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Entre territórios e mundos: espacialidade e contracartografia kotiria e kubeo no alto rio Uaupés, Amazonas, Brasil

Between territories and worlds: spatiality and counter-cartography among the Kotiria and Kubeo on the Upper Vaupés River (AM)

Resumo

Este artigo discute a relação entre as concepções, os discursos e as produções cartográficas sobre o território dos povos Kotiria (Wanano) e Kubeo, habitantes do rio Uaupés, na Terra Indígena do Rio Negro, e falantes de línguas da família Tukano. Nossos dados e reflexões têm como principal base um projeto de Plano de Gestão Ambiental e Territorial Kotiria e Kubeo (PGTA-KK), realizado entre 2014 e 2016. Analisamos como se deu o processo de mapeamento e de produção cartográfica, assim como os diversos mapas resultantes do PGTA-KK. A partir dos lugares nomeados que foram mapeados, exploramos a relação entre toponímia, narrativas míticas, benzimentos e outras formas de expressões simbólicas de conhecimentos assentados nos lugares e na paisagem. A análise comparativa dessas questões entre os Kotiria e Kubeo enseja uma reflexão sobre uma espacialidade compartilhada como uma dimensão simbólica que estrutura o pensamento sobre o território. Com base nisso, revisitamos a produção cartográfica kotiria e kubeo para refletir sobre os limites e as potencialidades da utilização de diferentes tipos de mapas e atividades de mapeamento por povos indígenas, como as chamadas ‘contracartografias’, as ‘cartografias indígenas’, os ‘etnomapeamentos’ e outras formas de produções cartográficas capazes de inovar na forma de representar o território de modo a serem mais fiéis às concepções indígenas sobre lugares, territórios e mundos.

Palavras-chave
Kotiria; Kubeo; Uaupés; Contracartografia; Etnomapeamento; PGTA

Abstract

This article discusses the relationship between the conceptions, discourses and cartographic productions about the territory of the Kotiria (Wanano) and Kubeo peoples, who live on the Uaupés river in the Upper Rio Negro Indigenous Territory, and are speakers of languages of the Tukanoan family. Our data and reflections are mainly from the project Plano de Gestão Ambiental e Territorial Kotiria e Kubeo (PGTA-KK) carried out between 2014 and 2016. We analyze the mapping and mapmaking processes, and the various maps resulting from PGTA-KK. From the identified places, we explored the relationship between toponymy, mythical narratives, healing prayers and other forms of symbolic expressions of kinds of knowledge that ‘sit in places’ and in the landscape. The comparative analysis of these issues between the Kotiria and Kubeo gives rise to a reflection on a shared spatiality as a symbolic dimension that structures the conception about territory. Based on this concept, we revisit the cartographic production of Kotiria and Kubeo in order to reflect on the limits and potentialities of the use of different types of maps and mapmaking activities by indigenous peoples. This includes the so-called ‘counter-cartographies,’ ‘indigenous cartographies,’ ‘ethnomapping’ and other forms of cartographic productions capable of innovating the representation of territory so as to be more faithful to indigenous conceptions about place, territories and worlds.

Keywords
Kotiria; Kubeo; Vaupés; Contra-Cartography; Ethnomapping; PGTA

INTRODUÇÃO

Os mapas são performativos, participativos e políticos (Crampton, 2009Crampton, J. W. (2009). Cartography: performative, participatory, political. Progress in Human Geography, 33(6), 840-848. https://doi.org/10.1177/0309132508105000
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). São performativos no sentido em que eles não apenas representam o território, mas efetivamente o fabricam; são participativos e políticos na medida em que representam projetos coletivos que reforçam ou desafiam as formações espaciais hegemônicas. Os mapas podem funcionar de diferentes maneiras, segundo seu contexto de utilização. Para localização e navegação no espaço, para planejamento e gestão, podem ter função pedagógica, ser obras de arte ou peças de coleção. No contexto da conquista das Américas, no entanto, a função mais conspícua dos mapas tem sido a de despojar os povos indígenas de suas terras tradicionais, ao delimitar, em sua superfície, os territórios desses grupos enquanto propriedades privadas ou estatais. Nesse sentido, enquanto avançamos pela terceira década do século XXI, cabe-nos perguntar: que tipo de cartografia é mais adequada para os povos indígenas?

Neste artigo, oferecemos algumas reflexões sobre essa questão com base na nossa análise e revisão dos processos de mapeamento e diagnóstico participativos realizados no âmbito do Projeto de Elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental Kotiria e Kubeo (PGTA-KK), coordenado pela Associação da Escola Khumuno Wu’u Kotiria (ASEKK) e financiado pelo Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI), entre 2014 e 2016, envolvendo 11 comunidades Kotiria e Kubeo no alto Uaupés, na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro, conforme ilustrado na Figura 11 1 Ver também ASEKK e UNIARWA (2020). . Como coordenadores não indígenas desse projeto, vamos discutir potencialidades e limitações de uma abordagem interdisciplinar e intercultural, conduzida por diferentes atores ao longo de vários anos, com o uso de diferentes tecnologias e metodologias participativas. Com isso, pretendemos explorar algumas perspectivas para o que concordamos em chamar de ‘contracartografia’, termo cunhado por Nancy Peluso na década de 1990 (Peluso, 1995Peluso, N. L. (1995). Whose woods are these? Counter-mapping forest territories in Kalimantan, Indonesia. Antipode, 27(4), 383-406. https://doi.org/10.1111/j.1467-8330.1995.tb00286.x
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), e que abriga conceitualmente outros tipos de ‘cartografias’, com disposições políticas e epistemológicas convergentes.

Figura 1
O nexo regional da pesquisa. Fonte: Rocha (2012, p. 43)Rocha, P. (2012). Antes os Brancos não existiam: Corporalidade e Política entre os Kotiria do Alto Uaupés (AM) [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional]. https://minerva.ufrj.br/F/?func=direct&doc_number=000780959&local_base=UFR01
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Entre os muitos termos usados na vizinhança semântica do que entendemos por contracartografia, temos: cartografia tática, cartografia social, cartografia radical, autocartografia, contramapeamento, mapeamento cultural, mapeamento paroquial, cartografia cultural, mapeamento comunitário, cartografia decolonial, mapeamento de subsistência, etnocartografia e etnomapeamento. Embora apresentem variações importantes, no que diz respeito aos sujeitos envolvidos e aos seus objetivos, os processos descritos por estes termos compartilham algumas características, que julgamos estarem presentes também em trabalhos como o PGTA-KK. Em primeiro lugar, eles descrevem práticas e procedimentos eminentemente políticos, nos quais coletivos historicamente subordinados se apropriam da técnica de representação cartográfica do Estado, de modo a fundamentar suas reivindicações perante o mesmo Estado. Em outras palavras, sujeitos que até então foram mapeados começam, eles mesmos, a mapear. No que tange aos procedimentos, estas práticas lançam mão, de maneira consciente ou inconsciente, de metodologias participativas inspiradas no diagnóstico participativo rural (DRP) e na pesquisa-ação (Mac Chapin et al., 2005Mac Chapin, M., Lamb, Z., & Threlkeld, B. (2005). Mapping Indigenous Lands. Annual Review of Anthropology, 34, 619-638. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.34.081804.120429
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, p. 621). Do ponto de vista conceitual, esses processos de mapeamento permitem representações diferentes dos territórios indígenas, vistos através de outras bases ideológicas e epistemológicas, e caexpressos por recursos discursivos, semióticos e estéticos próprios. A análise comparativa nos permite uma perspectiva tanto sobre a expressão de ‘territorialidades’ indígenas específicas, quanto também de uma lógica ulterior – uma linguagem mais profunda – como forma de expressão de uma ‘espacialidade’ compartilhada por diferentes povos indígenas, como os Kotiria, os Kubeo e outros povos do alto rio Negro.

Vamos explorar essas questões neste artigo da seguinte maneira: na primeira seção, faremos uma breve genealogia dos processos de contracartografia e cartografia indígena ocorridos nos últimos 50 anos, de modo a contextualizar o mapeamento realizado pelos povos Kotiria e Kubeo do alto rio Uaupés; na segunda parte, vamos descrever como se deu o processo de mapeamento e fazer algumas considerações sobre a produção cartográfica resultante deste trabalho; na terceira parte, vamos fazer algumas considerações finais sobre os limites e as potencialidades da utilização de mapas e atividades de mapeamento por povos indígenas, bem como refletir sobre outras formas de produções cartográficas que sejam capazes de inovar na forma de representar o território, de modo a serem mais fiéis às concepções indígenas sobre lugares, territórios e mundos.

ANTECEDENTES PARA UMA CONTRACARTOGRAFIA INDÍGENA NO UAUPÉS

Uma forma de começar a contar a história de como a contracartografia desembarcou no Uaupés é pelas planícies geladas do Canadá e do Alasca, onde, há mais de 60 anos, tiveram lugar os primeiros processos contracartográficos indígenas. Eles aconteceram na região Inupiat de North Slope Barrow, no Alasca, ainda nas décadas de 1950 e 1960, e foram “the first notable application of mapping methodologies to issues of public policy, specifically, conflicting land and resource use” (Ellanna et al., 1985Ellanna, L. J., Sherrod, G. K., & Langdon, S. J. (1985). Subsistence mapping: an evaluation and methodological guidelines (Technical Paper No. 125). Alaska Department of Fish & Game., p. 64 citado em Mac Chapin et al., 2005Mac Chapin, M., Lamb, Z., & Threlkeld, B. (2005). Mapping Indigenous Lands. Annual Review of Anthropology, 34, 619-638. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.34.081804.120429
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, p. 622). Poucos anos depois, um novo mapeamento foi realizado, ainda entre os Inupiat, como parte de uma avaliação socioambiental no âmbito do “Projeto Chariot”, que propunha escavar um porto na região por meio da detonação de bombas nucleares (Mac Chapin et al., 2005Mac Chapin, M., Lamb, Z., & Threlkeld, B. (2005). Mapping Indigenous Lands. Annual Review of Anthropology, 34, 619-638. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.34.081804.120429
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, p. 624).

A metodologia utilizada nestes mapeamentos, que ficou conhecida como ‘mapa-biografia’, propunha-se a mapear os itinerários individuais que os indígenas realizavam na consecução de suas atividades produtivas pelo território ao longo do tempo (Offen & Rundstrom, 2015Offen, K., & Rundstrom, R. (2015). Indigenous peoples and western cartography. In D. Woodward & G. J. B. Harley (Eds.), The history of cartography (Vol. 6, pp. 243-264). The University of Chicago Press., p. 642). O território inupiat, que nos mapas coloniais era representado como um grande espaço vazio, pela primeira vez aparecia como ele realmente era: um emaranhado de caminhos, lugares nomeados e ‘sagrados’, pontos de passagem, lugares de acampamento, de caça, de pesca e de coleta.

Na década de 1970, diante das pressões de mineradoras e petrolíferas sobre seus territórios, as organizações dos indígenas Inuit e First Nations realizaram dezenas de mapeamentos semelhantes em diversas regiões no Canadá, nos quais a metodologia dos mapas biográficos foi replicada e aprimorada. Diante da decisão do governo canadense de realizar e financiar projetos de uso e ocupação das terras (Land Use and Occupancy Projects - LUOP) para determinar a validade dos ‘títulos aborígenes’ que ainda não haviam sido extintos por lei, as organizações indígenas canadenses estimularam a produção de centenas de ‘mapas-biografia’, sendo o Inuit Land Use and Occupancy o exemplo mais notável (Offen & Rundstrom, 2015Offen, K., & Rundstrom, R. (2015). Indigenous peoples and western cartography. In D. Woodward & G. J. B. Harley (Eds.), The history of cartography (Vol. 6, pp. 243-264). The University of Chicago Press., p. 623). Conduzido pela organização Inuit Tapirisat do Canadá (hoje, Inuit Tapiriit Kanatami), o projeto documentou o uso e a ocupação inuit em mais de 380 milhões de hectares de terra e mar, lançando as bases para o que mais tarde se tornaria o primeiro e maior território indígena autogovernado das Américas, conhecido hoje como Nunavut (Offen & Rundstrom, 2015Offen, K., & Rundstrom, R. (2015). Indigenous peoples and western cartography. In D. Woodward & G. J. B. Harley (Eds.), The history of cartography (Vol. 6, pp. 243-264). The University of Chicago Press., p. 649).

Estudiosos apontam que as experiências dos povos indígenas Inupiat e Inuit foram determinantes para catalisar uma onda de contramapeamentos indígenas em todo mundo a partir da década de 1990 (Hirt, 2022Hirt, I. (2022). Indigenous mapping: reclaiming territories, decolonizing knowledge. In B. Debarbieux & I. Hirt (Eds.), The politics of mapping (pp. 155-185). ISTE Group, Wiley.; Mac Chapin et al., 2005Mac Chapin, M., Lamb, Z., & Threlkeld, B. (2005). Mapping Indigenous Lands. Annual Review of Anthropology, 34, 619-638. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.34.081804.120429
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; Offen & Rundstrom, 2015Offen, K., & Rundstrom, R. (2015). Indigenous peoples and western cartography. In D. Woodward & G. J. B. Harley (Eds.), The history of cartography (Vol. 6, pp. 243-264). The University of Chicago Press.). Com efeito, às experiências inuit se seguiram, entre 1990 e 2000, mapeamentos indígenas em diversos países da América Central e da América do Sul, bem como do sudoeste asiático, de Papua Nova Guiné, Filipinas, África do Sul, Congo, Tanzânia, China, Índia, entre outros (ver Mac Chapin et al., 2005Mac Chapin, M., Lamb, Z., & Threlkeld, B. (2005). Mapping Indigenous Lands. Annual Review of Anthropology, 34, 619-638. https://doi.org/10.1146/annurev.anthro.34.081804.120429
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, p. 625, para a lista detalhada).

