Durante décadas a definição de uma unidade antropofísica, baseada principalmente em estudos descritivos e comparativos de morfologia craniana e pós-craniana, norteou o conhecimento sobre a biologia dos grupos sambaquieiros do litoral sul-sudeste do Brasil. Este conceito influenciou também os paradigmas que nortearam a compreensão de aspectos socioculturais desses grupos, tendo como diretriz as perspectivas da Escola Norte Americana. Esta perspectiva generalista, no entanto, vem demonstrando inoperância para elevar o conhecimento sobre os grupos sambaquieiros a um nível mais detalhado, a partir da identificação de particularidades que naturalmente permeiam qualquer sistema sociocultural e são o resultado de escolhas, e não apenas respostas adaptativas. Buscando-se avançar sobre esta perspectiva, este trabalho tem como objetivo conjugar os dados sobre marcadores de estresse ocupacional (osteoartrose, trauma acidental, espondilólise, nódulo de Schmorl e exostose auditiva) já publicados para três sambaquis localizados no estado do Rio de Janeiro, a fim de se verificar a possibilidade de identificar particularidades no estilo de vida destes grupos.
Palavras-chave:
Bioarqueologia; Paleoepidemiologia; Marcadores de estresse ocupacional; Sambaquis; Abordagem biocultural.
Abstract:
For decades the definition of a physical-anthropological unit, based primarily on descriptive and comparative studies of cranial and post-cranial morphology, oriented biological knowledge of sambaqui-dwelling groups in the south-southeastern coastal region of Brazil. This concept also influenced the paradigms that guided the understanding of socio-cultural aspects of these groups, taking as a guideline the perspectives of the North American School. This general perspective, however, has not been very effective in furthering knowledge about sambaqui-dwellers at a more detailed level, failing to identify characteristics that naturally permeate any socio-cultural system and are the result of choices, not just of adaptive responses. In an attempt to create progress in this perspective, this paper aims to combine previously published data on occupational stress markers (osteoarthrosis, accidental fractures, spondylolysis, Schmorl´s nodes and auditory exostoses) for three sambaquis located in the state of Rio de Janeiro, in order to identify possible particularities of the lifestyles of these groups.
Keywords:
Bioarchaeology; Paleoepidemiology; Occupational stress markers; Shell middens; Biocultural approach;
Os estudos sobre os grupos que construíram os montes de conchas no litoral sul e sudeste do Brasil remontam à segunda metade do século XIX, quando D. Pedro II impulsionou o desenvolvimento institucional da Arqueologia e da Antropologia Física, no então Museu Imperial1 1 Foi criado em 1818 por D. João VI com a designação de Museu Real, e somente após a proclamação da República em 1889 passaria a se designar Museu Nacional. (Mendonça de Souza, 1991MENDONÇA DE SOUZA, A. História da Arqueologia Brasileira. Pesquisas, Série Antropologia, v. 46. 157 p., 1991.). Mediante esta iniciativa, algumas das primeiras coleções osteológicas brasileiras foram formadas a partir das escavações nos sambaquis da região sul do país, cujo expressivo destaque na paisagem chamou a atenção dos naturalistas da época.
Naquele momento, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o estudo de restos humanos arqueológicos voltava-se para questões relacionadas à origem, migração e variabilidade tipológica da espécie humana. Anatomistas, antropólogos e naturalistas buscavam desenvolver sistemas de classificação racial através da morfologia óssea, com ênfase em métodos craniométricos (Larsen ; Walker, 2010LARSEN, C.S.; WALKER, P. Bioarchaeology: Health, Lifestyle, and Society in Recent Human Evolution. In: LARSEN, C.S. (org). A Companion to Biological Anthropology. Chichester: Blackwell Publishing, p. 379-394, 2010).
No Brasil, esta perspectiva dominou a então denominada Antropologia Física até aproximadamente o início da década de 1980, tendo sido realizados estudos descritivos e comparativos de morfologia craniana e pós-craniana, traços não métricos cranianos, e saúde dental (Lacerda, 1882LACERDA, J.B. A morfologia craneana do homem dos sambaquis. Revista da Exposição Anthropológica Brazileira, v. 4 p. 133-137, 1882. ; 1885; Roquette-Pinto, 1923/1925; Imbelloni, 1955IMBELLONI, J. Sobre los constructores de los sambaquis (yacimientos de Paraná y Santa Catarina). XXXI Congresso Internacional de Americanistas, p. 967-997, 1955.; Alvim; Mello Filho, 1965ALVIM, M.C.M.; MELLO FILHO, D.P. Morfologia Craniana da população do Sambaqui de Cabeçuda (Laguna, Santa Catarina) e sua relação com outras populações de paleoameríndios do Brasil. In: sn, Homenaje a Juan Comas em su 65 Aniversario, Mexico, v. 2, p. 359-366, 1965.; 1967/1968; Alvim & Seyferth, 1968/69; 1971; Alvim, 1972; 1978; Alvim et al., 1975; 1983/84; Alvim; Uchôa, 1976; Salles Cunha; Salles Cunha, 1960; 1963; Salles Cunha; Alvim, 1971; Pereira et al., 1972PEREIRA, C.B.; MOONEY, J.B.; RIESINGER, A.; RIESINGER, A.S. Oclusion, atrición, periodonto y otras características dentales en aborígenes brasileños. Ortodoncia, v. 71, p. 3-15, 1972.; Uchôa, 1973).
Durante todo este período pôde-se observar uma forte influência do trabalho pioneiro de Lacerda (1885LACERDA, J.B. O Homem dos sambaquis. Archivos do Museu Nacional, v. 6, p. 175-203, 1885.), o qual, utilizando um pequeno número de espécimes coletados de forma não sistemática por naturalistas em diferentes sambaquis do Paraná e de Santa Catarina, identificou uma relativa homogeneidade morfológica entre os crânios estudados. Segundo Castro Faria (1952), foi então criada uma nova entidade antropofísica, denominada "O Homem dos Sambaquis", a qual representaria uma entidade biológica que formaria, ao lado do "Homem de Lagoa Santa", os prováveis mais antigos grupos indígenas brasileiros. De fato, a literatura antropológica sobre sítios litorâneos que preenche o intervalo entre esta publicação de 1885 e o início dos anos 1980 concentra-se sobre uma hipótese implicitamente colocada por Lacerda: a de que os sítios arqueológicos conhecidos por sambaquis foram ocupados por um mesmo grupo biológico (Neves, 1988NEVES, W. Paleogenética dos grupos pré-históricos do litoral sul do Brasil (Paraná e Santa Catarina). Pesquisas Série Antropologia, n. 43, 178 p., 1988.).
As contribuições mais expressivas do período estão nos trabalhos desenvolvidos por Alvim e colaboradores, a partir da década de 1960. Embora tenham utilizado séries provenientes de sambaquis sistematicamente escavados, o número de espécimes analisados era ainda bastante reduzido, em parte devido aos critérios de inclusão, os quais passam por um estado de preservação adequado das peças ósseas.
