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Formação e transformação de coletivos entre os Waikhana do rio Papuri (alto rio Negro)

Formation and transformation of collectives among the Waikhana of the Papuri River (upper Negro River)

Resumo

Partindo de uma análise das dinâmicas socioespaciais dos Waikhana, um dos grupos da família tukano do alto rio Negro, e de uma contextualização etnográfica do envolvimento de alguns subgrupos waikhana com o que veio a ser chamado na região de ‘movimento de revitalização da cultura’, este artigo busca discutir questões importantes que perpassam o tema clássico da hierarquia no Uaupés contemporâneo. Com base em dados etnográficos coletados entre os Waikhana do rio Papuri, pretende-se apontar e debater alguns modos por meio dos quais a problemática da hierarquia e do sistema de prestígio no Uaupés parecem abertos a reinterpretações e redirecionamentos que os diversos clãs e indivíduos agenciam a partir de um conjunto heterogêneo de variáveis. Conforme veremos, diferenças de perspectiva dentro da própria estrutura de clãs, territorialidade, coesão e fragmentação, crescimento e diminuição populacional, competências no campo político-ritual e até mesmo os acasos da história estão entre os fatores que parecem operar um dinamismo nas relações que fundamentam o idioma da hierarquia e o sistema de prestígio uaupesiano.

Palavras-chave
Waikhana; Alto rio Negro; Papuri; Hierarquia; Territorialidade

Abstract

Starting from an analysis of the socio-spatial dynamics of the Waikhana, one of the Tukano family groups from the upper Negro River, and from an ethnographic contextualization of the involvement of some Waikhana subgroups with what came to be called in the region the ‘culture revitalization movement’, this article seeks to discuss important issues that permeate the classic theme of hierarchy in contemporary Uaupés. Based on ethnographic data collected among the Waikhana of the Papuri river, the aim is to point out and discuss some ways in which the problem of hierarchy and the system of prestige in the Uaupés seems open to reinterpretations and redirections that the various clans and individuals manage to from a heterogeneous set of variables. As we will see, differences of perspective within the very structure of clans, territoriality, cohesion and fragmentation, population growth and decrease, competences in the political-ritual field and even the accidents of history are among the factors that seem to operate a dynamism in the relationships that underlie the language of hierarchy and the Uaupesian prestige system.

Keywords
Waikhana; Upper Rio Negro; Papuri; Hierarchy; Territoriality

APRESENTAÇÃO

Este artigo deriva de minha pesquisa de mestrado realizada junto aos Waikhana, um dos dezesseis povos da família linguística tukano oriental que habita a bacia do rio Uaupés, no alto rio Negro. Conhecidos na literatura, e mesmo regionalmente, como Piratapuia, eles preferem ser chamados de Waikhana, que é a autodenominação do grupo, algo como ‘povo peixe’; enquanto que Piratapuia é um apelido que ganharam depois da chegada dos brancos, uma tradução aproximada para a língua geral de sua autodenominação, já que, em nheengatu, pira é ‘peixe’ e tapuia, em alguns contextos, poderia ser traduzido como ‘gente’.

Os Waikhana reconhecem o seu território tradicional na região do médio rio Papuri, onde se concentra a maior parte de suas comunidades, tanto do lado brasileiro quanto colombiano – o Papuri serve de linha de fronteira entre os dois países. Mas, conforme narram aqueles que conhecem as histórias das migrações e deslocamentos do passado, ainda em um período anterior à chegada dos colonizadores, alguns de seus subgrupos e clãs começaram a sair do médio Papuri e se dispersar para outras regiões do Uaupés, sobretudo no médio e no baixo curso, e mesmo pela calha do rio Negro. Nas últimas décadas, muitas famílias também migraram de suas comunidades para outras localidades, como o povoado de Iauaretê, onde hoje vive um grande número de famílias waikhana, e ainda as cidades de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro, além de diversas comunidades multiétnicas espalhadas ao longo do rio Negro, especialmente em seu médio curso. Resulta que os Waikhana constituem hoje um grupo com grande dispersão territorial, assim como muitos outros povos do alto rio Negro.

Partindo de uma análise dessas dinâmicas socioespaciais do passado e do presente e de uma contextualização etnográfica do envolvimento de alguns subgrupos Waikhana com o que veio a ser chamado na região de ‘movimento de revitalização da cultura’, este artigo busca discutir questões importantes que perpassam o tema clássico da hierarquia no Uaupés contemporâneo. Mais propriamente, a partir desse contexto etnográfico, busco discutir alguns modos por meio dos quais a problemática da hierarquia e do sistema de prestígio no Uaupés parecem abertos a reinterpretações e redirecionamentos que os diversos clãs e indivíduos agenciam com base em um conjunto heterogêneo de variáveis. Conforme veremos, diferenças de perspectiva dentro da própria estrutura de clãs, territorialidade, coesão e fragmentação, crescimento e diminuição populacional, competências no campo político-ritual e até mesmo os acasos da história estão entre os fatores que parecem operar um dinamismo nas relações que fundamentam o idioma da hierarquia e o sistema de prestígio uaupesiano.

As questões de que trato no texto constituem uma das dimensões que desenvolvi em minha dissertação de mestrado (Caetano da Silva, 2012Caetano da Silva, A. S. (2012). Falas Waikhana: conhecimento e transformações no alto rio Negro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/212
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) e, importante frisar, inserem o material waikhana no contexto de um debate mais amplo sobre o tema da hierarquia no Uaupés e seu papel na organização social, problema clássico da etnologia regional e que vem sendo trabalhado, revisto e discutido criticamente por diversos autores e pesquisas mais recentes.

