos grupos sociais, a sua vez compreendidos na qualidade de legítimos sucessores de um processo de referências culturais particulares procedentes de seus ascendentes, e que se transmite às gerações futuras.
O contexto do Patrimônio ainda apresenta modulações que lhe foram sendo agregadas, especialmente do século XIX em diante. E em razão da constituição formal dos campos do conhecimento que, por meio das suas formulações de ordem teórica e prática, desenharam 'fronteiras', limites de proteção, estabelecendo suas zonas de atuação; os exemplares tangíveis do Patrimônio, além dos tradicionais modos de indicação 'histórico' e 'artístico' atribuídos, foram sendo nomeados conforme as representações dos conhecimentos que os identificavam, determinando-os como objeto do seu tratamento especializado.
Decorre desse movimento de apropriação pelas áreas do conhecimento a gama de "atributos simbólicos do patrimônio" (Lima, 2010) que, a partir do século XIX e alcançando o XXI, vieram a definir os territórios de ação indicados pelos títulos e, conforme a mesma fonte, permitem perceber o domínio do saber ao qual estão ligados: 'Bens Arqueológicos', 'Monumento Geológico', 'Patrimônio Arquitetônico', 'Patrimônio Etnográfico', 'Patrimônio Urbanístico', 'Patrimônio Paleontológico', 'Patrimônio Científico'.
O século XX trouxe novos olhares, impulsionando globalmente o movimento patrimonialista como resultado do processo da urbanização veloz, que tem implicado a "descaracterização das cidades", além da "imensa devastação ocorrida na Europa em virtude da segunda grande guerra" (ICOMOS, s.d.). A última circunstância desencadeou um movimento que, sob tutela da Organização das Nações Unidas (ONU), deu origem a uma série de normas e iniciativas internacionais para a salvaguarda de bens culturais.
Entre as interpretações do conceito que merecem menção, pode-se citar o entendimento dado ao formato material que, para efeito de estudos e intervenções de entidades especializadas, passou a ter duas grandes classes, cultural e natural, correspondendo cada qualificação aos padrões da origem definidora dos elementos patrimonializados. E o Patrimônio que se limitava a preocupações no nível de cada país, inserido na categoria nacional, tornou-se objeto de inclusão e tratamento em categoria internacional. Elevou-se para nova posição no patamar patrimonial, adquiriu "valor excepcional universal" quando foi criado o título de Patrimônio Mundial para as duas classes, conforme a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (UNESCO, 1972), no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
A inserção de exemplares oriundos da natureza no panorama da Preservação e em nível mundial levou ao reconhecimento de que "os povos interagem com a natureza e a necessidade fundamental de preservar o equilíbrio entre os dois" (UNESCO, 1972). Ainda de acordo com o texto da Convenção (UNESCO, 1972), as definições são as seguintes:
[Patrimônio cultural:] os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos que tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
Os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
Os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas que incluam sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.
(...)
[Patrimônio natural:] os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico;
As formações geológicas e fisiográficas e as zonas nitidamente delimitadas que constituam o habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas e que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação;
Os sítios naturais ou as zonas naturais estritamente delimitadas, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural.
Além disso, no sentido de mais uma vez alargar e aprofundar o entendimento dado ao conceito de Patrimônio, ocorreu consolidar-se a tipologia Patrimônio Intangível por meio da "Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural e Imaterial" (UNESCO, 2003a). E, dessa maneira, no alvorecer do século atual, o reconhecimento da categoria, que demandou um lento processo cultural para ser considerada como integrante da questão patrimonial, firmou-se no foco internacional. O texto da Convenção define:
Entende-se por "patrimônio cultural imaterial" as práticas, representações, expressões, conhecimentos, técnicas bem como os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural intangível, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e pelos grupos em função de seu ambiente, sua interação com a natureza e sua história, e proporciona-lhes um sentido de identidade e de continuidade, promovendo o respeito à diversidade cultural e criatividade humana (UNESCO, 2003a, tradução nossa).
O status de valorização dos exemplares selecionados nas duas tipologias patrimoniais, Material e Imaterial, faz-se expresso pela inscrição (registro) na Lista do Patrimônio Mundial, um inventário internacional que se dissemina globalmente na internet através do repositório da UNESCO. Apresenta recursos de textos, imagens e sons referentes aos bens cadastrados.
Na história do Patrimônio, cabe mencionar categorias patrimoniais conformando no seu conjunto os olhares titulados como Novos Patrimônios. Agregadas no último quartel do século XX ao cenário das tipologias clássicas (histórica, artística, monumento), entre outros enfoques consolidados pelas instâncias de competência, fizeram-se ligadas no concerto da produção do Patrimônio à presença dos seres sociais na diversidade das suas comunidades, nas suas múltiplas formas de interpretação da realidade, nas suas práticas variadas, nas suas representações pertinentes, vivenciadas e expressas no mundo da materialidade e da intangibilidade.
A categoria Patrimônio Industrial é um dos exemplos do novo modelo conceitual. Embora o processo de reconhecimento se tenha iniciado no período pós-Segunda Guerra Mundial, o movimento de revalorização dos espaços industriais como herança cultural se firmou somente no último quartel do século. Ocorreu na Inglaterra, não fosse lá o berço da Revolução Industrial deflagrada na segunda metade do século XVIII.
Entre o século XIX até meados do século XX, a seleção para determinar o elemento a ser preservado como Patrimônio ainda lançava mão de parâmetros que não refletiam a história e as atividades de agentes sociais, como, por exemplo, operários, mineiros, oleiros, moleiros. Nas mentalidades que definiam os destinos do Patrimônio não houve espaço para livrar da destruição conjuntos móveis e imóveis de bens industriais, assim como foram perdidas as tecnologias patrimoniais (intangível) transmitidas pelos agentes de cada uma das comunidades envolvidas. Melhor dizendo, perderam-se as referências dos modos de elaboração, relegando-se ao esquecimento o saber/fazer especializado e tradicional.