Não obstante Alvim (1978ALVIM, M.C.M. Caracterização da morfologia cranial das populações pré-históricas do litoral meridional brasileiro (Paraná e Santa Catarina). Arquivos de Anatomia e Antropologia, v. III, p. 293-319, 1978.) reconhecer os problemas metodológicos associados à baixa representatividade das séries, a definição de uma unidade antropofísica é confirmada através de seus estudos, apenas com a ressalva de que a morfologia peculiar observada não se restringiria aos grupos sambaquieiros. De uma forma geral, no entanto, os trabalhos supracitados corroboraram a hipótese inicial de Lacerda, tendo apontado para uma forte unidade antropofísica entre os construtores de sambaquis, cujas principais características morfológicas determinadas são as seguintes: constituição extraordinariamente robusta; diferenciação sexual bem marcada no esqueleto; estatura baixa (média de 1,60 m. para os homens e 1,50 m. para as mulheres); ossos com as enteses bem desenvolvidas, podendo ser inferida intensa demanda muscular; crânios grandes, com calota alta e fronte inclinada; face mediamente larga, com órbitas acentuadamente altas; ossos longos muito espessos, maciços e curtos; e acentuado desgaste das faces proximais e oclusais dos dentes, indicando intensa atividade mastigatória de alimentos duros e abrasivos.
Estas foram as premissas norteadoras do conhecimento sobre a biologia dos grupos sambaquieiros do litoral sul-sudeste até meados da década de 80, quando Neves (1988NEVES, W. Paleogenética dos grupos pré-históricos do litoral sul do Brasil (Paraná e Santa Catarina). Pesquisas Série Antropologia, n. 43, 178 p., 1988.) desenvolve um extenso trabalho sobre afinidade biológica entre grupos litorâneos a partir de variáveis cranianas não métricas. Entre outras questões relevantes, os resultados de Neves demonstraram que a homogeneidade biológica até então aceita para os construtores de sambaquis restringe-se às séries compreendidas entre o litoral norte do Paraná e o litoral norte de Santa Catarina. Os grupos das áreas mais meridionais desse segmento do litoral sul mostraram-se biologicamente distanciados dos grupos mais setentrionais. E ainda, essa diferenciação biológica mostrou-se extremamente acentuada nos grupos do litoral central de Santa Catarina, e medianamente acentuada nos grupos do litoral sul do mesmo estado.
Mais recentemente, Hubbe (2006HUBBE, M. Análise biocultural dos remanescentes ósseos humanos de Porto do Rio Vermelho 02 (SC-PRV-02) e suas implicações para a colonização da costa brasileira. Tese de Doutorado. Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.) analisou marcadores métricos e não métricos de um grupo sambaquieiro da Ilha de Santa Catarina, tendo observado resultados próximos aos de Neves (1988NEVES, W. Paleogenética dos grupos pré-históricos do litoral sul do Brasil (Paraná e Santa Catarina). Pesquisas Série Antropologia, n. 43, 178 p., 1988.). Metodologia semelhante foi empregada por Okumura (2007OKUMURA, M.M.; BOYADJIAN, C.H.C.; EGGERS, S. Auditory exostoses as an aquatic activity marker: A comparison of coastal and inland skeletal remains from tropical and subtropical regions of Brazil., American Journal of Physical Anthropology v. 132 n. 4, p. 558-567, 2007.) em séries que englobam o litoral sul-sudeste desde o norte do Rio de Janeiro até o sul de Santa Catarina, perfazendo um total de 939 espécimes. A autora verificou que, sob uma perspectiva ampla, os grupos do litoral brasileiro mostram uma identidade relativamente bem individualizada em relação às séries do interior do Brasil. No entanto, em nível regional, percebe-se a ocorrência de uma clara divisão do litoral brasileiro em duas partes: uma que engloba as séries fluminenses e paulistas, e outra que compreende todas as séries catarinenses. As séries do Paraná ora associam-se às primeiras (setentrionais), ora às segundas (meridionais).
Embora os trabalhos supracitados demonstrem claramente a inadequação da hipótese de homogeneidade morfológica do "Homem do Sambaqui", o conceito, atrelado à perspectiva de estabelecimento de tipologias, parece ter extrapolado a questão da afinidade biológica. Como se verá a seguir, o conceito parece ter influenciado também, durante décadas, os paradigmas que nortearam a compreensão de aspectos socioculturais.
Embora a arqueologia acadêmica no Brasil tenha sido impulsionada a partir da década de 30 com a atuação de Castro Faria, ferrenho preservacionista particularmente preocupado com a acelerada destruição dos sambaquis, a formação sistemática de arqueólogos acadêmicos ocorreu somente a partir da década de 60. A influência das Escolas Estrangeiras marcou este período, e, no que diz respeito às pesquisas em sítios litorâneos, pode ser observada a expressiva influência da escola norte-americana.
A maior contribuição desta escola para a arqueologia brasileira foi a implementação de um grande projeto de levantamento arqueológico em nível nacional, o PRONAPA, o qual foi realizado entre os anos de 1965 e 1970, muito embora sua influência tenha ainda se estendido por quase duas décadas mais. Tendo como diretriz as perspectivas do Histórico-culturalismo e da Ecologia Cultural, o objetivo das pesquisas era a definição de unidades culturais a partir de sua distribuição espacial e cronológica, e a elaboração de um amplo quadro da ocupação pré-colonial para o território brasileiro. Desta forma, pouca atenção foi dada às particularidades associadas ao cotidiano destes grupos.
Sob esta perspectiva, inúmeros arqueólogos ("pronapianos" ou não) fizeram tentativas de estabelecer agrupamentos cronológicos e regionais amplos a partir da sistematização das semelhanças e diferenças observadas principalmente nos grandes e médios sambaquis da área nuclear de Santa Catarina (Beck, 1973BECK, A. A variação do conteúdo cultural dos sambaquis do litoral de Santa Catarina. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1973.; Chymz, 1976; Mendonça de Souza, 1981MENDONÇA DE SOUZA, A. A Pré-História Fluminense. Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Patrimônio Cultural e Secretaria Estadual de Educação e Cultura Brasileira, 1981.; Dias Jr, 1972). Se no século XIX os estudos sobre morfologia óssea eram orientados para o estabelecimento dos tipos humanos, sob a perspectiva histórico-culturalista foram estabelecidas tipologias de sambaquis a partir de sua inserção em categorias classificatórias como fases e tradições.
Desta forma, a categoria genérica identificada como "grupos sambaquieiros" foi entendida e classificada com base nas características morfo-constitucionais dos montes, nas características das indústrias líticas e ósseas, na estratégia econômica predominante (quantidade relativa das distintas espécies de moluscos, e quantidade relativa de moluscos, peixes e caça terrestre), e na presença ou ausência de cerâmica.
Por um lado, a observação dos aspectos supracitados permite a identificação de características comuns entre sambaquis, tais como a construção de montes cuja matriz é composta principalmente por valvas de moluscos e ossos de peixes, os quais eram utilizados como espaço habitacional e funerário; a presença de uma indústria lítica pouco variada; a presença de objetos zoomorfos virtuosamente confeccionados; o predomínio da prática de enterramentos primários; e o uso de dentes de animais perfurados como adorno.
Esta tendência à homogeneidade, identificada segundo uma ótica mais generalista, foi possivelmente regulada pela interação entre os grupos ao longo da faixa costeira e por sua adaptação aos ecótonos litorâneos. De fato, mesmo sob uma perspectiva mais atual e refinada na qual a classificação a partir de fases e tradições é substituída pela noção de sistemas de assentamento/unidades sociológicas, um olhar mais amplo sobre as evidências arqueológicas é capaz de identificar uma identidade sociocultural compartilhada. Esta unidade é representada pela íntima associação entre os construtores de sambaquis, os mortos e os restos alimentares e industriais (Gaspar, 2000GASPAR, M.D. Sambaqui: Arqueologia do Litoral Brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.; 2003). Prous (1992PROUS, A. Arqueologia Brasileira. Brasília: Universidade de Brasília, 1992.), sob a mesma perspectiva, destaca a existência de uma unidade ideológica, representada pela presença de virtuosos zoólitos desde o Uruguai até São Paulo.