Desde os trabalhos pioneiros de Goldman (1963Goldman, I. (1963). The Cubeo: Indians of the Northwest Amazon. University of Illinois Press., 1976)Goldman, I. (1976). Time, space and descent: the Cubeo example [Conferência]. Actes du XLII Congrès International des Américanistes. Societé des Americanistes, Paris., C. Hugh-Jones (1979)Hugh-Jones, C. (1979). From the milk river: Spatial and temporal processes in Northwest Amazonia. Cambridge University Press., S. Hugh-Jones (1979)Hugh-Jones, S. (1979). The Palm and the Pleiades: initiation and Cosmology in North-west Amazonia. Cambridge University Press., Jackson (1983)Jackson, J. (1983). The fish people. Cambridge University Press., passando por Chernela (1993)Chernela, J. M. (1993). The Wanano Indians of the Brazilian Amazon: a sense of space. University of Texas Press. e Århem (1981)Århem, K. (1981). Makuna social organization: a study in descent, alliance, and the formation of corporate groups in the North-Western Amazon (Uppsala Studies in Cultural Anthropology). Almqvist & Wiksell., entre outros autores já clássicos, o tema tem rendido importantes análises e problematizações, especialmente por apontar certa especificidade do sistema social rionegrino frente aos demais povos amazônicos (ver, por exemplo, Chernela, 1993Chernela, J. M. (1993). The Wanano Indians of the Brazilian Amazon: a sense of space. University of Texas Press.). Pesquisas mais recentes de S. Hugh-Jones (1993Hugh-Jones, S. (1993). Clear descent or ambiguous houses? A re-examination of Tukanoan social organization. L’Homme, (126/128), 95-120., 2002)Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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e de autores contemporâneos, como Andrello (2016Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia. Coletivos em transformação no rio Negro. Ilha. Revista de Antropologia, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
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, 2020Andrello, G. (2020). Cunhados em comum: transformações do parentesco entre os Ye’pâ Mahsã (Tukano). Maloca. Revista de Estudos Indígenas, 3, e020008. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13491
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; Maia & Andrello, 2019Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’iro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Vaupés. Mundo Amazônico, 10(1), e74221. http://dx.doi.org/10.15446/ma.v10n1.74221
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), Cayón (2020)Cayón, L. (2020). Disputas fraternas e chefia bicéfala: hierarquia e heterarquia no Alto Rio Negro. Revista de Antropologia, 63(2), e151160. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2020.171366
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, Lolli (2022)Lolli, P. A. (2022). Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos: inversões e contestações entre os grupos Yuhupdëh no Noroeste Amazônico. Revista AntHropológicas, 33(2), 133-166. https://doi.org/10.51359/2525-5223.2022.253480
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, também têm se debruçado sobre o tema1 1 Outros autores e pesquisadores contemporâneos, como A. Cabalzar (2000, 2009) e F. Cabalzar (2010), por exemplo, também abordaram o tema da hierarquia e suas implicações na organização social, na esfera política-ritual e na ‘economia do conhecimento’ que vigora entre os povos tukano. Mas estes que cito são os que se debruçaram ou ainda têm se debruçado sobre o problema com um foco mais específico. , buscando novas categorias analíticas para a compreensão da organização social, das dinâmicas político-rituais e da formação dos coletivos no noroeste amazônico e debatendo de forma crítica a própria noção, a eficácia analítica e o funcionamento da hierarquia nos sistemas sociais dos povos da região. Podemos citar ainda algumas das etnografias recentes que dialogam com esse tratamento crítico da noção de hierarquia a partir de dados etnográficos do Uaupés contemporâneo, em especial Richard (2021)Richard, E. (2021). Le système des “considérations” chez les Tuyuka du haut Rio Negro (Brésil-Colombie): parenté, fêtes, genre et onomastique en Amazonie [Thèse de doctorat, Université Paris Nanterre, Universidade de São Paulo]. https://theses.hal.science/tel-03508304/file/2021PA100065.pdf
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, Rodrigues (2019)Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés (AM) [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/12050?show=full&locale-attribute=pt_BR
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e Oliveira (2016)Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os tukano hausirõ e ñahuri porã, do médio rio tiquié, noroeste amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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. Estes dois últimos, inclusive, tratam de casos semelhantes ao que abordo neste artigo (ele mesmo derivado de minha etnografia), relacionados à territorialidade e à trajetória de clãs e suas implicações na ‘economia do prestígio’2 2 Expressão utilizada por Rosa (2013) no trabalho acima citado. uaupesiana.

Não faz parte dos objetivos deste artigo passar em revista essa extensa bibliografia, e nem haveria espaço para isso. Uma excelente revisão crítica do tratamento do tema pelos etnólogos da primeira geração, de Irving Goldman a Janet Chernela, pode ser encontrada no trabalho de Rosa (2013)Rosa, D. P. (2013). “Quem veio primeiro?” Imagens da hierarquia no Uaupés (Noroeste Amazônico) [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-12022014-122745/
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. Apenas ressalto que, em geral, os autores e as pesquisas recentes aqui citados vêm problematizando o emprego da noção de hierarquia para o caso do Uaupés e, a partir de novos dados etnográficos, têm chamado atenção para o caráter instável e até mesmo reversível das chamadas relações hierárquicas nas sociocosmologias dos povos da região. Para situar melhor o leitor, enfatizo que meu tratamento do caso waikhana está alinhado a essas análises e lança luz sobre algumas possibilidades analíticas que podem contribuir com este debate. Tento evidenciar, a partir da explanação do material waikhana e dos problemas que parecem implicar, como o conjunto de relações baseadas no idioma da hierarquia se faz e se refaz enquanto um elemento instável, suscetível a inversões e reversibilidades que podem ser operadas por uma gama variada de fatores, e, ponto importante, pode estar sujeito ao problema mais geral do ponto de vista.

Por fim, pondero que os problemas e proposições aqui abordados surgem a partir de dados coletados em um momento particular da história recente do alto rio Negro e da região do Uaupés. Do mesmo modo, estes dados constituem um recorte do sistema social que conforma os Waikhana enquanto um grupo de descendência dentro do universo tukano. Por isso, considero que as análises que aqui avanço encontram-se ainda abertas a revisões e confrontações, seja com dados mais aprofundados e atuais a respeito dos próprios Waikhana e seus diversos grupos dispersos por comunidades no Papuri, Uaupés e rio Negro, incluindo os que vivem do lado colombiano; seja dados de outros povos da família tukano já trabalhados pelos pesquisadores que têm se dedicado à temática.

PROBLEMAS INICIAIS

O foco geográfico de minha pesquisa foram os Waikhana da margem brasileira do rio Papuri, mais especificamente da comunidade Pohsaya Pitó (nome em waikhana), ou São Gabriel (nome dado depois da chegada dos padres salesianos). No período em que fui a campo, entre 2010 e 2013, essa comunidade, que conta com uma escola de ensino fundamental, agregava também famílias oriundas de outras quatro comunidades e sítios próximos e que haviam se mudado temporariamente para Pohsaya Pitó, a fim de que os filhos pudessem estudar. A comunidade funcionava como uma espécie de sede regional e havia sido o centro de várias iniciativas e projetos de fortalecimento cultural que mobilizaram os Waikhana da região do Papuri e Iauaretê, a partir de meados dos anos 20003 3 Sem dúvida, esse movimento dos Waikhana se insere em um contexto mais amplo que marcou esse período logo após a demarcação da Terra Indígena Alto Rio Negro, entre fins da década de 1990 e início dos anos 2000. Foi uma fase de ebulição do movimento indígena e consolidação de parcerias, em que despontaram pela região do alto rio Negro diversas iniciativas e projetos de fortalecimento e documentação cultural. . Tais iniciativas incluíram desde a reconstrução de uma maloca tradicional no pátio da comunidade até projetos de educação diferenciada, documentação e revitalização linguística, passando pela realização de diversos encontros de conhecedores em que eram relembradas as narrativas de origem, as danças e cantos, as trajetórias dos diversos subgrupos e clãs, bem como a confecção de ornamentos4 4 Os Waikhana contaram com apoio da linguista Kristine Stenzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que realizou diversas oficinas com eles e os auxiliou na elaboração de cartilhas e materiais na língua. A língua waikhana, como outras da família tukano, vem pouco a pouco deixando de ser falada e sendo substituída pelo tukano, isso nas comunidades do lado brasileiro. A perda da língua é motivo de preocupação para os waikhana mais velhos, conforme veremos mais adiante. .