A partir do exemplo inuit, a contracartografia indígena se espalhou pelo mundo por meio de trilhas diversas. Ela viajou através das redes do movimento indígena internacional, em encontros e grupos de trabalho promovidos por órgãos de representação indígena em nível mundial, como o Conselho Mundial dos Povos Indígenas (WCIP), o Grupo de Trabalho sobre Povos Indígenas (WGIP), entre outros (Hirt, 2022Hirt, I. (2022). Indigenous mapping: reclaiming territories, decolonizing knowledge. In B. Debarbieux & I. Hirt (Eds.), The politics of mapping (pp. 155-185). ISTE Group, Wiley., p. 13). A contracartografia indígena também se disseminou por meio de grandes organizações não governamentais (ONG’s), agências e programas internacionais, notadamente das Nações Unidas, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)2 2 Os mapeamentos na América Central e no sudeste asiático, nos anos 1990 (Panamá, em 1993, Belize e Nicarágua, em 1993, Guatemala, em 1997, Indonésia, em 1990), foram realizados com o auxílio da World Wildlife Federation (WWF), com apoio financeiro do Banco Mundial. ONG’s norte-americanas, como a Amazon Conservation Team (ACT) e The Nature Conservancy (TNC), foram instrumentais na disseminação dos processos contracartográficos na América Latina e no Brasil (Offen & Rundstrom, 2015, p. 643). .

Em resumo, ‘uma notável confluência de eventos’ contribuiu para a proliferação de processos contracartográficos ao redor do mundo a partir da década de 1990. Offen e Rundstrom (2015, p. 643) destacam alguns fatores que proporcionaram esse cenário:

A promulgação da Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] sobre Povos Indígenas e Tribais (OIT 169); a transformação da tecnologia digital e a concomitante democratização dos sistemas de informação geográfica (SIG), imagens de satélite, sistemas de posicionamento global, e a Internet; a globalização de políticas econômicas neoliberais; atenção da mídia internacional às questões de sustentabilidade ambiental e direitos humanos; a crescente proeminência de organizações não governamentais (ONG’s) internacionais e nacionais na promoção dos direitos indígenas e conservação ambiental em Terras Indígenas; ascensão mundial ao poder de uma nova geração de líderes indígenas conhecedores da mídia, imersos em lições aprendidas no início do século.

Embora a Convenção 169 da OIT só tenha sido ratificada no Brasil em 2004, ela certamente contribuiu para impulsionar processos de mapeamento indígena também por aqui. Isso porque, independentemente de sua recepção nos ordenamentos jurídicos nacionais, a Convenção 169 passou a balizar as ações dos organismos internacionais, em especial das Nações Unidas e do Banco Mundial, que foram muito atuantes na difusão e no financiamento dos processos de mapeamento indígena, que ganhariam impulso no Brasil a partir da primeira década do século XXI.

A ECO-92, nome pelo qual ficou conhecida a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992, também foi determinante neste processo. Entre outras providências, foi nesta conferência que se instituiu o Fundo Global para o Meio Ambiente (Global Environment Fund – GEF), vinculado ao Banco Mundial. Segundo Printes (2012, p. 67)Printes, R. (2012). Gestão territorial e ambiental. Contribuições de um emergente debate para a afirmação dos territórios sociais indígenas [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/87325
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, a partir de então, o “GEF passa a ser o único órgão permanente que viabiliza recursos para pôr em prática as Convenções firmadas na ONU [Organização das Nações Unidas] durante a Rio 92”. O Programa de Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, conhecido como PPG7, é um desses programas.

Além das ONG’s e dos organismos internacionais, o próprio Estado brasileiro, em suas esferas estaduais e federais, também atuou para difundir a contracartografia entre os povos indígenas. As mudanças promovidas no ordenamento jurídico brasileiro após a promulgação da Constituição Federal de 1988, em particular no tocante à obrigação do Estado em demarcar todas as terras indígenas em um prazo máximo de cinco anos, motivou a celebração de acordos de cooperação técnica e financeira entre agências do Estado, organizações não governamentais, fundos e agências financeiras e o movimento indígena, no sentido de agilizar a demarcação de terras indígenas no Brasil (Mendes, 2002Mendes, A. (2002). O PPTAL e as demarcações participativas. In A. C. S. Lima & M. B. Hoffman (Orgs.), O Estado e os povos indígenas (pp. 181-202). Contracapa., p. 37).

Um fato frequentemente omitido na literatura sobre a cartografia com e por povos indígenas, e que torna o Brasil um caso especial, é que a metodologia dos mapeamentos participativos da contracartografia foi adotada aqui muito cedo, em diversos processos de demarcação de terras indígenas ainda no começo da década de 1990, por meio da atuação do Projeto de Proteção das Terras da Amazônia Legal (PPTAL). Segundo Mendes (2002)Mendes, A. (2002). O PPTAL e as demarcações participativas. In A. C. S. Lima & M. B. Hoffman (Orgs.), O Estado e os povos indígenas (pp. 181-202). Contracapa., o PPTAL é a ‘vertente indígena’ do PPG7 e sua principal contribuição foi, por meio da celebração de um acordo de cooperação técnica e financeira com o governo alemão e com o Banco Mundial, ter concluído 97 demarcações de terras indígenas até o ano de 1997. Muitas delas foram realizadas de maneira participativa, com metodologia inspirada nos processos de contracartografia citados anteriormente. Além das demarcações, um dos componentes do PPTAL, o de vigilância e monitoramento territorial, também investiu em “capacitação e estudos, consistindo da implementação de um sistema de informações geográficas” (Viergever, 2005Viergever, M. (2005). Projeto integrado de proteção às populações e terras indígenas da Amazônia Legal – PPTAL. Estudo de avaliação. United Nations Development Programme. https://erc.undp.org/evaluation/evaluations/detail/2082?tab=info
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, p. 5).

Todos esses elementos se somaram para constituir um ambiente extremamente favorável à realização de levantamentos contracartográficos indígenas no Brasil na primeira década do século XXI. Lançando mão do conceito de ‘etnoinstrumentos’3 3 O conceito de ‘etnoinstrumento’ proposto por Little (2006) é mais amplo e envolve o que ele denominou de ‘instrumentos de diagnóstico’, ‘instrumentos de mapeamento’ e ‘instrumentos de gestão’. No entanto, a totalidade dos exemplos fornecidos em seu levantamento envolve alguma utilização de ferramentas cartográficas. , Paul Little, em um levantamento realizado em 2006, cita a existência de 97 processos deste tipo, então em curso ou finalizados no Brasil4 4 Na região do noroeste amazônico, foco deste artigo, iniciativas pioneiras de contracartografia indígena foram levadas à cabo pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), que resultaram, entre outras coisas, no registro da Cachoeira de Iauaretê, no livro de bens imateriais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e na iniciativa binacional entre Colômbia e Brasil de cartografia dos sítios sagrados do noroeste amazônico. (Little, 2006Little, P. (2006). Gestão territorial em terras indígenas: definição de conceitos e propostas de diretrizes [Relatório Final]. SEMA/SEPI/GTZ., pp. 10-13). Após quatro anos de discussões entre o governo federal e setores da sociedade civil, como as ONG’s e o movimento indígena, o governo instituiu, em 2012, por meio do Decreto n° 7.747, a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI). Este decreto estabeleceu que o Estado, em todas as suas esferas (estadual, federal e municipal), tem o dever de “garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas”, e assegurar “a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas” (Decreto n° 7.747, 5 jun. 2012Decreto nº 7.747. (2012, jun. 5). Institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI, e dá outras providências. DF: Presidência da República. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7747.htm
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). Além disso, o Decreto da PNGATI sugere – na verdade, ‘estabelece’ – que as comunidades e instituições parceiras utilizem, como ‘instrumentos de gestão’, as técnicas de ‘etnomapeamento’ e de ‘etnozoneamento’.

A promulgação da PNGATI, que consagra a metodologia dos ‘etnomapeamentos’ e dos ‘etnozoneamentos’ como ‘instrumentos de gestão’ de terras indígenas, catalisa uma nova onda de mapeamentos indígenas em diversas regiões do Brasil, no âmbito da elaboração dos PGTA’s. Em uma nova rodada de financiamentos, provenientes do Banco Mundial, do Fundo Clima e do Fundo Amazônia, foram aprovadas 42 propostas de elaboração de Planos de Gestão (Maciel, 2016Maciel, N. (2016). Instruments for territorial and environmental management (The experience of the GATI Project in Indigenous Lands). IEB.)5 5 A lista completa está disponível em Maciel (2016). . Dentre elas, estava a proposta da Associação da Escola Khumuno Wu’u Kotiria para a elaboração do PGTA-KK.

ETNOMAPEAMENTO KOTIRIA E KUBEO

Os mapas que discutimos nesta seção estão entre os principais resultados do projeto de elaboração do PGTA Kotiria e Kubeo6 6 Ver ASEKK e UNIARWA (2020). , os quais foram produzidos com diferentes finalidades. Por um lado, deveriam ser representações da concepção sobre o espaço, a paisagem e o território dos Kotiria e Kubeo. Por outro lado, eles deveriam ser instrumentos políticos e de fortalecimento da identidade, para serem utilizados na educação escolar, na transmissão cultural, como subsídios para políticas públicas e nos demais contextos de comunicação intercultural. Acima disso, os trabalhos de mapeamento foram usados como subsídios e catalisadores da discussão sobre a territorialidade kotiria e kubeo e sobre os elementos norteadores da PNGATI. Para dar conta dessas diferentes finalidades, produzimos diversos tipos de mapas: um grande mapa mental e uma série de mapas temáticos georreferenciados.

A produção dos mapas foi feita em três etapas, entre 2014 e 2016, em um contexto de oficinas e pesquisa colaborativa, lideradas por uma equipe de dez pesquisadores indígenas (sendo quatro Kubeo e seis Kotiria) e cinco pesquisadores não indígenas (três antropólogos, um linguista e um biólogo/cartógrafo). Em diálogo com as práticas contracartográficas indígenas descritas na literatura, buscamos pensar em instrumentos e conceitos que nos permitissem ir além das premissas positivistas das ciências ocidentais e de suas metodologias. As epistemologias, ontologias e metodologias indígenas informaram todo o processo, desde a composição das equipes – que levou em conta as afiliações clânicas que atravessam virtualmente todas as esferas da vida dos povos Tukano falantes – até as escolhas do que e como registrar e mapear, colocando em evidência os Bagaroa e os Khumu, dançarinos e benzedores, que são os detentores do conhecimento tradicional no alto rio Negro. Ainda em consonância com as práticas contracartográficas que nos precederam, desde o início, concebemos o mapeamento como um processo, que serviu, sobretudo, para catalisar discussões sobre aspectos-chave do território e da organização social kotiria e kubeo7 7 Nosso enfoque, neste artigo, foi a interpretação de parte dos dados coletados na pesquisa, especialmente aqueles referentes aos chamados lugares sagrados. Uma descrição mais detalhada dos procedimentos de pesquisa, bem como dos seus resultados, pode ser encontrada em ASEKK e UNIARWA (2020). .

A primeira etapa se dedicou à produção do mapa mental a partir de duas grandes oficinas realizadas nas comunidades de Açaí (Kubeo) e de Caruru (Kotiria), em 2014, com a participação de um total de 200 pessoas. Esse mapa possui sete metros de comprimento e 1,30 metros de altura, cobrindo uma área que vai de aproximadamente 170 km2, desde a comunidade kotiria de Ilha de Japu até a comunidade kubeo de Querari. Para desenhar os mapas, colocamos todas as equipes numa grande mesa no centro da maloca da comunidade kubeo de Açaí, onde dispusemos oito cartolinas, uma para cada comunidade ou comunidades próximas. As cartolinas, dispostas lado a lado, compuseram um único e grande mapa, de modo que conseguimos, a um só tempo, compor uma visão global do território e o ordenamento territorial próprio de cada comunidade. Na Figura 2, temos um recorte digitalizado deste mapa, uniformizado por tratamento de imagem.

Figura 2
Recorte do mapa mental digitalizado. Fonte: ASEKK e UNIARWA (2020)Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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A partir do mapa mental, produzimos, na segunda etapa de atividades, mapas georreferenciados, acompanhados de um amplo conjunto de dados de pesquisa e metadados sobre os diferentes tipos de lugares que compõem a territorialidade kotiria e kubeo. O georreferenciamento foi feito por meio de visitas in loco e uso de aparelhos de sistema de posicionamento global (GPS), bem como em reuniões com sabedores de cada comunidade para a projeção dos pontos georreferenciados no Google Earth, de modo a refinar a localização dos pontos e ampliar o mapeamento realizado, com a inclusão de novos lugares. O mapa georreferenciado e o mapa mental foram, então, combinados num mapa temático, que incorpora imagens de satélites e os pontos de lugares georreferenciados com o zoneamento territorial.

O mapa mental possui características que refletem, por um lado, elementos da cartografia ocidental e, por outro, a experiência e as concepções sobre o território kotiria e kubeo. O mapa adota uma ‘vista de pássaro’, decorrente da experiência dos Kotiria e dos Kubeo com a cartografia ocidental, e de uma compreensão, da parte deles, acerca do que esperávamos produzir com aquelas oficinas no contexto do PGTA/PNGATI.