O termo e o conceito Patrimônio Industrial foram referendados institucionalmente pela criação, em 1978, do Comitê Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (TICCIH) e, em 2003, pela divulgação internacional da Carta de Nizhny Tagil sobre Patrimônio Industrial (TICCIH, 2003), que explicita a manifestação cultural:
(...) vestígios da cultura industrial (...) de valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou de valor científico (...) consistem em prédios e máquinas, oficinas, moinhos e fábricas, minas e sítios para processamento e refino, galpões e lojas, locais onde a energia é gerada, transmitida e usada, transportes e toda sua infraestrutura, lugares destinados a atividades sociais relacionadas à indústria como moradas, locais de culto ou de educação.
A mudança ocorrida no patrimonialismo, na questão dos bens industriais, representa o reconhecimento emprestado à imagem do cotidiano de pessoas ditas comuns, compreendendo-o como contexto donatário do valor de testemunho histórico. A interpretação resultou de estudos realizados na dimensão social/cultural, indicando a presença do sentimento identitário, integrando criaturas, corporificado no ambiente material e ligado ao espiritual (intangível).
Ainda, no contexto de modelos de Patrimônio e inserções em função dos novos recursos que foram sendo desenvolvidos, deve-se apontar o ambiente das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) como um espaço no qual outra categoria foi constituída e institucionalizada, como ocorreu com outras classes. Trata-se do Patrimônio Digital, também designado como Patrimônio Virtual.
O patrimônio digital é constituído por recursos exclusivos do conhecimento e da expressão humana. Abrange os recursos culturais, educacionais, científicos e administrativos, bem como os técnicos, jurídicos, médicos e outros tipos de informação criados digitalmente, ou convertidos em formato digital a partir de recursos analógicos existentes. Quando os recursos são "nascidos digitais", não há nenhum outro formato, a não ser o objeto digital. Os materiais digitais incluem textos, bases de dados, imagens fixas e em movimento, áudio, gráficos, aplicativos e páginas web, entre uma vasta e crescente gama de formatos. Por serem frequentemente efêmeros, requerem a produção, manutenção e gestão específicas para manutenção. Muitos desses recursos têm valor e significado duradouros, portanto, constituem um patrimônio que deve ser protegido e preservado para as gerações atuais e futuras. Essa herança sempre crescente pode existir em qualquer língua, em qualquer parte do mundo, e em qualquer área do conhecimento e expressão humana (UNESCO, 2003b, tradução nossa).
Tudo que se expôs e explicitou-se até esta parte do artigo tornou plausível que, somente neste parágrafo, coubesse apresentar a definição elaborada para o Patrimônio no século XX, ilustrando o que se tratou até aqui:
(...) conjunto de todos os bens ou valores, naturais ou criados pelo homem, materiais ou imateriais, sem limite de tempo nem de espaço, que seriam simplesmente herdados de ascendentes e ancestrais de gerações anteriores ou reunidos e conservados para serem transmitidos aos descendentes de gerações futuras. O patrimônio é um bem público no qual a preservação deve ser assegurada pelas coletividades. (...) A adição de recursos naturais e culturais de caráter local contribui para a concepção e para a constituição de um patrimônio de feição universal (Desvalées, 2000, p. 41, tradução e grifo nosso).
O século passado, conforme o estudo do Patrimônio permitiu verificar, foi pródigo na criação de entidades voltadas para o tratamento do tema, configurando um cenário de exercício do poder simbólico estudado por Bourdieu (1989). Todas marcaram suas esferas de ação, que se fazem identificar nos títulos escolhidos para representá-las. E eis algumas que se destacam no elenco das instâncias internacionais que se ocupam do tema sob um ângulo geral ou específico, com suas datas de criação: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), 1946; Centro Internacional para o Estudo da Preservação e da Restauração da Propriedade Cultural (ICCROM), 1959; Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), 1965; Comitê do Patrimônio Mundial (WHC), 1972; Comitê Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (TICCIH), 1978.
O entendimento dado ao Patrimônio cultural, em sentido amplo e no momento presente, pauta-se no modelo francês que o consagrou e expandiu-se pelo mundo da cultura. O Brasil é seu herdeiro pelo modo de implantação e exercício do percurso conceitual e prático, iniciado por meio da criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais (IMN), 1934, no Rio de Janeiro, ainda capital federal, como um departamento do Museu Histórico Nacional (MHN).
A primeira instituição governamental a tratar do Patrimônio no país deu lugar, em 1937, ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) (MHN, 2004) que, até 2009, teve sob sua responsabilidade administrativa, política e técnica um conjunto de expressivos museus brasileiros.
MUSEION - MUSEU/MUSEOLOGIA
Le musée est une institution qui contribue à explorer et à comprendre le monde pour l'étude, la préservation, la diffusion et la transmission du patrimoine matériel et immatériel de l'humanité (André Desvallées, 2000).
Ao se enfocar Museus, tradicionalmente, associa-se sua imagem ao antigo Templo das Musas, colina de Hélicos, Grécia, local onde se depositavam oferendas às filhas de Mnemosyne e Zeus, respectivamente, a deusa da Memória e o soberano dos deuses do Olimpo. As oferendas, segundo a tradição, iniciaram o que se passou a identificar como 'coleções', conjuntos de bens que fazem parte do histórico museológico.
Porém, como base documental da trajetória do modelo Museu, em se tratando de um espaço do conhecimento com participação de 'sábios', os mestres, ao modo dos modernos especialistas e seus ramos do conhecimento, pode-se tomar como marco identificador e segundo um modelo arcaico o Museion, em Alexandria, Egito, século III a.C., identificado como um complexo cultural integrando representações das categorias da natureza e da cultura, apresentadas sob forma de
(...) esculturas expostas de modo permanente em meio aos espaços das áreas naturais; exibia espécimes vivos nos seus jardins botânico e zoológico (ao modo dos atuais museus vivos); desenvolvia estudo do cosmos no observatório astronômico; tomava sob sua guarda, no arquivo, os registros dos relatos e dos atos ocorridos inclusive sob a forma de imagens (relevos) (Lima, 2007, p. 4).
Segundo o teórico do campo da Museologia, George Henri Rivière (1981, p. 54), o espaço egípcio era proprietário ainda de "uma rica biblioteca para estudo". Outro autor, Flower (2002, p. 55), destaca que "o Museu, concebido nos moldes do Liceu de Aristóteles, compreendia um passeio (peripatos), uma galeria (exedera) e um santuário às Musas (museion), de onde se supunha provir inspiração artística, filosófica e mesmo científica", referindo-se à Academia de Alexandria ou Ptolomáica.
