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O que pode um mapa? Agência nos traços e caminhos dos desenhos do povo Hupd’äh

What can a map do? Agency in the traits and paths of the drawings of the Hupd’äh people

Resumo

Neste texto, percorrem-se os mapas desenhados por comunidades do povo Hupd’äh durante a elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Alto Rio Negro (PGTA), entre 2015 e 2019. Recentemente, trabalhos de mapeamento tomaram relevo nas comunidades, seja como demanda para a incorporação em atividades escolares, seja como mediadores em discussões mais amplas. O exercício proposto é o de realizar uma descrição etnográfica da produção destes desenhos, buscando delinear possibilidades de leitura antropológica. O texto é divido em quatro tópicos. Inicialmente, são apresentadas informações contextuais e históricas sobre os Hupd’äh, passando a uma breve descrição das oficinas realizadas nos trabalhos do PGTA. O cerne do texto trata dos mapas propriamente ditos, trazendo o processo de desenhar, a territorialidade que indicam seus traços, lugares, toponímias e histórias que compõem essas iconografias de n¯ih s’ah (‘nossa terra’). O tópico final pontua algumas leituras possíveis dessas iconografias como experiências compartilhadas entre anciãos e jovens e como uma linguagem possível para a afirmação territorial.

Palavras-chave
Hupd’äh; Alto rio Negro; Mapeamento participativo; Desenho; Etnografia

Abstract

This text describes and analyses maps drawn by communities of the Hupd’äh indigenous people during the Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Alto Rio Negro (PGTA), between 2015 and 2019. Recently, participatory mapping has gained prominence in the communities, either as a demand for incorporation into school activities or as mediation in broader discussions. The purpose of the exercise is an ethnographic description of the production of these drawings, seeking to outline possible anthropological readings. This article is divided into four parts. Initially, contextual information is presented, followed by a brief description of the work carried out in the PGTA. The core of the text analyses the maps, describing the process of drawing, the territoriality that indicates their traits, the places, toponyms and stories that form these iconographies of n¯ih s’ah (‘our land’). The final topic highlights some possible readings of these iconographies both as shared experiences between elders and young people and as a possible language to assert territorial rights.

Keywords
Hupd’äh; Upper Rio Negro Basin; Participatory mapping; Drawing; Ethnography

INTRODUÇÃO

Este artigo trata de aspectos dos mapas desenhados (e do próprio processo de desenhar) por diferentes comunidades do povo Hupd’äh, inscrevendo-se no tema do que é genericamente chamado de ‘mapeamento participativo’ ou ‘etnomapeamento’2 2 Composições textuais anteriores de parte dos materiais trabalhados neste texto foram apresentadas nos seguintes congressos: Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia (em 2017 e 2021), Reunião de Antropologia Brasileira (2020) e Sociedade para a Antropologia das Terras Baixas da América do Sul (2021). Agradeço aos coordenadores dos grupos de trabalho dos quais participei em cada um desses eventos, bem como aos colegas que contribuíram com as reflexões. Este texto é um recorte específico dentro da reflexão mais ampla sobre o mapeamento com os Hupd’äh, a qual será trabalhada também em publicações futuras. . Insere-se em um conjunto relativamente extenso do que tem sido referido como ‘trabalhos de mapeamento com os Hupd’äh’, que um coletivo de pesquisadores não indígenas e lideranças desse povo tem realizado desde 20153 3 Esse conjunto de trabalhos, por sua vez, tem como pano de fundo uma série de produções de mapeamento participativo realizada com os demais povos da região do alto rio Negro, os quais estão concentrados em artigos acadêmicos presentes na coletânea organizada por Andrello (2012a). Este livro desenvolve “um tema de enorme relevância na vida dos povos indígenas da região”, qual seja, “a inscrição de suas histórias de origem na paisagem natural” (Andrello, 2012b, p. 8). Uma das partes da coletânea é integralmente voltada a “experiências de mapeamento participativo realizadas na região, referentes à produção de mapas e outros tipos de registros das narrativas de origem das quais derivam” (Andrello, 2012b, p. 9). Quanto aos mapeamentos realizados anteriormente especificamente com o povo Hupd’äh, cabe referir, ainda que em sobrevoo, contribuições de Gerardo Bamonte (na década de 1960) (Bamonte, 1972, 1973), Howard Reid (na década de 1970) (Reid, 1979), Renato Athias (na década de 1980) (Athias, 1995) e Jorge Pozzobon (na década de 1990) (Pozzobon, 1991). Este último realizou os primeiros trabalhos com base na tecnologia de Global Positioning System (GPS) no contexto da demarcação da Terra Indígena Alto Rio Negro, e que forneceu a base para a produção do mapa da Figura 1. Ao longo do segundo tópico deste texto, outros mapeamentos realizados com os Hupd’äh serão relacionados à descrição dos mapas desenhados pelas comunidades deste povo a partir de 2015 .

O começo destes trabalhos é certamente anterior, mas, em 2015, ocorreu um marco que ajuda a organizar a narrativa e as análises deste artigo: o começo da elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro junto aos Hupd’äh, que se estendeu até 2019, e, em meio a isso, uma série de mapas foram desenhados por diferentes comunidades hup, sendo realizado um censo do histórico de deslocamento das famílias por sítios antigos até a formação das comunidades atuais, bem como caminhadas na floresta e registros georreferenciados. Concomitante a isso, e estendendo-se até hoje, foi elaborado e realizado também um projeto de ‘salvaguarda cultural e patrimonialização’ dos ‘modos de fazer caminho’ dos Hupd’äh na floresta (bem como dos povos Dâw e Nadëb), parte de um projeto maior do Museu do Índio (Fundação Nacional dos Povos Indígenas - FUNAI) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)4 4 Trata-se do projeto de cooperação técnica internacional “Salvaguarda do patrimônio linguístico e cultural de povos indígenas transfronteiriços e de recente contato na região amazônica” (UNESCO/Museu do Índio/FUNAI), sob coordenação científica de Carlos Fausto, dentro do qual foram desenvolvidos dois subprojetos relativos aos povos da família linguística Naduhup: “Caminhos dos Dâw, Hupd’äh e Nadëb: arte verbal e imagem, tecendo floresta e mundos” (2017-2018) e “Tiw b¯ig niiy: caminhos antigos e saberes dos Hupd’äh no centro da floresta” (2019-2020). . Ao longo deste projeto, mais mapas foram desenhados, assim como mais caminhadas e registros georreferenciados foram realizados5 5 No momento, em uma pesquisa realizada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), sob supervisão de Márcio Meira, estou organizando a somatória dos trabalhos de mapeamento realizados com os Hupd’äh na última década (entre o PGTA e o projeto de salvaguarda acima mencionado), bem como relacionando-os a registros históricos da habitação dos Hupd’äh em trabalhos acadêmicos no decorrer do século XX e em documentos históricos e de viajantes dos séculos XVIII e XIX. O objetivo é constituir uma base de dados integrada. .

Ainda que relacionando aos demais modos de mapeamento realizados, o que se desenvolve aqui é uma breve parte desta história, especificamente uma descrição do processo de desenhar mapas pelas comunidades hup e de algumas de suas implicações possíveis em seu contexto contemporâneo. Este artigo apresenta um esforço de tatear a profundidade de como os Hupd’äh desenham um mapa. Em relação a esses eventos – os mapas das comunidades hup –, tem-se a sensação, ligeiramente vertiginosa, de não sabermos se estamos diante de algo excessivamente banal ou completamente surpreendente. E é desta tensão que nasce este artigo.

Antes, porém, são necessárias algumas informações introdutórias sobre a população hupd’äh, sua história e seu contexto atual, de modo a tornar inteligível o que será descrito. Os Hupd’äh são um dos povos indígenas da família linguística Naduhup (outrora chamada de ‘Maku’), junto aos Dâw, Nadëb e Yuhupdeh6 6 Para a compreensão dos sentidos pejorativos do termo ‘Maku’ na região do rio Negro e para a classificação contemporânea da família linguística Naduhup, conferir Epps e Bolaños (2017). . Contam, hoje, no Brasil, 2.593 pessoas (FOIRN, 2019aFederação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). (2019a). Plano de gestão territorial e ambiental: Terra Indígena Alto Rio Negro. FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/plano-de-gestao-territorial-e-ambiental-terra-indigena-alto-rio-negro
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), habitando, sobretudo, a TI Alto Rio Negro. A cidade de referência na região é São Gabriel da Cachoeira (estado do Amazonas, Brasil). Estão distribuídos em, basicamente, três grupos regionais, com diferenças dialetais entre si, cada qual de tendência endogâmica, somando, hoje em dia, mais de 20 comunidades e dezenas de sítios. Como pode ser visto na Figura 1, a terra que habitam tradicionalmente, junto a povos da família linguística Tukano oriental, compreende o interflúvio entre os rios Papuri, ao norte, Tiquié, ao sul, e médio Uaupés, a leste (formando uma espécie de quadrante). Uma parte consideravelmente menor da população (da qual não se tem no momento informações populacionais mais detalhadas) vive na Colômbia.

Figura 1
Região de ocupação Hupd’äh.

Na literatura etnológica regional, são comumente descritos como os ‘índios do mato’ em contraste aos ‘índios do rio’ (famílias linguísticas Tukano oriental e Aruak). Essa oposição dá forma às duas imagens socioecológicas fortes do noroeste amazônico: de um lado, os povos da família linguística Naduhup, correspondendo aos tradicionalmente caçadores-coletores seminômades, habitando os interiores mais densos da floresta (as cabeceiras dos igarapés que afluem para os rios de referência da região que habitam); de outro, os povos das famílias linguísticas Tukano oriental e Aruak, horticultores de tendência sedentária, com economia mais voltada à pesca, que habitam a beira dos grandes rios da região. A habitação dos interflúvios é epitomizada em um dos modos pelos quais os Hupd’äh referem-se a si mesmos (a depender do contexto de comunicação): Dëh Ket Yohd’äh (‘gente da cabeceira’). O domínio dos Hupd’äh do centro da floresta e dos caminhos que interligam os grandes rios que cortam a região do Uaupés é um atributo constantemente marcado regionalmente pelos outros povos indígenas, tendo também efeito nas imagens presentes na etnologia regional: andarilhos, mestres dos caminhos na mata.