Por outro lado, a identificação de uma unidade social em termos mais gerais não impediu a distinção de algumas variações morfo-constitucionais sub-regionais, podendo ser citados os seguintes aspectos: dimensões dos montes de conchas; quantidade e variedade dos itens tecnológicos; estilo dos objetos zoomorfos; grau de desenvolvimento da indústria óssea; forma de deposição e posição dos mortos, além da quantidade e variedade das oferendas funerárias.
Embora a perspectiva generalista mencionada tenha contribuído para um primeiro olhar sobre os grupos sambaquieiros, buscando-se um conhecimento mais amplo até então inexistente, ela certamente demonstra inoperância para elevar o conhecimento sobre esses grupos a um nível mais detalhado, a partir da identificação de particularidades que naturalmente permeiam qualquer sistema sociocultural e são o resultado de escolhas, e não apenas respostas adaptativas.
Especificamente, uma tendência em uniformizar em excesso as interpretações sobre os estilos de vida desses grupos pescadores-coletores tem sido apontada tanto por arqueólogos (Lima, 1999/2000) quanto bioarqueólogos (por exemplo Rodrigues-Carvalho, 2004), muito embora pesquisas mais recentes tenham enfatizado a evidência de variações espaço-temporais em alguns aspectos da sua cultura material, práticas funerárias e alimentares e padrões de saúde e de assentamento (por exemplo Gaspar; De Blasis, 1992GASPAR, M.D.; DEBLASIS, P. Construção de sambaqui. In: Anais da VI Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira , v. I, Rio de Janeiro, p. 172-179, 1992. ; Kneip; Machado, 1993KNEIP, L.M.; MACHADO, L.C. Os Ritos Funerários das Populações Pré-Históricas de Saquarema, RJ: Sambaquis da Beirada, Moa e Pontinha. Documento de Trabalho, Série Arqueologia, n. 1., Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ 1993.; Kneip, 1994; Kneip; Araújo; Fonseca, 1995; Mendonça de Souza, 1995; Barbosa, 2007BARBOSA, M.G.A. Ocupação pré-colonial da Região dos Lagos, RJ: Sistema de assentamento e relações intersocietais entre grupos sambaquianos e grupos ceramistas Tupinambá e da Tradição Una. Tese de Doutorado. Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.; Wesolowski, 2000WESOLOWSKI, V. A Prática da Horticultura entre os Construtores de Sambaquis e Acampamentos Litorâneos da Região da Baía de São Francisco, Santa Catarina: Uma Abordagem Bio-Antropológica. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. , 2007).
Embora estes estudos apontem para a necessidade de se entender estes grupos sob uma perspectiva que contemple sua diversidade e complexidade sociocultural, ainda são escassos os esforços sistemáticos para o desenvolvimento de abordagens mais integrativas dos dados arqueológicos e bioarqueológicos, buscando-se investigar tais variações enquanto parte das escolhas próprias de cada grupo (Rodrigues-Carvalho, 2004).
Sob esta perspectiva, os estudos bioarqueológicos sobre padrões biológicos associados a atividades diárias e estilo de vida tem se revelado uma promissora ferramenta para a identificação de singularidades e escolhas culturais diferenciadas entre grupos adaptados ao ambiente litorâneo. Uma das primeiras evidências neste sentido foi apontada por Machado e Kneip (1994MACHADO, L.C.; KNEIP, L. Padrões dentários, dieta, e subsistência das populações dos sambaquis de Saquarema. Anais da VII Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira, v. 8, n. 1, p. 45-57, 1994.) ao analisarem os padrões de desgaste dentário em grupos sambaquieiros de Saquarema/RJ. Enquanto na série do sambaqui da Beirada 100% dos 23 indivíduos examinados apresentaram desgastes caracterizados como severos em mais de um dente, na série do sambaqui do Moa o percentual cai para quase a metade, com frequência de 53,5% dos 15 indivíduos examinados. As autoras interpretaram estes valores como o resultado de escolhas diferenciadas em relação à dieta, ainda que os dois grupos estivessem adaptados ao mesmo ambiente caracterizado pela Lagoa de Saquarema e seu entorno. Embora a quantidade de elementos abrasivos seja normalmente alta entre os alimentos ingeridos por grupos litorâneos em função do modo de coleta e processamento, a frequência extremamente alta observada na série de Beirada foi associada a um maior consumo de moluscos quando comparado com a série do Moa, o que foi demonstrado também através dos dados faunísticos.
Tal como referido anteriormente, ainda são escassas as tentativas de integração entre os dados arqueológicos e bioarqueológicos, tanto em nível sub-regional, confrontando-se séries adaptadas a um mesmo ambiente, quanto em uma escala mais ampla, confrontando-se séries adaptadas a ambientes distintos. Neste ponto é importante lembrar que, mesmo considerando-se a ocupação de territórios litorâneos, a variedade de ambientes (marinho, lagunar, estuarino, de baía, de mangue, Mata Atlântica, restinga, entre outros) e de espécies associadas permite a exploração diferenciada dos distintos ecótonos. Por outro lado, as estratégias adaptativas de cada grupo não estão apenas associadas à disponibilidade de recursos em seu território de captação, mas também a escolhas particulares balizadas por aspectos de cunho mítico e ideológico. Tal como enfatizado por Rodrigues-Carvalho (2004), populações com estratégias de subsistência (em sentido amplo) e características culturais gerais semelhantes poderiam desenvolver estilos de vida distintos em muitos aspectos cotidianos.
Buscando-se avançar sobre esta perspectiva, o presente artigo tem como objetivo fazer uma revisão reflexiva e conjugar os dados sobre marcadores de estresse ocupacional (MEO) anteriormente produzidos e já publicados para três sambaquis localizados no estado do Rio de Janeiro, a fim de se verificar a possibilidade de identificar particularidades no estilo de vida destes grupos. Desta forma, o presente texto não se propõe a discutir os resultados quantitativos das análises paleoepidemiológicas em si, mas sim abordar os resultados sob uma perspectiva efetivamente biocultural. O detalhamento das metodologias empregadas no exame de cada marcador, assim com os resultados completos podem ser verificados nos respectivos trabalhos já publicados. A apresentação sintetizada dos resultados, integrados às discussões, buscou tornar o texto mais palatável para os demais pesquisadores de grupos pré-colonias litorâneos, diminuindo assim a distância entre a bioarqueologia e a arqueologia de sambaquis.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram incluídas no presente estudo as séries provenientes dos sambaquis Ilhote do Leste (N=28), Zé Espinho (N=15) e Beirada (N=24), perfazendo um total de 64 indivíduos adultos de ambos os sexos. Foram incluídos apenas os indivíduos nos quais pôde ser estimado o sexo (Buikstra; Ubelaker, 1994BUIKSTRA, Jane; UBELAKER, Douglas. Standards for Data Collection from Human Skeletal Remains. Fayetteville: A.K Arkansas Archaeological Survey, 1994.). Devido ao estado de preservação variável das séries, o número real de indivíduos analisados varia de acordo com cada um dos marcadores.