O contexto desenhado há mais de dois mil anos identifica-se como locus da Memória e da Preservação, reunindo o Museu, a Biblioteca e o Arquivo um quadro no qual o Museu se inseriu, integrando as representações de um local, reunindo fontes de consultas, que constituem elementos fundamentais para sua ação como centro de pesquisa. Afigurou-se, dessa maneira, ao modo de um "lugar de memória" (Nora, 1984, p. XX) e à maneira de uma "instituição de memória cultural" (Namer, 1987, p. 178), perfazendo um espaço no qual os dois mecanismos inerentes ao processo da memória coletiva atuam no imaginário social, isto é, formulando a sua "construção" e estabelecendo-se como "registro" (Lima, 2008, p. 38), possibilitando, assim, agir como contributos para o Museu ser qualificado como um permanente (re)fazedor de significações.
O espaço egípcio promovia com seu elenco de atividades e exercia pela união de homens, animais e áreas verdes um modelo integrador de Patrimônio, ou seja, a conjugação da herança do homem e da natureza em processo unificado e caro à Museologia, um museu de caráter integral (nos moldes do Museu Integral), proposição que se firmou no campo a partir da segunda metade do século XX.
Também se destaca no modelo da Antiguidade o zelo por proteger e tutelar objetos, procedimento que subentende a prática de guardar conservando. O destino de objetos esparsos ou reunidos sob a forma de coleções, qualquer que fosse a tipologia e a procedência apresentadas, passou a ter abrigo nos espaços identificados, nos dias de hoje, como Museus.
No caso da procedência dos objetos das coleções, por séculos afora, o histórico de formação registra situações vinculadas, de um modo geral, a oferendas divinatórias; a espólios de batalhas; a pilhagens; a presentes recebidos pela nobreza; a encomendas feitas a artífices e artistas para adornos arquitetônicos ou decoração de interiores; a coletas feitas por pesquisadores; e aos conjuntos reunidos pelos colecionadores.
O propósito da guarda protegida e o seu sentido de conservação, que se compreende por Preservação, e a custódia de determinados objetos considerados sob perspectiva de um atributo de valor, mesmo sem conotação devocional, e destacados entre tantos outros similares os bens culturais, bens simbólicos configuraram a atividade que imprimiu os primeiros passos no tratamento dos objetos como forma de um modelo museológico. Tal feitio que se moldava para os Museus e era relacionado a conjuntos de artefatos e de espécimes, as coleções, fez-se também associado a outro círculo de estudiosos e cuja imagem o Gabinete de Curiosidades ilustra entre os séculos XVI-XVIII.
A conjugação dos aspectos voltados para reunir, sobretudo preservar sob o extrato da responsabilidade, expandiu-se e consolidou-se com práticas associadas ao conhecimento. Em dimensão museológica, o modelo institucional se revelou a partir da Revolução Francesa (século XVIII), quando se deu a nacionalização dos bens dos nobres e da Igreja. Entre 1789 e 1830, foram criadas comissões "ditas dos Monumentos" e dos "Monumentos Históricos" (Choay, 2001, p. 99) em razão da premência e necessidade em abrigar e conservar o Patrimônio nacionalizado. No caso dos objetos, bens móveis, inicialmente tiveram no Louvre o local escolhido para acolher numeroso material histórico, lugar simbólico por excelência antiga residência real até Luis XIV, o Rei Sol. Em 1793, o conjunto selecionado se constituiu em coleções do então criado Museu do Louvre.
Tempos depois, os depósitos que abrigavam o Patrimônio da França ficaram abarrotados de objetos artísticos, litúrgicos, de adorno e de outras categorias técnicas e, novamente, geraram novos conjuntos para formarem coleções destinadas a ocupar palácios e casas aristocráticas abertos à visitação. Esses espaços, dedicados à preservação do tesouro da nação, imprimiram a imagem do Museu na Idade Moderna (Choay, 2001, p. 100-106). E o contexto de imagens culturais significando Patrimônio, antes ligado aos exemplares da tipologia monumento histórico ou artístico, por conseguinte, passou a incluir no seu registro interpretativo os objetos, a classe dos bens culturais móveis, agregando-lhes o caráter de 'nacional'. Os objetos coletados e reunidos tornaram-se institucionalizados e, para tanto, foram inventariados, organizados, armazenados sob a qualificação de coleções de Museus, na esteira das transformações e consolidações burguesas do Estado francês. As coleções assinaladas como pertencentes à nação, ao povo, formalizaram o perfil patrimonial que embasa o quadro museológico assentado na natureza do acesso público.
Este procedimento, portanto, alargou a compreensão dada para o ato da conservação Preservação dos bens móveis, valorizando-os e colocando-os sob tutela institucional: a salvaguarda. Ainda, redimensionando ações e dirigindo-as segundo a ideia de dispor os bens culturais para transmissão e usufruto das futuras gerações.
Em consonância, estabeleceu-se a figura do Museu como instância cultural competente competência como exercício do poder simbólico no sentido emprestado por Bourdieu (1989) portanto, socialmente legitimada para preservar e custodiar o Patrimônio, na medida em que o termo passou a consignar sentido de bem público, transferindo o 'bem' que já havia adquirido o status de patrimonializado à esfera dos imperativos e das ocupações do Museu; assumindo, por este modo, um outro caráter institucionalizado: o museológico.
O atendimento aos princípios formais estabelecidos pelo contexto da organização social que envolve os padrões da institucionalização do Patrimônio e tendo por ambiente o espaço da Museologia é processo cuja natureza imprime ao bem cultural um caráter diverso da sua função original, isto por força da ação técnico-conceitual que cada objeto sofre. Assim, dota-o de teor museológico, colocando-o sob sua tutela especializada para a proteção e a guarda: a salvaguarda para Preservação. O procedimento instaurado pela Revolução Francesa e a Patrimonialização ou institucionalização dos bens que se solidificou na seara dos Museus ao longo dos séculos seguintes, especificamente por volta da segunda metade do século XX e com feição de sentido similar denomina-se Musealização.