Por paradoxal que pareça à primeira vista, o contato dos Hupd’äh com os colonizadores não indígenas é, ao mesmo tempo, antigo e recente. Nos registros históricos trabalhados por Robin Wright (Wright, 2005Wright, R. (2005). História indígena e do indigenismo no Alto Rio Negro. Mercado de Letras/ISA.) e Márcio Meira (Meira, 2018Meira, M. (2018). A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no noroeste amazônico. EdUFScar.), podemos buscar algumas informações sobre os ‘Macus’ já nos primeiros documentos escritos relativos às regiões do médio e alto rio Negro. Nesses documentos dos séculos XVIII e XIX, são caracterizados como “uma nação de índios errantes e inconstantes” (Wright, 2005Wright, R. (2005). História indígena e do indigenismo no Alto Rio Negro. Mercado de Letras/ISA., p. 35) e também como vítimas preferencias no mercado de escravizados que se estabeleceu na região em busca de mão de obra para os empreendimentos coloniais, obrigando a “descimentos forçados”, em que o “rio Uaupés era o empório onde se forneciam os habitantes do Rio Negro; e a errante, desgraçada tribu dos ‘Macús’, a maior tributaria do ignóbil mercado” (Major Dionísio Cerqueira citado em Meira, 2018Meira, M. (2018). A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no noroeste amazônico. EdUFScar., p. 224). Não é o objetivo aqui retomar a complexidade da história colonial da região do alto rio Negro, mas merece destaque o fato de, já nestes registros, poder ser encontrado outro elemento importante da caracterização destes povos: a recalcitrância no contato direto com os colonizadores não indígenas, constando como particularmente desobedientes e inconstantes.

Tal atributo se estende ao século XX, nas caracterizações que os missionários salesianos fizeram dos Hupd’äh nas tentativas de agregá-los aos internatos construídos a partir da década de 1930, em que as crianças deste povo insistiam em fugir para o interior da floresta, retornando ao encontro de suas famílias, como podemos ver nos escritos do padre Antonio Giacone (Giacone, 1955Giacone, A. (1955). Pequena gramática e dicionário português Ubde-Nehern ou Macu. Missão Indígena Salesiana.). Não à toa, Jorge Pozzobon, ao retomar a história dos Hupd’äh, e trocando a chave do negativo (errância) para o positivo (resistência), os caracteriza justamente como “os campeões da resistência” (Pozzobon, 2011Pozzobon, J. (2011). Sociedade e improviso: estudo sobre a (des)estrutura social dos índios Maku. Museu do Índio.). A empresa missionária salesiana, tendo os internatos como dispositivo central, que alterariam de modo drástico as vidas dos povos indígenas da região do Uaupés já na primeira metade do século XX (Andrello, 2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. Edunesp/ISA/NuTI.), teve que se adaptar a esta recalcitrância ou resistência dos Hupd’äh, consolidando-se na forma dos “povoados-missão” apenas na década de 1970 (Athias, 1995Athias, R. (1995). Hupde-Maku et Tukano: relations inégales entre deux sociétés du Uaupés Amazonien (Bresil) [Tese de doutorado, Universidade de Paris X].; Marques, 2015Marques, B. (2015). Os Hupd’äh e seus mundos possíveis: transformações espaço-temporais do Alto Rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://buscaintegrada.ufrj.br/Record/aleph-UFR01-000842236
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). A partir deste período, os Hupd’äh passaram a ter contato mais constante com os missionários, adotando, tendencialmente, um modo de vida mais sedentário e em concentrações populacionais maiores, passando também a frequentar paulatinamente instituições escolares.

Nesta linha colonial, para todos os efeitos, há uma espécie de decalagem histórica entre, por um lado, a relação dos povos indígenas da família linguística Tukano oriental e os não indígenas e, por outro, a relação dos Hupd’äh e os não indígenas. Via de regra, os Hupd’äh têm um conhecimento comparativamente menor da língua portuguesa, dos modos de lidar com as instituições governamentais, dos modos de participar das próprias instituições de representação política indígenas e também da linguagem escrita. Ainda que em tons e aspectos distintos ao que se viu nesta pincelada nos séculos XVIII, XIX e XX, há contemporaneamente também a marcação de uma distância relativa aos conhecimentos e às instituições não indígenas da parte dos Hupd’äh.

Isso tomou contornos mais notáveis (e graves) para as instituições de São Gabriel da Cachoeira a partir da década de 2010, com as descidas massivas de famílias deste povo para o centro urbano do município em busca do acesso aos benefícios sociais (como Bolsa Família, aposentadoria, entre outros) e documentação, gerando uma situação de vulnerabilidade sanitária e socioeconômica que vem sendo documentada ao longo da última década, persistindo até hoje (Lima et al., 2016Lima, A. P., Marques, B. R., Ramos, D. P., Felipe, H. J., Lolli, P., & Moreira, R. (2016). Violações de direitos de povos indígenas de recente contato: o caso dos Hupd’äh e dos Yuhupdëh da região do Alto Rio Negro (AM). Aracê - Direitos Humanos em Revista, 3(4), 212-226. https://arace.emnuvens.com.br/arace/article/view/98/52
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; Marques, 2015Marques, B. (2015). Os Hupd’äh e seus mundos possíveis: transformações espaço-temporais do Alto Rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://buscaintegrada.ufrj.br/Record/aleph-UFR01-000842236
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; Moreira, 2017Moreira, R. (2017). Signos de pobreza: uma etnografia dos Hupdäh e dos benefícios sociais no alto rio Negro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina].; Barbará, 2021Barbará, M. (2021). O tempo dos benefícios sociais: a experiência urbana dos Yuhupdeh em São Gabriel da Cachoeira (AM) [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/16167
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). Em vista desses aspectos históricos do povo Hupd’äh em suas relações com os não indígenas, e considerando vulnerabilidades específicas nestas relações que incidem de modo agudo atualmente, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) os classifica como um ‘povo indígena de recente contato’.

Em linhas gerais, é neste contexto que foram realizados, com as comunidades do povo Hupd’äh, os trabalhos de elaboração do PGTA da TI Alto Rio Negro, entre 2015 e 2019, sendo que parte do processo foi o desenho de mapas das terras por elas habitadas. De partida, pode-se dizer que os desenhos desses mapas excederam seus propósitos originais, como será visto a seguir, tornando-se um foco central das atenções dos Hupd’äh no decorrer dos trabalhos.

O texto a seguir é divido em três tópicos centrais. No primeiro, são brevemente descritas as ‘oficinas itinerantes’ realizadas com os Hupd’äh nos trabalhos do PGTA. No segundo, passamos à descrição e à análise dos mapas, trazendo o modo como foram desenhados e a territorialidade, que indicam seus traços em direção às cabeceiras dos igarapés, as relações de parentesco neles expressas e os lugares, toponímias e histórias que compõem essas iconografias de nih s’ah – ‘nossa terra’ –, expressão comumente usada pelos Hupd’äh nas ocasiões, tendo sua profundidade conceitual e experencial própria, para além do que se convenciona chamar de ‘território’ (Reid, 1979Reid, H. (1979). Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil [Tese de doutorado, University of Cambridge].; Ramos, 2013Ramos, D. (2013). Círculos de coca e fumaça. Encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh (Maku) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2014.tde-21102014-160908
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; Ramos & Epps, 2018Ramos, D., & Epps, P. (2018). Caminhos de sopro: discurso xamânico e percursos florestais dos Hupd’äh. Mana, 24(1), 161-198. https://doi.org/10.1590/1678-49442018v24n1p161
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). O tópico final pontua uma leitura possível dessas iconografias como uma experiência da paisagem compartilhada entre anciãos e jovens nas narrativas da terra e como uma linguagem possível na afirmação territorial diante das instituições governamentais no contexto do PGTA, articulando com a produção bibliográfica relativa aos povos indígenas do alto rio Negro.

O PGTA DA TERRA INDÍGENA ALTO RIO NEGRO E A PARTICIPAÇÃO DOS HUPD’ÄH: AS ‘OFICINAS ITINERANTES’

No contexto da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída pelo Decreto nº 7.747, de 5 de junho de 2012Decreto nº 7.747. (5 jun. 2012). Institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI, e dá outras providências. Diário Oficial da União. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7747.htm
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, as elaborações dos PPGTA das TI das regiões do médio e alto rio Negro foram realizadas através de um acordo de cooperação técnica entre FUNAI, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e Instituto Socioambiental (ISA). Especificamente os trabalhos do PGTA da TI Alto Rio Negro se estenderam entre 2014, com a realização da atividade prévia do curso “Gestão territorial e ambiental de terras indígenas no rio Negro”, e 2019, com a escrita dos capítulos que compõem o volume publicado no mesmo ano7 7 Para uma contextualização da PNGATI e dos PGTA como instrumentos dessa política pública, conferir Smith et al. (2021). Sobre experiências de elaboração de PGTA em terras indígenas em outras regiões amazônicas, conferir Grupioni (2020). Quanto à elaboração do PGTA da TI Alto Rio Negro, há um artigo acadêmico de referência (Iubel, 2019), bem como uma série de publicações intituladas “Governança e bem viver indígena: planos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas do alto e médio rio Negro”, publicadas entre 2016 e 2018 (FOIRN, FUNAI e ISA). Nas referências deste artigo, podem ser encontrados os links para acesso às publicações do “PGTA Wasu” (FOIRN, 2021), integrando os trabalhos realizados nas diferentes terras indígenas da região, e do PGTA da Terra Indígena Alto Rio Negro (FOIRN, 2019a). . Em torno deste trabalho, essa estrutura institucional provocou uma grande mobilização de comunidades, lideranças e organizações indígenas dos diversos povos que habitam a TI Alto Rio Negro, bem como de pesquisadores indígenas e não indígenas.

No segundo semestre de 2015, os trabalhos de elaboração propriamente ditos tiveram início através de oficinas inaugurais dos PGTA, realizadas em grandes eventos de cada uma das cinco coordenadorias regionais que formam a FOIRN, tendo em média 200 pessoas em cada uma das oficinas (Dias, 2016Dias, C. (Org.). (2016). Governança e bem viver indígena: planos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas do Alto e Médio Rio Negro (No. 1). FOIRN/FUNAI/ISA.). Nas regiões habitadas pelos povos Hupd’äh e Yuhupdeh, em áreas que compreendem a Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê (COIDI) e a Coordenadoria das Organizações Indígenas do Tiquié, Baixo Waupés e Afluentes (DIAWI’I), esses grandes eventos foram realizados nos povoados de Iauaretê e Taracuá, respectivamente. Lideranças dos Hupd’äh e dos Yuhupdeh participaram e colaboraram nestes eventos, bem como nas demais reuniões abrangentes realizadas em São Gabriel da Cachoeira até o final dos trabalhos de consulta e formulação (em 2018). Entretanto, devido às especificidades destes povos no contexto regional (conforme colocado brevemente na Introdução), as instituições organizadoras chamaram um conjunto de pesquisadores que trabalham com esses povos para auxiliar nas atividades de consulta complementares.