Os sítios possuem inserções ambientais distintas e representam diferentes momentos de ocupação da costa fluminense. O sítio Ilhote do Leste, localizado na porção meridional de Ilha Grande (mapa 1), apresenta datações entre 3060 ± 40 AP e 2650 ± 350 AP (Tenório, 1995TENÓRIO, M. C. Estabilidade dos grupos litorâneos pré-históricos. Uma questão para ser discutida. In: BELTRÂO, M. (org.). Arqueologia do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1995, p. 43-50. ). O Sambaqui de Zé Espinho, localizado na Bacia do Rio Piracão, em Guaratiba (mapa 2), está assentado em uma área de transição entre os ambientes marinho e continental (Ferreira; Oliveira, 1987). Apresenta datações entre 2.260 ± 160 AP e 1.180 ± 170 (Kneip; Pallestrini, 1987KNEIP, L.M.; PALLESTRINI, L. Arqueologia: estratigrafia, cronologia e estruturas do Sambaqui Zé Espinho. In: KNEIP L.M. (org). Coletores e Pescadores Pré-históricos de Guaratiba - Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/ Eduff, 1987, p. 89-141.). O Sambaqui da Beirada localiza-se na margem sul da Lagoa de Saquarema, no município de mesmo nome (mapa 3), e possui datações entre 4.520 ± 190 e 3.800 ± 190 AP (Kneip; Machado, 1993).
As diferenças e similaridades no estilo de vida destes grupos foram aqui investigadas a partir de marcadores de estresse ocupacional, associados a atividades cotidianas, os quais representam as demandas físicas regulares de um grupo. Os marcadores eleitos foram a osteoartrose ou comprometimento articular (CA) (figuras 1 e 2) (Rodrigues-Carvalho, 2004), as espondilólises (figura 3) e nódulos de Schmorl (figura 4) (Lessa; Coelho 2010LESSA, A; COELHO, I. Lesões vertebrais e estilos de vida diferenciados em dois grupos sambaquieiros do litoral Fluminense. Revista do Museu de Arqueologia e Etnografia, n. 20, p. 77-89, 2010.), os traumas acidentais (figura 5 e 6) (Lessa, 2011) e as exostoses auriculares (todas as séries analisadas pelas autoras para o presente trabalho, e Okumura; Boyadjian; Eggers., 2007OKUMURA, M.M.; BOYADJIAN, C.H.C.; EGGERS, S. Auditory exostoses as an aquatic activity marker: A comparison of coastal and inland skeletal remains from tropical and subtropical regions of Brazil., American Journal of Physical Anthropology v. 132 n. 4, p. 558-567, 2007. para as séries Beirada e Zé Espinho).
Epífises distais de ulnas apresentando comprometimento articular intenso com eburnação extensa - sambaqui Ilhote do Leste (RJ).
Epífise proximal de rádio apresentando comprometimento articular moderado com porosidade - sambaqui Zé Espinho (RJ).
Fratura em fêmur direito apresentando mal alinhamento dos segmentos ósseos - sambaqui Zé Espinho (RJ).
Para a investigação do comprometimento articular foram consideradas bilateralmente as seis principais articulações dos membros superiores e inferiores, ou seja, ombro, cotovelo, punho, quadril, joelho e tornozelo. As alterações ósseas indicativas de comprometimento articular foram presença de porosidade na superfície articular, definição das margens articulares com afilamento de suas bordas, presença de projeção óssea acentuada e eburnação. Tais alterações foram consideradas para estabelecimento de uma classificação do comprometimento articular em quatro níveis, a saber: sem CA, CA leve, CA moderado e CA intenso.
Para exame das espondilólises foram considerados os segmentos torácicos e lombares da coluna vertebral. Todas as vértebras foram analisadas para os seguintes aspectos: localização da fratura; amplitude da lesão, se parcial ou completa; ocorrência unilateral ou bilateral; registro do elemento vertebral acometido; sinais de neoformação óssea. Fragmentos isolados da região vertebral posterior (processo espinhoso e processo articular inferior), com perda tafonômica dos corpos vertebrais, também foram investigados para sinais de cicatrização na área de separação.
Na investigação dos nódulos de Schmorl todos os segmentos vertebrais foram analisados para os seguintes aspectos: localização da lesão em relação à superfície do corpo vertebral (terço anterior, médio ou posterior), e em relação ao eixo vertebral (superfície inferior ou superior do corpo); dimensão e profundidade da lesão.
Foram considerados marcadores de traumas agudos acidentais as fraturas e luxações (embora não tenham sido observadas nas séries examinadas). Com exceção das típicas fraturas associadas à violência interpessoal (fraturas em depressão no crânio, fraturas na face e fraturas transversas na epífise distal da ulna), todas as demais fraturas foram consideradas acidentais. O diagnóstico das fraturas foi baseado na observação de elementos diagnósticos estabelecidos segundo critérios anatomopatológicos, sistematizados da seguinte forma: solução de continuidade nas estruturas anatômicas; ausência e/ou reabsorção óssea; neoformação óssea com textura cortical superficial densa (processo cicatricial) ou textura cortical porosa (reabsorção ativa). Fraturas peri-mortem apresentando diagnóstico impreciso não foram consideradas.
Foi considerada evidência de exostose auricular qualquer hipertrofia óssea observada na área externa do meato auditivo, a qual pode ser uni ou bilateral, e pode apresentar tamanho e localização variados.
Foram empregados testes de significância (qui-quadrado - 5%) para a comparação de resultados intra e interséries nas análises de CA e trauma. No entanto, devido ao número reduzido das séries analisadas em cada sítio, principalmente após a estratificação, a aplicação de testes estatísticos mostrou-se um procedimento de valor relativo. Desta forma, tal como proposto em Mendonça de Souza et al., (2003), foi privilegiada a análise exploratória dos dados, enfatizando-se a significância biocultural dos mesmos, os quais devem ser considerados como tendências. Semelhante abordagem foi utilizada para interpretação dos resultados das análises de espondilólise e nódulos de Schmorl.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
COMPROMETIMENTO ARTICULAR (CA)
Comparando-se os percentuais de CA entre as três séries estudadas, segundo o grau de comprometimento articular e suas ocorrências absolutas, observa-se que Ilhote do Leste apresentou valores mais altos para os marcadores associados aos graus moderado e intenso (tabela 1). Além dos indivíduos desta série apresentarem evidências de CA mais intensas, graus moderados podem ser observados em indivíduos a partir dos 20-24 anos, o que não ocorre nas duas outras séries. Verificou-se também a presença de indivíduos com graus de comprometimento discrepantes para sua idade, como um indivíduo masculino entre 30-39 anos com CA predominantemente inicial, sugerindo a possibilidade de diferenças nas demandas biomecânicas entre os indivíduos de uma mesma sub-série. Este fato pode ser explicado pelo desempenho de tarefas diferenciadas entre indivíduos de mesmo sexo e faixa etária, o que por sua vez pode estar associado a condições sociais ou biológicas particulares. A série do Sambaqui da Beirada apresentou padrão de CA menos acentuado, enquanto a série do Sambaqui Zé Espinho apresentou um padrão de comprometimento articular intermediário entre Beirada e Ilhote do Leste.
Frequências percentuais e absolutas ( ) de indivíduos com comprometimento articular nas séries Beirada, Zé Espinho e Ilhote do Leste segundo sexo e grau dos marcadores observados (considerando-se o total de áreas articulares).