No entanto, diversos elementos da espacialidade indígena ‘deslizaram’, por assim dizer, para o mapa mental. A própria ‘vista de pássaro’ é, a todo momento, atravessada por uma perspectiva oblíqua, que representa melhor os lugares desde uma perspectiva experiencial e situada no território. A orientação do mapa mental também reflete essa perspectiva. Como podemos ver na Figura 3, o Uaupés corre da direita para esquerda, e o norte está para baixo, e não para cima, como nos mapas convencionais. Isso porque o espaço aparece desta maneira para os autores do desenho, uma vez que as comunidades onde eles foram produzidos estão na margem esquerda do rio, de montante para jusante. Segundo sua perspectiva, portanto, são os mapas convencionais que estão ‘de cabeça para baixo’, por assim dizer. Do ponto de vista da orientação, como o famoso mapa ‘invertido’ da América do Sul, os Kotiria e os Kubeo produziram, incidentalmente, um mapa decolonial do Uaupés8 8 Estamos nos referindo ao célebre desenho “América invertida” (Torres-García, 1943), do artista uruguaio Joaquín Torres-García. Ao inverter a orientação tradicional do mapa da América do Sul, Torres-García nos convidou a imaginar uma outra ordem mundial, onde o sul não mais aparece subjugado ao norte: onde se desce para o norte, por assim dizer, e onde a ascensão é para o sul. .

Figura 3
Mapa mental e mapa georreferenciado de uma seção do território kotiria. Fonte: ASEKK e UNIARWA (2020)Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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O mapa mental impressiona pela quantidade de elementos heterogêneos distribuídos em sua superfície. Reflete melhor do que os mapas convencionais a perspectiva “biocêntrica” (Rundstrom, 1995Rundstrom, R. (1995). GIS, indigenous peoples, and epistemological diversity. Cartography and Geographic Information Systems, 22(1), 45-57. https://doi.org/10.1559/152304095782540564
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) kotiria e kubeo, que emerge das noções de território, ambiente e mundo (ver seções a seguir). Isso se deve, em parte, ao fato de que o mapa mental está livre do constrangimento das escalas convencionais. A escala é definida e ajustada pelos próprios limites da cartolina. O espaço no mapa mental se dilata e se condensa, de acordo com a necessidade de representar mais ou menos elementos da paisagem em determinada seção do território. O espaço que determinadas parcelas ocupam no papel varia menos pela extensão das áreas, e mais pela densidade de lugares de importância econômica e simbólica para os Kotiria e os Kubeo. Pelo mesmo motivo, as comunidades são representadas mais ou menos com o mesmo tamanho, independentemente de seu tamanho real. É interessante notar que comunidades menores tendem a parecer maiores, pois é possível representá-las de modo fiel, com o exato número de casas, ao passo que comunidades maiores são representadas por ícones, pela impossibilidade de representá-las em sua inteireza, devido às limitações do próprio suporte em que o mapa foi desenhado.

O mapa mental é povoado por elementos humanos e não humanos: plantas, animais, rochas, artefatos, petróglifos, espalhados no entorno e no próprio rio Uaupés, que funciona como axis mundi não apenas do mapa, mas no próprio universo kotiria e kubeo. Os animais possuem uma posição de destaque no mapa. Logo no primeiro trecho do rio, observa-se, como que vindo de fora, intempestivamente adentrando o limite da cartolina, um grande cardume. Peixes menores sobem os igarapés, em cujas margens se espalham pacas, cutias, jabutis, jacarés, veados, antas, queixadas, onças, macacos, rãs, mutuns e caititus. Junto deles, em alguns pontos, há espingardas arcos e, mais raramente, zarabatanas, indicando as áreas de caça mais frequentadas.

Os mapas convencionais raramente retratam animais. Os elementos não humanos, em um mapa convencional, transformam-se em objetos manipuláveis sob controle humano, em uma palavra, em ‘recursos’ (Rundstrom, 1995Rundstrom, R. (1995). GIS, indigenous peoples, and epistemological diversity. Cartography and Geographic Information Systems, 22(1), 45-57. https://doi.org/10.1559/152304095782540564
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, p. 46). Em contraste, e a despeito da relação cinegética entre humanos e animais, no mapa mental kotiria e kubeo, os animais aparecem livres e em movimento, representados em seus próprios espaços de vida.

A transposição do mapa mental para o mapa georreferenciado acarreta em perdas e ganhos. Por um lado, a abundância de vida, que talvez seja a principal característica do mapa mental, dá lugar a uma paisagem desértica e muda, povoada apenas por uma legião de números e cores monótonas. E não se trata de um ‘mal design’. O cartógrafo fez o que pôde, mas a densidade de lugares espalhados na paisagem do Uaupés, lugares de cronologia variável, lugares dentro de outros lugares, de fato, desafia nossas formas convencionais de representação cartográfica.

O mapa georreferenciado, por outro lado, carrega um considerável volume de informação, que reflete, entre outras coisas, a maior duração de sua confecção. Diferentemente do mapa mental, que foi elaborado em quatro ou cinco dias, o mapa georreferenciado colige informações obtidas ao longo de dois anos de pesquisa com múltiplos instrumentos e momentos. Sobre a elaboração do mapa georreferenciado, é preciso dizer também que o percorrido do território, em busca dos pontos de GPS, muitas vezes na presença de conhecedores mais velhos das comunidades, foi uma experiência formativa bastante valiosa, segundo relatos dos pesquisadores indígenas.

Os mapas produzidos sintetizam aspectos importantes do território kotiria e kubeo, e atendem ao que determina a PNGATI. Como toda tradução, no entanto, eles refletem apenas parte da espacialidade kotiria e kubeo que, conforme veremos, é experiencial, multimodal, situada e multidimensional. Conscientes dessa limitação, procuramos, em nossa pesquisa, lançar mão de diferentes metodologias para construir um olhar mais holístico das concepções e práticas no território. Isso foi feito de diferentes maneiras, procurando dar conta tanto de aspectos discursivos e simbólicos mais amplos com os quais os Kotiria e Kubeo expressam sua territorialidade, quanto pelo conjunto de práticas, usos e formas de ocupação do território. Uma estratégia fundamental foi a realização de uma ampla discussão coletiva que precedeu as oficinas de mapeamento participativo em 2014; outra importante fonte de informação foi o trabalho dos pesquisadores indígenas, que realizaram entrevistas, censos e ‘semanários’ ao longo do ano de 2015. Além disso, a experiência dos pesquisadores não indígenas do projeto como pesquisadores e parceiros dos Kotiria e dos Kubeo, bem como seu conhecimento sobre as línguas e sobre a literatura etnográfica no alto rio Negro foram facilitadores do trabalho. Em seu conjunto, essas diferentes formas de interação nos permitiram ampliar a perspectiva espacial dos mapas para uma compreensão mais holística das concepções sobre o espaço e o território kotiria e kubeo.

Durante as oficinas, e ao analisarmos os resultados das diversas metodologias empregadas, ficou claro que havia vários pontos de conexão entre os Kotiria e Kubeo ao longo de seus territórios. Mais do que isso, ficou evidente um princípio comum de organização das formas pelas quais os Kubeo e os Kotiria expressavam sua territorialidade, e das diferenças quanto aos sentidos ou conteúdo dos elementos que distinguem os territórios e os dois povos. Essa relação coloca questões conceituais profundas sobre os limites, os meios e os fins dos chamados etnomapeamentos, e abre a possibilidade de pensarmos formas novas de representações cartográficas.

BASES PARA UMA CONTRACARTOGRAFIA KOTIRIA E KUBEO

A cartografia moderna, ao transformar os lugares numa projeção euclidiana e cartesiana na superfície do mapa, tem por efeito um achatamento, ou mesmo supressão, dos aspectos mais subjetivos e simbólicos que constituem os lugares. A cartografia ocidental, de acordo com Ingold (2000, p. 203),

[T]ransforms everywhere-as-region, the world as experienced by a mobile inhabitant, into everywhere-as-space, the imaginary ‘bird’s-eye view’ of a transcendent consciousness . . . . In so doing, people and their experiences are obliterated from the map and the structure of the world is fixed without regard to the movements and actions of its inhabitants – ‘the world it describes is not a world in the making, but one ready-made for life to occupy’ (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge., p. 235); ‘in the cartographic world. . . all is still and silent’

(Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge., p. 242).

Nenhum mapa é um mero ícone da realidade. Os mapas são, sobretudo, uma expressão simbólica de uma techné, que traz consigo bases metodológicas e perspectivas ideológicas dos seus produtores. De modo mais específico sobre as concepções ocidentais de cunho universalista acerca do espaço, Whitridge (2004, p. 218)Whitridge, P. (2004). Landscapes, houses, bodies, things: “place” and the archaeology of Inuit imaginaries. Journal of Archaeological Method and Theory, 11(2), 181-207. http://dx.doi.org/10.1023/B:JARM.0000038067.06670.34
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comenta: “The triumph of Western spatialities is a consequence not of their transcendent objectivity, but of their close historical articulation with states, corporations, and various fields of technoscience over the course of the emergence of a hegemonic global capitalism”.

Ocorre que, se há algo que possamos chamar de uma ‘cartografia indígena’, ela se constitui justamente a partir dos lugares e dos caminhos invisibilizados e suprimidos pelos mapas convencionais. Neste ponto, cabe perguntar: o que seria uma ‘cartografia indígena’?

Para pensar sobre essa pergunta, é útil distinguir, como propõe Ingold (2000)Ingold, T. (2000). The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge., entre ‘mapear’, ‘fazer mapas’ e ‘utilizar mapas’. Embora nem todas as culturas tenham se preocupado em confeccionar ou utilizar mapas, todo pensamento geográfico envolve o mapeamento do espaço. Para Ingold (2000, p. 231)Ingold, T. (2000). The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge., “The traveller or storyteller who knows as he goes is neither making a map nor using one. He is, quite simply, mapping”. O ato de mapear consistiria, segundo este autor, na reconstituição, em gesto e narração, da experiência de mover-se de um lugar para o outro no interior de uma região (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge., p. 232). Embora todas as culturas mapeiem o espaço, nem todas se preocuparam em inscrever o resultado em um suporte material físico. Os mapas são apenas uma consequência secundária dessa operação mais geral de mapear uma dada região, definida como o conjunto de lugares conectados por trajetórias em um determinado espaço geográfico (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge., p. 155).

Os processos de pesquisa e etnomapeamento realizados de modo conjunto e separadamente pelos Kotiria e Kubeo nos mostraram como o território é um catalisador de questões econômicas, políticas e sociais para dentro e para fora de cada grupo. Também mostraram que o território é, antes de tudo, concebido pelas experiências pessoais e pelos discursos que dão sentido à paisagem a partir dos nomes de lugares, das cosmologias, das narrativas míticas, das canções, dos benzimentos, entre outros canais de expressão simbólica. Nesse sentido, o território pode ser pensado como um espaço organizado pelo mito (Hugh-Jones, 2016Hugh-Jones, S. (2016). Escrita nas pedras, escrita no papel (Noroeste da Amazônia). In C. Fausto & C. Severi (Eds.), Palavras em imagens: escritas, corpos e memórias. OpenEdition Press. https://doi.org/10.4000/books.oep.1274
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) ou como imaginários espacializados, como coloca Whitridge (2004, p. 214)Whitridge, P. (2004). Landscapes, houses, bodies, things: “place” and the archaeology of Inuit imaginaries. Journal of Archaeological Method and Theory, 11(2), 181-207. http://dx.doi.org/10.1023/B:JARM.0000038067.06670.34
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Place is regarded here as the effect of a general movement of thought and practice that imbricates the real and the representational at complexly layered sites, and along heterogeneous seams. The investment of particular locations with meaning (place-making) is a ubiquitous social and cognitive process. Homologies, however fragmentary, between these toposemantic arenas point to a field of circulation of representations that can be labelled “the imaginary,” and its regional networks “imaginaries”.

A análise comparativa dessas questões nos territórios kotiria e kubeo enseja uma reflexão sobre os imaginários compartilhados ou – como preferimos colocar – uma espacialidade comum enquanto uma dimensão simbólica que estrutura o pensamento sobre o território. Espacialidade não deve ser entendida como uma categoria vazia, fria e objetiva, em oposição aos lugares enquanto uma categoria carregada de sentido. Na verdade, pensamos que a espacialidade articula as formas do pensamento cultural, ao passo que os lugares articulam as substâncias que expressam as noções de territórios e mundos9 9 Fazemos aqui uma analogia com os conceitos ‘forma de expressão’ e ‘substância de expressão’ propostos pelo estruturalista dinamarquês Louis Hjelmslev. Num dado signo, a expressão tem a ver com os elementos sensíveis, ou o que Saussure chama de significante, enquanto o conteúdo tem a ver com seu significado (Hjelmslev, 1991). Numa língua oral, a expressão é sua articulação sonora; a substância de expressão são os fones propriamente, o [z], [t] ou [a], enquanto a forma é o que dá estrutura a esses sons, como os fonemas, as sílabas etc. . Logo, podemos falar de uma espacialidade específica, no caso kotiria e kubeo, mas que também é compartilhada com outros povos do alto rio Negro e quiçá alhures.