Assim foi elaborado o que foi chamado, à época, de ‘oficinas itinerantes’. O princípio básico que as conduzia foi colocado pela liderança Américo Socot (povo Hupd’äh), que afirmou a necessidade de realizar a consulta na maior quantidade de comunidades e regiões habitadas por esses povos, ao invés de agregar uma grande quantidade de lideranças em uma única oficina. As razões colocadas por Américo para essa orientação diziam respeito a aspectos logísticos e de sociodiferenciações importantes nas relações de parentesco internas a cada um dos grupos regionais habitados pelos Hupd’äh, bem como às variações dialetais da língua Hup. Mas Américo acentuou também outro ponto central para a realização deste modo de oficinas: as próprias visitas às comunidades poderiam favorecer uma aproximação dos Hupd’äh com este tipo de trabalho de articulação política na região, em relação ao qual, segundo ele, os seus parentes estavam relativamente distantes, possibilitando que eles, de alguma forma, se apropriassem das questões que seriam tratadas. Assim, neste segundo semestre, o pesquisador Danilo Ramos e Américo Socot realizaram oficinas itinerantes em comunidades hup do médio rio Tiquié8 8 1ª oficina na comunidade Taracuá Igarapé; 2ª oficina na comunidade Barreira Alta. ; Henrique Junio Felipe, em comunidades yuhup dos igarapés Cunuri e Ira9 9 1ª oficina na comunidade São Martinho, igarapé Cunuri; 2ª oficina na comunidade Guadalupe, igarapé Ira; 3ª oficina na comunidade São Felipe, igarapé Cunuri. ; e Bruno Marques e a liderança Antônio Ramos, em comunidades hup das regiões do igarapé Japu e do rio Papuri10 10 Na região do igarapé Japu, foram realizadas quatro oficinas: 1ª oficina na comunidade Nossa Senhora de Fátima, Iauaretê; 2ª oficina na comunidade Santa Cruz do Cabari, com presença de lideranças de Jacaré Banquinho, Piracema e Santa Rosa; 3ª oficina em Boca do Traíra, com presença da comunidade vizinha, Água Viva; 4ª oficina em Santo Atanásio. No rio Papuri, foram realizadas três oficinas: 5ª oficina em Santa Cruz do Turi; 6ª oficina na comunidade São Fernando, com presença de lideranças da comunidade Cabeça da Onça; e 7ª oficina na comunidade Waguiá. .

Ao todo, neste primeiro momento, foram 17 comunidades diretamente envolvidas em 12 oficinas. Esses moldes de trabalho seriam seguidos em outras etapas de trabalho, com as contribuições do pesquisador Pedro Lolli com os Yuhupdeh do igarapé Castanho, Denivaldo Cruz (FUNAI) e Américo Socot com os Hupd’äh do médio Tiquié, e os servidores da FUNAI, Evaldo Alencar e Túlio Binotti, no igarapé Japu, além do complemento dos trabalhos de mapeamento participativo com outras comunidades hup no decorrer do levantamento socioambiental realizado em 2016 por pesquisadores indígenas em todas as comunidades da TI Alto Rio Negro, e, especificamente com o povo Hupd’äh, pelo pesquisador Bruno Marques.

Nessas ‘oficinas itinerantes’, as reuniões comunitárias eram divididas, grosso modo, em três momentos, tendo a duração de dois ou três dias. Um primeiro de exposição das linhas gerais da PNGATI, de seus instrumentos e do PGTA, seguido de conversas em cinco eixos temáticos básicos: ‘escola’, ‘saúde’, ‘conhecimentos tradicionais’, ‘manejo ambiental e alimentação’ e ‘cidade’ – ‘cidade’ entendida aqui como um termo que concentra as questões de documentação e acesso a benefícios sociais, particularmente candentes no momento atual da vida desta população. Ao fim, esses eixos temáticos eram organizados em uma tabela de ‘problemas’ e de ‘soluções’ apontados pelas comunidades. Esses dois primeiros momentos correspondiam à dimensão de assembleia comunitária, de tratamento discursivo em uma reunião pública sobre os temas que mobilizam a vida coletiva, envolvendo as falas dos bi’ hitamd’äh (‘os que ajudam a fazer’) das instituições, de apoiadores e lideranças do movimento indígena, e as falas das lideranças hupd’äh.

O terceiro momento era a realização do desenho de mapas por parte das comunidades (Figuras 2 a 4). Inicialmente, esses mapas foram pensados como simples complementos sobretudo das discussões sobre ‘manejo ambiental e alimentação’, bem como no sentido de dar visibilidade e materialidade gráfica ao que é a floresta para essas pessoas em um sentido amplo, em sua virtual infinidade de lugares e caminhos. Com o passar das oficinas realizadas nas diferentes regiões habitadas por eles, porém, outras dimensões dessa produção de desenhos foram se colocando, fazendo com que tomassem relevo nos trabalhos, como ficará mais claro nos próximos tópicos.

Figura 2
Hupd’äh desenhando mapa na comunidade São Fernando, povo Hupd’äh, alto rio Papuri, em dezembro de 2015.
Figura 3
Hupd’äh desenhando mapa na comunidade Santa Rosa, povo Hupd’äh, igarapé Cabari, médio rio Uaupés, em novembro de 2019.
Figura 4
Hupd’äh conversando sobre mapas desenhados antes de caminhada, comunidade Waguiá, povo Hupd’äh, alto rio Papuri, em novembro de 2017.

Ao longo do processo de mapeamento nas comunidades, com a somatória das diversas experiências, aos poucos, foi sendo sintetizado um roteiro aberto para a organização dos dados, sendo estipulados quatro conjuntos de lugares mapeados. Listo, de forma não exaustiva, os itens, bem como alguns termos em língua Hup que guiaram este trabalho de mapeamento:

  • ‘Lugares sagrados’: Pàç (‘serras’); Hũ Moy (‘casa de caça’); Döh-Ãy Moy (‘casa de Curupira’); Bisiw Moy (‘casa de Bisiw’); B’at¯ìb’ Moy (‘casa de espectros predadores da floresta’); Moh (‘lagos’); locais onde Ëywed (‘ser que os Hupd’äh costumam traduzir como ‘leão’, tendo propriedades de felino e de macaco’) vive e transita;

  • Sítios antigos: locais onde viveram os antigos (Moy höd), registrando os nomes dos sítios, dos igarapés e as famílias (clãs) que habitaram; Paç Moy (‘moradias em cavernas, nas quais podem ser encontrados restos cerâmicos e outros materiais de relevância arqueológica’);

  • Caminhos: trilhas para outras comunidades; trilhas para as serras nas cabeceiras dos igarapés; trilhas para os acampamentos de caça e õh höhöd (‘local de acampamento’);

  • Manejo e recursos ambientais: locais de caça; locais de pesca; locais para extração de palhas de caraná (construção da cobertura das casas, também descrevendo a situação atual dos caranazais), patauá, bacaba etc. (para construção das coberturas dos tapiris); locais de extração de cipó e arumã (feitura de artesanato); locais para extração de materiais para instrumentos de caça; locais para coleta de minhocas para pesca; roças (descrevendo os tipos de solo disponíveis em cada comunidade e seus diferentes potenciais).

Esses termos, em língua Hup, não são excludentes entre si, havendo, portanto, intersecções conforme os locais específicos. A tênue classificação acima exposta – feita, importante ressaltar, ao longo das experiências de elaboração de mapas com os Hupd’äh –, assim, funcionou como guia para a inspiração e a elaboração dos mapas, e não com a finalidade de uma taxonomia espacial absoluta do território.

Destaca-se que, do ponto de vista das comunidades, esses trabalhos, que envolvem tanto a discussão sobre aspectos da vida atual e a produção dos mapas, foram recebidos como um

. . . meio de estabelecer um novo equilíbrio: equacionando a vida como se dava no ‘tempo dos antigos’ e a vida atual em grupos locais mais sedentarizados e de maior concentração demográfica, em que a escola, as mercadorias e os serviços de saúde ganham relevância, mas que acabam por gerar, no caso de algumas comunidades, a escassez de recursos alimentares e problemas de outras ordens. As reflexões expostas pelos Hupd’äh e Yuhupdeh oscilaram em uma dinâmica entre o interior da floresta e as incursões na cidade de São Gabriel da Cachoeira, apresentando os dois polos extremos pelos quais transcorre a vida atual

(Dias, 2016Dias, C. (Org.). (2016). Governança e bem viver indígena: planos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas do Alto e Médio Rio Negro (No. 1). FOIRN/FUNAI/ISA., p. 9).

Essa equação dos Hupd’äh entre o tempo dos antigos e o tempo atual teve sua projeção no próprio método adotado pelas comunidades para o desenho dos mapas, equacionando também diferentes gerações: jovens em idade escolar, professores e anciãos. Os primeiros dispunham de suas capacidades de escrita e desenho em papel e ficavam debruçados sobre as mesas em que as linhas eram traçadas, ao passo que os velhos, sentados em bancos e cadeiras próximos, eram requisitados para a orientação geral dos conhecimentos espaciais e das histórias dos antigos. A produção dos mapas foi certamente o momento mais animado dessas oficinas em 2015, nos quais as conversas sobre os temas elencados na discussão sobre ‘problemas e soluções’ tomavam corpo, sendo também um evento importante de articulação de conhecimentos entre anciãos e jovens, tendo em vista a tendência atual de os jovens estarem mais fixos nas comunidades e percorrerem uma extensão territorial relativamente menor do que seus pais e avós faziam outrora – o processo de desenhar mapas foi frequentemente um modo de os mais jovens escutarem a respeito de lugares em que nunca haviam estado.

OS DESENHOS DOS MAPAS DE COMUNIDADES DO POVO HUPD’ÄH

Neste tópico, adentramos na descrição dos mapas propriamente ditos, passando pela imagem geral deles e sobre seus modos de desenhar, destacando elementos colocados pelos Hupd’äh nos traços dos desenhos. As descrições a seguir incorporam sobretudo as experiências de desenhos de mapas nessas ‘oficinas itinerantes’ vinculadas ao PGTA da TI Alto Rio Negro, lançando mão também de trabalhos de mapeamento participativo realizados posteriormente, através de projeto de patrimonialização e salvaguarda cultural dos modos de fazer caminhos dos Hupd’äh (conferir nota 4), no qual duas comunidades aprofundaram esses ensaios iniciais de mapeamento.

Como pode ser visto nas Figuras 5 e 6, o resultado gráfico do desenho desses mapas sugere um pensamento espacial concebido verticalmente, à semelhança de uma imagem de satélite. Mas cabe referir que o modo como o desenho foi composto pelos Hupd’äh se dava em muitos aspectos horizontalmente, como se percorressem caminhos no papel: o ato de desenhar funciona recapitulando o percurso espacial na mata, através do trânsito nos igarapés ou nas trilhas. O primeiro passo, via de regra, era traçar o rio de referência mais próximo: no caso dos mapas das , que serão brevemente descritos, o rio Papuri. Depois, eram desenhados os afluentes mais importantes que compõem as terras em que deambulam os Hupd’äh de determinada comunidade, considerando que esses mapas em geral coincidem com os terrenos de caça e coleta das comunidades.

Figura 5
Mapa desenhado pela comunidade São Fernando, povo Hupd’äh, alto rio Papuri, em dezembro de 2015.
Figura 6
Mapa desenhado pela comunidade Waguiá, povo Hupd’äh, alto rio Papuri, em dezembro de 2015.