Comparados os percentuais segundo sexo, os impactos articulares, em geral, foram mais expressivos em homens do que em mulheres, sugerindo maior demanda naqueles (tabela 1).
A única exceção foi verificada no Sambaqui da Beirada, especialmente nos membros inferiores, provavelmente em decorrência de problemas de representatividade nessa série. Apesar do CA mais expressivo ter ocorrido entre masculinos, verifica-se que as frequências obtidas para membros superiores e inferiores entre os indivíduos femininos do Ilhote do Leste, considerando-se ocorrências de CA moderado e intenso, são maiores do que as frequências obtidas para os indivíduos masculinos das demais séries aqui representadas. Esses dados sugerem que as demandas articulares nas mulheres deste sítio foram mais acentuadas até mesmo do que aquelas experimentadas por homens dos outros grupos. O mesmo pode ser observado comparando os percentuais de CA intenso nos membros, categoria em que os indivíduos femininos do Ilhote do Leste apresentam percentuais inferiores apenas aos masculinos dessa mesma série.
Este resultado mais uma vez destaca uma particularidade da série Ilhote do Leste, uma vez que, tradicionalmente, espera-se que os homens estejam envolvidos com a maior parte das atividades que demandem esforço físico mais intenso, e consequentemente estejam também expostos a um maior risco de dano articular. Considerando-se que variações relacionadas à idade não foram determinantes nestas séries para o desenvolvimento do CA, outras explicações devem ser buscadas.
Com relação à localização das articulações afetadas, espera-se, para séries entendidas como sedentárias e com ampla possibilidade de deslocamentos através de grandes corpos d`água, um maior comprometimento dos membros superiores. Considerando-se os dados para CA em conjunto, existem variações perceptíveis entre as séries, embora o punho e o cotovelo sejam as articulações mais afetadas no geral. No punho, predominam casos moderados na série Ilhote do Leste, em ambos os sexos (57,1% nos femininos e 66,7% masculinos) e entre masculinos da série Zé Espinho (57,1%). Graus intensos de CA são observáveis apenas entre femininos da série Beirada (33,3%) e em ambos os sexos da série Ilhote do Leste (14,3% em femininos e 33,3% em masculinos). O ombro, articulação também exigida no uso de remos, só apresenta casos de CA intensos na série do Ilhote do Leste em ambos os sexos (16,7% femininos e 11,1% em masculinos), o que corrobora a hipótese de Tenório (2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.) de uso regular e intensivo de embarcações por este grupo, dada sua inserção em ambiente insular e condições de navegabilidade difícil na maior parte do ano.
Nos membros inferiores, a articulação do joelho parece ter sido a mais solicitada, embora o comprometimento tenha sido variável entre as séries. Entre as mulheres do Sambaqui da Beirada esta articulação apresentou 50% dos casos em grau moderado, contra nenhuma ocorrência moderada ou intensa em masculinos. Ocorrências moderadas nessa articulação foram também observadas em indivíduos masculinos da série Zé Espinho (37,5%) e em ambos os sexos na série Ilhote do Leste (50% em femininos e 66,7% em masculinos). Marcadores intensos foram observados apenas na série Ilhote do Leste. Esta articulação executa principalmente os movimentos de extensão e flexão da perna, possuindo uma grande estabilidade em extensão máxima e apresentando-se instável quando flexionada (Kapandji, 2000). Sua posição intermediária entre as articulações do membro inferior faz com que participe, ou seja afetada, pela maior parte dos movimentos e posturas deste membro. A presença dos marcadores, portanto, pode estar associada tanto aos movimentos realizados durante a marcha quanto a demandas posturais regulares e prolongadas.
As articulações do quadril e do tornozelo foram as menos afetadas, não sendo verificadas em nenhuma série graus intensos de CA.
ESPONDILÓLISES E NÓDULOS DE SCHMORL
Apenas as séries Ilhote do Leste e Zé Espinho apresentaram conservação adequada dos segmentos vertebrais para o exame das espondilólises (tabela 2) e dos os nódulos de Schmorl (tabela 3), os quais podem ser considerados bons marcadores do grau de esforço demandado durante a realização de atividades físicas cotidianas. Sua ocorrência está estreitamente vinculada tanto ao elemento sobrecarga, incidindo sobre o eixo axial, quanto à repetição de movimentos nos segmentos médios e inferiores da coluna vertebral.
Frequências percentuais de indivíduos com espondilólise nas séries Ilhote do Leste e Zé Espinho segundo sexo. N = número de indivíduos analisados. L = número de lesionados. * Percentuais calculados sobre o número de indivíduos analisados de cada subgrupo masculino e feminino).
Frequências percentuais de indivíduos com nódulo de Schmorl nas séries Ilhote do Leste e Zé Espinho segundo sexo. N = número de indivíduos analisados. L = número de lesionados. * Percentuais calculados sobre o número de indivíduos analisados de cada subgrupo (masculino e feminino).
Foram observadas frequências excepcionalmente altas de espondilólises (71,4%) e de nódulos de Schmorl (50%) para a série Ilhote do Leste. Estes valores estão muito acima daqueles observados em outras séries pré-coloniais em várias partes do mundo, cuja frequência varia entre 4,5% e 29,6% para o primeiro marcador e entre 15,6% e 27,4% para o segundo.
A quantificação das espondilólises por sexo para esta série demonstra freqüências de 80% para os homens e 50% para as mulheres; para os nódulos de Schmorl as frequências foram de 60% para os homens e 33,3% para as mulheres. Estes dados, mais uma vez, reforçam a tendência anteriormente observada para os demais marcadores, de expressiva demanda física para a série de Ilhote do Leste, especialmente entre as mulheres.
Conjugando-se esses dados com aqueles anteriormente discutidos para CA, uma possível explicação para este padrão de sobrecarga na região vertebral inferior é a realização constante da atividade de remar, a qual está entre as três mais diretamente associadas à incidência de espondilólises em atletas modernos (Soler; Calderón, 2000SOLER, T.; CALDERÓN, C. The prevalence of spondylolysis in the Spanish elite athlete. The American Journal of Sports Medicine, v. 28, n. 1, p. 57-62, 2000.). Os fatores que concorrem para o aparecimento dessas lesões são os típicos movimentos de rotação e hiperextensão da coluna durante as remadas, acrescidos da carga proveniente da resistência da água contra o remo.
A alta frequência de nódulos de Schmorl, por sua vez, pode estar relacionada à utilização de embarcações em mar aberto e revolto. As ondas de grande porte e as fortes correntes que caracterizam o oceano na porção meridional da Ilha Grande dificultariam a permanência dos indivíduos em pé dentro da embarcação, obrigando-os a permanecerem sentados, o que causaria constantes e fortes impactos no eixo vertebral. Estes impactos, aliados aos movimentos de remada, podem ser os fatores responsáveis pela compressão excessiva dos discos intervertebrais.
Outros aspectos do contexto ambiental da ilha, assim como alguns dados do registro arqueológico e dados paleoepidemiológicos, dão suporte às interpretações aqui propostas, a saber, a associação entre as lesões no segmento vertebral e a atividade de remar em mar aberto e revolto. Em relação à perspectiva ambiental, deve ser considerada a localização insular do sítio, a qual certamente mediou uma estreita relação deste grupo com o oceano, em particular em uma área desprotegida, a Praia do sul, propensa a grandes ondas e fortes correntezas, exceto apenas no verão. Segundo Tenório (2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.), ainda hoje é restrito o acesso a esta parte da ilha, onde está localizado o sítio, uma vez que as pequenas embarcações encontram dificuldades para atravessar a Ponta do Drago, no lado leste da Ilha, e a Ponta do Castelhano, no lado oeste. As trilhas ainda existentes, embora estejam localizadas em antigos caminhos d'água, cortam um relevo muito íngreme, contribuindo para o relativo isolamento das populações caiçaras atuais.