Com base em trabalhos como os de Andrello (2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. Editora UNESP/ISA/NuTI., 2010Andrello, G. (2010). Falas, objetos e corpos: autores indígenas no alto rio Negro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 25(73), 5-26. https://doi.org/10.1590/S0102-69092010000200001
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) e S. Hugh-Jones (2010)Hugh-Jones, S. (2010). Entre l’image et l’ècrit. La politique Tukano de patrimonialisation en Amazonie. Cahiers des Amériques latines, 1-2(63-64), 195-227. https://doi.org/10.4000/cal.895
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, autores que já vinham apontando para a problemática local da ‘objetivação da cultura’ no Uaupés, meu interesse inicial era compreender o modo como os Waikhana estavam vivenciando esses processos e agenciando conceitos como ‘cultura’, ‘patrimônio’ e ‘tradição’, para além de seu aspecto mais visível de política identitária. E, de forma um pouco mais difusa, entender como essa conjuntura local estaria relacionada a uma dinâmica tradicional de relações entre grupos e clãs que seria, por suposto, permeada pelo idioma da hierarquia.

Minha primeira aproximação aos Waikhana foi a leitura de uma dissertação de mestrado (Chagas, 2001Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco].) escrita justamente por um indígena desta etnia que, depois de ter estudado para se tornar padre salesiano, abandonou o seminário e foi fazer mestrado em antropologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Além de constituir um interessante caso de autoetnografia, à época em que iniciei a pesquisa, esse trabalho era também a única referência etnográfica disponível e específica sobre os Waikhana5 5 Dorvalino Chagas foi um dos precursores nas pesquisas acadêmicas realizadas por indígenas no rio Negro, especialmente no campo da antropologia. De lá para cá, houve um crescimento significativo de indígenas da região cursando mestrado e doutorado em antropologia, com trabalhos relevantes e tratando de temas sensíveis à etnologia regional. . A pesquisa empreendida por Dorvalino Chagas, e que deu origem à sua dissertação, também estava inserida no contexto que eu pretendia investigar: ele havia sido um dos principais animadores das iniciativas e dos projetos de revitalização cultural que mobilizaram os Waikhana no início dos anos 2000. E grande parte do material de sua dissertação havia sido coletada em trabalhos, atividades e encontros organizados por ele e que representaram o início das iniciativas que se desenrolaram nos anos seguintes. Assim, tanto por sua forma quanto por seu conteúdo, ou por seu texto e contexto, o trabalho desse etnólogo waikhana foi o ponto de partida para a pesquisa que desenvolvi junto aos Waikhana. Ademais, foi através de sua interlocução e apoio que pude chegar até o Papuri e até mesmo participar de perto do próprio processo que eu esperava então analisar. Isso porque acabei sendo requisitada para ajudar no registro escrito em livro da história de origem waikhana narrada por Laureano Cordeiro, principal conhecedor e ‘cabeça’ do clã ao qual pertencem os Waikhana de Pohsaya Pitó6 6 A triste notícia do falecimento de Laureano, vítima da COVID-19, chegou quando eu havia finalizado a primeira versão deste texto. Laureano tinha cerca de 80 anos e era um conhecedor muito respeitado entre os Waikhana. .

OS WAIKHANA: PROBLEMAS DO PASSADO E DO PRESENTE

No contexto regional multiétnico e multilinguístico da bacia do Uaupés, os Waikhana convivem, mantêm relações e compartilham comunidades e territórios com vários outros grupos: com alguns, eles ‘trocam mulheres’, como os Desana, os Tukano e os Tariano (grupo Arawak); com outros eles partilham uma ‘germanidade mítica’, que os impede de estabelecer trocas matrimoniais, como os Kotiria (Wanano) e os Arapasso; e com quase todos os outros (Tuyuka, Karapanã, Siriano, Bará, Mirititapuia, dentre outros da família Tukano), mesmo que não haja hoje muita interação direta, eles se relacionam por meio de uma história de origem comum que os coloca enquanto ‘gentes’ (mahsã) portadoras de uma mesma condição humana. Os fundamentos dessas relações atuais dos Waikhana com os demais povos estão nas narrativas de origem que contam a história do surgimento e da transformação dos primeiros ancestrais, assim como da chegada destes aos territórios da bacia do Uaupés7 7 Os Waikhana compartilham com os demais grupos tukano a história da viagem da cobra-canoa que levou os ancestrais do ‘lago de leite’ (no extremo leste do mundo) até os seus territórios na bacia do Uaupés. Essa viagem marca também o surgimento da humanidade a partir da transformação dos primeiros ancestrais e o advento de conhecimentos, práticas e regras sociais que, desde então, passaram a fundamentar a existência e a sociabilidade dos diversos povos da região. .

Como ocorre com boa parte dos povos da família linguística tukano e conforme já apontamos mais acima, os Waikhana constituem um grupo com bastante dispersão territorial. Podemos encontrar um número significativo de grupos domésticos waikhana em muitas comunidades ao longo dos rios Uaupés e Papuri e também ao longo do rio Negro, especialmente em seu médio curso. Em geral, são comunidades multiétnicas, onde os Waikhana compartilham a vida com famílias de vários outros grupos. As que são reconhecidas como comunidades waikhana propriamente ditas, isto é, onde só vivem grupos domésticos waikhana ou que foram historicamente formadas pelos Waikhana são poucas e, com exceção do Papuri, onde há, de fato, um nexo regional do grupo, estas se encontram dispersas umas das outras.

Do mesmo modo, as comunidades waikhana, assim como de outros grupos do Uaupés e mesmo de todo o alto rio Negro, foram marcadas, a partir da década de 1990, por um movimento drástico de esvaziamento devido a migrações de famílias para a cidade ou povoados maiores. No caso dos Waikhana do Papuri e região do médio e alto Uaupés, o principal destino foi e ainda é o povoado de Iauaretê, na confluência entre os rios Uaupés e Papuri8 8 Para uma história e uma etnografia do povoado de Iauaretê, ver Andrello (2006). . No período de minha pesquisa, as que menos tinham sofrido com essas migrações eram as comunidades São Gabriel (Pohsaya Pitó), no Papuri, e Aracú Ponta (Bo’tea Pehta), no Uaupés. Mas mesmo essas também tinham sido significativamente afetadas pela onda migratória.

O fato é que a relação com o povoado de Iauaretê, e mesmo com a cidade de São Gabriel, é já há algum tempo um componente básico na vida dos Waikhana e faz parte de um processo observável em toda a região do alto rio Negro. Se, por um lado, a mobilidade, as migrações e os deslocamentos sempre fizeram parte da vida dos povos da região – e, de certo modo, o movimento atual pode ser lido como uma continuidade desses fluxos –, por outro lado, nas últimas décadas, a cidade e os povoados maiores passaram a representar um polo de atração e um fator de maior fixação das famílias que resolvem migrar9 9 Um ótimo trabalho sobre essa temática complexa da mobilidade e da atração que o povoado de Iauaretê e, depois, a cidade de São Gabriel passaram a exercer nas últimas décadas, neste caso entre os Hup’däh, é a tese de doutorado de Marques (2015). . Não que não haja também um movimento inverso, de famílias voltando para as comunidades: tenho notícias de diversos casos, inclusive entre os Waikhana. Mas parece que a tendência maior é ainda a mudança para os núcleos urbanos.