De acordo com este espírito e no espaço social Museu articulou-se e implantou-se processo semelhante ao movimento interpretativo da sucessão. A herança cultural dos grupos sociais, o Patrimônio, encontrou relevância para seu estudo e para sua transmissão em âmbito social pela vertente museológica, o que foi enfatizado, sobretudo, pelo veículo comunicacional 'exposição' e pela repercussão pública obtida, projetada no imaginário social ao modo de uma 'marca registrada' do que seja um Museu.
Por força da fragmentação do universo do conhecimento em espaços de especialização, consolidada no decorrer do século XIX, quando os saberes foram determinando as 'fronteiras' de seus domínios, desenhando os campos do conhecimento para exercer suas propostas teóricas e intervenções práticas, estabeleceu-se a especialização temática aplicada como tipologia para o Museu. Composição na qual o perfil das instituições tornou-se moldado em consonância com o elemento biface que fomenta as pesquisas nos seus espaços museológicos: as coleções e as facetas do assunto ligado ao enfoque/área do conhecimento que as toma sob seu olhar interpretativo.
Recebeu, por conseguinte, contribuições advindas das aplicações disciplinares dos diferentes ramos do conhecimento que, aliados ao campo da Museologia e atuando nos Museus por meio de abordagens dadas às coleções, pouco a pouco se tornaram partícipes com sua interpretação, conforme se verifica e segundo as tradicionais divisões que ainda persistem na nomenclatura: museu histórico, museu artístico, museu científico ou de ciências, como nos dedicados, por exemplo, aos conteúdos das áreas da História, das Artes ou das Ciências Museu Histórico Nacional; Museu de Arte Moderna; Museu de Astronomia e Ciências Afins.
Esta forma de identificação da mesma maneira torna-se perceptível, como se verá adiante, nos títulos que nomeiam os Comitês Internacionais do Conselho Internacional de Museus (ICOM), entidade que, desde sua fundação, em novembro de 1946, "mantém relações formais com a UNESCO, executando parte de seu programa para museus" (ICOM-BR, s.d.), atuando como organização de referência para o tema.
O ICOM é considerado o herdeiro do Escritório Internacional de Museus (Office International des Musées OIM), que objetivava "o estabelecimento de vínculos entre todos os museus do mundo, a organização de intercâmbios e congressos, assim como a unificação dos catálogos" (Mairesse, 1998, p. 25). O Escritório, criado no âmbito da Sociedade das Nações (1926), ou Liga das Nações, encerrou as atividades em razão da Segunda Guerra Mundial, em 1939. E a Sociedade também, em 1946, quando transferiu as responsabilidades para a Organização das Nações Unidas (ONU), entidade criada após o término da Guerra, em 1945.
Os Comitês do ICOM representam instâncias de legitimidade cultural do campo. Considerados "como corpos profissionais", cada um dos trinta e um Comitês "dedica-se ao estudo de um tipo particular de museu ou a determinada disciplina relacionada ao museu" (ICOM, 2002). Eles refletem os recortes temáticos nos quais a Museologia marca sua presença.
Os associados, profissionais de diferentes áreas do conhecimento relacionadas aos vários temas e enfoques tratados pela Museologia, perfilam-se em categorias individuais e institucionais, respectivamente: profissionais de Museu e instituições de caráter museológico. Assim sendo, em concordância com o conceito da criação e da diretriz para desempenho, formalizaram-se dedicados tanto ao estudo de uma tipologia (especialidade) de Museu quanto a específicas disciplinas relacionadas ao Museu, como também associando atividades realizadas pelos seus grupos componentes (novamente o poder simbólico se expressando).
Exemplos de Comitês Internacionais, conforme o ICOM (2006):
Comitê Internacional para a Conservação (ICOM-CC); Comitê Internacional para Educação e Ação Cultural (CECA); Comitê Internacional para a Museologia (ICOFOM); Comitê Internacional para Museus e Coleções de Arqueologia e História (ICMAH); Comitê Internacional para Museus e Coleções de Ciência e Tecnologia (CIMUSET); Comitê Internacional para Museus e Coleções de História Natural (NATHIST).
A Museologia-Museu, ao longo do século passado, a partir da segunda metade e com maior empenho no último quartel, reforçou sua presença e função social no cenário cultural. Explicitou que, sob a perspectiva da sua teoria e da sua prática, alicerça-se no entendimento de preservar os bens de acordo com o processo de salvaguarda e tutela institucional e tratá-los (pesquisas e disseminação da informação) consoante uma percepção interpretativa de maior alcance e, ao mesmo tempo, de aprofundamento para o significado da Musealização. Em vista disto, a compreensão contemplou para as representações musealizadas o reconhecimento na categoria Documentos. Como tal, foram identificados na qualidade de "testemunhos" (Le Goff, 1984, p. 97) e dotados de valor de prova, ressaltando-lhes o caráter de documento primário que lhes é próprio, consequentemente, imprimindo relevância a tais fontes de consulta para pesquisas e para a produção do conhecimento:
3. Os museus conservam testemunhos primários para construir e aprofundar o conhecimento. Princípio: Os museus têm responsabilidades específicas para com a sociedade em relação à proteção e às possibilidades de acesso e de interpretação dos testemunhos primários reunidos e conservados em seus acervos (ICOM-BR, 2009).
No mesmo período, também coube reconhecer-se e destacar-se o papel desempenhado pelos múltiplos grupos culturais na qualificação de agente social, ou melhor, na qualidade de ator social digno de presença relevante no processo de construção do discurso museológico disseminado pelas exposições e pelos demais canais comunicacionais que o Museu lança mão.
O modo de entendimento aplicado aos estudos das relações entre o emissor da mensagem elaborada pelo discurso do Museu e o receptor, representado geralmente pelo nomeado 'público', deu-se pelo olhar da mudança dessa condição. Entendeu-se que o agente da demanda informacional que se situa no outro pólo do processo comunicacional, ao invés de estar no ato passivo da recepção, deveria estar na posição de partícipe daquilo que o Museu oferece à sociedade. A formulação se respaldou nas novas proposições do campo dirigidas a enfatizar o papel da ação museológica e de sua efetiva repercussão no meio social.