ENTRE TERRITÓRIOS E MUNDOS

Os trabalhos de pesquisa revelaram que os Kubeo e Kotiria pensam seu território como um lugar dentro do que se traduziu como ‘mundo’ e ‘ambiente’. Há um certo consenso acerca do que seja o ‘território’, tanto em nível local – a área de uso de cada uma das comunidades – como no plano mais geral do território de cada um dos povos – kotiria ya di’ta ‘terra dos Kotiria’ e mahe hoborõ ‘nossa terra’ (Kubeo). É no território que são planejadas e executadas as chamadas ‘atividades produtivas’10 10 A expressão vai entre aspas porque as atividades produtivas, entre os povos indígenas, são quase sempre atravessadas por elementos simbólicos. , como a roça, a pesca, a caça, a coleta de frutos do mato – pois o território é concebido também a partir do que as pessoas fazem nele. Além de ser o espaço de atividades produtivas, o território é também o espaço da história de vida de pessoas, famílias, clãs e dos grupos sociais mais amplos, como os Kotiria e os Kubeo. É também o espaço de grandes acontecimentos míticos que moldaram a topografia, as substâncias do mundo e envolveram ancestrais da humanidade e dos grupos Kotiria e Kubeo. Nesse sentido, o território é formado por essas histórias cruzadas, servindo tanto para particularizar quanto para conectar pessoas e outros seres no espaço e no tempo.

‘Mundo’ seria algo mais geral e englobante, onde existem outros planos de vida e seres que nem sempre estão em uma relação direta com os humanos. Em Kubeo, a palavra hãrãwu traduz a ideia de mundo ou universo, e também significa ‘dia’ e ‘tempo’. Algo semelhante se passa com a língua Kotiria: dahcho significa tanto ‘dia’ como ‘mundo’, mas ‘tempo’ se traduz pelo termo pha.

Entre territórios e mundos, o ‘ambiente’ seria o plano da existência da vida onde estão os humanos, os animais, as plantas e demais elementos com os quais eles se relacionam. No mundo haveria outros ambientes habitados por outros seres. Ao definir o ambiente, os Kotiria e Kubeo enfatizaram, por um lado, a totalidade da vida, sob um ponto de vista biocêntrico, segundo a já citada expressão de Rundstrom (1995, p. 46)Rundstrom, R. (1995). GIS, indigenous peoples, and epistemological diversity. Cartography and Geographic Information Systems, 22(1), 45-57. https://doi.org/10.1559/152304095782540564
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. A formulação que os Kotiria utilizaram para traduzir a palavra ‘ambiente’ foi mari hiri di’ta mahka, que pode ser traduzida como ‘o espaço de terra onde vivemos’, mas também tivemos outros termos relevantes, como hiri khutu, isto é, a ‘área ou lugar de vida’. Para os Kubeo, a ideia de ambiente foi definida como Mahe Apuri Tukubu, que pode ser traduzida como ‘a nossa camada de vida’. Os Kubeo trazem a ideia de ‘camada’ porque o mundo é concebido em planos ou camadas, sendo o ‘ambiente’ apenas uma delas, havendo outras, como as camadas que compõem o ambiente celeste e o inframundo.

A classificação dos tipos de seres que compõem o ambiente tem uma outra perspectiva, cuja base parece ter uma cisão explícita na gramática das línguas Kotiria e Kubeo entre seres animados (com espírito) e seres inanimados (sem espírito). Em princípio, pessoas, animais dos rios e do mato, seres que voam, insetos e vermes, corpos celestes (estrela, lua, sol, arco-íris), certos tipos de doenças, bem como espíritos e demiurgos são seres animados; por outro lado, são seres inanimados as plantas, as pedras e os minerais, a água, a nuvem, os rios, o ar, os objetos e as coisas criadas pelo homem etc. Essa separação não é absoluta na visão de mundo kotiria e kubeo, pois é também possível encontrar espíritos que tomam a forma de árvores, águas e pedras, e certos objetos que têm poder de atuar sobre o mundo. Isso mostra que muito do que existe no ambiente é reconhecido como algo que tem ‘espírito’, ou seja, que tem vida, agência, que atua sobre o mundo e outros seres. Além disso, há coisas que não têm propriamente um espírito, mas que, ainda assim, possuem poder. Esse poder, que emana desde o tempo da criação do mundo e das pessoas, faz com que certos lugares, objetos, plantas e minerais existam para o ser humano para além de uma dimensão prática ou utilitária, sendo importantes para o equilíbrio do mundo e da vida como um todo.

Os seres animados podem ser visíveis ou invisíveis para o ser humano, podendo, às vezes, se manifestar apenas por indícios: pegadas na mata, sons ou por meio de uma doença. Uma vez que esses seres possuem agência e poder, eles podem ser perigosos para o ser humano. Por isso, as pessoas possuem práticas de proteção, chamadas, em Kotiria, de bahsa kóritia khatia e, em Kubeo, de deko taino ou deko yaweino. Essas proteções, os chamados ‘benzimentos’, são parte central das práticas de ‘manejo do mundo’ no alto rio Negro. Para sua efetividade, os benzimentos dependem de um profundo conhecimento cosmológico e das narrativas mitológicas, da geografia e da toponímia do território, uma vez que poderes de certos seres estão associados a lugares específicos. Isso vale para acessar os poderes, que podem ser tanto maléficos quanto benéficos para o ser humano.

Os Kotiria e Kubeo ilustraram essa concepção por meio de dois cartazes produzidos durante as oficinas de 2014 (Figuras 4 e 5). As duas ilustrações convergem ao mostrar a centralidade dos benzimentos na relação do humano (aquele que desenha) com os espíritos e outros seres viventes. Elas também convergem ao classificar os seres em dois tipos: os seres da mata – kotiria di’ta mahka (Kotiria) ou mahkaroka mahsã e hokuwu (Kubeo) e os da água – kotiria dia mahka ou wa’i mahka (Kotiria) e moawu (Kubeo). Os seres do mato incluem seres como wãhtino (Kotiria) e abuhuku (Kubeo) – que são em geral traduzidos como ‘diabo’, ‘demônio’ ou ‘duende’ –, ‘curupira’, boraro (Kotiria) e awawaku ou kuina opeko (Kubeo), e a ‘gente-árvore’, yuhkuri mahsã (Kotiria) e hokuwu (Kubeo).

Figura 4
Representações do ambiente e do território kotiria. Fonte: ASEKK e UNIARWA (2020).
Figura 5
Representações do ambiente e do território kubeo. Fonte: ASEKK e UNIARWA (2020).

O cartaz kubeo (Figura 5) especifica alguns elementos que nos permitem uma leitura mais profunda das relações mais específicas entre os seres do ambiente. Junto aos tipos de seres, há uma lista de substâncias protetivas: buçibi ‘cigarro’, çipe ‘tintura especial negra’, wei ‘jenipapo’, muhã ‘carajuru’, eohoku haubo ‘tipo especial de timbó’. Também trazem uma série de elementos rituais como forma de proteção ou manejo do ambiente, a exemplo do conjunto de músicas, danças e cantos baðae no mesmo nível dos benzimentos, assim como a realização das festas de dabukuri (uapwu teino) no mesmo nível de práticas de cheirar pimenta (bia wĩno) e vomitar água (oko bihoino), baðae ‘músicas e bailes’, e uma lista de instrumentos e ornamentos: mapena ‘plumagem’, tãrãma ‘flauta’, hapuiñua ‘japurutu’, pedu ‘cariçu’, ñama hipobu ‘cabeça de veado’, kũubo ‘casco de jabuti’, kumabua ‘bastão de percussão’, hãhãbua ‘chocalhos’, peduñua ‘flautas’, aboðoa ‘bastão de baile’, yuriaiye ‘cânticos’. No quadrante superior direito, aparecem os moawu, ‘seres peixe-gente’, e as proteções relacionadas: buçibi ‘cigarro’, çipe ‘tintura especial negra’, eohoku haubo ‘tipo especial de timbó’. Finalmente, no último quadrante, temos: bĩkĩpõewa ‘jurupari’, kuyarĩ koedaiwu ‘acordar e se banhar’, upawu teiwu ‘fazer dabucuri’, oko bihoiwu ‘vomitar água’, bia wíno ‘cheirar pimenta’, mahikaino ‘transmitir conhecimentos’.

Essas discussões sobre a composição do mundo e do ambiente se impuseram no próprio processo de tradução dos conceitos envolvidos na elaboração do plano de gestão e do mapeamento. Elas demonstraram que, mais do que a localização e o mapeamento de ‘recursos’ e ‘limites’, os aspectos simbólicos e a relação com os outros seres que compõem os territórios, o ambiente e o mundo kotiria e kubeo são um componente proeminente – e talvez o mais importante – da relação destes povos com seu território e com o mundo. Vamos aprofundar essa questão no próximo tópico.

LUGARES COM NOMES E NOMES DE LUGARES

É interessante que, a despeito das metodologias padronizadas dos chamados ‘mapeamentos participativos’, utilizada em praticamente todos os processos de contracartografia, a própria necessidade de tradução de conceitos inexistentes nas línguas Kotiria e Kubeo acabou por direcionar a atividade para seus próprios interesses. Ficou claro que, dentre os inúmeros elementos que compõem o mapeamento, o mais importante para os Kotiria e os Kubeo foi o mapeamento dos chamados ‘lugares sagrados’, lugares com nome e com história que figuram nos benzimentos e nas narrativas míticas destes povos. Do ponto de vista da quantidade e da densidade das informações, o mapeamento destes lugares foi de longe o mais produtivo.

O mapeamento do projeto PGTA-KK revelou um total de 713 lugares nomeados, sendo 482 identificados como parte do território kotiria (67%) e 231 do território kubeo (33%). Tratam-se de marcos geográficos (como rios, igarapés, lagos, canais, praias, cachoeiras, estirões, poços, ilhas, pedras, areais, serras, chavascais etc.) que possuem nomes próprios e contrastam com seções territoriais que não possuem nomes próprios.

Lugar é o espaço vivido, experienciado por pessoas que ali estabelecem relações com outras pessoas e com o próprio espaço. Para os moradores de uma determinada região, os lugares adquirem significado através do contínuo acréscimo de sentimento ao longo dos anos (Tuan, 1983Tuan, Y. F. (1983). Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Difel., p. 37). As experiências íntimas são fundamentais para a constituição e a permanência dos lugares ao longo do tempo.

No Uaupés, desde muito cedo, a criança percorre o território, pela terra e pela água, e, na companhia de seus familiares, aos poucos, conhece os lugares nomeados, espalhados pela paisagem – pedras, corredeiras, lugares ‘suculentos’ (Chernela, 1996Chernela, J. (1996). The Wanano Indians of the Brazilian Amazon: a sense of space (reprint edition). University of Texas Press.), isto é, com farta disponibilidade de alimento, lugares próprios para pernoitar, entre outros. Seu primeiro acesso simbólico aos lugares vem pela linguagem, por meio de uma lógica de nominação, que detalharemos a seguir. Com o tempo, a pessoa progressivamente acessa conhecimentos mais profundos acerca destes lugares, conectados com narrativas, benzimentos e, sobretudo, com outros lugares que não necessariamente possuem conexão visual imediata, da perspectiva de quem percorre o território. Neste ponto, quando a criança se torna um adulto experiente, aspectos da paisagem, antes invisíveis, começam a se descortinar perante os seus olhos.

Os membros das comunidades onde estão localizados os lugares com nomes próprios zelam por eles com especial atenção, mas todos sabem que eles não são os únicos donos dos lugares. Se há donos de certos lugares com nomes, esses são os espíritos e demiurgos. Lugares que um indivíduo, um clã ou uma comunidade pode se declarar como dono são de outra natureza: são roças, capoeiras, casas, jardins, lugares de armadilha para peixe, um porto no rio etc. Eles contrastam com os lugares com nomes pelo fato de não serem nominados e, também, por sua transitoriedade face à natureza perene dos lugares com nomes, os quais existem desde os tempos da criação, conforme atestam as narrativas mitológicas.

Ao lado desta dimensão experiencial e afetiva, podemos pensar os lugares nomeados como elementos semióticos que formam uma espécie de discurso sobre o espaço. Esse discurso está conectado com outros discursos, como as narrativas de criação do mundo e da humanidade, que fazem referência aos lugares e à sua história. Assim, ter nome significa ter um ‘lugar’ nas narrativas de origem da humanidade, em que o passado mítico e o presente se interconectam. Essas narrativas são uma forma de expressão do mito que se revela em outras formas de expressão simbólica, como nos cânticos (bahsare, em Kotiria, e baðe, em Kubeo), grafismos, e nos benzimento para a cura de doenças, parto, nascimento, crescimento e morte (Hugh-Jones, 2016Hugh-Jones, S. (2016). Escrita nas pedras, escrita no papel (Noroeste da Amazônia). In C. Fausto & C. Severi (Eds.), Palavras em imagens: escritas, corpos e memórias. OpenEdition Press. https://doi.org/10.4000/books.oep.1274
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). Dentro deste mesmo contexto, os lugares servem para a demarcação do território e da história de cada grupo desde tempos mitológicos, como os locais de transformação dos atuais grupos, lugares que foram negociados com outros grupos, ou adquiridos em disputas. Assim, ao tratar da história dos grupos sociais, o território guarda também elementos fundamentais para o desenvolvimento da pessoa que pertence a um grupo social específico (Cayón & Chacon, 2018Cayón, L., & Chacon, T. (2018). Conocimiento, historia y lugares sagrados. La formación del sistema regional del alto río Negro desde una visón interdisciplinar. Anuário Antropológico, 39(2), 201-233. https://doi.org/10.4000/aa.1294
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).

Os lugares com nomes, enquanto unidades do território, são signos do mito. Mais precisamente, podemos dizer que são índices, pois um lugar (ou parte dele) é resultado e evidência do mito. Por exemplo, em Wakai Pani, lugar onde os povos Kubeo Yuremawa e Yúriwawa se transformaram pela última vez, houve um conflito com o Kotiria dono daquela área, referido como Marãkãrĩkĩ, em Kubeo, e Kenei, em Kotiria. A evidência desse conflito é apontada em diferentes seções de Wakai Pani, concebida como uma grande maloca onde moraram os ancestrais. Em uma dessas seções, um lajedo expõe as marcas das surras de chicote que os chefes Kubeo (Yúri e Piaða) impuseram ao chefe Kotiria (Marãkãrĩku) (Figura 6). Vejamos o trecho da história que faz referência a esse lugar:

Figura 6
Marcas da surra no Marakarĩk¯i.