Esse contexto, somado às transformações que marcaram a vida dos Waikhana desde os primeiros contatos com os brancos (especialmente desde a chegada dos missionários salesianos ao Uaupés), parece ser motivo de preocupação e certa tristeza para muitos dos Waikhana mais velhos com quem tive oportunidade de conversar tanto em Iauaretê quanto no Papuri, mas também em outros lugares. Primeiro, é perceptível um sentimento de perda em relação a elementos essenciais da cultura e da identidade waikhana, havendo uma ideia de que hoje é preciso um esforço constante para que aquilo que restou da vida, dos ensinamentos e da riqueza deixada pelos ‘antigos’ não tenha o mesmo destino que tiveram muitos dos componentes mais valiosos e visíveis da ‘cultura’, os quais foram alvos privilegiados da repressão missionária. A fala abaixo, expressa por Marcelino Cordeiro, então coordenador das escolas indígenas do médio Papuri e que, na época, foi um dos principais animadores das iniciativas de fortalecimento cultural, ilustra um pouco essas preocupações expressas pelos Waikhana:

Se a gente não cuidar, os Waikhana vão ficar como nus diante dos outros grupos. Os Wanano, que são como nossos irmãos menores, ainda falam sua língua, ainda fazem suas danças, suas festas tradicionais, mas a gente já perdeu muito, muita coisa os padres tiraram da gente e agora, aqui [do lado brasileiro], todos só estão falando tukano

(M. Cordeiro, comunicação pessoal, 10 set. 2010).

O problema do enfraquecimento da língua waikhana e a adoção do tukano pelos mais jovens foi um tema corrente nas conversas que tive com homens mais velhos do grupo e parecia ser encarado como uma das ‘perdas’ ou consequências negativas que essa dispersão e as migrações para Iauaretê teriam gerado, pois, em Iauaretê, o tukano é a língua franca e todos os jovens que estudam nas escolas do povoado necessariamente precisam falá-la, a qual, inclusive, faz parte do currículo escolar. Como me disse um senhor waikhana que vivia em Iauaretê já há muitos anos: “Em Iauaretê ninguém mais sabe o que é, todos estão virando tukano” (comunicação pessoal, 20 ago. 2010).

Além disso, parece haver também a ideia de um enfraquecimento do grupo devido à desagregação provocada pelas migrações. Em 2014, em uma das viagens de campo que fiz para o baixo Uaupés como funcionária do Instituto Socioambiental (ISA), ouvi de um senhor waikhana que vivia na comunidade Uriri (já falecido): “Os Piratapuia estão tudo espalhado por aí, desse jeito vão se acabar tudinho... Só lá pra cima ainda tem, lá pra Colômbia, não sei como está lá” (comunicação pessoal, 15 nov. 2014). Ele se referia ao rio Papuri e parecia ter em mente a ideia de que lá os Piratapuia ainda estariam vivendo como um grupo mais coeso, já que o esvaziamento das comunidades e a dispersão das famílias parecem implicar certa perturbação naquele ideal de sociabilidade dos grupos locais baseado no idioma da agnação. Ainda que, na prática, os arranjos comunitários e o desenrolar da vida cotidiana apresentem um alto potencial de ruptura (mesmo em contextos mais marcados pela agnação) e sejam marcadamente constituídos também pelas relações com grupos afins, é certo que os laços agnáticos constituam alicerces importantes para o ideal de coesão do grupo local10 10 É importante lembrar aqui que o problema da tensão e/ou complementariedade entre os idiomas da descendência e da aliança (agnação e cognação; consanguinidade e afinidade) enquanto princípios estruturadores das relações e dos arranjos socioespaciais entre os povos tukano já rendeu e continua rendendo muita discussão na etnologia regional. Não cabe aqui entrar neste debate, mas deixo como referência os trabalhos de S. Hugh-Jones (1993), Århem (1981), A. Cabalzar (2000, 2009) e um artigo mais recente de Andrello (2020), onde essa discussão se abre para novas problematizações. .

Uma cena que pude algumas vezes presenciar enquanto estive em Pohsaya Pitó, já descrita em Caetano da Silva (2012)Caetano da Silva, A. S. (2012). Falas Waikhana: conhecimento e transformações no alto rio Negro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/212
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, nos dá uma ideia da importância destes laços, ao mesmo tempo em que demonstra o esforço empreendido para que aqueles que são ‘outros’ sejam também integrados ao grupo local. Sempre antes dos eventos em que as pessoas se reuniriam na maloca para beber caxiri, fumar tabaco, se divertir, jogar conversa fora, e, assim, simplesmente levar a vida em comunidade, o senhor waikhana que foi um de meus principais interlocutores durante a pesquisa (Marcelino Cordeiro, o então coordenador das escolas indígenas do médio Papuri), se dirigia ao pátio da aldeia e começava a chamar, por ordem de senioridade, um por um dos homens que hoje compõem o grupo agnático (o clã); inclusive aqueles que há tempos deixaram a comunidade para viver em Iauaretê ou em São Gabriel da Cachoeira. Em seguida, passava a chamar os homens que vieram de outras comunidades, e que pertencem a outros clãs, mas que moravam em Pohsaya Pitó. E, por fim, chamava também os homens de outros grupos que viviam ali agregados, como um cunhado desana e um professor tukano que lecionava na escola da comunidade. Ele dizia que assim podia trazer para perto os irmãos ausentes e relembrar a todos a importância da união e da boa convivência entre todos na comunidade.

Este fato nos faz lembrar aquilo que observou Lasmar (2005, p. 98)Lasmar, C. (2005). De volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. Editora UNESP, ISA, NuTI. a respeito da relação dinâmica que se verifica no Uaupés entre o ideal da agnação e os valores da vida comunitária. Conforme a autora:

No trabalho de constituição da comunidade, o grupo agnático funciona, por um lado, como um modelo de identificação, um polo de atração centrípeta. E, por outro, se a conexão vertical dos membros do sib com a fonte generativa é concebida como dada nas origens, o princípio de unidade entre seus membros precisa ser constantemente reiterado. Nesse processo, a ética comunitária exerce um papel central, pois é ela que opõe resistência à dispersão dos irmãos depois que se casam

(Lasmar, 2005Lasmar, C. (2005). De volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. Editora UNESP, ISA, NuTI., p. 98).

No contexto atual, marcado pelo esvaziamento das comunidades e por migrações para os centros urbanos, os que ficaram parecem mesmo se esforçar para que o elo existente entre os membros do grupo continue vivo, apesar da distância. Isso quando não há conflitos e desentendimentos que causam rupturas mais dramáticas no núcleo do grupo local (ou do grupo agnático). Manter a coesão e o equilíbrio, ao que parece, nunca foi uma tarefa fácil no Uaupés, haja vista as histórias que narram as trajetórias dos subgrupos e clãs, marcadas por conflitos de toda ordem, rupturas, fissões e dispersão pelo território. E o desafio parece ter ficado ainda maior a partir do encontro com as forças disruptivas do mundo pós-colonial. Por isso, um grupo íntegro, com certa estabilidade territorial e que, especialmente, consegue crescer em termos de população, ainda que esteja abaixo na escala hierárquica, parece reunir atributos importantes na política de prestígio que vigora entre os povos do Uaupés e pode mesmo vir a provocar certas perturbações nos princípios que regem o idioma da hierarquia.