A disposição desses elementos na cartolina tendia a colocar o rio na base e as cabeceiras dos igarapés na parte de cima, o que remete aos termos usados pelos Hupd’äh quando se vai de jusante a montante em um curso d’água, (‘subir’), bem como o movimento inverso, (‘descer’). Se observada a Figura 1, percebe-se que o rio Papuri está ao norte, enquanto o Tiquié está ao sul, de modo que os mapas desenhados pelas comunidades deste último acabavam por coincidir sua espacialidade baseada na oposição entre baixo e alto curso dos igarapés (e assim expressa na cartolina) com o eixos sul-norte, como convencionado no Ocidente. Mas, no caso das comunidades que têm o rio Papuri como referência, isso se inverte.

Localizada a comunidade atual, o traçado dos afluentes menores desses igarapés ia sendo tramado lentamente, como se os Hupd’äh percorressem a beira dos igarapés. Nisso, os pontos – sítios antigos, lagos, locais de extração de minhoca, casa de curupiras etc. – iam sendo dispostos. Por último, eram desenhados os caminhos mais importantes, bem como, em algumas comunidades, uma tipologia de caminhos se desdobrava desses exercícios: b’ot tiw (‘caminho da roça’), s’ug tiw (‘caminho da mata’), hayam tiw (‘caminho para as comunidades’), big tiw (‘caminho dos antigos’), tiw pög (‘rotas’, ‘varadouros inter-regionais’). Quando visualizados em conjunto, os mapas produzidos pelas comunidades hup das regiões do alto e baixo rio Papuri, de Iauaretê, do igarapé Japu, do médio e alto rio Tiquié, revelam uma trama virtualmente infinita de caminhos pela mata, entretecendo os interflúvios entre os rios Papuri, Uaupés e Tiquié.

Destaca-se que a orientação, o ponto para o qual tendiam os desenhos dos caminhos e lugares que iam sendo gradualmente rememorados e projetados no papel, em geral, eram as serras (Paç), localizadas nas cabeceiras dos igarapés habitados pelos Hupd’äh. Esse é precisamente o caso dos mapas das três comunidades hup do alto rio Papuri (Waguiá, São Fernando e Cabeça da Onça), bem como da comunidade Serra do Cabari, no alto rio Tiquié. Os mapas desenhados por essas comunidades orientam-se todos na direção de um mesmo conjunto de serras que compõem um divisor de águas entre o alto rio Papuri e o alto rio Tiquié. Esse conjunto de serras é um vértice para o qual tendem as espacialidades de diferentes coletivos hupd’äh; serras das quais vertem os igarapés tradicionalmente habitados por eles. Na Figura 5 (mapa da comunidade São Fernando), o conjunto de serras pode ver identificado no canto superior direito da imagem, ao passo que, na Figura 6 (mapa da comunidade Waguiá), localiza-se no canto superior esquerdo.

É importante notar que essas serras nas cabeceiras dos igarapés, analisadas aqui como os vetores dos desenhos das comunidades, de certa forma estão presentes já nos primeiros esforços de mapeamento realizados com os Hupd’äh (Reid, 1979Reid, H. (1979). Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil [Tese de doutorado, University of Cambridge].), e hoje contam com descrições etnográficas aprofundadas sobre as relações que esse povo tem com lugares de seus percursos florestais e xamânicos (Ramos, 2013Ramos, D. (2013). Círculos de coca e fumaça. Encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh (Maku) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2014.tde-21102014-160908
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; Ramos & Epps, 2018Ramos, D., & Epps, P. (2018). Caminhos de sopro: discurso xamânico e percursos florestais dos Hupd’äh. Mana, 24(1), 161-198. https://doi.org/10.1590/1678-49442018v24n1p161
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). Reid (1979)Reid, H. (1979). Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil [Tese de doutorado, University of Cambridge]. escreveu a primeira monografia baseada em trabalho de campo intensivo com os Hupd’äh (realizado no decorrer da década de 1970). Nessa contribuição, podemos ver em dois mapas, que buscam descrever os grupos locais dos Hupd’äh nas décadas de 1940 e 1960, marcações gráficas sutis (e não nomeadas) de dois conjuntos de serras nas terras habitadas por este povo. O primeiro conjunto é justamente este presente nos mapas das Figuras 5 e 6, no interflúvio entre o alto rio Papuri e o alto rio Tiquié, tendo como referência principal Wah Paç (serra Patauá). O segundo conjunto localiza-se no interflúvio entre o baixo rio Papuri, o médio rio Uaupés e o médio rio Tiquié, o qual teve relevância nos desenhos realizados por comunidades hup destas localidades no decorrer das ações de mapeamento participativo do PGTA a partir de 2015, em que Paç Pög (Serra Grande) aparece como o marcador geográfico e simbólico de maior destaque11 11 No contexto da região do rio Uaupés e seus afluentes, essas serras na cabeceira dos igarapés não têm importância marcada somente para os povos da família linguística Naduhup. Nota-se que os Desano da comunidade de Santa Cruz do Turi (baixo rio Papuri), nos trabalhos do PGTA da TI Alto Rio Negro, colocaram sua relação antiga com esse conjunto de serras entre o baixo Papuri e o médio Uaupés. Da mesma forma fizeram os Tukano da comunidade Jandiá (vizinha à comunidade hupd’äh Waguiá) em relação à serra Patauá, no interflúvio entre os altos rios Papuri e Tiquié. E, na dissertação de mestrado de José Rivelino Barreto (povo Tukano), quando o autor comenta os limites territoriais de sua comunidade, São Domingos Sávio (alto rio Tiquié), pode ser identificada justamente a seguinte marcação: “à Leste, o limite é a Serra Bacaba, Nhumungu, na cabeceira do rio Cabarí” (Barreto, 2012, p. 132). .

Na pesquisa etnográfica realizada por Ramos (2013)Ramos, D. (2013). Círculos de coca e fumaça. Encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh (Maku) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2014.tde-21102014-160908
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com a comunidade de Taracuá Igarapé, no médio rio Tiquié, bem como em seus desenvolvimentos posteriores (Ramos & Epps, 2018Ramos, D., & Epps, P. (2018). Caminhos de sopro: discurso xamânico e percursos florestais dos Hupd’äh. Mana, 24(1), 161-198. https://doi.org/10.1590/1678-49442018v24n1p161
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; Ramos, 2018Ramos, D. (2018). A caminho da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra Grande-Metrópole dos Hupd’äh. Revista de Antropologia, 61(1), 329-359. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2018.145528
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), podemos apreender a densidade da relação dos Hupd’äh em tais espaços, particularmente Paç Pög (Serra Grande). As serras são pontos importantes nas narrativas míticas da chegada dos Hib’ah Tẽhd’äh (‘gente do nascimento’) nesta terra; e também no destino pós-morte das almas dos Hupd’äh; são locais de práticas rituais, ao beberem as águas dos ‘lagos de leite’ que estão em seus topos, sendo importantes na construção do corpo hup; são parte dos percursos xamânicos de cura de doenças; marcam também o centro da floresta, local de moradia antiga nas cabeceiras dos igarapés etc. As cabeceiras dos igarapés, nos mapas desenhados pelos Hupd’äh e, mais especificamente, essas serras são lugares de adensamento experiencial, histórico e xamânico. Nas palavras de Ramos (2013, p. 108)Ramos, D. (2013). Círculos de coca e fumaça. Encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh (Maku) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2014.tde-21102014-160908
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. . . . a viagem à Serra Grande situa um vasto campo relacional para que ações ritualizadas surjam com os movimentos dos viajantes que, caminhando, metamorfoseiam seus corpos e as paisagens por onde passam. A viagem revela-se como um complexo processo ritual fundamental tanto para a iniciação xamânica quanto para a educação da atenção e aquisição de habilidades no mundo vivido.

Justamente por não serem, hoje em dia, locais visitados nos modos e com a frequência que se fazia antigamente, foram identificados ao longo da realização do PGTA como importantes de serem retomados para a formação dos corpos dos mais jovens, bem como nos trabalhos de mapeamento que poderiam ser incorporados nas atividades escolares. A feitura dos desenhos dos mapas tendia às cabeceiras e a essas serras – funcionando como espécies de atratores dos traços nas cartolinas –, e, ao percorrer os seus caminhos no papel, anciãos, jovens e professores hup narravam a terra dos antigos e das comunidades atuais.

Outro aspecto fundamental dos mapas que estamos descrevendo neste artigo diz respeito às relações de parentesco. Os três grupos locais hup do alto rio Papuri podem ser considerados parte de uma mesma parentela. Todas essas comunidades são formadas majoritariamente por dois clãs em relação de exogamia, os Tëg-D’uh Ag Tẽhd’äh (‘filhos da fruta da árvore’) e os Sokw’ät Noh K’öd Tẽhd’äh (‘filhos do bico do tucano’), acompanhados de alguns clãs menos numerosos, como os Wih Tẽhd’äh (‘filhos do gavião’), os K’ög K’eg Tẽhd’äh (‘filhos do osso do macaco zogue-zogue’) e os K’ög Ya’am Tẽhd’äh (‘filhos do macaco zogue-zogue onça’, em tradução incerta). As comunidades contemporâneas são fruto da agregação de pequenos grupos locais que outrora viviam nos médios e altos cursos dos igarapés que são afluentes do alto rio Papuri, parte do que o antropólogo Pozzobon (1983Pozzobon, J. (1983). Isolamento e endogamia: observações sobre a organização social dos índios Maku [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]., 1991)Pozzobon, J. (1991). Parente et demographie chez les indiens Maku [Tese de doutorado, Universidade Paris VII]. classificou como o grupo regional ocidental dos Hupd’äh (interflúvio entre o alto rio Papuri e o alto rio Tiquié), em que se evidencia uma tendência à endogamia regional, estendida também aos coletivos que compõem hoje em dia a comunidade Serra do Cabari (alto rio Tiquié).

Nas Figuras 5 e 6, pode ser vista uma sucessão de moy höd (‘sítios antigos’) desses coletivos clânicos nos igarapés, tais como: Yãç moy höd (‘sítio Chocalho’), D’öp moy höd (‘sítio Japu’), Ya’am moy höd (‘sítio Onça’), S’ug Bug’ moy höd (‘sítio Monte da Floresta’), Yo’ Bug’ moy höd (‘sítio Monte Pinu-Pinu’) etc. Hoje em dia, frequentemente, esses sítios antigos (onipresentes nos mapas desenhados pelas comunidades das diferentes regiões) são os locais de caça, pesca e coleta das famílias dos descendentes dos coletivos clânicos que viveram nesses lugares. E são essas relações de parentesco que se projetam nos mapas desenhados pelas comunidades, nos quais a terra ganha aspectos também de mito, manejo ambiental, história, entre outros.