Iwarã ĩrẽ pediko ũkũwarĩ hiwai mawarĩ hara boakemawĩ. Ameno akemawĩ, hedewa kobena nahuarãhiwi kari [Nesta pedra, deram-lhe manicuera (i.e. eufemismo para caxiri), puxaram-no para cima e o surraram. Foram cruéis a ponto de deixá-lo caído na entrada da maloca]

(ASEKK & UNIARWA, 2020Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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, p. 106).

São como índices por meio dos quais os lugares guardam uma ligação com os acontecimentos míticos, o que lhes confere poder – o poder que emana do mito. Tal poder pode ser benéfico ou maléfico, a depender de sua história em relação aos humanos. Vejamos exemplos de dois lugares kotiria que fazem a relação entre lugar, poder e mito (Figuras 7 e 8).

Figura 7
Wuhpu dieka (Ovo da Aranha).
Figura 8
Khãre duri (Pedras Abiú).

A’ria wuhpu dieka to ñano khãiria hiro nia. Tiare da’ra mahkach–ũ bu’iri da’rea a’rina bahuaka Ãga, Wuhpu bahuaka mahsane [Este é o ovo que a Aranha – um demiurgo inimigo dos ancestrais da humanidade – tinha muito zelo. Se mexermos nele, aparecem jararacas e aranhas para se vingarem das pessoas] (ASEKK & UNIARWA, 2020Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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, p. 87).

Õ khãre wu’u hia Minia Phona wu’u. A’rina buhkuna toi yeheriphona bahsaka nihino kãre [Esta casa de abiú é a casa do Jurupari. Os velhos benzem para fortalecer o espírito das crianças] (ASEKK & UNIARWA, 2020Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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, p. 87).

Se os lugares enquanto elementos da paisagem são como índices para o mito, os lugares enquanto topônimos – os nomes de lugares propriamente – são ícones, pois o que suas palavras significam guarda uma relação de semelhança com os acontecimentos históricos. Os nomes se apresentam como cápsulas de acontecimentos míticos e como forma de descrever e classificar a paisagem. Com relação ao mito, os nomes de lugares vão ser compostos por palavras que remetem a um personagem, artefato ou acontecimento mítico. Em alguns casos, as pessoas expressam os verdadeiros nomes dos lugares por eufemismos e dissimulações para, de certa forma, ocultar de algum interlocutor a verdadeira história e o poder de um lugar. Em todo caso, uma pessoa que saiba o nome de um lugar, mas não saiba sua história, não conhece de fato tal lugar. Mais do que um rótulo ou um recurso mnemônico, é no discurso xamânico que os nomes de lugares são usados como forma de acessar tais lugares e, com isso, o poder que eles veiculam. Como tais, os nomes de lugares são os meios que garantem efeito a um benzimento, ou seja, são signos necessários para uma determinada ação, assumindo, assim, uma função ‘mágica’ ou performativa (Malinowski, 1946Malinowski, B. (1946). The problem of meaning in primitive languages. In C. K. Orgen & I. A. Richard (Eds.), The meaning of meaning: a study of the influence of language upon thought and of the science of symbolism (pp. 296-336). Harcourt Brace.; Austin, 1962Austin, J. L. (1962). How to do things with words. Clarendon Press.).

TOPOSSEMÂNTICA KOTIRIA E KUBEO

Como vimos, existe uma relação direta entre lugares enquanto elementos da paisagem, enquanto objetos de diferentes gêneros do discurso que fazem referência ao mito (narrativas, cânticos, benzimentos) e lugares enquanto topônimos (i.e. enquanto nomes e palavras). Se a paisagem pode ser vista como uma forma de ‘inscrição’ do mito e da história (Wright, 2013Wright, R. (2013). Mysteries of the jaguar shamans of the Northwest Amazon. University of Nebraska Press.; Hugh-Jones, 2016Hugh-Jones, S. (2016). Escrita nas pedras, escrita no papel (Noroeste da Amazônia). In C. Fausto & C. Severi (Eds.), Palavras em imagens: escritas, corpos e memórias. OpenEdition Press. https://doi.org/10.4000/books.oep.1274
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), então todos os três elementos que compõem o que define um lugar para os Kotiria e Kubeo devem ser vistos como signos. Nesse sentido, reelaborando a partir de Whitridge (2004)Whitridge, P. (2004). Landscapes, houses, bodies, things: “place” and the archaeology of Inuit imaginaries. Journal of Archaeological Method and Theory, 11(2), 181-207. http://dx.doi.org/10.1023/B:JARM.0000038067.06670.34
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, podemos falar de uma verdadeira topossemântica, funcionando como um olhar sobre os sentidos dos lugares em seu triângulo semiótico (Figura 9).

Figura 9
Triângulo topossemântico.

Pensamos que a espacialidade kotiria e kubeo está estruturada a partir desse triângulo semiótico. Se, por um lado, o nome de um lugar faz a conexão entre paisagem e discurso, por outro lado, o discurso constrói a paisagem a partir dos topônimos e das redes entre lugares conectadas por narrativas, cantos e benzimentos.

Ao mesmo tempo, tal estrutura serve de base para os processos de diferenciações interétnicas. Reichel-Dolmatoff (1981)Reichel-Dolmatoff, G. (1981). Algunos conceptos de geografía chamanística de los indios Desana de Colombia. In T. Hartmann & V. P. Coelho (Eds.), Contribuições à antropologia em homenagem ao professor Egon Schaden (pp. 255-270). Fundo de Pesquisas do Museu Paulista. propõe o termo ‘geografia xamânica’ para descrever um sistema de adaptações ecológicas que usa conceitos e metáforas e constrói fronteiras entre diferentes grupos sociais. Cayón (2013)Cayón, L. (2013). Pienso, luego creo: la teoría makuna del mundo. Anuário Antropológico, 42(2), 397-399. https://doi.org/10.4000/aa.2519
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sustenta que a construção do espaço funciona como uma grande matriz epistemológica, conformado por um sistema multiétnico de ‘geografias xamânicas’, indissociável do manejo do mundo, conhecimento que se tem dos lugares, das interações entre seres e grupos sociais distintos. Nesse sentido, vamos explorar como se dão as relações do triângulo topossemântico no sentido de revelar os aspectos gerais e específicos da maneira como os Kotiria e Kubeo significam seus territórios. Comecemos pelos topônimos.

Em geral, os nomes de lugares são formados por dois elementos: um que indica o tipo de unidade na paisagem e outro que indica a ‘substância’ do lugar, ou seja, o nome de uma planta, um animal, um demiurgo etc., que identifica o tipo de entidade à qual aquele lugar está veiculado. Na sintaxe das línguas Kotiria, Kubeo e da família Tukano em geral, isso se dá por uma estrutura do tipo ‘substância’ + ‘unidade da paisagem’, conforme vemos ilustrado no Quadro 1.

Quadro 1
Estrutura sintática dos topônimos na família Tukano a partir de dados kotiria e kubeo.

A estrutura das palavras permite que diferentes unidades da paisagem possam ser reconhecidas como relacionadas à mesma substância, como ilustrado no Quadro 2, para o pássaro Pinika, ‘pipira’, em Kubeo. A estrutura também possibilita que diferentes substâncias estejam relacionadas a um mesmo tipo de unidade da paisagem, como as unidades marcadas pela classe -bo ‘oblongo’, consistentemente usado em Kubeo para referenciar tipos de pedras grandes na paisagem, tecnicamente conhecidas como ‘matacão’ (exemplos similares existem para o Kotiria).

Quadro 2
Exemplos de nomes de lugares com base numa mesma substância ou unidade da paisagem.

Os morfemas que indicam a unidade da paisagem estabelecem uma relação direta com os lugares enquanto dimensões físicas, remetendo-nos ao vértice esquerdo do triângulo topossemântico (Figura 9). As substâncias são raízes lexicais cuja semântica guarda uma relação direta com diferentes atores e acontecimentos míticos, os quais são informados pelo discurso mítico, remetendo-nos ao vértice direito do triângulo topossemântico.

Exploremos um pouco o que os topônimos revelam quanto às unidades da paisagem e às substâncias do território kotiria e kubeo. Como veremos, temos evidência de uma espacialidade comum pela mesma sintaxe e lógica de nominação, completada por maneiras mais específicas de cada grupo. Isso remete às outras formas discursivas e onomásticas, em que o conteúdo é variável, mas a forma é constante.

Foram identificadas 22 categorias de unidades da paisagem, das quais 14 ocorrem em ambas as línguas, enquanto quatro são específicas aos Kotiria e quatro aos Kubeo11 11 A análise das unidades da paisagem codificadas pelos topônimos levou em consideração as categorias linguísticas kotiria e kubeo com relação a categorias usadas na tradução para o português. . Apesar de termos traduzido 22 tipos de unidades da paisagem, o total de morfemas nas línguas Kotiria e Kubeo que atuam como classificadores dessas unidades chega a 77, sendo 66 em Kotiria e 19 em Kubeo. As categorias comuns a ambos os territórios são: areal, buraco, cachoeira, canal, caverna, chavascal, conjunto de pedras, ilha, lajedo, matacão, poço, ponta, rio e serra. As exclusivas aos Kotiria são: área, árvore, estirão e linha; e aos Kubeo são: caminho, foz, leito e volta. As categorias da paisagem mais recorrentes são os rios e igarapés, somando um total de 208 lugares. Em seguida vêm as formações rochosas, com 187 lugares, divididos em três tipos: matacões (109 lugares), lajedos (39 lugares) e conjunto de pedras (39 lugares). As ilhas são a terceira unidade da paisagem mais recorrente, com 101 lugares registrados, seguidas de um conjunto de lugares que identificam partes dos rios, como poço, canal, areias e cachoeiras. Algumas unidades da paisagem são relativamente mais frequentes na nomeação do território kotiria, como ilhas, matacões e cavernas, enquanto outras são relativamente mais frequentes no território kubeo, como poço (remanso), volta do rio, cachoeiras e serras.

A nominação das unidades da paisagem se faz por um conjunto recorrente de morfemas classificadores. O Quadro 3 resume as dez unidades da paisagem mais recorrentes nos territórios kotiria e kubeo, indicando o morfema classificador mais frequente usado para tal tipo de unidade da paisagem, seguido de sua proporção no total de ocorrências de todas as palavras referentes a um mesmo tipo de unidade da paisagem nos dois territórios, dos Kotiria e dos Kubeo12 12 Por exemplo, se o morfema classificador X ocorre em oito de dez lugares referentes a ‘cachoeiras’, enquanto o morfema Y ocorre em dois dos dez lugares, podemos dizer que X ocorre numa proporção de 8/10 ou 0,8. .

Quadro 3
As dez unidades de paisagem mais recorrentes nos topônimos kotiria e kubeo.

Um padrão notável do Quadro 3 compartilhado pelos Kotiria e pelos Kubeo é que existem unidades da paisagem que são sempre codificadas por um único morfema classificador. É o caso de lajedo, conjunto de pedras, ilha e ponta. Por outro lado, para as demais unidades da paisagem, encontramos um padrão distinto, em que mais de um morfema é usado para codificar a mesma categoria, como matacão, poço, canal, rio, cachoeira e volta. Nesses casos, vemos que a classificação das unidades da paisagem revela também processos criativos que trazem variação e diversidade aos topônimos. Isso é especialmente mais acentuado entre os Kotiria do que os Kubeo, em que a classificação das unidades da paisagem se assemelha mais a um sistema terminológico baseado num vocabulário (semi)controlado.

A classificação dos matacões é especialmente ilustrativa a esse respeito. Entre os Kotiria, o classificador -ka ‘esférico’ ocorre 43 vezes, entre os 92 topônimos referentes a um matacão. Outras formas de nomear os matacões tomam como base a relação indicial entre a forma do lugar e sua função no mito, de modo que alguns lugares são classificados como wu’u ‘casas’, khumuno ‘bancos’, ou partes do corpo dos demiurgos. Dos 18 matacões identificados em território Kubeo, 15 levam o marcador de classe =bo ‘oblongo’, enquanto três são classificados de forma alternativa por =ru ‘circular’, pora ‘coluna’ e =bu ‘contêiner’.

Volvendo-nos para a análise dos tipos de substâncias que aparecem nos lugares com nomes, notamos que eles foram organizados para efeito de análise em 12 domínios semânticos, com base em categorias definidas nos trabalhos de pesquisa. Termos referentes a animais, com um total de 349 lugares, são os mais recorrentes (49% dos topônimos), seguidos de termos referentes a plantas, com 153 lugares (21% dos topônimos). Os demais lugares têm suas substâncias relacionados a corpo e saúde (41), artefatos (38) e elementos que descrevem as propriedades topográficas de um lugar (34), seguidos de termos referentes a demiurgos (21), seres humanos e categorias sociais (18), espíritos e seres fantásticos (16), rituais (14), alimentos (14) e, por último, os menos frequentes, astronomia (5) e fungos (2). Os topônimos em cada território costumam seguir essas tendências gerais, porém guardam pequenas variações quanto à maior ou à menor ênfase que dão aos domínios menos frequentes.