O campo museológico, no quadro de uma trajetória na qual o formato dominante foi, por longos tempos, o modelo clássico de Museu respaldado na coleção, no prédio e no público visitante museu tradicional desenhado como caudatário e resultante, comumente, das decisões tomadas pelas camadas hegemônicas dos grupos sociais estabeleceu mudanças e traçou rumos em direção ao museu de território, espaço físico estreitamente ligado às tradições culturais definidoras dos agentes locais, os habitantes ou os ativos do lugar, e apoiado na noção de um patrimônio comum, a imagem de pertencimento, o que se associa e permite-se indicar como questão da identidade cultural.
Esse novo momento constitui um exemplo expressivo no qual o modelo de Museu atende às demandas socioculturais que se articulam em nível de postura política e de participação cidadã, ocorrendo um movimento de reafirmação do papel social dos Museus, voltado à inserção da história de diversos grupos na função de protagonistas para a elaboração dos espaços musealizados e, ao mesmo tempo, reforçando a luta pela Preservação, procedimentos inspirados em novos formatos interpretativos.
Pode-se citar, nessa postura assumida pelo campo, o modelo Ecomuseu, conceito criado em 1971 por Hugues de Varine:
(...) que posteriormente desenvolveu o conceito em colaboração com outro museólogo francês, Georges Henri Rivière, dando origem a um movimento internacional onde se têm vindo a integrar projectos museológicos muito diversificados, associados também aos conceitos de "museu de comunidade" e de "museu de território" (Ecomuseu Municipal do Seixal, 2010).
Por ocasião da Nona Conferência Geral do ICOM, em Paris e Grenoble (França), no ano de 1971 (ICOM, 1971), o conceito foi adotado pela Museologia.
A definição original da dupla de museólogos é a seguinte:
(...) museu aberto, interdisciplinar, apresentando o homem no tempo e no espaço, no seu ambiente natural e cultural, convidando a totalidade de uma população a participar do seu próprio desenvolvimento por diversos meios de expressão, baseados essencialmente na realidade dos sítios, edifícios, objetos, coisas reais que falam mais que as palavras ou as imagens que invadem a nossa vida (Ecomusée Creusot Montceau, s.d.).
Obedecendo ao mesmo princípio da participação dos agentes sociais no ambiente museológico, delineou-se um modelo cuja designação 'personifica' a autogestão, o museu comunitário, que se entende pelo processo no qual a criação, a administração e o poder decisório emanam da comunidade, embora possa haver a atuação de especialistas da Museologia e demais campos relacionados. A ação se sedimenta e é oriunda dos grupos envolvidos, cujo imperativo das demandas no quadro social está, o mais das vezes, ligado à vocalização social para representação das suas identidades.
O modelo comunitário, que pode ocorrer em qualquer tipologia museológica, segundo afirmativa do teórico da Museologia Hugues de Varine (1993, p. 11), "começa com as pessoas e não com os objetos". É um espaço no qual a figura do público se apresenta como sendo o morador local, participante ativo do que ocorre no cotidiano museológico, intervindo na história do Museu porque representa sua história. Atua reforçando as condições e os meios para assegurar a Preservação do que lhe diz respeito, já que exprime a sua herança cultural.
No contexto da América Latina houve, ainda, um momento que se deve apontar como marcante: a Mesa Redonda de Santiago, no Chile, organizada pelo ICOM em 1972. A Declaração de Santiago afiançou, no campo museológico, a conjugação dos ambientes cultural e natural em resposta a necessidades voltadas para mudanças que, naquele momento, se impunham ao campo.
Determinaram-se os "Princípios de Base do Museu Integral" (Mesa Redonda de Santiago do Chile - 1972, 1999, p. 120) e verifica-se que "um dos resultados mais importantes a que chegou a mesa-redonda foi a definição e a proposição de um novo conceito de ação dos museus: o museu integral, destinado a proporcionar à comunidade uma visão de conjunto de seu meio material e cultural".
A Declaração, a par de considerar o Museu como "integrante" e "a serviço da sociedade", apontava-o como dotado de condições para "participar na formação da consciência das comunidades que serve" e atuar estimulando "essas comunidades a agir, situando a sua atividade no quadro histórico que permite esclarecer os problemas atuais" (Mesa Redonda de Santiago do Chile - 1972, 1999, p. 120). No texto, a ideia de cidadania é significativa no concerto das propostas gestadas pelo campo.
Tais perspectivas discutidas e incorporadas foram não só objeto como bases do que se convencionou nomear de Nova Museologia, visão ativa a partir dos anos 1980. E a questão que associa os que têm sua história e signos focalizados pela via discursiva da Museologia é item do Código de Ética para Museus (ICOM-BR, 2009):
6. Os museus trabalham em estreita cooperação com as comunidades de onde provêm seus acervos, assim como com aquelas às quais servem.Princípio: Os acervos dos museus refletem o patrimônio cultural e natural das comunidades de onde provêm. Desta forma, seu caráter ultrapassa aquele dos bens comuns, podendo envolver fortes referências à identidade nacional, regional, local, étnica, religiosa ou política.
No bojo das proposições e dos novos formatos incorporados pela Museologia para seus modelos interpretativos, em consonância com o tempo histórico no qual o campo se desenvolve, torna-se pertinente abordar a mudança do atributo de valor dado a determinados exemplares do Patrimônio. Um exemplo é o tema da indústria, sua representação e inclusão em contexto museológico, ou seja, o patrimônio musealizado.
Tanto as coleções como os espaços industriais tornaram-se o fundamento de criação de novos museus: os museus industriais. As práticas de exposição, de visitação in situ e outras formas de ação e apropriação museológicas, inclusive com participação de atores sociais e seus históricos de identidades culturais ligadas ao assunto, passaram a ter como objeto de tratamento os espaços fabris e de mineração, as olarias, os fornos, as pontes, os trechos de linhas férreas. Ao lado de tais exemplares, representando o costumeiro conjunto musealizado e apresentado pela vertente da materialidade, também se tornaram objeto dos estudos as expressões do mundo intangível: a questão humana nas facetas do cotidiano da industrialização, focalizando as condições de trabalho e da vida das famílias de operários e demais pessoas envolvidas, que estão sustentadas pela "tradição oral, know how, processos, contextos cultural e social, história local, sons, experiências táteis e aromas" (Lira et al., 2002). Sítios e remanescentes da era industrial têm sido propícios para criar o Ecomuseu e exercer a gestão comunitária em Museus.