Essas linhas gerais dos desenhos dos mapas (os caminhos para as cabeceiras, as relações de parentesco expressas nos sítios antigos) desdobram-se em uma miríade de outros caminhos e lugares. Como colocado no tópico anterior a respeito do roteiro para a produção dos mapas, a cada mapa desenhado, havia um excesso; um novo modo de lugar surgia na mata. Mais que uma lista virtualmente infinita de lugares na floresta, o que os Hupd’äh parecem sugerir é que cada evento de desenhar um mapa era ele próprio uma performance narrativa, compartilhada entre os anciãos, jovens e professores presentes, a qual funcionava como uma espécie de catalizador para contar histórias referentes a lugares específicos, estendendo-se, no decorrer dos dias, das oficinas, realizadas nos centros comunitários (Äg moy), para as rodas de ipadu à noite12 12 ‘Ipadu’ é o termo pelo qual é referida regionalmente a folha da coca (Erythroxylum coca). Nas comunidades hup – bem como de outros povos da região do Uaupés, ainda que em menor frequência hoje em dia –, à noite, homens já em idade adulta se juntam em meia lua para comer um composto feito à base da folha de coca com cinza da folha seca da juquira e de outras plantas, acompanhado de cigarros de tabaco, compartilhados. Essas são ocasiões para narração de mitos, benzimentos (fórmulas xamânicas) e histórias em geral. .

Em um desses eventos noturnos de conversa sobre lugares e caminhos, em 2019, Jaime Pena (da comunidade Santa Rosa, alto igarapé Cabari, região do médio Uaupés) desenhou, com o próprio dedo no chão, três caminhos possíveis para Paç Pög (Serra Grande): o caminho atual – que fora percorrido dias antes no contexto do projeto do Museu do Índio/UNESCO –, o caminho dos antigos – com traçado distinto do atual e que, neste momento, está fechado pela mata – e uma espécie de caminho virtual – que seu pai, já falecido, pretendia abrir um dia, e que ele, agora, iria realizar. Assuntos geográficos são comuns nestes contextos das rodas de ipadu, não ficando, diga-se, circunscritos à terra em que estão localizadas as comunidades e os sítios dos Hupd’äh, como pode ser visto no prefácio da tese de Marques (2015)Marques, B. (2015). Os Hupd’äh e seus mundos possíveis: transformações espaço-temporais do Alto Rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. https://buscaintegrada.ufrj.br/Record/aleph-UFR01-000842236
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, em que a conversa foi animada pela possível localização de lugares como Rio de Janeiro, São Paulo e Coreia. Mesmo o ato de desenhar (verbo hi, em língua Hup, tendo extensão semântica que abarca o que em português é diferenciado como ‘escrever’ e como ‘desenhar’) não é algo exclusivo aos tempos e aos modos das escolas que tomaram espaço na vida dos Hupd’äh a partir da missionarização salesiana na década de 1970, como exposto na Introdução. Na tese de Ramos (2013)Ramos, D. (2013). Círculos de coca e fumaça. Encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh (Maku) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2014.tde-21102014-160908
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, podem ser vistos múltiplos modos que o desenho (e a escrita) toma(m) na vida e no pensamento hup.

Ao que parece, os mapas desenhados pelas comunidades são performances narrativas da terra e, ao seu modo, experiências em potencial da paisagem. Pensando no caso da comunidade Santa Rosa (alto igarapé Cabari, região do médio Uaupés) nestes trabalhos de mapeamento participativo com os Hupd’äh, tem-se uma chave para a percepção do primeiro aspecto. Em 2016, junto ao trabalho de censo demográfico e levantamento socioambiental, a comunidade teve a oportunidade de contribuir com um dos mapas desenhados no contexto do PGTA. E, em 2019, com a realização dos trabalhos de mapeamento no projeto do Museu do Índio/UNESCO, desenharam um segundo mapa.

À primeira vista, e de maneira talvez superficial, pode-se dizer que o mapa desenhado em 2016 é mais simples do que o desenhado em 2019. Em uma e outra ocasião, houve uma diferença substancial de tempo que a comunidade pôde dedicar ao exercício de mapeamento nas cartolinas13 13 Nas ‘oficinas itinerantes’ realizadas no PGTA da TI Alto Rio Negro, uma queixa comum das comunidades referia-se ao tempo exíguo que tinham para o desenho dos mapas. , e, em alguma medida, o segundo mapa pode ser visto como mais completo, com uma maior quantidade de pontos e toponímias, uma maior definição de lugares, caminhos e igarapés. Mas, ainda que em sentido estrito pudessem ser vistos como ‘representações’ de um mesmo ‘território’, nem todos os lugares que constam no mapa de 2016 estão presentes no mapa de 2019; as próprias histórias de lugares, catalizadas nos eventos de desenhar um e outro mapa, não foram as mesmas; o contexto em que os desenhos foram feitos e as pessoas que participaram dos eventos não foram exatamente os mesmos.

Os lugares e seus nomes, na miríade de possibilidades nas terras mapeadas por cada comunidade, em suas listagens potencialmente infinitas e eventos narrativos de mapeamento participativo, envolvem histórias singulares, elas próprias marcando eventos específicos localizados no tempo mítico, histórico e cotidiano. Nos exercícios de mapeamento, os Hupd’äh traduziam os ‘lugares sagrados’ como hat niiy (‘com nome’), categoria essa que também era estendida a outros modos de lugares. É como se todo lugar e seu nome remetessem a uma história, mesmo que essa já não seja mais lembrada pelos vivos. Não cabe aqui retomar exaustivamente esses modos de representação iconográfica de lugares e nomes (e histórias).

Nas Figuras 7 a 12, as variedades de lugares, nomes, histórias e camadas temporais presentes nos mapas das comunidades hup estão ilustradas através de alguns exemplos. Podem ser vistas ações cotidianas das comunidades contemporâneas, como na Figura 7, com a imagem dos objetos que ficam nos portos (recipiente de gasolina, motor de rabeta, remo e canoa), bem como, na Figura 8, lugares de manejo ambiental (caça, coleta e extração de cipó). Na Figura 9, a representação gráfica de uma Hũ moy (‘casa de caça’) coloca a relação com os seres que são donos das caças (as agências de não humanos e mais-que-humanos na terra). E, nas Figuras 10 a 12, constam desenhos de três lugares com seus nomes, cada qual remetendo a histórias frequentemente contadas hoje em dia: Tõg Tẽg dëh (igarapé Tõg Tẽg), Páb’ D’oh moy höd (sítio antigo Apodrecimento do Sarampo), Paç Pög (Serra Grande) e Paç Tẽh (Serra Pequena).

Figura 7
Recipiente de gasolina, motor de rabeta, remo e canoa em porto da comunidade Santa Rosa. Detalhe do mapa da comunidade Santa Rosa, feito em novembro de 2019, no alto igarapé Cabari, médio rio Uaupés.
Figura 8
D’ö’ Wed höhöd (‘clareira de pegar comida’); local de extração de cipó, acampamento e caça. Detalhe do mapa da comunidade Waguiá, feito em dezembro de 2015, no alto rio Papuri.
Figura 9
Hohóh moy (‘casa do sapo cururu’); Hũ Moy (‘casa de caça’) do espírito Hohóh (‘sapo cururu’), dono de caça. Detalhe do mapa da comunidade Waguiá, feito em dezembro de 2015, no alto rio Papuri.
Figura 10
Tõg Tẽg dëh (igarapé Tõg Tẽg); desenho de história em que o caçador hupd’äh encontra o batìb’ (espírito) de nome Tõg Tẽg neste lugar. Detalhe do mapa da comunidade Santa Rosa, feito em novembro de 2019, no alto igarapé Cabari, médio rio Uaupés.
Figura 11
Páb’ D’oh moy höd (sítio antigo Apodrecimento do Sarampo); local para onde fugiram os Hupd’äh de Hup Hoy (Poço Gente) quando a epidemia de sarampo chegou. Detalhe do mapa das comunidades Água Viva e Boca do Traíra, feito em dezembro de 2015, no igarapé Japu, médio rio Uaupés.
Figura 12
Paç Pög (Serra Grande) e Paç Tẽh (Serra Pequena); serras na cabeceira do igarapé Cabari, no interflúvio entre o médio rio Uaupés, o médio rio Tiquié e o baixo rio Papuri. Detalhe do mapa da comunidade Santa Rosa, feito em novembro de 2019, alto igarapé Cabari, médio rio Uaupés.

Vistos em conjunto, os mapas desenhados, entre 2015 e 2019, pelas comunidades hup de diferentes regiões do interflúvio, que habitam tradicionalmente entre os rios Papuri, ao norte, Tiquié, ao sul, médio Uaupés, a leste, e a fronteira da Colômbia, a oeste (formando uma espécie de quadrante, como visualizado no primeiro mapa deste texto), podem ser vistos como uma representação iconográfica do que os Hupd’äh chamam, em contextos de enunciação variados, como nih s’ah (literalmente, ‘nossa terra’). Da mesma forma, cada um dos mapas das comunidades pode também ser visto como uma representação iconográfica de nih s’ah – expressão essa, aliás, comum durante os trabalhos de desenho de mapas focados nos ‘limites comunitários’ que foram expostos acima. Como Antônio Ramos (da comunidade Fátima, Iauaretê, foz do rio Papuri no rio Uaupés) certa vez disse, apontando para sua casa, o próprio contorno doméstico pode ser referido como nih s’ah. Esta variação de contextos de enunciação, sugerindo uma simples progressão escalar, é, a bem dizer, mais complexa do que parece à primeira vista.

O conceito de nih s’ah (‘nossa terra’) está presente na literatura etnológica desde o primeiro trabalho realizado com os Hupd’äh (Reid, 1979Reid, H. (1979). Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil [Tese de doutorado, University of Cambridge].). Reid (1979)Reid, H. (1979). Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil [Tese de doutorado, University of Cambridge]. descreveu nih s’áh como um dos patamares do cosmos, a terra, o mundo em que os Hupd’äh vivos habitam, um plano horizontal povoado por uma variedade de seres: povos distantes, povos próximos, Wòhd’äh (termo que designa em língua Hup os povos da família linguística Tukano oriental), animais, batib’d’äh (‘espíritos predadores’), hũ wähähd’äh (os ‘velhos da caça’, ‘donos da caça’), plantas, dentre outros; incluindo, no centro, os Hupd’äh. A ideia de limite territorial está ausente desta descrição de nih s’ah, que coloca um mundo formado por relações entre uma heterogeneidade de seres humanos, não humanos e mais-que-humanos em um gradiente de distância e proximidade.