É claro que essas posições são sempre instáveis e abertas a inúmeras flutuações no curso da história. Se, por um lado, como bem argumentou Andrello (2020)Andrello, G. (2020). Cunhados em comum: transformações do parentesco entre os Ye’pâ Mahsã (Tukano). Maloca. Revista de Estudos Indígenas, 3, e020008. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13491
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, o crescimento demográfico no universo uaupesiano se mostra como um ‘índice de vitalidade e proeminência’, podendo mesmo inverter o princípio da senioridade, que é o fundamento da armação hierárquica, por outro, quanto mais um grupo cresce, mais estará sujeito a fissões e rupturas em seu núcleo interno. Assim, se o conceito de hierarquia tem funcionalidade no Uaupés, seria marcadamente enquanto uma ‘hierarquia em perpétuo desequilíbrio’ (Andrello, 2020Andrello, G. (2020). Cunhados em comum: transformações do parentesco entre os Ye’pâ Mahsã (Tukano). Maloca. Revista de Estudos Indígenas, 3, e020008. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13491
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)11 11 É importante ressaltar que as análises do autor no artigo referido se debruçam sobre um tema amplo e bastante complexo que diz respeito à problematização do conceito de afinidade potencial no universo do alto rio Negro, a partir de uma revisão dos modelos de organização social produzidos pela etnografia regional e de narrativas míticas que apontam para pontos críticos desses modelos. Assim, a citação acima abarca várias outras dimensões que perpassam as análises e problematizações desenvolvidas pelo autor e de maneira alguma se reduz ao aspecto do problema aqui enfatizado. .

Na próxima seção, trataremos de algumas dessas flutuações a que o sistema parece estar sujeito, a partir de uma apresentação da estrutura dos clãs waikhana, tomando por foco o fator territorial. Antes, vale adiantar duas questões importantes para que possamos compreender melhor a discussão que segue. Primeiro que, entre os Waikhana, ao contrário do modelo proposto por A. Cabalzar (2009)Cabalzar, A. (2009). Filhos da Cobra de Pedra: organização social e trajetórias tuyuka no rio Tiquié (noroeste amazônico). Editora UNESP/ISA/NuTI. para o caso dos Tuyuka, foram os clãs de mais alta hierarquia que se segmentaram e se dispersaram mais dramaticamente, constituindo, hoje, os grupos locais mais afastados do território tradicional, o médio curso do rio Papuri; enquanto os clãs menores permaneceram no Papuri, formando o que podemos chamar propriamente de um ‘nexo regional’: comunidades e sítios waikhana ocupando um trecho contínuo de rio.

Em segundo lugar, diferente de outros casos da região, em que iniciativas de fortalecimento cultural foram idealizadas e lideradas por clãs ou sibs que ocupam posições de destaque na hierarquia do grupo – caso dos Koivathe (Tariano) e dos Oyé (Tukano) (cf. Andrello, 2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. Editora UNESP/ISA/NuTI.) –, entre os Waikhana todo este movimento que eles denominaram de ‘resgate e revitalização da cultura’ estava sendo empreendido por clãs e indivíduos situados em níveis mais baixos da escala hierárquica: justamente, os Waikhana da margem brasileira do Papuri, pertencentes ao último dos três subgrupos que compõem o grupo como um todo, conforme veremos. Em um contexto em que as relações entre grupos, clãs e indivíduos seriam tradicionalmente norteadas pela problemática da hierarquia e em que a lida ou o controle sobre a ‘tradição’ seria, via de regra, uma prerrogativa dos ‘irmãos maiores’, comecei a me perguntar quais seriam, então, os fatores em causa e os efeitos desta espécie de inversão waikhana no âmbito de suas próprias relações sociopolíticas. Ou que relação haveria entre esta situação socioespacial e o fato de os Waikhana do Papuri serem justamente os que estavam envolvidos nestas iniciativas de revalorização cultural?

Em um primeiro olhar, poderíamos ver essa situação a partir de um problema apontado em vários trabalhos da literatura regional nos quais as configurações socioespaciais e o movimento no eixo montante/jusante correspondem, na perspectiva dos próprios indígenas, a um vetor de transformação que vai da ‘tradição’ à ‘civilização’ – ou seja, os que permanecem nas cabeceiras e nos altos cursos são os que possuem ‘mais cultura’, enquanto os que se deslocam rio abaixo passam a substituir a ‘cultura’ pela ‘civilização’, indo em direção ao mundo dos brancos. A proeminência de um ou outro desses vetores apresenta variações no curso da história e se alterna conforme as estratégias de atuação dos grupos na política local. Assim, em um contexto de revalorização cultural, esses grupos mais a montante que, em geral, realmente mantiveram mais as práticas e conhecimentos dos antigos passam a ganhar maior prestígio, ainda que estejam situados em posições inferiores na escala hierárquica. O caso dos Yuhupdeh tratado por Lolli (2010)Lolli, P. A. (2010). As redes de trocas rituais dos Yuhupdeh do igarapé Castanha, através dos benzimentos e das flautas Jurupari (Ti’) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-07122010-144829
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, por exemplo, é bastante ilustrativo dessa nova situação12 12 Agradeço ao próprio Pedro Lolli por me chamar a atenção para esse aspecto do problema. .

Porém, no caso dos Waikhana, penso que o problema vai além disso, pois não se trata apenas do fato de os Waikhana do Papuri terem permanecido a montante, e sim de estarem mais próximos ao território tradicional e terem mantido, assim, na perspectiva daqueles que baixaram o rio, uma maior ligação com a cultura dos antigos. Esse é um fator importante, sem dúvida. Soma-se a isso o fato de terem crescido em população e, ao mesmo tempo, se mantido relativamente juntos, sem grandes fissões e dispersões (pelo menos, até o período de minha pesquisa), formando um importante nexo regional waikhana ainda próximo ao território tradicional. Isso parece demonstrar um componente de força, vitalidade e certa destreza política, acarretando alguma tensão e perturbações nas relações assimétricas que regem o idioma da hierarquia, conforme veremos na próxima seção.

Além disso, o que busco mostrar é que o próprio modelo do ordenamento hierárquico pode também estar sujeito a transformações e rearranjos a partir do momento em que outros agenciamentos de saberes e outros pontos de vista sobre a história ancestral passam a emergir e a ganhar força no âmbito de uma política local, em que as controvérsias sobre precedência, status e prestígio marcam diversas esferas das relações sociais.

As páginas que seguem visam situar algumas das questões aqui levantadas a partir de uma descrição analítica do sistema de clãs waikhana e de sua configuração socioespacial. É importante deixar claro que muito do que será apresentado está baseado nas informações contidas na dissertação de Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]., a qual foi tomada por mim tanto como uma rica fonte de informações etnográficas, quanto, em si mesma, como um dado passível de interpretação e análise a partir das questões acima expostas. Desse modo, o que farei é uma descrição do sistema de clãs waikhana já informada pelo modelo interpretativo de Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]., o qual, por sua vez, nos ajudará a discutir alguns dos problemas anteriormente levantados a respeito do caráter dinâmico que a hierarquia parece assumir no universo tukano.