No ciclo dos chamados novos patrimônios musealizados, a era das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) gravou sua presença no domínio museológico expressando-se pela modalidade digital no espaço cibernético, ambiente no qual os Museus, em larga escala, são "autodenominados Museus Virtuais" (Lima, 2009, p. 2.451, grifo do autor) nos seus sites. Definidos sob três categorias técnico-conceituais2 2 Conforme a pesquisa "Termos e Conceitos da Museologia", coordenada pela profa. Dra. Diana Farjalla Correia Lima (UNIRIO), do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, UNIRIO/MAST. De cerca de 100 sites de museus autodenominados virtuais analisados na web, selecionou-se, segundo os parâmetros determinados pela pesquisa para enquadramento como museus virtuais, um total de 79 museus (41 no Brasil; 38 em outros países). , apontam para a realidade do discurso e das práticas do campo museológico aplicados para o formato digital:
Categoria A, Museu Virtual Original Digital (...) modelo identificado ao formato desterritorializado (sem referência física), existindo somente na representação do website.
Categoria B, Museu Virtual Conversão Digital (...) modelo que reproduz na web tanto o museu quanto a coleção de natureza material.
Categoria C, Museu Virtual Composição Mista (...) modelo de museu criado e existente só na web, cuja coleção exibida decorre da coleta de objetos e outros elementos que existem no mundo físico (Lima, 2009, p. 2.464-2.465, grifo do autor).
Os Museus trabalham, ao mesmo tempo, diversos modelos, tais como: o tradicional; o ecomuseu; o representativo de uma cultura hegemônica; o comunitário; aqueles com seres vivos, como jardins botânicos e zoológicos; os sítios agenciados; e os espaços ainda 'intocados'. Nestes exemplos, os elementos são apresentados sob a forma material, o que se convencionou nomear de bens tangíveis, o mesmo que o Patrimônio Tangível ou Material e, no caso, musealizado.
No entanto, todo o contexto interpretativo que envolve os bens culturais de categoria museológica em suas várias formas tais como o objeto de coleção, o espécime de coleção, o sítio/território, o exemplar isolado ou o conjunto procedente da atividade humana ou originário da natureza, e o novo museu no espaço cibernético faz-se também representado pelo ambiente intangível, na medida em que o imaterial lhe é pertinente por expressar sua referência e também a sua rede de relações. Nessa perspectiva interpretativa, o bem museológico é "considerado como forma que se refere a um contexto" (Boudon, 1972, p. 94). Dizendo de outra maneira e usando uma imagem da literatura, apresenta-se segundo a relação de um texto e respectivo contexto. O intangível, sendo 'contexto', perpassa e abarca os bens materializados, isto é, os 'textos' tratados pela Musealização, configurando o foco museológico tanto por uma perspectiva quanto pela outra, pois são indissociáveis no tocante ao desenvolvimento de qualquer estudo. Jeudy (1990, p. 19), ao focalizar os museus, seu papel no mundo social, afirma que "se apresentam como espaços de organização e de evocação das referências culturais que servem ao desenvolvimento do conhecimento".
Nos dias de hoje, a Museologia e os Museus focalizam o bem intangível/imaterial usando de medidas interpretativas de intensidade e limites diferentes do que se fazia nos anos iniciais da ação do campo, ocasião na qual o objeto tridimensional e a visualidade ocupavam posição preponderante no quadro expositivo e no processo informacional/comunicacional. As mudanças são creditadas à aplicação de novas posturas e a métodos e técnicas para a leitura das manifestações culturais percebidas como unidade. A característica unitária encerra o conteúdo da representação expressando-se na forma material e nas condições naturais ou nas práticas sociais de origem âmbito do imaterial.
O Código de Ética para Museus (ICOM-BR, 2009, grifo do autor) expõe o papel dos Museus e aponta, entre os elementos musealizados, o bem de natureza intangível:
1. Os museus preservam, interpretam e promovem o patrimônio natural e cultural da humanidade.
Princípio: Os museus são responsáveis pelo patrimônio natural e cultural, material e imaterial. As autoridades de tutela e todos os responsáveis pela orientação estratégica e a supervisão dos museus têm como primeira obrigação proteger e promover este patrimônio (...).
Os últimos 25 anos do século XX representam o período no qual se firmou, como objeto de estudo do campo, o contexto das imbricações entre os dois ambientes (meios cultural e natural), no qual a humanidade desenvolve sua existência, tomando os seres humanos na sua relação com o mundo como o elemento central da realização museológica. No período, incluíram-se no elenco de bens musealizados os representados pelas formações naturais, os espaços físicos, mesmo quando intocados, portanto, não agenciados pelo Homem. Compreendeu-se que a interpretação do olhar cultural atribui o valor Preservar, o agir responsável para salvaguardar/tratar o ambiente de origem natural. Isto em compasso de harmonia com o tempo cultural e político que, à época, abordava questões do meio ambiente discutidas pela presença da ecologia.
No século XXI, a maneira de exercer o pensamento e a ação museológica integra as relações entre cultural, social e a natureza.
A Museologia-Museu convive com musealizações compostas por coleções tradicionais; áreas verdes; montanhas; espelhos d'água; cidades históricas; vilas operárias; celeiros; fábricas; costumes tradicionais como cantigas, folguedos, música, gastronomia; e, ainda, o formato virtual no contexto do ciberespaço. E outras modelagens conceituais virão a surgir em resposta às necessidades das demandas sociais.
MUSEOLOGIA-MUSEU E PATRIMÔNIO
Ao longo de mais de vinte séculos, os bens imóveis e móveis, incluindo as coleções na segunda categoria, passaram da condição de guardados em âmbito privado e foram transmigrados para a situação de bens sob proteção e tratamento em contexto coletivo e de acesso público. Entrelaçados pelo compasso histórico compuseram interpretações e ações estabelecidas no quadro combinado da Museologia e do Patrimônio. O ponto de união se construiu conforme vários aspectos históricos amalgamados à imagem da Preservação sustentada, por sua vez, pelo procedimento conceitual e prático instaurador da tutela consolidada nos processos de institucionalização, a salvaguarda, desenvolvidos pelos processos da Patrimonialização e da Musealização como representações do poder simbólico.