Como foi visto na descrição dos mapas das Figuras 5 e 6, muito desse sentido de nih s’ah está presente neles, ainda que, enquanto exercícios cartográficos, tenham o potencial de uma leitura territorialista, focada, assim, menos na terra como ‘relações’ do que como ‘limites’. Essa oscilação de leituras possíveis dos mapas desenhados pelas comunidades hup, essa ambivalência constitutiva parece ser uma chave de descrição interessante para delinear potenciais distintos desses exercícios de mapeamento participativo. Os dois polos de relação com a terra – ‘limites’ e ‘relações’ – parecem estar presentes nas falas contemporâneas dos Hupd’äh sobre nih s’ah, cuja complexidade pode ser vislumbrada ao relacionarmos com outras duas expressões comuns nas falas dos Hupd’äh sobre a terra – s’ah sap (literalmente, ‘terra cortada’, usada no sentido de ‘terra indígena demarcada’) e s’ah bi’id ta’ (‘cercar a terra com benzimento’) –, como pode ser visto, por exemplo, na fala da liderança Américo Socot, em vídeo de divulgação da I Oficina do Grupo de Trabalho PGTA, realizada na Maloca da FOIRN, em São Gabriel da Cachoeira (maio de 2017) (FOIRN, 2019bFederação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). (2019b, 14 maio). PGTA - Planos de Gestão Territorial e Ambiental do Médio e Alto Rio Negro [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=QKEt8zGpNcI
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)14 14 Esta fala foi feita em língua Hup e posteriormente foi traduzida para o português. .

Nesta ocasião, a liderança hup fez uma exposição da importância dos ‘benzimentos’ (em língua Hup, bi’id), termo pelo qual regionalmente são referidas as fórmulas xamânicas de cura e proteção dos povos indígenas do alto rio Negro. No caso desta fala de Américo Socot, o que estava em jogo eram justamente os ‘benzimentos’ de cercar a terra (s’ah bi’id ta’) como o modo primordial de mediação e relação com a agência de seres mais-que-humanos no decorrer dos percursos florestais (s’ugan ham k’ö’, ‘circular pela floresta’) que os Hupd’äh fazem para caça, pesca e outras atividades, sendo isto posto, em sua fala, no contexto do PGTA, da PNGATI e ‘dentro da terra demarcada’ (s’ah sap k’ödan).

Neste tópico, o cerne do artigo, foi realizado um percurso de leitura dos mapas desenhados pelos Hupd’äh, passando por uma série de elementos: a imagem geral visualizada dos mapas em sua verticalidade e o processo de desenho em que se percorriam caminhos horizontalmente no papel; a orientação dos desenhos que partem dos grandes rios que cortam a região e se direcionam para a cabeceira dos igarapés (tendo como vértice, portanto, o centro dos interflúvios da região); as relações de parentesco; as relações e agências de outros seres; os lugares e seus nomes etc.

No contexto em que foram produzidos – o PGTA –, esses mapas certamente envolvem aspectos de afirmação territorial. Mas, como pôde ser visto nas descrições acima, o modo como os Hupd’äh processam esses mapeamentos envolve aspectos de performance narrativa entre diferentes gerações, sendo um catalizador para conversas sobre a terra habitada e histórias de lugares. É também um modo de percorrer caminhos no papel, em que o esforço mnemônico para traçar linhas e pontos nas cartolinas – exercício esse que nunca é uma representação absoluta da terra, como visto na comparação entre os dois mapas desenhados pela comunidade Santa Rosa – possibilita entrever um modo de relação com a terra ele próprio relacional, não sendo diretamente equacionável a um conceito de ‘território’ como uma extensão espacial formada por pontos fixos.

Ao final, as considerações traçadas sobre nih s’ah (‘nossa terra’) possibilitam condensar essa duplicidade, na medida em que, contemporaneamente, as falas dos Hupd’äh sobre a terra trazem tanto a ideia de ‘limites’ como de ‘relações’, como pode ser visto nas considerações sobre uma fala de Américo Socot mencionada, em que s’ah sap (expressão usada para ‘terra indígena demarcada’) e s’ah bi’id ta’ (‘cercar a terra com benzimento’) são colocadas em sua contribuição para os trabalhos do PGTA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O QUE PODE UM MAPA?

A pergunta – o que pode um mapa? – que nomeia este tópico final (e o artigo) é decerto retórica. E o exercício proposto foi o de levar estes mapas a sério, inspirado pelo empenho dos Hupd’äh na produção destes artefatos iconográficos e buscando delinear etnograficamente a sensação inicial que se tem diante deles, como colocado na Introdução, qual seja, a de não sabermos se estamos diante de algo excessivamente banal ou completamente surpreendente. O exercício que segue, trazendo também alguns elementos etnográficos, é sobretudo o de relacionar o acima descrito ao seu contexto e a algumas produções relativas aos povos indígenas do alto rio Negro, na busca de traçar, a partir dos desenhos dos mapas, algumas leituras possíveis.

Na Introdução à coletânea de artigos recentemente publicada, intitulada “Radical cartographies: participatory mapmaking from Latin America”, Sletto et al. (2020)Sletto, B. (2020). Introduction: radical social cartographies. In B. Sletto, J. Bryan, A. Wagner, & C. Hale (Eds.). Radical cartographies: participatory mapmaking from Latin America (pp. 1-16). University of Texas Press. argumentam que há muito a produção de mapas não é uma prerrogativa unicamente do Estado, com a transformação do mapeamento participativo, nas duas últimas décadas, em uma ferramenta importante para povos indígenas e outras populações tradicionais, no sentido de afirmar seus direitos territoriais ao realizarem ‘contramapeamentos’ em suas documentações cartográficas. O autor segue colocando que os trabalhos de mapeamento participativo teriam, entretanto, dado um passo além hoje em dia, ingressando em uma nova fase, a qual nomeia como ‘cartografias sociais radicais’, em que se coloca

. . . uma diversidade muito mais ampla de técnicas e finalidades, levando-nos além da visão do mapeamento participativo como uma ferramenta meramente de contestação de mapas produzidos e endossados pelo Estado. Esses mapeamentos diversos representam a vanguarda radical de uma nova cartografia social, com lições significativas para comunidades marginalizadas em todo o mundo.

Além de colocar reivindicações frente ao Estado, comunidades indígenas e afro-descendentes se apropriam de tecnologias de mapeamento participativo para fortalecer a sua autodeterminação, governança local e manejo de recursos em seus próprios territórios; documentar e representar suas próprias concepções de tempo, lugar e espaço; defender direitos territoriais e relativos a outros recursos contra novos atores, incluindo a agroindústria, as indústrias extrativistas e os processos globais associados à legislação sobre mudanças climáticas; e para se engajarem criticamente em reproduções e imaginários de si mesmos e da comunidade em contextos pós-desenvolvimentistas

(Sletto, 2020Sletto, B., Bryan, J., Wagner, A., & Hale, C. (Eds.). (2020). Radical cartographies: participatory mapmaking from Latin America. University of Texas Press. https://doi.org/10.7560/320884
https://doi.org/10.7560/320884...
, p. 1).

A ‘radicalidade’ das novas cartografias sociais estaria, dentre outros aspectos, nesta projeção de técnicas e propósitos de mapeamento para além de uma afirmação territorial em sentido estrito, envolvendo também modos de representar ‘outras concepções de tempo, espaço e lugar’. Se há alguma ‘radicalidade’ nas experiências de mapeamento participativo com os Hupd’äh no contexto do PGTA, pode-se dizer com segurança que não partiu da proposta inicial que lhes foi feita nas ‘oficinas itinerantes’, como colocado no tópico “O PGTA da Terra Indígena Alto Rio Negro e a participação dos Hupd’äh: as ‘oficinas itinerantes’”. E isso torna o cenário ainda mais interessante. Por um lado, os trabalhos de mapeamento realizados por e com povos indígenas do alto rio Negro (e, nesse contexto, com e pelos Hupd’äh) nas últimas décadas respiram este espírito do tempo cartográfico apresentado por Sletto (2020)Sletto, B. (2020). Introduction: radical social cartographies. In B. Sletto, J. Bryan, A. Wagner, & C. Hale (Eds.). Radical cartographies: participatory mapmaking from Latin America (pp. 1-16). University of Texas Press., por outro, pode-se entrever um aspecto singularmente rionegrino nestas produções.

Há um plano de fundo na escrita deste artigo (conferir nota 3), que buscou seguir etnograficamente os mapas desenhados pelos Hupd’äh. O conjunto de trabalhos da coletânea de Andrello et al. (2012a)Andrello, G. (Org.). (2012a). Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro. ISA/FOIRN., em que é desenvolvido o tema da inscrição na paisagem natural das histórias de origem dos povos do rio Negro (Andrello, 2012bAndrello, G. (2012b). Introdução: por que rotas de criação e transformação? In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 8-15). ISA/FOIRN., p. 8), possibilita conexões para visualizar esses mapas desenhados pelos Hupd’äh de modo mais amplo.

Em “Escrever na pedra, escrever no papel”, Hugh-Jones (2012)Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA. relaciona uma variedade de formas iconográficas aos modos indígenas de discurso e de música, abordando ‘iconografia’ em um sentido mais amplo do que o habitual, na medida em que se estende às próprias características da paisagem como “marcas ou traços dos corpos de seres ancestrais e como signos de suas atividades, conforme foram se movendo pelo mundo” (Hugh-Jones, 2012Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA., p. 138). A proposta do autor busca questionar distinções radiciais entre sociedades com ou sem escrita, no sentido de “alargar o campo de investigação examinando a relação mais geral entre tradições orais e as várias formas de iconografia” (Hugh-Jones, 2012Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA., p. 142). Ao fim do texto, Hugh-Jones (2012)Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA. faz uma pequena nota sobre mapas, bastante ilustrativa do que poderia ser chamada de uma propensão cartográfica dos povos indígenas do rio Negro.

Depois do que foi dito acima, não deve surpreender o fato de os povos do alto rio Negro possuírem habilidades cartográficas notáveis. Uma manifestação disso é a produção espontânea de mapas e diagramas na areia, e agora em papel, no contexto de explicação e ensino. . . Como “cartografia social”, mapas assumem um papel central nas iniciativas participativas que conduziram aos programas atuais de etnoeducação, e continuam a assumir um papel muito proeminente nas atividades atuais desses programas. . . Muitos desses mapas representam transformações dos sistemas mnemônicos acima discutidos, pois modos orais e gráficos ainda operam de forma combinada, de modo que, para um observador indígena, esses mapas aparentemente novos podem ser lidos não apenas como representações do espaço e do território, mas também como sequências de cantos e benzimentos.

Mapas oficiais brasileiros e colombianos dividem o território contínuo, que os povos do alto rio Negro consideram ser o centro do mundo, em duas partes desconectadas, cada qual situada bem nas bordas do Estado-nação, uma zona fronteiriça remota e marginal. Em contraste, os mapas indígenas situam a sociedade e o território indígena no palco central

(Hugh-Jones, 2012Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA., pp. 164-165).

Dessas considerações do autor em relação à ‘cartografia social’ no alto rio Negro, e às ‘habilidades cartográficas notáveis’ desses povos, destacam-se dois pontos para as leituras dos mapas desenhados pelas comunidades hup.