TERRITÓRIO, CLÃS E HIERARQUIA: ENTRE INVERSÕES E PERSPECTIVAS

Olhando para a conformação e distribuição atual da população waikhana pela bacia do Uaupés vemos que, em certa medida, ela é o resultado de um processo relativamente recente gerado em interface com as várias fases da colonização: primeiro com a formação de aldeamentos maiores, estruturados em conformidade com as exigências dos missionários; e, em décadas recentes, com o abandono das comunidades e a migração da população para os centros urbanos. Porém, se olharmos essa configuração socioespacial atual, tendo em vista a história mais antiga da ocupação do território pelos grupos waikhana, veremos que esta é também, e acima de tudo, fruto de uma dinâmica interna marcada por fissões e deslocamentos de clãs ou segmentos de clãs pela região. As narrativas que contam a história da formação e dispersão dos grupos waikhana pelo rio Papuri e, posteriormente, pelo Uaupés, desde os locais reconhecidos por eles como seu território ancestral, na cabeceira do igarapé Macucu, são caracterizadas por uma série de fragmentações internas e um movimento constante de fundação e abandono de sítios e malocas, ora localizadas nas margens dos rios maiores, ora mata adentro, beirando pequenos igarapés13 13 Como Pedro Lolli me chamou atenção na leitura da primeira versão deste texto, essa é, afinal, uma característica amplamente destacada em relação aos grupos da região do alto rio Negro. Os grupos são marcados por constantes processos de fissão, fusão e desaparecimento, conforme pontuam vários trabalhos, dos mais antigos até os mais atuais (Goldman, 1963; C. Hugh-Jones, 1979; Århem, 1981; Jackson, 1983; Pozzobon, 1983; S. Hugh-Jones, 1995; Lasmar, 2005; Andrello, 2006, 2016; A. Cabalzar, 2009; Maia & Andrello, 2019; Lolli, 2010; Marques, 2015; dentre outros). .

Assim, para que possamos compreender a estrutura das divisões e subdivisões por meio das quais os Waikhana se organizam enquanto um grupo de descendência exogâmico, é imprescindível que tenhamos em vista tais movimentos de fissões e deslocamentos que marcam sua história. Entre os Waikhana, assim como entre todos os grupos tukano, segmentariedade e dinâmicas de deslocamentos territoriais são fatores intimamente associados, sendo possível compreendê-los apenas à luz de suas implicações mútuas.

Adianto que o que será aqui apresentado a respeito do sistema de clãs waikhana de forma alguma constitui um modelo autoevidente e inequívoco, pois, na verdade, parece haver uma variação muito grande no modo de apresentá-lo, conforme o grau de conhecimento e a posição do narrador no sistema. Além disso, muitos dizem desconhecer a ordem correta dos clãs e alguns nem mesmo sabem a qual clã pertencem. Desse modo, conforme já ressaltei, o que segue se baseia em grande medida na sistematização feita por Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]. e em conversas que tive com ele em Iauaretê. O trabalho dele é interessante, pois, além de constituir um esforço de sistematização de diferentes versões da organização dos grupos waikhana, oferece também uma amostra dos tipos de flutuações e rearranjos a que o ordenamento hierárquico está sujeito, conforme a perspectiva, as motivações e os interesses daquele que o descreve.

Com isso, sem perder de vista uma possível variação na composição e no ordenamento dos clãs conforme o lugar de onde fala o narrador, apresento aqui um modelo no qual os Waikhana se encontram divididos em três subgrupos mais abrangentes, a partir dos quais derivam as suas séries de clãs. Cada um desses subgrupos representa uma unidade nomeada e que se identifica por meio de um ancestral fundador, os quais são hierarquizados conforme a ordem pela qual surgiram. Mas o primeiro desses ancestrais, chamado Wehetada, parece ser reconhecido por todos os Waikhana como o ancestral maior a partir do qual se originaram todas as outras divisões. Talvez por isso, até onde pude perceber, os nomes que os clãs da primeira série carregam, derivados diretamente de Wehetada, parecem constituir o estoque de nomes cerimoniais de todos os clãs waikhana, e não somente dos que compõem o subgrupo Wehetada.

Os outros dois subgrupos levam o nome de Sõãliã e Wehetada Bahuí, sendo que o primeiro é maior na escala hierárquica. Ambos surgiram a partir de Wehetada e deram origem a outras séries de clãs, além daquela reconhecida como a série mítica original e da qual deriva o estoque de nomes que parece ser compartilhado por todos. Por isso, as séries de clãs derivadas de Sõãliã e Wehetada Bahuí parecem ser de conhecimento mais restrito dos anciões de cada um destes subgrupos, enquanto que a série derivada de Wehetada é mais amplamente reconhecida, apesar dos nomes dos clãs variarem um pouco conforme o narrador14 14 Cada clã chega a ter três ou quatro nomes diferentes, dentre os quais podem aparecer os apelidos e os nomes de lugares reconhecidos como seus antigos sítios de ocupação. Por isso, a variação de nomes pode aparecer até mesmo no decorrer de uma mesma narrativa. . Sobre o grupo Sõãliã, eu quase não obtive informações, exceto que seus membros vivem hoje nas comunidades do igarapé Macucu, afluente da margem colombiana do médio Papuri. Já o Wehetada Bahuí foi o grupo com o qual estive em contato durante toda minha pesquisa, uma vez que todas as comunidades da margem brasileira do

Papuri são sítios de ocupação deste subgrupo. Além disso, o próprio Dorvalino é membro de um clã pertencente ao grupo Wehetada Bahuí. Desse modo, o modelo da estrutura de clãs aqui apresentado constitui, em grande medida, uma versão apreendida desde a perspectiva dos Waikhana Wehetada Bahuí, a qual, conforme veremos, parece diferir da perspectiva dos narradores pertencentes aos clãs dos outros subgrupos.

O Quadro 1, em parte retirado de um esquema apresentado por Chagas (2001, p. 29)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]., em parte baseado em informações obtidas em campo, fornece uma visão geral deste modelo e dá uma ideia da distribuição espacial dos grupos waikhana pelos rios Papuri e Uaupés.

Quadro 1
Os clãs Waikhana e sua localização espacial16 16 Ressalto que o Quadro 1 apresenta os locais de ocupação tradicional de cada clã, pois hoje muitos não vivem mais nesses sítios. Conforme já discutimos na sessão anterior, alguns destes grupos locais se transferiram em massa para o povoado Iauaretê ou mesmo para São Gabriel da Cachoeira. Este é o caso, por exemplo, das famílias de Ucapinima e Ituim. E outros baixaram ainda mais, até o médio rio Negro. . Legendas: * = clãs cujo destino ou paradeiro quase ninguém mais sabe informar com muita clareza, alguns são ditos terem desaparecido por completo por conta de epidemias, estragos (feitiçaria) ou mesmo por falta de descendência masculina – o que pode ser um efeito dos estragos, outros teriam se dispersado e se espalhado pela região, como consequência de brigas, descimentos forçados e também de fugas da violência colonial; ** = clãs classificados na escala hierárquica como grupos de servidores (peona); *** = Poné, que significa filho, portanto Sõãliã poné seria ‘filhos de Sõãliã’; não consegui obter nenhum nome para os clãs deste subgrupo.