Em ambos, os modelos de apropriação teórica e prática elegeram como objetos básicos para o tratamento os planos do tangível (material) e do intangível (imaterial), passíveis de serem interpretados na qualidade de referências culturais no tempo-espaço histórico e geográfico. Em razão disso, desenvolveram-se atividades que, refletindo a ideia ampla da Preservação, fizeram-se calcadas em grandes linhas vinculadas aos seguintes procedimentos: a seleção dos bens; a documentação realizando de imediato o registro, ou seja, a inscrição formal no regime de tutela/custódia administrativa (simbólica, a exemplo da Lista do Patrimônio Mundial) e iniciando o primeiro passo da catalogação3 3 Procedimento técnico-conceitual no âmbito da documentação em museus, muitas vezes identificado também pelo título de inventário. Cabe distinguir: o processamento de dados intrínsecos e extrínsecos dos itens musealizados, e a informação especializada gerada pela catalogação, permite fornecer, sob um conjunto quantitativo extenso e de maneira descritiva, os elementos qualitativos sobre cada item interpretado. O inventário usa de menor número de indicadores e se formaliza como um arrolamento para atender, em escala quantitativa, a demanda de dados, cuja finalidade é verificar situações pontuais dos acervos (CIDOC-ICOM, 2007). , que descreve pormenorizadamente cada item patrimonializado/musealizado; o ato de assegurar a permanência (manutenção física) pela intervenção da conservação preventiva e pela restauração, quando necessário. E, ainda, complementado o elenco destas ações de gestão patrimonial e museológica, realizaram outras práticas inerentes tanto a características específicas das categorias e tipologias dos bens quanto às normas que orientam as decisões da institucionalização, cujo pano de fundo é o propósito do benefício social, que, no assunto em pauta, tem como destinatário os grupos de cidadãos, os usufrutuários dos bens do Patrimônio (musealizável) ou do Patrimônio musealizado.
Na longa trajetória em que se foi moldando o binômio Patrimônio e Museologia-Museu, o estudo dessa relação sob a égide de uma iniciativa de caráter oficial e em cenário internacional foi selado na primeira metade do século XX, sendo que o Escritório Internacional de Museus (OIM), no quadro da Sociedade (Liga) das Nações, teve papel relevante na inserção da questão do Patrimônio em contexto mundial. Essa organização realizou o Primeiro Congresso de Arquitetos e Técnicos de Monumentos. Encontro considerado pioneiro para os padrões da época e, nos dias de hoje, um marco no tema da Preservação de obras de arte, conjugando Museus e Patrimônio. O congresso reuniu profissionais de vários campos: especialistas em museus, arquitetura, história da arte e restauradores, entre outros. O documento resultante é a Carta de Atenas para a Restauração de Monumentos Históricos, datado de outubro de 1931, chancelado pela Sociedade das Nações, que cita o OIM como partícipe da responsabilidade por ações ligadas a inventários e atividades para preservar ou restaurar monumentos (ICOMOS, 1931). É o "primeiro documento internacional a reunir deliberações de consenso entre vários países, referentes aos temas do patrimônio e restauro" (Almeida, 2010, p. 9).
Na afirmativa do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), o evento organizado pelo OIM e o respectivo documento, Carta de Atenas de 1931, juntamente com outro do mesmo nome, mas datado de novembro 1933 e resultante da Quarta Assembleia do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), ocupam posição de destaque na interpretação do tema Patrimônio, na medida em que foi "introduzido pela primeira vez na história o conceito de patrimônio internacional" (ICOMOS, 1931).
A expressiva participação da entidade representando a Museologia no panorama internacional do Patrimônio é explicitada no documento fundador para o tema (1931), como adiante se poderá verificar. Também está expressa (em português) no resumo da Carta de Atenas, disponibilizado no site do Comitê Nacional do ICOMOS:
CARTA DE ATENAS SOCIEDADE DAS NAÇÕES, Outubro de 1931. Conclusões e deliberações da Sociedade (sic) Internacional de Museus sobre a proteção de monumentos, abordando conclusões gerais a respeito das doutrinas e dos princípios gerais da proteção, administração e legislação de monumentos históricos, valorização dos monumentos, materiais de restauração, deterioração de monumentos, técnica da conservação, conservação e colaboração internacional (...) (ICOMOS-BR, 1931).
Ainda focalizando o documento de 1931: a disseminação da informação ficou a cargo do OIM, tornando-o responsável pela divulgação dos resultados obtidos pelas ações desenvolvidas a partir das orientações emitidas pelo documento internacional, conforme Parte V, Artigo 2º (ICOMOS-BR, 1931): "Que o Escritório Internacional de Museus se mantenha a par dos trabalhos empreendidos em cada país sobre essas matérias e lhes conceda espaço em suas publicações".
Do mesmo modo que ocorreu em âmbito internacional, cabe mencionar em contexto brasileiro um ponto de integração entre Museologia e Patrimônio revelado na primeira tradução feita para o português (1937)4 4 O original (datilografado) compõe o conjunto de documentos doados pela museóloga Nair de Moraes Carvalho ao projeto "Memória da Museologia no Brasil", da UNIRIO, coordenado pelo prof. Dr. Ivan Coelho de Sá, compondo o grupo de pesquisas desenvolvidas pelo Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). da Carta de Atenas de 1931, e que se deve à museóloga Nair de Moraes Carvalho5 5 Graduada pelo Curso de Museus do MHN, em 1936, atual graduação em Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). , funcionária do Museu Histórico Nacional (MHN), atendendo ao pedido da Inspetoria de Monumentos Históricos (IMH), departamento daquele museu.
A Inspetoria antecedeu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O Instituto, ao longo de mais de 70 anos (1937-2009), respondeu pela política dos museus federais alocados no seu quadro administrativo até a criação do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Em virtude disto, transferiu-se para a nova instituição governamental o conjunto de "direitos, deveres e obrigações relacionados aos museus federais" (IBRAM, s.d.). Ambos compõem o quadro do Ministério da Cultura (MinC) com aspectos comunicantes pela temática que tratam e sedimentada em questões comuns.