Começando pelos domínios semânticos minoritários, destacam-se algumas substâncias (como ayahuasca, veneno, goma), categorias sociais (como mulher e Hupda13 13 Termo genérico utilizado pelos Kotiria e pelos Kubeo para se referirem ao povo Yuhupdeh. ), seres fantásticos (como curupira e duende) e artefatos (como cuia e bastão de mando). O território kotiria possui um total de 15 dos 18 termos referentes a seres humanos e categorias sociais, bem como 13 entre os 14 termos referentes a alimentos. Já o território kubeo parece ter uma tendência maior a apresentar termos referentes a corpo e saúde, espíritos e seres fantásticos. A referência a demiurgos com nomes próprios das histórias kotiria é predominante, com 18 dos 23 termos referentes a demiurgos localizados no território kotiria. O demiurgo recorrente no território kubeo é Marãkãrĩku, mas este faz referência a um demiurgo de origem kotiria que teria cedido uma área para os Kubeo. O território kubeo apresenta maior frequência de seres fantásticos, como curupira e duende, os quais não pertencem à linhagem de ancestrais ou demiurgos.

Muitos demiurgos e ancestrais são nomeados por termos referentes a animais, e o mitos muitas vezes fazem referência a esses seres, e não aos animais como os conhecemos hoje em dia. Com isso em mente, vejamos os termos que traduzimos como animais. Existe uma igual proporção de animais (e demiurgos-animais) voadores (119), terrestres (116) e aquáticos (113), e – como mostrado nos gráficos das Figuras 10 e 11 – essa tendência geral também se repete no léxico de cada língua14 14 Apenas a língua Kotiria traz um lugar com referência a cachorro enquanto um animal doméstico (Diero Yari Nuhkõ ‘Ilha Cemitério de Cachorro’). . Apesar disso, poucos termos referentes a animais (menos de 7%) ocorrem simultaneamente nos territórios kotiria e kubeo: cinco animais voadores (tucano, abelha, papagaio, bacurau e arara), oito animais aquáticos (acará, jacaré, sapo, piranha, tucunaré, sarapó, jacundá e pacu) e dez animais selváticos (cutia, anta, onça, veado, tatu, saúva, calango, minhoca, mucura e tapuru). Acentuando a tendência de diferenciação territorial, temos certos predomínios territoriais de animais relativamente superfrequentes em um território, mas ausentes ou pouquíssimo frequentes no outro território; é o caso de anta, cobra, cotia, acará, japu, arara e periquito para os Kotiria, enquanto para os Kubeo são: anta, minhoca, jacundá, pacu, cancão, iratuá-preto e pipira. Isso mostra que o território de cada grupo se faz mais específico a partir do conjunto de substâncias veiculadas por seus topônimos, o que, no fundo, tem a ver com as formas distintas de territorialização do mito feitas por cada grupo.

Figura 10
Animais e demiurgos-animais kotiria.
Figura 11
Animais e demiurgos-animais kubeo.

Com relação às categorias das plantas, trabalhamos com a distinção entre espécies de plantas cultivadas (roça e jardins), plantas do mato (que crescem nas matas ou capoeiras antigas) ou partes de plantas (cuja espécie não foi identificada). Termos referentes a plantas cultivadas ocorrem em 41 lugares, sendo 24 entre os Kotiria e apenas sete entre os Kubeo, totalizando 13 espécies: abacaxi, algodão, batata-doce, caju, cana, cucura, jenipapo, mandioca, pinu-pinu, pupunha, timbó, umari e urucum. Caju é única exclusiva ao léxico kubeo, enquanto batata-doce, mandioca e umari são exclusivas, e as mais recorrentes, ao léxico kotiria. Termos para plantas silvestres estão presentes em 98 lugares, sendo 60 entre os Kotiria e 38 entre os Kubeo, totalizando 31 espécies. A espécie mais recorrente é a que foi traduzida como sorva (Couma sp., ou wahso, em Kotiria, e wahoka, em Kubeo), ocorrendo em 13 lugares (nove dos Kotiria e quatro dos Kubeo), seguida de caruru (moa, em Kotiria) e abiú (khãre˜, em Kotiria), ambas com oito ocorrências no território kotiria apenas, seguidas de ubi e seringa, cada uma com seis lugares encontrados em território tanto dos Kotiria quanto dos Kubeo. Chama atenção, nesses termos mais frequentes, suas funções etnobotânicas: do ubi se usam fartamente as folhas para telhados, da seringa o látex e a semente (comestível e utilizada para a pesca), do caruru se fazia o sal, da sorva se come a fruta, se extrai o látex para fazer breu e se produz um remédio contra a picada da surucucu, e com seu tronco são feitos os tradicionais bancos. Já o abiú, além de doce e comestível, é um importante elemento para o benzimento, como vimos para o lugar kotiria chamado de Khãre duri.

A estrutura léxico-semântica, que acabamos de explorar desde um ponto de vista semântico e formal, se dá num plano sintagmático (horizontal), combinando substância + unidade da paisagem, e um plano paradigmático (vertical), em que se possibilitam diferentes formas de classificar tipos de unidades da paisagem e tipos de substâncias. Essa estrutura é compartilhada por práticas discursivas mais complexas sobre o território. Como analisa Hugh-Jones (2016, p. 160)Hugh-Jones, S. (2016). Escrita nas pedras, escrita no papel (Noroeste da Amazônia). In C. Fausto & C. Severi (Eds.), Palavras em imagens: escritas, corpos e memórias. OpenEdition Press. https://doi.org/10.4000/books.oep.1274
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sobre as canções conhecidas, em geral, como Kapiwaya:

Tukanoan ritual chants operate along two axes: one axis is structured with reference to a sequence of named, sacred sites identified with malocas or houses, most of them located along the courses of rivers . . . The other axis of a chant involves sequences associated with one particular site, an axis perpendicular to the linear axis. These sequences consist of lists of named spirits, ancestors, natural species and ritual objects.

Vejamos o exemplo do ‘complexo da Anta’ (Figura 12), composto de, pelo menos, sete lugares ou ‘topogramas’15 15 Elementos individuais na paisagem imbuídos de significado. A sequência de topogramas em uma determinada paisagem constitui, para Santos-Granero (2002, p. 132), uma “escrita topográfica”. (Santos-Granero, 2002Santos-Granero, F. (2002). The Arawakan Matrix: ethos, language and history in Native South America. In J. Hill & F. Santos-Granero (Eds.), Comparative Arawakan histories: Rethinking language family and culture area in Amazonia (pp. 25-50). University of Illinois Press.), localizado em um pequeno trecho do Uaupés, marcado por uma corredeira praticamente intransponível, denominada ‘Tapira Jirau’. Nesse episódio, o ‘clímax geográfico’ – que é a grande cachoeira – se conecta com um ponto de clímax da história dos Kotiria, quando a ‘Gente de Transformação’ (ancestral kotiria) derrotou o temível ‘Anta’16 16 A história conta que a ‘Anta’, investida do poder de sua caixa de enfeites, constrói um ‘jirau’ e posiciona seus ‘soldados’, as pedras-vigias, para acompanhar os movimentos da ‘Gente de Transformação’. As ‘filhas do Uirapajé’, primas da Anta, observam tudo com espanto: “Por que você está enlouquecida desse jeito, querendo matar a ‘Gente de Transformação’, primo?”. Outros ‘povos’ vêm ao socorro da ‘Gente de Transformação’. O Caranguejo tenta cortar o jirau da Anta, porém é descoberto e assassinado. O ‘Velho Muçum’, apavorado, contorna a armadilha da Anta, conformando, em sua passagem, um paranã. Seguindo seu exemplo, a ‘Gente de Transformação’ toma a forma de um peixe-mandioca, e abre um segundo paranã, acima do paranã do Muçum. A Anta finalmente é derrotada pela ‘Gente de Transformação’, liberando o caminho para a subida (ou descida) do Uaupés. Em seu ato final, ela é decapitada, e sua cabeça é arremessada no rio Uaupés. Vendo que a cabeça não era muito pesada, eles disseram em tom de piada: “se fosse cabeça de anta seria pesado! Então deve ser cabeça de beija-flor!” (adaptado de ASEKK & UNIARWA, 2020, pp. 79-97). . Além desses dois personagens principais, o mito faz referência a uma série de atores e objetos. Esses lugares mostram uma trajetória no espaço a partir de movimentos narrativos.

Figura 12
O ‘complexo da Anta’.

Diferentemente de um texto escrito com sequências de letras e linhas, em que o leitor apreende o sentido de forma linear e da esquerda para direita, os lugares em uma paisagem são apreendidos em um golpe de vista, quando diferentes topogramas aparecem simultaneamente no campo de visão daquele que percorre a paisagem. Isso requer uma forma de territorialização do mito e de mitificação da paisagem, com trajetórias que não seguem necessariamente um ordenamento geográfico linear, revelando o lugar central do imaginário ou do discurso na coconstrução do mito e do território. Nesse sentido, os discursos precisam organizar a informação por trás da relação entre mito e território, o que é feito com estratégias de foregrounding e backgrounding, bem como pela segmentação da história em cursos principais, secundários, e nos eixos sintagmáticos e paradigmáticos que discutimos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A essa altura, deve estar claro que os mapas podem servir a diferentes propósitos. A constituição de um arquivo perene do conhecimento tradicional, capaz de perdurar para além do momento atual, percebido como de perda cultural, foi o principal motivo que animou os Kotiria e os Kubeo a se engajarem nas práticas de mapeamento. ‘Registrar para não esquecer’ é o mote tantas vezes repetido para justificar a necessidade não apenas deste projeto, mas de muitos outros, como a produção de filmes, a elaboração de dicionários, entre outras iniciativas. Para nós, pesquisadores não indígenas, o projeto foi uma oportunidade de colaborar efetivamente com estes povos, com quem vimos trabalhando a quase duas décadas. Além disso, o processo de mapeamento se revelou, para nós, uma potente ferramenta de pesquisa e coleta de dados.

Assim como a maioria das práticas contracartográficas indígenas, o PGTA-KK foi, desde o início, marcado por uma preocupação iminentemente política, de defesa do território. Isso porque o subtexto da PNGATI, ou o modo como ela foi lida e recepcionada por muitos povos indígenas, é que haveria de chegar um tempo em que não apenas novas terras indígenas não seriam demarcadas, mas em que as terras já regularizadas estariam em perigo de desconstituição. Em uma inversão perversa do ônus da prova, os povos indígenas seriam, então, convocados a demonstrar sua ocupação aos poderes constituídos, sob pena de perder a posse sobre suas terras. Deste ponto de vista, os mapas produzidos no âmbito dos planos de gestão são desenhados com o objetivo não manifesto de literalmente ‘performar’ o território para uma audiência não indígena.

A leitura deste subtexto não só era lúcida, mas também, infelizmente, tem se revelado correta. Recordemos que, após a promulgação da PNGATI, em 2012, o número de demarcações de terra caiu drasticamente, ao passo que os financiamentos para a elaboração de planos de gestão aumentaram consideravelmente. Ao mesmo tempo, intensificou-se a tramitação de proposições de lei francamente anti-indígenas no Congresso Nacional, dentre elas, a famigerada ‘lei do marco temporal’, que autoriza, entre outras coisas, a desconstituição de terras indígenas já demarcadas.

Diante desta ameaça, foi para se fazerem conhecer que os Kotiria e os Kubeo empreenderam o mapeamento do seu território. Para opor aos mapas oficiais do Uaupés, que no mais das vezes retratam apenas seus aspectos físicos, fabricaram os seus próprios mapas, que retratam uma região repleta de vida, constituída por histórias e lugares significativos.

Ainda é cedo para avaliar o impacto e os usos que os Kotiria e os Kubeo farão deste material. Não faz muito tempo que a publicação chegou de volta nas comunidades e, desde então, não fizemos nenhuma visita ao Uaupés. Sabemos apenas que o material já foi incorporado no ensino médio da escola Khumuno Wu’u Kotiria.

Antes de finalizar, vamos refletir, a partir de nossa experiência, sobre algumas das questões mais persistentes no campo dos estudos e da prática de contracartografia, mais especificamente da chamada ‘cartografia indígena’, etnocartografia ou etnomapeamento. A primeira delas diz respeito às armadilhas da utilização de metodologias de mapeamento e maquinário de Geographic Information Systems (GIS) com/por povos indígenas (Rundstrom, 1995Rundstrom, R. (1995). GIS, indigenous peoples, and epistemological diversity. Cartography and Geographic Information Systems, 22(1), 45-57. https://doi.org/10.1559/152304095782540564
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; Correia, 2007Correia, C. (2007). Etnozoneamento, etnomapeamento e diagnóstico etnoambiental: representações cartográficas e gestão territorial em terras indígenas no Estado do Acre [Tese de Doutorado, Universidade de Brasília]. https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UNB_17a959a0e169ccfe5da11f305005950b
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). Ao converter espacialidades não ocidentais em coordenadas cartesianas na superfície do mapa, a aplicação da tecnologia GIS transculturalmente seria, segundo Rundstrom (1995, p. 45)Rundstrom, R. (1995). GIS, indigenous peoples, and epistemological diversity. Cartography and Geographic Information Systems, 22(1), 45-57. https://doi.org/10.1559/152304095782540564
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, “essentially a tool for epistemological assimilation, and as such, . . . the newest link in a long chain of attempts by Western societies to subsume or destroy indigenous cultures”. Partindo de uma perspectiva latouriana, Runsdrom (1995)Rundstrom, R. (1995). GIS, indigenous peoples, and epistemological diversity. Cartography and Geographic Information Systems, 22(1), 45-57. https://doi.org/10.1559/152304095782540564
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argumenta que a ‘epistemologia GIS’ não é mera tecnologia, mas uma ‘tecnociência’ que, enquanto tal, é ‘potencialmente tóxica para a diversidade humana’, na medida em que desvaloriza, ou mesmo ignora, conceitos centrais das epistemologias indígenas. É inegável que os mapas produzidos no PGTA-KK são apenas uma simplificação, mais ou menos grosseira, da cartografia indígena, que é processual, experiencial e multimodal. Nunca é demais repetir: os mapas produzidos do encontro entre a espacialidade kotiria e kubeo e a cartografia ocidental não são o território, e não pretendem representar a espacialidade indígena em toda sua complexidade.