O que podemos perceber a partir do Quadro 1 é que os clãs do grupo Wehetada, maiores na escala hierárquica, são os mais dispersos territorialmente e os que mais se afastaram do território tradicional waikhana, formando comunidades no baixo Papuri e em alguns dos trechos do Uaupés, incluindo seu baixo curso. Os Sõãliã e os Wehetada Bahuí, por outro lado, constituem grupos menos dispersos, cujas comunidades ainda se encontram concentradas num mesmo trecho de rio. Os primeiros nem mesmo deixaram o igarapé Macucu, local reconhecido por todos os Waikhana como seu território ancestral. Já os clãs Wehetada Bahuí saíram do Macucu e se fixaram no Papuri, talvez um pouco antes da chegada dos brancos, formando grupos locais relativamente próximos uns dos outros. Fora do médio Papuri, apenas dois pequenos sítios foram constituídos por clãs pertencentes a este grupo: Jacitara e Chifre de Veado, no médio Uaupés, formados respectivamente pelos clãs Bi’kudua e Ñapa, os quais eram considerados os ‘servidores’ (peona) do grupo Wehetada Bahuí.

É interessante notar que, no âmbito interno aos subgrupos, estes clãs reconhecidos como peona (que ocupam os níveis mais baixos da escala hierárquica) constituem, em alguns casos, grupos locais mais descolados do núcleo de ocupação original, e, em outros, os que figuram como agregados em comunidades de grupos exogâmicos afins. A situação dos sítios Jacitara e Chifre de Veado, constituídos por clãs de baixa hierarquia do grupo Wehetada Bahuí, é emblemática do primeiro caso, uma vez que estes representam os únicos focos de ocupação deste subgrupo fora do médio Papuri. Já no segundo caso, encontramos aqueles Waikhana das comunidades São Francisco e Miriti no Uaupés – a primeira abaixo e a segunda um pouco acima de Iauaretê – que pertencem a clãs de baixa hierarquia e formaram as comunidades junto com grupos domésticos tukano15 15 Ressalto, no entanto, que o senhor que me deu a informação sobre os Waikhana de Miriti não tinha muita certeza se estes eram realmente do clã Padakodoa (conforme consta no Quadro 1), mas disse achar que seriam de um clã bem abaixo na escala hierárquica. . Estas duas situações parecem se enquadrar naquela tendência geral observada por A. Cabalzar (2009)Cabalzar, A. (2009). Filhos da Cobra de Pedra: organização social e trajetórias tuyuka no rio Tiquié (noroeste amazônico). Editora UNESP/ISA/NuTI. de os sibs de mais baixa hierarquia constituírem grupos locais mais periféricos ou os que normalmente se agregam a grupos aliados – situação em que o fator da aliança parece sobrepujar o idioma da descendência enquanto estruturador das relações sociais.

No entanto, o que mais chama a atenção na configuração socioespacial dos Waikhana, conforme já apontei mais acima, é que esta parece indicar uma situação um pouco diferente daquela descrita por A. Cabalzar (2009)Cabalzar, A. (2009). Filhos da Cobra de Pedra: organização social e trajetórias tuyuka no rio Tiquié (noroeste amazônico). Editora UNESP/ISA/NuTI. para o caso dos Tuyuka. Ao contrário do que ocorre com os sibs tuyuka, onde a relação entre nível hierárquico e mobilidade espacial parece seguir uma escala inversamente proporcional, entre os Waikhana foi o grupo de mais alta hierarquia que iniciou o processo de ruptura e de dispersão territorial. Isto é verificado tanto pela situação espacial do presente quanto pelos relatos míticos que contam a história das divisões e dispersões dos grupos. Conforme as principais versões constantes no trabalho de Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]. e também outras versões a que tive acesso durante a pesquisa, o grupo liderado por Wehetada foi o primeiro a sair das terras do Macucu e se dispersar pelo baixo Papuri e Uaupés, chegando até o baixo curso deste rio, enquanto os seus irmãos menores, Sõãliã e Wehetada Bahuí, permaneceram no território de origem.

Esta situação socioespacial – em que os ‘irmãos maiores’ constituem o grupo mais disperso e mais afastado do território ancestral, enquanto os ‘irmãos menores’ são aqueles que ainda permanecem ligados ao território tradicional – parece causar algum impacto sobre os códigos de status e prestígio que regem diversas dimensões da vida social no Uaupés. O fato de o nexo regional mais importante, aquele situado no médio Papuri (local reconhecido por todos os outros grupos como território Piratapuia), ser constituído em grande parte por clãs pertencentes ao último grupo da escala hierárquica de forma alguma constitui um fenômeno irrelevante dentro do universo tukano. Isto parece conferir ao grupo Wehetada Bahuí certa proeminência, já que, pelo que pude perceber, eles são vistos por outros, de maneira até um pouco idealizada, como aqueles Waikhana que ainda mantêm uma ligação com a tradição ancestral. É claro que essa proeminência passa a ser mais fortemente ativada no contexto da revalorização cultural, em que o eixo montante/jusante = cultura/perda da cultura, já ressaltado aqui neste texto, ganha novos significados e valorações. Porém, conforme busco mostrar, não se trata apenas disso.

O fato é que, nas poucas oportunidades que tive de conversar com senhores Waikhana pertencentes a outros clãs e originários de comunidades do Uaupés, esse papel proeminente dos Waikhana do Papuri me pareceu bem evidente, ainda que a contragosto de alguns. Um deles foi um senhor de São Tomé, no baixo Uaupés, que conheci em São Gabriel da Cachoeira. Este senhor, que levava a vida entre a comunidade e a cidade, disse nunca ter subido até o Papuri e me contou, em um tom de voz respeitoso, que os Waikhana de lá é que ainda guardam a história e o conhecimento dos antigos. Disse ainda não saber exatamente a qual clã pertence e que o pessoal do Papuri é quem sabe dessas coisas; depois completou: “o que eu posso te contar é a história de São Tomé e Uriri, mas a história dos Piratapuia mesmo, são eles lá que guardam” (comunicação pessoal, 7 ago. 2010).

Um outro senhor com quem pude conversar algumas vezes enquanto estive em Iauaretê é de Aracú Ponta (Bo’tea Pehta), no Uaupés, mas já há vários anos deixou a comunidade e foi morar no povoado. Ele, como a maioria dos Waikhana de Aracú, é do clã Manu Kanaburu, o quinto do grupo Wehetada, sendo, portanto, hierarquicamente superior ao pessoal do Papuri. Quando falava deles, este senhor sempre enfatizava o fato de serem os menores dos clãs e de seu próprio pessoal (de Aracú) estar acima na ordem hierárquica, mas, ao mesmo tempo, parecia reconhecer neles um certo prestígio por terem permanecido no Papuri e, assim, “conservado muito do conhecimento dos antigos”: “É por isso que são eles que estão metidos hoje com essas coisas de resgate cultural” (comunicação pessoal, 25 ago. 2010), falou num tom um pouco incomodado. Seu incômodo se devia justamente ao fato de que, apesar de estarem abaixo na escala hierárquica, os Waikhana do Papuri podiam gozar de certa reputação, sendo mesmo os protagonistas nestes movimentos que, conforme ele mesmo disse, vêm “mexendo com cultura”.