O primeiro ponto a ser destacado das considerações de Hugh-Jones (2012)Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA. diz respeito aos mapas como ‘transformações dos sistemas mnemônicos’. Não obstante os mapas parecerem artefatos novos, “podem ser lidos não apenas como representações do espaço e do território, mas também como sequências de cantos e benzimentos” (Hugh-Jones, 2012Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA., p. 164). O que foi acima descrito no tópico “Os desenhos dos mapas de comunidades do povo Hupd’äh” sobre o processo de desenhar mapas como performances narrativas compartilhadas por anciãos e jovens, a apropriação destes eventos para contar histórias sobre caminhos e lugares (implicando também narrativas de benzimentos), parece estar nesta relação transformacional entre linguagem oral e escrita que Hugh-Jones (2012)Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA. tematiza.

Andrello (2012b)Andrello, G. (2012b). Introdução: por que rotas de criação e transformação? In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 8-15). ISA/FOIRN. coloca que os modos de transmissão de conhecimento no alto rio Negro, ainda que tensionados no processo colonial e de missionarização salesiana na região, não teriam se alterado de modo absoluto e ainda que “o chamado ‘conhecimento que nossos avós possuíram’ pareça em geral encontrar-se além do alcance de nossa visão, vislumbramos seus lampejos aqui e ali, por entre rios e localidades mais ou menos distantes ainda nos dias de hoje” (Andrello, 2012bAndrello, G. (2012b). Introdução: por que rotas de criação e transformação? In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 8-15). ISA/FOIRN., p. 13). O autor segue:

Isso nos leva a conjecturar em que medida aquele conhecimento dos avós de que falamos acima, tido às vezes como perdido, ou perdido em parte, não se encontraria ainda lá, por assim dizer. Lá, senão integralmente alojado no pensamento, possivelmente distribuído ao longo dessas rotas de transformação. Entre o que se guarda em pensamento e o que se adquire pela observação ao longo de sucessivas viagens, talvez se situe o modo peculiar pelo qual, no rio Negro, o conhecimento é gerado e, mais que isso, disputado. E eis que índios e antropólogos, cada vez mais, passam a viajar juntos pelos rios da região

(Andrello, 2012bAndrello, G. (2012b). Introdução: por que rotas de criação e transformação? In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 8-15). ISA/FOIRN., p. 14).

Este ‘lá’ que o autor vislumbra no horizonte, onde os conhecimentos dos antigos estariam, se daria entre o (ou através do) ‘pensamento’, as ‘rotas de transformação’ e as ‘paisagens naturais’ da região do rio Negro, como se os lugares, os rios e, acrescenta-se, os caminhos na floresta, fossem de alguma forma eles próprios conhecimento. O que tem sido referido, nos últimos anos, como ‘trabalhos de mapeamento com os Hupd’äh’ foi um processo pensado em alguma medida como complementar a esses trabalhos anteriores, realizados com os demais povos indígenas da região, os quais tomavam como eixo espacial os grandes rios do local. E um dos efeitos dessa profusão de mapas desenhados pelas comunidades hup é justamente o de abrir o registro de um conjunto outro de histórias e lugares, que não necessariamente tomam a beira dos grandes rios como eixo das ‘rotas de transformação’, e sim os caminhos dos interflúvios. E, mais do que isso, a produção de desenhos de mapas pelas comunidades hup, neste sentido colocado por Andrello (2012b)Andrello, G. (2012b). Introdução: por que rotas de criação e transformação? In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 8-15). ISA/FOIRN., pode ser considerada como uma experimentação do modo pelo qual o conhecimento é gerado na região, nos termos usados no segundo tópico deste texto, como uma “experiência possível da paisagem”, inclusive, e talvez sobretudo, no caso dos jovens que não andaram ainda por lugares narrados nos mapas pelos anciãos.

O segundo ponto que pode ser destacado da citação acima de Hugh-Jones (2012)Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA. sobre a ‘cartografia social’ no alto rio Negro é relativo ao contraste entre os ‘mapas oficiais’ e ‘os mapas indígenas [que] situam a sociedade e o território indígena no palco central’. Lolli (2012)Lolli, P. (2012). Nos caminhos dos Yuhupdeh: travessias e conhecimento no igarapé-Castanha. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 211-222). ISA/FOIRN. faz uma importante contribuição na coletânea organizada por Andrello (2012a)Andrello, G. (Org.). (2012a). Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro. ISA/FOIRN.. O autor apresenta seu trabalho com os Yuhupdeh (família linguística Naduhup) da região do igarapé Castanha (afluente do rio Tiquié), partindo do complexo mítico da Cobra-Canoa (comum a uma diversidade de povos da região do Uaupés, inclusive aos Hupd’äh e aos Yuhupdeh) e seus desdobramentos nas hierarquias regionais, descrevendo as relações entre “as narrativas míticas, a paisagem e as trajetórias dos ancestrais” (Lolli, 2012Lolli, P. (2012). Nos caminhos dos Yuhupdeh: travessias e conhecimento no igarapé-Castanha. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 211-222). ISA/FOIRN., p. 215). E conclui, à semelhança do trabalho de Hugh-Jones (2012)Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA., que, nas narrativas míticas, “a paisagem aparece como o congelamento das ações dos ancestrais, tornando-se o registro de sua trajetória” (Lolli, 2012Lolli, P. (2012). Nos caminhos dos Yuhupdeh: travessias e conhecimento no igarapé-Castanha. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 211-222). ISA/FOIRN., p. 220). Lolli (2012)Lolli, P. (2012). Nos caminhos dos Yuhupdeh: travessias e conhecimento no igarapé-Castanha. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 211-222). ISA/FOIRN., em certo ponto do texto, faz uma observação contextual sobre os Yuhupdeh no momento em que realizava sua pesquisa, justamente o contexto de trabalhos de mapeamento (e projetos de outras ordens) com os outros povos da região:

Conquanto esse contexto tenha sido favorável para os povos indígenas da região, os Yuhupdeh não encabeçaram inicialmente nenhum projeto. Isso se deu principalmente porque, assim como outros povos considerados Maku, essas pessoas tiveram um espaço de representatividade nas associações muito pequeno, devido ao seu status inferior na armadura hierárquica. Entretanto, a partir da virada do século XX, esse ambiente começou a mudar e esses povos começaram a reivindicar a elaboração de projetos específicos para eles

(Lolli, 2012Lolli, P. (2012). Nos caminhos dos Yuhupdeh: travessias e conhecimento no igarapé-Castanha. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 211-222). ISA/FOIRN., p. 213).

No caso dos Hupd’äh e Yuhupdeh, considerando seu contexto histórico e político brevemente apresentado na Introdução do presente artigo – remete-se aqui ao que foi descrito como ‘uma espécie de decalagem histórica’ – e pontuado por Lolli (2012)Lolli, P. (2012). Nos caminhos dos Yuhupdeh: travessias e conhecimento no igarapé-Castanha. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 211-222). ISA/FOIRN. na citação acima, o contraste apresentado por Hugh-Jones (2012)Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação. Narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). ISA. em relação aos ‘mapas oficiais’ (do Estado) e aos ‘mapas indígenas’ – que ‘situam a sociedade e o território indígena no palco central’ – deve ser retomado etnograficamente e ligeiramente nuançado.

Como exposto no começo do tópico sobre as ‘oficinas itinerantes’ realizadas com os Hupd’äh e os Yuhupdeh nos trabalhos de elaboração do PGTA da TI Alto Rio Negro, a liderança Américo Socot orientou que as oficinas deveriam ser, justamente, ‘itinerantes’, como um modo de favorecer que seus parentes hupd’äh de diferentes comunidades e regiões se relacionassem com os trabalhos que estavam sendo propostos, considerando as dificuldades que têm nos contextos das reuniões e assembleias multietnicas do rio Negro. Olhando retrospectivamente, a orientação de Américo faz cada vez mais sentido, e é possível que o desenho dos mapas tenha tido função axial nesse modo de relação dos Hupd’äh no contexto dos trabalhos do PGTA.

Inicialmente, no planejamento das oficinas de 2015, o desenho dos mapas foi pensado, sem maiores pretensões, como uma espécie de complemento das discussões sobre ‘manejo ambiental e alimentação’, sob a imagem algo simplista dos ‘usos do território’, numa oposição igualmente simplista entre o ‘humano’ e a ‘terra’. Mas, com o passar das oficinas, esses mapas destacaram-se de outra forma, pois havia aparentemente outra camada em jogo. Primeiro, notava-se uma mudança anímica nos humores da oficina quando do momento do desenho de mapas, saindo da conversa em forma de assembleia comunitária e consulta sobre ‘políticas públicas’ e outros itens que fazem parte do que os Hupd’äh chamam pela ampla categoria de Tëg Hõd’äh nih id (‘fala dos não indígenas’). Esse primeiro momento das reuniões, a despeito da dedicação das lideranças, agentes indígenas de saúde e professores, em geral, era permeado por longas pausas silenciosas por parte dos demais que estavam sendo consultados. Entretanto, o momento de desenhar os mapas invertia esses humores, rapidamente agregando diferentes gerações, conhecimentos e capacidades, produzindo desenhos com dedicação e detalhamento, gerando conversas e debates sobre lugares pontuais, estendendo-se à noite nas rodas de ipadu e aos dias seguintes. Era como se os Hupd’äh estivessem tratando dos temas das oficinas através dos mapas, como se falassem através deles. Como se uma ‘língua da terra’ – não de qualquer uma, mas da terra deles, de nih s’àh – fosse possível e produzisse efeitos no mundo.

Nesse sentido, há algo a ser colocado. Em suas experiências recentes na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no lugar paradigmático em que vivem o espaço e os modos dos não indígenas, a eles muitas vezes é imputada uma posição inferior (os que não sabem português, os que não conhecem as leis e as instituições, os que não sabem andar na cidade ou interagir nos comércios e bancos). Como colocado na Introdução, dentre os povos indígenas da região, eles são os que marcadamente não dominaram, em comparação, os saberes dos não indígenas. Ao passo que, no centro da floresta, essa relação se inverte, este é o espaço em que destacam sua potência vital e seus conhecimentos, inclusive, por vezes, em relação aos outros povos indígenas da região. Nas caminhadas que foram realizadas na floresta, o leitmotiv era a expressão jocosa, mas não menos profunda, tëg hõ ĩh hipãh nih (‘o branco não sabe nada’). Talvez seja a partir desta terra que, de alguma forma, possam colocar a Tëg Hõd’äh nih id (‘fala dos não indígenas’) em seus próprios termos, desenhando mapas: em algum sentido, invertendo assimetrias. É a afirmação de uma territorialidade, sem dúvida, mas também pode ser algo mais que isso.