Do ponto de vista arqueológico, a presença na ilha de 35 oficinas líticas com concentrações de amoladores-polidores fixos (total de 1379 sulcos), estando a grande maioria deles localizados na sua porção meridional, em oposição a apenas dois sítios com sepultamentos, sugere a existência de centros de produção e distribuição de lâminas de machado. Esta hipótese também se apoia no fato de que, embora muitos sítios pré-cerâmicos registrados no litoral do Rio de Janeiro apresentem lâminas de machado polidas, os amoladores-polidores fixos estão concentrados em apenas duas áreas (Tenório, 2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.). Diante da localização do sítio, como discutido acima, é natural supor que o escoamento desta produção fosse feita através de deslocamentos marítimos, inclusive em mar aberto.
Os dados faunísticos (Tenório 2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.), por sua vez, mostram a expressiva presença de dentes de tubarões agressivos e de alto mar, como o Carcharodon carcharias (tubarão-branco), o Isurus oxyrinchus (tubarão-anequim) e o Galeocerdo cuvieri (tubarão-tigre), cuja captura só seria possível através do uso de embarcações.
Apesar de uma relação intensa com o mar aberto estar sendo considerada a principal explanação para o padrão de lesões observado na série do Ilhote do Leste, certamente outras atividades com sobrecarga na região vertebral inferior contribuíram para a formação de espondilólises e nódulos de Schmorl, tal como o carregamento de matéria prima para a confecção das lâminas polidas. Segundo Soler e Calderón (2000SOLER, T.; CALDERÓN, C. The prevalence of spondylolysis in the Spanish elite athlete. The American Journal of Sports Medicine, v. 28, n. 1, p. 57-62, 2000.), o levantamento de pesos contribui para 12,9% das espondilólises em atleta modernos.
Em relação a série Zé Espinho, os resultados apontam em direção contrária àquela observada na série Ilhote do Leste, sugerindo realização de atividades bem menos extenuantes. A total ausência de espondilólises, e a ocorrência de nódulos de Schmorl em apenas 25% dos homens e ausência entre as mulheres, apontam para um baixo nível de impacto mecânico, principalmente no eixo axial.
Mais uma vez, a localização do sítio em consonância com as escolhas culturais de seus habitantes possivelmente estão associados a um estilo de vida menos voltado para uma relação intensa com o mar aberto. Sua localização, na Planície de Maré de Guaratiba, a qual representa a transição entre os ambientes marinho e continental, e a aproximadamente 2 km da baía de Sepetiba, insere os habitantes do Zé Espinho em um rico ambiente de mangue e de águas estuarinas. A ausência de espécies marinhas capturadas mais distantes da costa, salvo os raros casos de encalhe, e a expressiva presença de bivalves e gastrópodes que vivem em ambientes de água salobra e/ou em águas rasas de fundos de areia e lama (ex. Crassostrea rhizophorae, Ostrea sp, Lucina pectinata e Strombus pugilis ) (Kneip, 1987KNEIP, L.M.; PALLESTRINI, L. Arqueologia: estratigrafia, cronologia e estruturas do Sambaqui Zé Espinho. In: KNEIP L.M. (org). Coletores e Pescadores Pré-históricos de Guaratiba - Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/ Eduff, 1987, p. 89-141.), confirmam a exploração intensa do mangue e da baía. Tal como demonstrado anteriormente, a exploração de ambientes de baia e lagunares parece estar associado a um cotidiano com demandas físicas menos intensas do que o observado para ambientes de mar aberto.
FRATURAS ACIDENTAIS
Com relação às fraturas acidentais (tabela 4), as diferenças observadas entre as séries devem ser consideradas não apenas em relação aos valores, mas principalmente ao tipo de fratura predominante para cada grupo e interpretação biomecânica dos eventos causativos.
Frequências percentuais de traumas agudos acidentais nas séries Beirada, Zé Espinho e Ilhote do Leste segundo sexo. N = número de indivíduos analisados. L = número de lesionados. * Percentuais calculados sobre o número de indivíduos analisados de cada subgrupo (masculino e feminino).
Embora o percentual de fraturas tenha sido expressivamente mais alto na série da Beirada do que na série do Ilhote do Leste (tabela 2), o que chama a atenção é o fato de apresentarem interpretações biomecânicas distintas. Enquanto na série Ilhote do Leste não pôde ser observado um padrão bem definido (3,3% de fraturas em vértebras cervicais e 3,3% de esmagamento em ossos de pé), na série da beirada as fraturas mais comuns ocorreram nos membros superiores (12,5%), estando associadas a quedas com apoio ou impacto direto sobre os braços.
De uma forma geral, este tipo de acidente entre grupos litorâneos tem sido interpretado principalmente como o resultado de constantes deslocamentos sobre os costões rochosos, os quais se constituem ambientes naturalmente propícios a escorregões e quedas devido à sua superfície irregular e escorregadia, e ainda por estarem sujeitos ao impacto constante de ondas. Os deslocamentos sobre os costões provavelmente ocorreriam entre indivíduos de ambos os sexos, adultos e subadultos, a fim de realizarem atividades tais como a coleta de moluscos marinhos aderidos às zonas intertidais, a observação de cardumes e das condições do mar e do tempo, e a pesca com anzol, atividades ainda hoje comuns entre pescadores artesanais e populações caiçaras.
Considerando-se a interpretação acima mencionada, os percentuais expressivamente mais baixos observados na série Ilhote do Leste, sem associação com o padrão supracitado, sugerem que os deslocamentos através dos costões seriam menos constantes, uma vez que as atividades relacionadas seriam praticadas em outro contexto. Em relação à coleta de moluscos, embora ainda hoje existam bancos de mexilhões (Perna sp.) nos costões da ilha, aparentemente este recurso não era privilegiado por seus antigos habitantes, na medida em que, segundo Tenório (2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.), os restos faunísticos malacológicos indicam apenas a presença de moluscos do mangue, tais como Ostrea sp. e Lucina pectinata. A observação de cardumes e das condições do mar, por sua vez, poderia ser feita do alto do próprio morrote, localizado junto à faixa intermarés, e cuja altura atualmente chega a 20 metros. Finalmente, a pesca com anzol parece ter sido pouco frequente entre os habitantes do Ilhote do Leste, tendo sido encontrados apenas três exemplares deste artefato confeccionados sobre esporão de bagre. De qualquer forma, este tipo de pesca poderia ser realizado de dentro de embarcações, a qualquer distância da costa. Por outro lado, embora a grande presença de amoladores-polidores fixos indique uma intensa exploração dos afloramentos rochosos na ilha, sua utilização não implicaria no deslocamento constante entre rochedos, como é frequente na coleta de moluscos. Formas diferentes de apropriação do ambiente parecem ter impacto diferenciado sobre o risco de traumas acidentais.