Concordamos com Cardoso et al. (2017, p. 104)Cardoso, T., Parra, L., & Mordecin, I. (2017). Mapas em movimento: os (des)caminhos de uma prática cartográfica junto aos Potiguara. Espaço Ameríndio, 11(2), 71-111. https://doi.org/10.22456/1982-6524.74228
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acerca da ideia de que denominar os mapas georreferenciados, produzidos no âmbito de projetos como o PGTA-KK, de ‘etnomapas’ ou ‘mapas indígenas’, constitui certo exagero. Embora tenham conduzido e participado de todo o processo, o procedimento mais técnico de confecção dos mapas em softwares de geoprocessamento ainda é inacessível para a maioria dos indígenas. Conforme colocado por Correia (2007, p. 72)Correia, C. (2007). Etnozoneamento, etnomapeamento e diagnóstico etnoambiental: representações cartográficas e gestão territorial em terras indígenas no Estado do Acre [Tese de Doutorado, Universidade de Brasília]. https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UNB_17a959a0e169ccfe5da11f305005950b
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, embora já não seja mais a “ciência dos príncipes”, a cartografia permanece sendo uma tecnologia elitista. Talvez por isso haja pouca ou nenhuma mudança na linguagem cartográfica ocidental a partir dos ‘etnomapeamentos’. Em outras palavras, no âmbito estrito da forma, a tradicional (e colonial) divisão de trabalho entre aqueles que fornecem o conteúdo dos mapas (os indígenas) e aqueles que efetivamente os desenham parece ainda se manter, a despeito do aspecto participativo que atravessa as atividades contracartográficas em geral.

No entanto, conferir aos etnomapas o poder de aniquilar as espacialidades indígenas, como faz Rundstrom (1995)Rundstrom, R. (1995). GIS, indigenous peoples, and epistemological diversity. Cartography and Geographic Information Systems, 22(1), 45-57. https://doi.org/10.1559/152304095782540564
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, talvez seja atribuir-lhes mais poder do que eles de fato têm, considerando sua recepção, seu uso e sua circulação no interior das sociedades indígenas, onde eles são praticamente irrelevantes17 17 Nem mesmo em nossa cultura ocidental os mapas conseguiram substituir de todo um modo mais experiencial e processual de organizar e se localizar no espaço. Podemos prescindir dos mapas em boa parte dos deslocamentos habituais de nossa vida cotidiana. . Ademais, os povos do alto rio Negro estão em contato com a chamada ‘sociedade envolvente’ há mais de 200 anos, ao longo dos quais resistiram às diversas tentativas de etnocídio, como a evangelização e a introdução da escola e da escrita, tecnologias mais poderosas do que a cartografia no que diz respeito ao apagamento de aspectos culturais. Não apenas ‘resistiram’, mas, em alguns casos, estabeleceram relações fecundas a partir de um contexto colonial extremamente desfavorável.

A perspectiva de Hugh-Jones (2016)Hugh-Jones, S. (2016). Escrita nas pedras, escrita no papel (Noroeste da Amazônia). In C. Fausto & C. Severi (Eds.), Palavras em imagens: escritas, corpos e memórias. OpenEdition Press. https://doi.org/10.4000/books.oep.1274
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com relação à incorporação de elementos estrangeiros pelas culturas do alto rio Negro é interessante para aliviar o ‘pessimismo cartográfico’18 18 Devemos essa expressão ao colega Bruno Marques, antropólogo e pesquisador do alto rio Negro. que muitas vezes se abate sobre aqueles que se aventuram a trabalhar com GIS e povos indígenas. Para Hugh-Jones (2016, p. 62)Hugh-Jones, S. (2016). Escrita nas pedras, escrita no papel (Noroeste da Amazônia). In C. Fausto & C. Severi (Eds.), Palavras em imagens: escritas, corpos e memórias. OpenEdition Press. https://doi.org/10.4000/books.oep.1274
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, há evidentes “continuidades entre uma tradição mais antiga de escrita na pedra e suas transformações mais recentes de escrita no papel”. Em outras palavras, há uma continuidade entre as tradições orais de mito e história e as novas formas de expressão materializadas nos livros e, mais recentemente, nos mapas. Após discutir longamente o que ele chama de ‘sistemas de memória’, Hugh-Jones (2016, p. 57)Hugh-Jones, S. (2016). Escrita nas pedras, escrita no papel (Noroeste da Amazônia). In C. Fausto & C. Severi (Eds.), Palavras em imagens: escritas, corpos e memórias. OpenEdition Press. https://doi.org/10.4000/books.oep.1274
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escreve que:

Muitos desses mapas representam transformações dos sistemas mnemônicos acima discutidos, pois modos orais e gráficos ainda operam de forma combinada, de modo que, para um observador indígena, tais mapas podem ser lidos não apenas como representações de espaço e território, mas também como sequências de cantos e benzimentos.

Os ‘sistemas de memória’, que podem ser gráficos e não gráficos, servem de suporte para várias formas de histórias e mitos no alto rio Negro. Eles se manifestam em cantos, benzimentos, histórias, cestarias, pinturas corporais, mitos e petróglifos, em estreita conexão com os lugares que se descortinam aos olhos daquele que percorre o território, no contexto da experiência do habitar. Tendo como base o mito, os sistemas de memória articulam formas gráficas e não gráficas de maneira integrada. No contexto da cartografia processual indígena, o mapa é incorporado como mais um elemento em uma cadeia recursiva de significantes rebatidos sobre o território. Elementos da paisagem, petróglifos, grafismos, cestarias, objetos rituais etc. são compreendidos em sua inteireza apenas na relação de uns com os outros. O mesmo vale para o mais novo integrante deste sistema, o mapa. Sozinho, o mapa diz muito pouco. Sem as informações complementares das narrativas e do conhecimento tradicional, adquiridas ao longo da trajetória de vida dos indivíduos, o mapa apresenta apenas uma série de pontos espalhados na superfície da tela ou do papel. Em consonância com essa constatação, tentamos oferecer, ao longo deste artigo, uma descrição das operações combinadas entre modos orais e escritos que emergiram do processo de elaboração do PGTA-KK, buscando deixar clara a interdependência entre eles.

Além disso, creditar ao ocidente a autoria exclusiva dos mapas e da ciência cartográfica é eclipsar a contribuição indígena que esteve presente desde que tais atividades ganharam fôlego, no contexto da conquista da América. Por detrás de cada Humboldt, Chandless ou Wallace, há uma multidão de conhecedores indígenas anônimos, que voluntária ou involuntariamente lhes forneceu o conhecimento geográfico sem o qual seus mapas pioneiros não teriam existido. Há indícios, inclusive, de que estes indígenas tenham, em alguns casos, ativamente manipulado o impulso cartográfico dos ocidentais em prol de suas próprias agendas políticas (Whitehead, 2015Whitehead, N. (2015). Indigenous cartography in Lowland South America and the Caribbean. In D. Woodward & G. J. B. Harley (Eds.), The history of cartography (Vol. 2, Book 3, pp. 301-326). The University of Chicago Press., p. 322). Apagar os traços indígenas dos mapas coloniais é parte da ‘ilusão cartográfica’ que o ocidente cultivou com esmero desde que descobriu que poderia se apossar de terras alheias apenas traçando linhas em um mapa19 19 Note-se que não foi apenas na qualidade de ‘informantes’ que a participação indígena se deu na atividade cartográfica. Um campo de estudos muito interessante, sobre o qual ainda cabem muitas contribuições, é buscar por “assinaturas ameríndias” nos mapas coloniais (Offen, 2007, p. 257). .

No começo deste artigo, colocamos a seguinte questão: que tipo de cartografia seria mais adequada para os povos indígenas? Depois de tudo que foi dito, deve estar claro que não há apenas uma resposta para essa pergunta, pois ela vai depender do uso pretendido destes mapas. Em um contexto de luta por direitos territoriais, por exemplo, a cartografia indígena não pode prescindir de representações cartográficas mais convencionais, na medida em que o que se busca nessas situações é constituir um instrumento de autoridade para alavancar suas reivindicações. Quando se trata de usar a ‘magia dos mapas’ em seu próprio favor, os limites para a experimentação com as formas cartográficas são muito estreitos. A constatação de que o mapa não espelha o território – o grande legado da geografia cultural dos anos 1980 – deve ser estrategicamente deixada de lado no momento da apresentação destes mapas como instrumentos comprobatórios de ocupação tradicional.

Em contextos pós-demarcatórios, por outro lado, há mais espaço para a experimentação de diferentes formas de mapas. Nestes contextos, o diálogo entre territórios, mundos e o que chamamos de espacialidades indígenas com outros processos contracartográficos poderia se revelar extremamente frutífero20 20 Talvez um dos motivos pelos quais esse diálogo ainda não tenha acontecido seja a miríade de termos existentes para expressar uma mesma coisa. O vocabulário gerencial insípido adotado no Brasil para se referir às contracartografias indígenas, que inclui palavras como etnomapeamento, etnozoneamento, gestão territorial e ambiental, certamente contribui para manter incomunicáveis domínios que possuem óbvias conexões metodológicas e políticas. Esse é um dos motivos pelos quais decidimos utilizar a expressão ‘contracartografia’ neste artigo, a despeito de nosso tema corresponder ao que, no Brasil, se convencionou chamar de ‘etnomapeamento’ no âmbito da elaboração de um ‘plano de gestão’. Esperamos, com isso, apontar para um horizonte de diálogo entre o movimento indígena e outros coletivos que empregam a contracartografia para contestar formações espaciais hegemônicas. . O campo da arte, por exemplo, pode contribuir de maneiras instigantes para a ampliação das possibilidades de representação das cartografias indígenas, especialmente em contextos pós-demarcatórios. Obras como a série “Diorama map”, de Sohei Nishino (n. d.)Nishino, S. (n. d.). Diorama Map. https://soheinishino.net/dioramamap
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, ou “Meridians”, de Jeremy Wood (n. d.)Wood, J. (n. d.). Meridians. http://www.gpsdrawing.com/gallery/land/meridians/meridians2.html
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, podem oferecer insights interessantes de como politizar as ferramentas cartográficas e confeccionar mapas mais alinhados com a espacialidade indígena. Concordamos com autores como Pearce e Louis (2008)Pearce, M. W., & Louis, R. P. (2008). Mapping indigenous depth of place. American Indian Culture and Research Journal, 32(3), 107-126. http://hdl.handle.net/1808/6897
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, quando estes apontam que o caminho mais curto para isso é estimular e capacitar os próprios indígenas para utilização de ferramentas GIS. Esse passo é essencial para que surjam novas formas de manipulação e subversão da própria linguagem cartográfica.

Em um mundo onde a distinção entre mapa e imagem está cada vez mais borrada, é possível extrapolar as formas convencionais de representação cartográfica. Nesse ponto, fazemos uma autocrítica. Em nosso projeto, não foi possível experimentar com diferentes tipos de expressão cartográfica, por questões de tempo e também devido às exigências da PNGATI. Apesar de termos confeccionado diversos mapas georreferenciados, o mapa mental foi, do ponto de vista do valor simbólico da representação, a nossa principal produção. É ele que se aproxima melhor do que seria uma inscrição da cartografia indígena no suporte bidimensional de um mapa.

Não compartilhamos do pessimismo cartográfico demonstrado por alguns autores, mas também não aderimos à crença ingênua, professada por aqueles a quem Rundstrom (1995)Rundstrom, R. (1995). GIS, indigenous peoples, and epistemological diversity. Cartography and Geographic Information Systems, 22(1), 45-57. https://doi.org/10.1559/152304095782540564
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denomina, amargamente, de ‘missionários do GIS’, de que a cartografia e os mapas são a panaceia destinada a garantir a posse dos indígenas sobre suas terras. Matizando o quadro pintado nos parágrafos anteriores, é preciso reconhecer que, mesmo em contextos pós-demarcatórios, os mapas convencionais ainda se fazem necessários. O trágico desenrolar da política nacional e internacional na última década serve de lembrete de que nem mesmo a inscrição do direito territorial indígena na Constituição tem o condão de garantir a posse plena dos indígenas sobre seus territórios21 21 No Brasil, tramitam dezenas de proposições anti-indígenas no Congresso Nacional (Cavalli, 2018, p. 13). O Estado brasileiro, nos últimos anos, não apenas tem se furtado a cumprir seu dever constitucional de demarcar e proteger as terras indígenas, como buscou ativamente, por meio de seu representante eleito no executivo e no Congresso Nacional, reverter os direitos territoriais indígenas adquiridos na Constituição de 1988. No plano internacional, tivemos, recentemente, outro duro exemplo da fragilidade dos acordos entre o Estado e os povos indígenas, com a aprovação, pelo presidente dos EUA, Joe Biden, do chamado “Project Willow”, que prevê a exploração massiva de petróleo e gás no Alasca, justamente a região por onde começamos a contar nossa história, o berço da contracartografia indígena. .

Terminaremos refletindo sobre aquela que talvez seja para nós a objeção mais incômoda. Ela diz respeito à suposta captura da contracartografia pelo Estado e pelo discurso do ‘desenvolvimento sustentável’22 22 Ver, por exemplo, Wainwright e Bryan (2009). . Com efeito, a trajetória da contracartografia indígena, que principia com as lutas indígenas contra gigantes petroleiras no remoto Alasca, e que se desloca para o sul, através de ONG’s norte-americanas de atuação global, agências de cooperação internacional e do próprio Banco Mundial, e que se consolida no Brasil como uma política pública com forte viés gerencial, enseja esse tipo de conclusão.