  • 1
    Entre a primeira versão submetida deste artigo e a versão final, ocorreu o falecimento da liderança Américo Salustiano Socot, no dia 29 de julho de 2023, em São Gabriel da Cachoeira. Mais do que um personagem que pontua as passagens do exercício etnográfico que segue, Américo Socot foi um orientador e participante dos trabalhos que são descritos, além de uma inspiração para a continuidade disso em forma de reflexão acadêmica. Portanto, este texto acaba por ser também parte da memória da atuação e da dedicação desta grande liderança do povo Hupd’äh, e amigo pessoal. Um texto em homenagem a Américo pode ser acessado em Radler et al. (2023)Radler, J., Sampaio, A., Marques, B., Cruz, D., Epps, P., Ramos, D., & Moreira, R. (2023). A força delicada de um sábio da floresta. Instituto Socioambiental. https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/forca-delicada-de-um-sabio-da-floresta
    https://www.socioambiental.org/noticias-...
    .
  • 2
    Composições textuais anteriores de parte dos materiais trabalhados neste texto foram apresentadas nos seguintes congressos: Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia (em 2017 e 2021), Reunião de Antropologia Brasileira (2020) e Sociedade para a Antropologia das Terras Baixas da América do Sul (2021). Agradeço aos coordenadores dos grupos de trabalho dos quais participei em cada um desses eventos, bem como aos colegas que contribuíram com as reflexões. Este texto é um recorte específico dentro da reflexão mais ampla sobre o mapeamento com os Hupd’äh, a qual será trabalhada também em publicações futuras.
  • 3
    Esse conjunto de trabalhos, por sua vez, tem como pano de fundo uma série de produções de mapeamento participativo realizada com os demais povos da região do alto rio Negro, os quais estão concentrados em artigos acadêmicos presentes na coletânea organizada por Andrello (2012a)Andrello, G. (Org.). (2012a). Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro. ISA/FOIRN.. Este livro desenvolve “um tema de enorme relevância na vida dos povos indígenas da região”, qual seja, “a inscrição de suas histórias de origem na paisagem natural” (Andrello, 2012bAndrello, G. (2012b). Introdução: por que rotas de criação e transformação? In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 8-15). ISA/FOIRN., p. 8). Uma das partes da coletânea é integralmente voltada a “experiências de mapeamento participativo realizadas na região, referentes à produção de mapas e outros tipos de registros das narrativas de origem das quais derivam” (Andrello, 2012bAndrello, G. (2012b). Introdução: por que rotas de criação e transformação? In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 8-15). ISA/FOIRN., p. 9). Quanto aos mapeamentos realizados anteriormente especificamente com o povo Hupd’äh, cabe referir, ainda que em sobrevoo, contribuições de Gerardo Bamonte (na década de 1960) (Bamonte, 1972Bamonte, G. (1972, set.). De um trabalho de campo do autor: localização de aldeias Macus na área do Rio Tique (Alto Rio Negro, Amazonas). In Congresso Internazionale Degli Americanisti, Tilgher, Genova., 1973Bamonte, G. (1973). I Macu dell’alto Rio Negro: delimitazione delle aree di distribuzione e breve inchiesta etnografica su alcuni insediamenti del Tiquie [Tese de doutorado, Universitá Degli Studi di Roma].), Howard Reid (na década de 1970) (Reid, 1979Reid, H. (1979). Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil [Tese de doutorado, University of Cambridge].), Renato Athias (na década de 1980) (Athias, 1995Athias, R. (1995). Hupde-Maku et Tukano: relations inégales entre deux sociétés du Uaupés Amazonien (Bresil) [Tese de doutorado, Universidade de Paris X].) e Jorge Pozzobon (na década de 1990) (Pozzobon, 1991Pozzobon, J. (1991). Parente et demographie chez les indiens Maku [Tese de doutorado, Universidade Paris VII].). Este último realizou os primeiros trabalhos com base na tecnologia de Global Positioning System (GPS) no contexto da demarcação da Terra Indígena Alto Rio Negro, e que forneceu a base para a produção do mapa da Figura 1. Ao longo do segundo tópico deste texto, outros mapeamentos realizados com os Hupd’äh serão relacionados à descrição dos mapas desenhados pelas comunidades deste povo a partir de 2015
  • 4
    Trata-se do projeto de cooperação técnica internacional “Salvaguarda do patrimônio linguístico e cultural de povos indígenas transfronteiriços e de recente contato na região amazônica” (UNESCO/Museu do Índio/FUNAI), sob coordenação científica de Carlos Fausto, dentro do qual foram desenvolvidos dois subprojetos relativos aos povos da família linguística Naduhup: “Caminhos dos Dâw, Hupd’äh e Nadëb: arte verbal e imagem, tecendo floresta e mundos” (2017-2018) e “Tiw b¯ig niiy: caminhos antigos e saberes dos Hupd’äh no centro da floresta” (2019-2020).
  • 5
    No momento, em uma pesquisa realizada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), sob supervisão de Márcio Meira, estou organizando a somatória dos trabalhos de mapeamento realizados com os Hupd’äh na última década (entre o PGTA e o projeto de salvaguarda acima mencionado), bem como relacionando-os a registros históricos da habitação dos Hupd’äh em trabalhos acadêmicos no decorrer do século XX e em documentos históricos e de viajantes dos séculos XVIII e XIX. O objetivo é constituir uma base de dados integrada.
  • 6
    Para a compreensão dos sentidos pejorativos do termo ‘Maku’ na região do rio Negro e para a classificação contemporânea da família linguística Naduhup, conferir Epps e Bolaños (2017)Epps, P., & Bolaños, K. (2017). Reconsidering the “Makú”; language family of Northwest Amazonia. International Journal of American Linguistics, 83(3). https://doi.org/10.1086/691586
    https://doi.org/10.1086/691586...
    .
  • 7
    Para uma contextualização da PNGATI e dos PGTA como instrumentos dessa política pública, conferir Smith et al. (2021)Smith, M., Sena, V. O., Siqueira Júnior, J. G., Teruya, V., Paes, F., & Pimentel, S. (2021). Gestão territorial e ambiental de terras indígenas: PNGATI, avanços e desafios. In M. Carneiro da Cunha, S. B. Magalhães & C. Adams (Orgs.), Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil: contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças (pp. 94-111). SBPC. http://portal.sbpcnet.org.br/livro/povostradicionais5.pdf
    http://portal.sbpcnet.org.br/livro/povos...
    . Sobre experiências de elaboração de PGTA em terras indígenas em outras regiões amazônicas, conferir Grupioni (2020)Grupioni, L. (Org.). (2020). Em busca do bem viver: experiências de elaboração de Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas. Rede de Cooperação Amazônica – RCA.. Quanto à elaboração do PGTA da TI Alto Rio Negro, há um artigo acadêmico de referência (Iubel, 2019Iubel, A. (2019). De dissonâncias e traduções: territorialidades e gestões no alto rio Negro. Ilha, 21(1), 197-225. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2019v21n1p197
    https://doi.org/10.5007/2175-8034.2019v2...
    ), bem como uma série de publicações intituladas “Governança e bem viver indígena: planos de gestão territorial e ambiental das terras indígenas do alto e médio rio Negro”, publicadas entre 2016 e 2018 (FOIRN, FUNAI e ISA). Nas referências deste artigo, podem ser encontrados os links para acesso às publicações do “PGTA Wasu” (FOIRN, 2021Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). (2021). Plano de gestão indígena do alto e médio Rio Negro: PGTA Wasu. FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/plano-de-gestao-indigena-do-alto-e-medio-rio-negro-pgta-wasu
    https://acervo.socioambiental.org/acervo...
    ), integrando os trabalhos realizados nas diferentes terras indígenas da região, e do PGTA da Terra Indígena Alto Rio Negro (FOIRN, 2019aFederação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). (2019a). Plano de gestão territorial e ambiental: Terra Indígena Alto Rio Negro. FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/plano-de-gestao-territorial-e-ambiental-terra-indigena-alto-rio-negro
    https://acervo.socioambiental.org/acervo...
    ).
  • 8
    1ª oficina na comunidade Taracuá Igarapé; 2ª oficina na comunidade Barreira Alta.
  • 9
    1ª oficina na comunidade São Martinho, igarapé Cunuri; 2ª oficina na comunidade Guadalupe, igarapé Ira; 3ª oficina na comunidade São Felipe, igarapé Cunuri.
  • 10
    Na região do igarapé Japu, foram realizadas quatro oficinas: 1ª oficina na comunidade Nossa Senhora de Fátima, Iauaretê; 2ª oficina na comunidade Santa Cruz do Cabari, com presença de lideranças de Jacaré Banquinho, Piracema e Santa Rosa; 3ª oficina em Boca do Traíra, com presença da comunidade vizinha, Água Viva; 4ª oficina em Santo Atanásio. No rio Papuri, foram realizadas três oficinas: 5ª oficina em Santa Cruz do Turi; 6ª oficina na comunidade São Fernando, com presença de lideranças da comunidade Cabeça da Onça; e 7ª oficina na comunidade Waguiá.
  • 11
    No contexto da região do rio Uaupés e seus afluentes, essas serras na cabeceira dos igarapés não têm importância marcada somente para os povos da família linguística Naduhup. Nota-se que os Desano da comunidade de Santa Cruz do Turi (baixo rio Papuri), nos trabalhos do PGTA da TI Alto Rio Negro, colocaram sua relação antiga com esse conjunto de serras entre o baixo Papuri e o médio Uaupés. Da mesma forma fizeram os Tukano da comunidade Jandiá (vizinha à comunidade hupd’äh Waguiá) em relação à serra Patauá, no interflúvio entre os altos rios Papuri e Tiquié. E, na dissertação de mestrado de José Rivelino Barreto (povo Tukano), quando o autor comenta os limites territoriais de sua comunidade, São Domingos Sávio (alto rio Tiquié), pode ser identificada justamente a seguinte marcação: “à Leste, o limite é a Serra Bacaba, Nhumungu, na cabeceira do rio Cabarí” (Barreto, 2012Barreto, J. R. (2012). Formação e transformação de coletivos indígenas no noroeste amazônico: do mito à sociologia das comunidades [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Amazonas]. https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/2869
    https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/286...
    , p. 132).
  • 12
    ‘Ipadu’ é o termo pelo qual é referida regionalmente a folha da coca (Erythroxylum coca). Nas comunidades hup – bem como de outros povos da região do Uaupés, ainda que em menor frequência hoje em dia –, à noite, homens já em idade adulta se juntam em meia lua para comer um composto feito à base da folha de coca com cinza da folha seca da juquira e de outras plantas, acompanhado de cigarros de tabaco, compartilhados. Essas são ocasiões para narração de mitos, benzimentos (fórmulas xamânicas) e histórias em geral.
  • 13
    Nas ‘oficinas itinerantes’ realizadas no PGTA da TI Alto Rio Negro, uma queixa comum das comunidades referia-se ao tempo exíguo que tinham para o desenho dos mapas.
  • 14
    Esta fala foi feita em língua Hup e posteriormente foi traduzida para o português.
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Editado por

Responsabilidade editorial: Márcio Couto Henrique

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2023
  • Aceito
    22 Jan 2024
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