A utilização de embarcações pode ser considerada uma atividade importante entre este grupo, tal como sugerido pelos marcadores osteológicos e evidências arqueológicas acima discutidos, tendo consequências diretas sobre os baixos percentuais de fraturas acidentais. Os deslocamentos, para diversos fins, ocorreriam predominantemente por via marítima, cujos acidentes dificilmente causam fraturas, ao contrário da utilização de vias terrestres, as quais, no caso da Ilha grande, obriga necessariamente a transposição de trilhas irregulares e perigosas através de altos morros, cobertos por mata Atlântica.
A baixa mobilidade através dos morros cobertos pela Mata Atlântica, apesar da sua proximidade com o sítio Ilhote do Leste, é sugerida também a partir da quase ausência de fauna terrestre típica deste habitat, a qual, segundo Tenório (2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.) representa menos de 1% do total de restos ósseos faunísticos encontrados no sítio.
No sambaqui da Beirada, ao contrário do que foi observado no Ilhote do Leste, foi encontrada grande quantidade de valvas de molusco marinho da família Mytilidae (Brachidontes exustus), encontrados nas praias de mar aberto, aderidos aos costões rochosos nas zonas intermarés (Kneip, 1994KNEIP, L.M. Cultura Material e Subsistência das Populações Pré-históricas de Saquarema, RJ. Documento de Trabalho, Série Arqueologia, n. 2. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 1994.; Kneip; Araújo; Fonseca , 1995). Devido à quantidade expressiva destes moluscos, Kneip sugere que eles seriam coletados nos costões localizados próximos à entrada dos canais de marés, distantes aproximadamente 10 km, e transportados através de embarcação até o assentamento. Embora os dados arqueológicos indiquem que a exploração do mar aberto foi, de uma forma geral, pouco expressiva entre este grupo, os deslocamentos sobre os costões rochosos para a coleta deste molusco podem estar associados ao percentual de fraturas acidentais nos membros superiores observados na série.
Na série Zé Espinho, as fraturas com percentual mais expressivo estão localizadas no eixo vertebral e nos membros inferiores (13,3%), associadas a forças compressivas verticais. Dentro do contexto arqueológico pré-colonial, as causas mais prováveis para estes tipos de fraturas são as quedas de grandes alturas nas posições sentada ou de pé. Uma possível atividade associada a este padrão de fraturas seria a escalada de grandes árvores. Segundo Araújo (1987), a vegetação original predominante na região da Baixada Guaratiba-Sepetiba era composta por quatro tipos de floresta, duas delas com vegetação de grande porte. São as florestas paludosa, cujo estrato arbóreo atinge a altura média de 10m, e a floresta pluvial atlântica, com média de 30m. É possível, portanto, que a escalada de determinadas espécies para a extração de frutos e fibras esteja associada às fraturas observadas na série Zé Espinho.
EXOSTOSES AURICULARES
Estudos clínicos e paleopatológicos têm associado o desenvolvimento de exostoses auriculares à influência de determinados fatores ambientais, tais como estímulos químicos e mecânicos, os quais provocariam irritação do canal auditivo e subsequente estímulo de processos osteogênicos. Os principais fatores associados são a exposição do canal auditivo aos ambientes aquáticos com temperatura abaixo dos 19º, a baixas temperaturas atmosféricas (Fowler; Osmun, 1942FOWLER, E.J.; OSMUN, P. New bone growth due to cold water in the ears. Acta Otolaryngol, v. 36, p. 455-466, 1942.; Filipo; Fabiani; Barbara , 1982FILIPO, R.; FABIANI, M.; BARBARA, M. External ear canal exostosis: A physiopathological lesion in aquatic sports. J Sports Med Phys Fitness, v. 22 p. 329-339, 1982.; Kennedy 1986KENNEDY, G.E. The relationship between auditory exostoses and cold water: A latitudinal analysis. American Journal of Physical Anthropology, v. 71 p. 401-415, 1986.; Hutchinson et al., 1997HUTCHINSON, D. L; DENISE, C. B; DANIEL, H. J.; KALMUS, G. W. A reevaluation of the cold water etiology of external auditory exostoses. American Journal of Physical Anthropology, v. 103, p. 417-422, 1997.; Standen; Arriaza; Santoro, 1997STANDEN, V. G.; ARRIAZA, B.; SANTORO, C. External Auditory Exostosis in Prehistoric Chilean Populations: A Test of the Cold Water Hypothesis., American Journal of Physical Anthropology v. 103, p. 119-129, 1997.), e a ventos frios (Fabiani; Barbara; Filipo, 1984).
Estudos realizados com atletas que praticam diferentes esportes aquáticos indicam que não é necessário o contato direto do canal auditivo com a água, uma vez que os respingos e a forte umidade presente nos ambientes marinhos aliados a ventos frios são suficientes para resfria-lo e provocar irritação local. Por outro lado, a proteção do canal auditivo com tampões e capuzes é capaz de evitar o desenvolvimento de exostoses, mesmo quando há constante exposição aos fatores supracitados ( Fabiani; Barbara; Filipo, 1984FABIANI, M.; BARBARA, M.; FILIPO, R.1984. External ear canal exostosis and aquatic sports. Orl J Otorhinolaryngol Relat Spec, v. 46, p. 159-164, 1984.; Deleyiannes; Cockcroft; Pinczower, 1996; Timofeev; Notkina; Smith, 2004TIMOFEEV, I.; NOTKINA, N.; SMITH, I.M. Exostoses of the external auditory canal: a long-term follow-up study of surgical treatment. Clinical Otolaryngology, v. 29, p. 588-594, 2004.)
Embora a exploração de ambientes marinhos, em maior ou menor grau, seja esperada entre grupos sambaquieiros, não foram observadas exostoses nas três séries examinadas, resultado semelhante ao observado por Okumura e colaboradores (2007OKUMURA, M.M.; BOYADJIAN, C.H.C.; EGGERS, S. Auditory exostoses as an aquatic activity marker: A comparison of coastal and inland skeletal remains from tropical and subtropical regions of Brazil., American Journal of Physical Anthropology v. 132 n. 4, p. 558-567, 2007.) para as séries Beirada e Zé Espinho. Apesar das autoras terem chamado a atenção para o fato de que as irritações do canal podem ser mitigadas através de práticas culturais, a ausência de exostoses entre estes grupos foi associada à exposição a condições ambientais observadas para o litoral do estado do Rio de Janeiro como um todo, condições estas normalmente observadas em regiões de baixa latitude. De uma forma geral, portanto, os grupos estariam expostos a ambientes marinhos com temperaturas sempre superiores a 19° C; pouca variação da temperatura atmosférica, com médias não inferiores a 20° C no inverno; e incidência moderada de ventos frios (variação de 150 - 300 kg cal/m2/h entre o verão e o inverno).
No entanto, no estudo supracitado não foi considerada a existência do fenômeno da ressurgência nos oceanos, cuja investigação sistemática teve início a partir da década de 1950. A tradição oral, por sua vez, indica um conhecimento muito antigo deste fenômeno por parte de pescadores artesanais, os quais são capazes de prever com dias de antecedência as alterações do mar e do tempo.