Tal objeção tende a desconsiderar, no entanto, a agência dos próprios indígenas em todo este processo, e sua habilidade para estabelecer conexões com atores em diferentes escalas. Como vimos brevemente na primeira parte deste artigo, não foi apenas pelo fluxo das agências internacionais que a contracartografia se espalhou pelo mundo. Lideranças e movimentos indígenas, desde o princípio, trabalharam ativamente para a promoção e a difusão das técnicas contracartográficas como instrumentos de luta territorial e comunicação intercultural em diferentes países. No contexto brasileiro, o processo de elaboração da PNGATI contou com forte participação indígena em todas as suas etapas, desde sua concepção até sua implementação.

Apesar de todos os problemas envolvidos nos ‘etnomapeamentos’, temos a impressão de que os povos indígenas continuam considerando as tecnologias GIS como instrumentos com potencial contra-hegemônico, no contexto das relações entre os povos e os Estados nacionais. Autores indígenas, como Pearce e Louis (2008, p. 109)Pearce, M. W., & Louis, R. P. (2008). Mapping indigenous depth of place. American Indian Culture and Research Journal, 32(3), 107-126. http://hdl.handle.net/1808/6897
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, asseveram que “geospatial techniques and technologies are not inherently inappropriate for Indigenous cartographic representation; rather, we perceive them as flexible and capable of being adapted to suit traditional Indigenous cultural geographies if used in an informed way”. Segundo a conhecida expressão, trata-se, portanto, de “não jogar fora o bebê com a água do banho”, mas de encontrar formas de “politizar as novas tecnologias” (Santos, 2003Santos, L. G. (2003). Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. Editora 34. citado em Cardoso et al., 2017Cardoso, T., Parra, L., & Mordecin, I. (2017). Mapas em movimento: os (des)caminhos de uma prática cartográfica junto aos Potiguara. Espaço Ameríndio, 11(2), 71-111. https://doi.org/10.22456/1982-6524.74228
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, p. 106).

Os processos de mapeamento indígena, quando individualmente considerados, revelam evidentes dimensões contra-hegemônicas. Em primeiro lugar, recordemos que faz parte da ‘ilusão cartográfica’ a ocultação de todos os sucessivos processos, associações, silêncios e acordos que fazem parte da produção dos mapas. Sendo assim, a própria exposição dos caminhos percorridos na confecção dos mapas finais é, em si mesmo, um procedimento contracartográfico. Expor as entranhas da produção dos mapas é uma forma de controlar seus possíveis efeitos colaterais negativos, como a fixação de fronteiras que antes eram fluidas e contextuais. O mapa, composto desta forma, é sempre provisório, e serve como uma maneira de catalisar a discussão, e não de a encerrar.

Além disso, o próprio ato de inscrever os lugares indígenas no mapa convencional é também um procedimento contracartográfico importante, na medida em que repovoa espaços tornados desabitados pela cartografia colonial. Em uma conhecida passagem de “Moby Dick”, Melville (2010, p. 76)Melville, H. (2010). Moby Dick, ou, A baleia. Cosac Naify. explica que Rokovoko, a ilha natal de Queequeg, “não está em nenhum mapa. Os verdadeiros lugares nunca estão”. No entanto, diz-se que ‘nunca’ é muito tempo. Depois de dois séculos de cartografia no Uaupés, os verdadeiros lugares, lugares com nomes e com história, finalmente estão nos mapas.

  • 1
    Ver também ASEKK e UNIARWA (2020)Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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  • 2
    Os mapeamentos na América Central e no sudeste asiático, nos anos 1990 (Panamá, em 1993, Belize e Nicarágua, em 1993, Guatemala, em 1997, Indonésia, em 1990), foram realizados com o auxílio da World Wildlife Federation (WWF), com apoio financeiro do Banco Mundial. ONG’s norte-americanas, como a Amazon Conservation Team (ACT) e The Nature Conservancy (TNC), foram instrumentais na disseminação dos processos contracartográficos na América Latina e no Brasil (Offen & Rundstrom, 2015Offen, K., & Rundstrom, R. (2015). Indigenous peoples and western cartography. In D. Woodward & G. J. B. Harley (Eds.), The history of cartography (Vol. 6, pp. 243-264). The University of Chicago Press., p. 643).
  • 3
    O conceito de ‘etnoinstrumento’ proposto por Little (2006)Little, P. (2006). Gestão territorial em terras indígenas: definição de conceitos e propostas de diretrizes [Relatório Final]. SEMA/SEPI/GTZ. é mais amplo e envolve o que ele denominou de ‘instrumentos de diagnóstico’, ‘instrumentos de mapeamento’ e ‘instrumentos de gestão’. No entanto, a totalidade dos exemplos fornecidos em seu levantamento envolve alguma utilização de ferramentas cartográficas.
  • 4
    Na região do noroeste amazônico, foco deste artigo, iniciativas pioneiras de contracartografia indígena foram levadas à cabo pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), que resultaram, entre outras coisas, no registro da Cachoeira de Iauaretê, no livro de bens imateriais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e na iniciativa binacional entre Colômbia e Brasil de cartografia dos sítios sagrados do noroeste amazônico.
  • 5
    A lista completa está disponível em Maciel (2016)Maciel, N. (2016). Instruments for territorial and environmental management (The experience of the GATI Project in Indigenous Lands). IEB..
  • 6
    Ver ASEKK e UNIARWA (2020)Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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  • 7
    Nosso enfoque, neste artigo, foi a interpretação de parte dos dados coletados na pesquisa, especialmente aqueles referentes aos chamados lugares sagrados. Uma descrição mais detalhada dos procedimentos de pesquisa, bem como dos seus resultados, pode ser encontrada em ASEKK e UNIARWA (2020)Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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  • 8
    Estamos nos referindo ao célebre desenho “América invertida” (Torres-García, 1943Torres-García, J. (1943). América invertida. Tinta sobre papel. Museo Torres Garcia, Montevideo, Uruguai.), do artista uruguaio Joaquín Torres-García. Ao inverter a orientação tradicional do mapa da América do Sul, Torres-García nos convidou a imaginar uma outra ordem mundial, onde o sul não mais aparece subjugado ao norte: onde se desce para o norte, por assim dizer, e onde a ascensão é para o sul.
  • 9
    Fazemos aqui uma analogia com os conceitos ‘forma de expressão’ e ‘substância de expressão’ propostos pelo estruturalista dinamarquês Louis Hjelmslev. Num dado signo, a expressão tem a ver com os elementos sensíveis, ou o que Saussure chama de significante, enquanto o conteúdo tem a ver com seu significado (Hjelmslev, 1991Hjelmslev, L. (1991). Ensaios Linguísticos. Perspectiva.). Numa língua oral, a expressão é sua articulação sonora; a substância de expressão são os fones propriamente, o [z], [t] ou [a], enquanto a forma é o que dá estrutura a esses sons, como os fonemas, as sílabas etc.
  • 10
    A expressão vai entre aspas porque as atividades produtivas, entre os povos indígenas, são quase sempre atravessadas por elementos simbólicos.
  • 11
    A análise das unidades da paisagem codificadas pelos topônimos levou em consideração as categorias linguísticas kotiria e kubeo com relação a categorias usadas na tradução para o português.
  • 12
    Por exemplo, se o morfema classificador X ocorre em oito de dez lugares referentes a ‘cachoeiras’, enquanto o morfema Y ocorre em dois dos dez lugares, podemos dizer que X ocorre numa proporção de 8/10 ou 0,8.
  • 13
    Termo genérico utilizado pelos Kotiria e pelos Kubeo para se referirem ao povo Yuhupdeh.
  • 14
    Apenas a língua Kotiria traz um lugar com referência a cachorro enquanto um animal doméstico (Diero Yari Nuhkõ ‘Ilha Cemitério de Cachorro’).
  • 15
    Elementos individuais na paisagem imbuídos de significado. A sequência de topogramas em uma determinada paisagem constitui, para Santos-Granero (2002, p. 132)Santos-Granero, F. (2002). The Arawakan Matrix: ethos, language and history in Native South America. In J. Hill & F. Santos-Granero (Eds.), Comparative Arawakan histories: Rethinking language family and culture area in Amazonia (pp. 25-50). University of Illinois Press., uma “escrita topográfica”.
  • 16
    A história conta que a ‘Anta’, investida do poder de sua caixa de enfeites, constrói um ‘jirau’ e posiciona seus ‘soldados’, as pedras-vigias, para acompanhar os movimentos da ‘Gente de Transformação’. As ‘filhas do Uirapajé’, primas da Anta, observam tudo com espanto: “Por que você está enlouquecida desse jeito, querendo matar a ‘Gente de Transformação’, primo?”. Outros ‘povos’ vêm ao socorro da ‘Gente de Transformação’. O Caranguejo tenta cortar o jirau da Anta, porém é descoberto e assassinado. O ‘Velho Muçum’, apavorado, contorna a armadilha da Anta, conformando, em sua passagem, um paranã. Seguindo seu exemplo, a ‘Gente de Transformação’ toma a forma de um peixe-mandioca, e abre um segundo paranã, acima do paranã do Muçum. A Anta finalmente é derrotada pela ‘Gente de Transformação’, liberando o caminho para a subida (ou descida) do Uaupés. Em seu ato final, ela é decapitada, e sua cabeça é arremessada no rio Uaupés. Vendo que a cabeça não era muito pesada, eles disseram em tom de piada: “se fosse cabeça de anta seria pesado! Então deve ser cabeça de beija-flor!” (adaptado de ASEKK & UNIARWA, 2020Associação da Escola Kotiria Kh–um–uno W–u’–u (ASEKK) & União das Nações Indígenas do Alto Rio Waupés (UNIARWA). (2020). Água, Terra e Gente Kotiria e Kubeo: Primeiros Passos para um Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Alto Uaupés. PDPI/MMA. https://zenodo.org/records/4783775
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    , pp. 79-97).
  • 17
    Nem mesmo em nossa cultura ocidental os mapas conseguiram substituir de todo um modo mais experiencial e processual de organizar e se localizar no espaço. Podemos prescindir dos mapas em boa parte dos deslocamentos habituais de nossa vida cotidiana.
  • 18
    Devemos essa expressão ao colega Bruno Marques, antropólogo e pesquisador do alto rio Negro.
  • 19
    Note-se que não foi apenas na qualidade de ‘informantes’ que a participação indígena se deu na atividade cartográfica. Um campo de estudos muito interessante, sobre o qual ainda cabem muitas contribuições, é buscar por “assinaturas ameríndias” nos mapas coloniais (Offen, 2007Offen, K. (2007). Creating Mosquitia: mapping Amerindian spatial practices in eastern Central America, 1629-1779. Journal of Historical Geography, 33(3), 369-389. http://dx.doi.org/10.1016/j.jhg.2006.05.003
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    , p. 257).
  • 20
    Talvez um dos motivos pelos quais esse diálogo ainda não tenha acontecido seja a miríade de termos existentes para expressar uma mesma coisa. O vocabulário gerencial insípido adotado no Brasil para se referir às contracartografias indígenas, que inclui palavras como etnomapeamento, etnozoneamento, gestão territorial e ambiental, certamente contribui para manter incomunicáveis domínios que possuem óbvias conexões metodológicas e políticas. Esse é um dos motivos pelos quais decidimos utilizar a expressão ‘contracartografia’ neste artigo, a despeito de nosso tema corresponder ao que, no Brasil, se convencionou chamar de ‘etnomapeamento’ no âmbito da elaboração de um ‘plano de gestão’. Esperamos, com isso, apontar para um horizonte de diálogo entre o movimento indígena e outros coletivos que empregam a contracartografia para contestar formações espaciais hegemônicas.
  • 21
    No Brasil, tramitam dezenas de proposições anti-indígenas no Congresso Nacional (Cavalli, 2018Cavalli, G. (Org.). (2018). Congresso anti-indígena. Os parlamentares que mais atuaram contra os direitos indígenas. Conselho Indigenista Missionário. https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2018/09/congresso-anti-indigena.pdf
    https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2...
    , p. 13). O Estado brasileiro, nos últimos anos, não apenas tem se furtado a cumprir seu dever constitucional de demarcar e proteger as terras indígenas, como buscou ativamente, por meio de seu representante eleito no executivo e no Congresso Nacional, reverter os direitos territoriais indígenas adquiridos na Constituição de 1988. No plano internacional, tivemos, recentemente, outro duro exemplo da fragilidade dos acordos entre o Estado e os povos indígenas, com a aprovação, pelo presidente dos EUA, Joe Biden, do chamado “Project Willow”, que prevê a exploração massiva de petróleo e gás no Alasca, justamente a região por onde começamos a contar nossa história, o berço da contracartografia indígena.
  • 22
    Ver, por exemplo, Wainwright e Bryan (2009)Wainwright, J., & Bryan, J. (2009). Cartography, territory, property: postcolonial reflections on indigenous counter-mapping in Nicaragua and Belize. Cultural Geographies, 16(2), 153-178. https://doi.org/10.1177/1474474008101515
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    .
  • Rocha, P., & Chacon, T. C. (2024). Entre territórios e mundos: espacialidade e contracartografia kotiria e kubeo no rio Uaupés, Amazonas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 19(1), e20230042. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0042

REFERENCES

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Editado por

Responsabilidade editorial: Márcio Couto Henrique

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2023
  • Aceito
    22 Jan 2024
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