Prosseguindo no trabalho promovido pelo OIM em defesa do Patrimônio, em concordância ao que fora recomendado pela Sétima Conferência Internacional dos Estados Americanos (1933), nova ação foi realizada. Redigiu-se (1935) o Tratado para a Proteção de Instituições Artísticas e Científicas e Monumentos Históricos, Pacto Roerich (Brasil-MinC, 1935). Assinado pelo Brasil junto a outros países americanos, no âmbito do Direito Internacional representa o primeiro ato a tratar dos bens culturais sob a proteção do Estado em tempos de paz e, do mesmo modo, em períodos de conflitos (Silva, 2003). O Tratado inclui os museus e recomenda a elaboração de uma lista de bens de cada Estado a ser distribuída entre os países signatários. Em casos de conflitos armados, rememora a proposta de Nicholas Roerich: hastear a Bandeira da Paz, conhecida como a Bandeira da Cruz Vermelha da Cultura, para identificação e proteção física dos bens culturais (Nicholas Roerich Museum, s.d.).
No contexto que delega ao Estado a salvaguarda do Patrimônio, deve-se lembrar que, menos de dois anos após a Conferência interamericana e a assinatura do Tratado, deu-se a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) atual IPHAN, entidade responsável pela política brasileira do Patrimônio e, portanto, dos museus (até 2009, conforme se explicitou) e cujas atribuições tratam de "Organiza[r] a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional", conforme determinado pelo Decreto Lei nº. 25, de 30 de novembro de 1937 (Brasil, 1937).
Outra ação do campo museológico em favor das questões do Patrimônio e também no panorama internacional deve-se ao Conselho Internacional de Museus (ICOM), que permanece atuando na trilha aberta pelo OIM. Trata-se do processo de criação de entidade congênere, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), em 1965, no qual o ICOM teve papel relevante. No documento elaborado pelo Segundo Congresso de Arquitetos e Especialistas de Construções Históricas (1964), a responsabilidade do ICOM nos destinos do novo Conselho está assinalada ao compor o Comitê Organizador, na qualidade de membro ex-oficio (ICOMOS, 1964a).
No conjunto das recomendações adotadas6 6 A recomendação Número 1 é a Carta de Veneza, Carta Internacional para Restauração (1964). , e especificamente a de número 2, "Resolução referente à criação de uma organização não governamental para monumentos e sítios" (ICOMOS, 1964b), orientou-se que o estudo e os meios necessários para a implantação fossem realizados em cooperação com o ICOM. Chamou-se atenção "particularmente para o estabelecimento de um sistema estatutário comum" entre a futura organização e o Conselho Internacional de Museus.
Ao se tratar de processo interativo entre ICOM (Museologia) e ICOMOS (Patrimônio), cabe trazer à lembrança que o ICOMOS foi o 'inspirador' para o conceito de Patrimônio Mundial. No momento presente, tem poder de voto consultivo junto à UNESCO para os assuntos relativos ao Patrimônio Mundial. E nesse quadro, nas listas correspondentes aos tipos patrimoniais nomeados de Natural e Cultural, estão inscritas as representações musealizadas.
A relação entre Patrimônio e Museologia também foi expressa em plano teórico (1982) pelos profissionais do campo Klaus Schreiner e Tomislav Sola, membros do Comitê Internacional para a Museologia (ICOFOM) do ICOM, propondo o termo Patrimoniologia (Heritology) como indicativo da interpretação para a Museologia (Desvalées, 2000, p. 23). Tomaram por base a ampliação conceitual para definições de Museologia e Museu que se vinha processando na segunda metade do século XX (explicado no item Museion). Mensch (1994, p. 14), teórico do campo, explicita afirmando que a designação assinala uma nova percepção, pois o sentido emprestado "não é mais centrado no Museu, mas lida com a nossa atitude em relação a nossa herança como um todo". A perspectiva desta interpretação abriu caminho para respaldar, formalizando, o trato do Patrimônio Intangível no concerto museológico.
Associados ao binômio Museologia-Museu e Patrimônio-Herança, emergem os elementos representativos da memória coletiva, sinais simbólicos ancorados nas lembranças referenciais que modulam os grupos sociais nas suas diversidades culturais.
Determinada interpretação acerca da realidade expressando a visão particular de um grupo, em meio às demais interpretações próprias de outros grupos, direciona ao contexto da identidade cultural. A identidade representa a noção de pertencimento. O indivíduo que se reconhece no seio de uma coletividade reflete a posse coletiva de atributos comuns a todos os membros e a transmissão de um modelo existencial, normativo, constituindo-se em herança cultural, isto é, um Patrimônio identitário.
As coleções e demais formas musealizadas, por sua vez, são apropriações culturais de exemplares de origem cultural e natural, aos quais foram atribuídos também valores culturais de 'distinção' (ou a diferença de identidades) e representando, em face disso, os bens, ou melhor, o Patrimônio, propriedade de face comum culturalmente relacionada a cada um dos grupos, entre os vários grupos sociais, e tratada sob a perspectiva da Museologia.
Passo a passo, há cerca de pouco mais de um século, as funções definidoras do ambiente atual nos museus (Patrimônio Musealizado) que se voltam aos planos do "estudo, educação e lazer" (ICOM, 2007) e estão sedimentadas nos procedimentos que envolvem atividades ligadas à preservação, pesquisa, documentação, informação e comunicação, traçaram suas diretrizes que comungam atividades com idêntico teor desenvolvidas para os estudos e divulgação do Patrimônio (musealizável). As atividades nomeadas são comuns nos dois processos de institucionalização: Patrimonialização e Musealização.
As vertentes das modalidades culturais interpretativas compostas pela Patrimonialização e Musealização integram o perfil dos agentes da ação de responsabilidade social e são legitimadas para zelar por um conjunto de bens, detentor de valor cultural e destinado à transmissão como herança coletiva. Emprestam, ainda, tal sentido para determinar a modelagem das suas finalidades em um roteiro comum. Em síntese, um processo que a dimensão da cultura construiu interligando as formas simbólicas exercidas pela Museologia e pelo Patrimônio.
Recebido em 07/05/2011
Aprovado em 18/02/2012
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Abr 2012 -
Data do Fascículo
Abr 2012
Histórico
-
Recebido
07 Maio 2011 -
Aceito
18 Fev 2012