Atualmente, o fenômeno é caracterizado pelo afloramento de águas profundas, frias e ricas em nutrientes em determinadas regiões dos oceanos. Os nutrientes carregados pelas águas profundas promovem o desenvolvimento do plâncton (algas, bactérias, protozoários e outros organismos como minúsculos crustáceos), os quais constituem a base da cadeia alimentar no oceano, fornecendo alimento aos organismos marinhos e contribuindo para o aumento das populações. Ocorre durante todo o verão, com um pico secundário no final da primavera, devido à ação dos ventos predominantes do quadrante leste/nordeste, os quais afastam as correntes da camada superficial e promovem um movimento ascendente junto à costa da denominada Água Central do Atlântico Sul (ACAS), vinda do hemisfério sul. A temperatura indicativa da ressurgência é de 18º C, índice térmico superior da ACAS, podendo alcançar uma temperatura até 10° C mais baixa do que nas áreas onde não ocorre o fenômeno. No Estado do Rio de Janeiro, o núcleo central da ressurgência é observado na região de Arraial do Cabo/Cabo Frio e áreas adjacentes a oeste até a Baía da Guanabara (Torres, 1995; Carvalho; Cabral; Fernandez, 2003CARVALHO, G. A.; CABRAL, A. P.; FERNANDEZ, M.A. Correlação entre o campo de vento médio e um índice que define a intensidade da ressurgência na região do Cabo Frio (23ºs / 42ºw) através da análise de dados orbitais (QUIKSCAT / AVHRR). In: Anais XI Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Belo Horizonte: INPE, p. 1509-1514, 2003.; Silva; Dourado; Candella, 2006SILVA, G. L.; DOURADO, M. S.; CANDELLA, R. N. Estudo preliminar da climatologia da ressurgência na região de Arraial do Cabo, RJ. Resumo expandido do XI Encontro Nacional dos Grupos PET. Universidade Federal de Santa Catarina, 11 p., 2006.). A área de dispersão do fenômeno inclui, portanto, as praias de Saquarema, próximas ao sambaqui da Beirada.
Partindo-se do pressuposto de que o grupo do sambaqui da Beirada explorasse o ambiente marinho para a coleta de moluscos nas zonas intertidais dos costões, tal como discutido anteriormente, e que este ambiente reproduz as condições necessárias para o desenvolvimento de exostoses, sua ausência deve estar relacionada a algum elemento cultural mitigador. Uma possibilidade é a utilização de algum tipo de protetor para o canal auditivo, tal como sugerido pelos autores supracitados, ou ainda, de forma também plausível, a exploração mais regular do mar aberto durante as épocas do ano em que não ocorre a ressurgência. Esta prática seria, inclusive, uma forma mais eficiente de exploração dos recursos, caso a coleta fosse realizada logo após o fim do período de ocorrência do fenômeno. Este seria um momento de abundância de recursos, uma vez que durante toda a estação anterior as águas ricas em nutrientes teriam atuado diretamente sobre os mecanismos ecológicos de produção, aumentando a produtividade biológica local.
O sambaqui Ilhote do Leste, ao contrário, não está localizado em área sujeita aos efeitos da ressurgência. No entanto, o grupo explorava sistematicamente o mar aberto, conforme sugerido pela localização do assentamento, junto à linha d`agua, e pelas evidências arqueológicas. O contato direto e constante com a água salgada (Peixoto 1989PEIXOTO, MV. Avaliação radiológica do torus auditivus nos grupos formadores de Sambaquis do litoral meridional brasileiro: contribuição ao estudo dos traços não métricos em populações pré-históricas do Brasil. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1989.) e a ação dos ventos frios e fortes (Fabiani; Barbara; Filipo, 1984FABIANI, M.; BARBARA, M.; FILIPO, R.1984. External ear canal exostosis and aquatic sports. Orl J Otorhinolaryngol Relat Spec, v. 46, p. 159-164, 1984.) principalmente em determinadas estações, também seriam fatores de risco para o desenvolvimento das exostoses. Neste sentido, Tenório (2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.) chama a atenção para a incidência direta sobre o sítio de ventos do quadrante sul, muito fortes e gelados, durante o inverno. Ainda segundo a autora, é possível que durante este período, ou durante as fortes ventanias, os habitantes do Ilhote do Leste ocupassem dois pequenos abrigos sob rocha existentes na base do morrote. Não foi encontrado material arqueológico dentro desses abrigos, no entanto esta ausência pode ser explicada pelo fato de atualmente estarem ao alcance das marés. O uso desses abrigos seria, portanto, uma proteção contra o constante contato com os ventos mais frios e fortes, atenuado as inflamações no canal auditivo.
Por outro lado, é possível que durante o inverno não fossem feitas incursões ao mar aberto, quando haveria contato mais prolongado tanto com a água, devido aos respingos e natural umidade do vento, quanto com os fortes ventos. As incursões ao mar aberto poderiam ser facilmente evitadas na medida em que, segundo Tenório (2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.), a pesca artesanal que caracteriza a economia atual da praia do Aventureiro, onde está localizado o sítio, indica que nesta região um dos pescados mais típicos desta estação é a tainha (Mugil platanus), capturada através de redes de arrasto puxadas da praia. Novamente, fatores de ordem cultural podem estar associados à ausência das exostoses.
No caso da série Zé Espinho, a ausência de exostoses pode estar associada tanto à localização do sítio, distante alguns quilômetros do mar aberto, quanto à sua estratégia de captação de recursos, voltada primordialmente para a exploração dos sistemas estuarino (baía de Sepetiba) e de mangue.
A partir da discussão aqui apresentada, é possível perceber que mesmo resultados idênticos, como estes obtidos para exostose, podem guardar estreita relação com modos de vida diferenciados. Enfatiza-se, portanto, a validade de interpretações menos generalizadas e mais voltadas para contextos ambientais e culturais específicos, a fim de se compreender de forma mais aprofundada o cotidiano de grupos os quais, em uma primeira abordagem, parecem compartilhar modos de vida idênticos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A integração entre os dados de distintos marcadores ósseos aqui examinados revelou-se uma ferramenta útil para se perceber as particularidades de três grupos pré-coloniais os quais, por compartilharem alguns elementos gerais semelhantes, como a exploração do ambiente costeiro e a subsistência com base principalmente nos recursos marinhos, têm sido associados a um mesmo estilo de vida.
A identificação e o entendimento da variabilidade nas atividades cotidianas é condição fundamental para a extrapolação dos quadros gerais sobre ocupação pré-colonial da nossa costa, a partir da construção de sínteses regionais que possam contemplar também as particularidades próprias de cada estilo de vida.
Tenório (2003TENÓRIO, M.C. O Lugar dos Aventureiros: Identidade, Dinâmica de Ocupação e Sistema de Trocas no Litoral do Rio de Janeiro há 3500 Anos Antes do Presente. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofias e Ciências Humanas/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.) chama a atenção para a grande mobilidade permitida pela utilização de vias aquáticas, condição a qual, aliada à característica agregadora da exploração dos recursos marinhos, teria propiciado um intenso fluxo de pessoas e informações. Tendo como base o conceito de fatores de etnicidade desenvolvido por Hodder (1982HODDER, I. Symbols in Action: ethnoarchaeological of material culture. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.), é razoável aventar a possibilidade de que as particularidades observadas nos estilos de vida dos grupos aqui examinados possam ter extrapolado a relação direta do homem com o meio, atuando dentro de cada sub-sistema regional como elementos de diferenciação e reforço de identidade dentro do amplo sistema sambaquieiro.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos as críticas e sugestões dos pareceristas anônimos, assim como a atenção dispensada pelos editores da revista.
REFERÊNCIAS
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Foi criado em 1818 por D. João VI com a designação de Museu Real, e somente após a proclamação da República em 1889 passaria a se designar Museu Nacional.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Ago 2015