Fato significativo também foi a listagem que este mesmo senhor me forneceu, quando lhe pedi para que me explicasse sobre a organização dos clãs waikhana, pois o que ele me apresentou foi uma relação que incluía apenas os clãs da primeira série (com uma pequena variação nominal). Então, lhe perguntei sobre o clã do pessoal do Papuri, ao que ele me respondeu que estes estariam lá no fim da lista, por isso ele nem os tinha considerado. Disse ainda, em tom de troça, que o apelido deles é Bua Poné (‘filhos da cutia’), em analogia a este animal “que está sempre roubando escondido por aí” (comunicação pessoal, 25 ago. 2010). Depois, começou a se queixar de que, apesar de serem os menores dos clãs, eles foram os que mais cresceram, enquanto os outros estão desaparecendo: “Esses aí são um bando; por isso eles não aceitam mais essa coisa de que irmão menor seja servidor dos irmãos maiores” (comunicação pessoal, 25 ago. 2010), completou.

Esses exemplos dão uma amostra dos tipos de oscilações a que estão sujeitas as relações assimétricas que constituem o idioma da hierarquia no Uaupés. Em primeiro lugar, fica evidente que a posição dos clãs na escala hierárquica não é suficiente para a manutenção do prestígio e do ‘domínio sobre a tradição’, mas, como disse A. Cabalzar (2009, p. 339)Cabalzar, A. (2009). Filhos da Cobra de Pedra: organização social e trajetórias tuyuka no rio Tiquié (noroeste amazônico). Editora UNESP/ISA/NuTI., esta “deve estar associada a todo um conjunto de modos de ser e estar”. No caso waikhana, a permanência no território tradicional, aliada ao crescimento populacional e a uma relativa estabilidade socioespacial se mostram como fatores relevantes na política do prestígio e parecem se configurar como elementos de tensão nessa dinâmica interna, como podemos perceber pela própria fala do senhor waikhana de Aracú. Ao se tornar mais numeroso, mantendo-se, ao mesmo tempo, coeso – o que seria um índice de força, vitalidade e maior competência política-ritual17 17 É importante elucidar o que estou chamando aqui de competência político-ritual. No contexto dos Waikhana, que não fazem mais os ritos e cerimônias de outrora, as competências rituais dizem respeito, sobretudo, ao manejo habilidoso do corpus de conhecimentos e poderes ancestrais responsáveis pela vitalidade dos grupos, isto é, pela sua manutenção e pelo seu crescimento. São os conhecimentos próprios ao kumu (um tipo de especialista ritual do universo tukano). O crescimento demográfico de um grupo é um índice dessa competência. –, um clã de baixa hierarquia pode vir a perturbar a ‘ordem normal’ das coisas e assumir uma posição proeminente que lhe permite ativar um ponto de vista alternativo ou concorrente sobre o modelo hierárquico. A discussão da próxima seção busca ilustrar um pouco como isso pode se dar.

PONTOS DE VISTA EM DISPUTA

O ponto é que, apesar de os Wehetada Bahuí constituírem o último dos subgrupos waikhana, a sua própria condição na escala hierárquica está longe de ser um dado inequívoco, uma vez que, como já dissemos, parece estar sujeita a variações conforme o lugar de onde fala o narrador. Não tenho dados suficientes para afirmar isso com clareza, mas parece que, do ponto de vista dos indivíduos do grupo Wehetada, por exemplo, tudo se passa como se o sistema se resumisse aos clãs da primeira série: os outros dois subgrupos nem mesmo figuram na listagem dos clãs, tão abaixo que estariam na ordem da hierarquia – estes apareceriam abaixo dos clãs de ‘servidores’ dos Wehetada. Mas, no modelo apresentado por Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]., os três subgrupos aparecem como conjuntos mais ou menos autônomos, compostos cada qual por uma escala, que vai dos ‘chefes’ aos ‘servidores’. Com isso, apesar de haver uma reconhecida hierarquia de senioridade entre os ancestrais fundadores de cada subgrupo, o modelo parece evidenciar uma certa equivalência estrutural entre os clãs que ocupam uma mesma posição dentro de cada subgrupo.

Para que isso fique mais claro, apresento na Figura 1 um esquema baseado em alguns modelos e ilustrações constantes no trabalho de Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]., que traçam a genealogia dos ancestrais ascendentes dos clãs waikhana.

Figura 1
Genealogia dos clãs Waikhana.

Podemos ver que o modelo apresenta os ancestrais dos três subgrupos como um conjunto de irmãos, os quais descenderiam do ancestral mítico wehetada. O irmão maior, também chamado Wehetada – e que, em certas narrativas, se confunde com o próprio Wehetada ascendente –, é o que dará origem aos clãs da primeira série, cujos nomes, até onde pude perceber, parecem compor o estoque de nomes cerimoniais masculinos waikhana. Dos irmãos menores, Sõãliã e Wehetada Bahuí, derivam mais duas séries de clãs, sendo que apenas aquela derivada do segundo está propriamente representada no modelo – os clãs que se originaram de Sõãliã são chamados genericamente de Sõãliã Poné, isto é, ‘filhos de Sõãliã’, por causa da já mencionada falta de informação a respeito da composição deste subgrupo. O primeiro clã de cada série, cujo nome é o do próprio ancestral do grupo, é reconhecido como o clã dos ‘chefes’ (putodó), enquanto que os últimos (assinalados com um asterisco) são aqueles classificados como peona, isto é, ‘servidores’, que nos tempos da maloca tinham funções específicas nos afazeres do cotidiano e nos rituais. A relação entre ‘chefes’ e ‘servos’ se limita, portanto, ao âmbito interno a cada série de clãs, sendo que, na esfera intergrupal, não há qualquer menção à existência de relações de subordinação. Porém, pela fala do senhor de Aracú, parece que esta não é uma visão unânime, já que a possibilidade de uma relação desta natureza estaria dada se não fosse a força que os ‘irmãos menores’ vieram a adquirir em decorrência de seu crescimento populacional – mas também da relativa estabilidade socioespacial.

Vale mencionar, ainda, que, na relação de clãs waikhana oferecida por Brüzzi (1962, p. 114)Brüzzi, Pe. A. A. (1962). A civilização indígena do Uaupés. Centro de Pesquisas de Iauaretê. – a qual constitui, aliás, a única referência mais detalhada ao grupo dentre estes trabalhos pioneiros –, os Wehetada Bahuí, citados como Bua Poné (‘filhos da cotia’), aparecem em 17ª posição, em uma lista com 21 nomes de clãs, a qual, segundo o religioso, teria sido coletada junto aos Waikhana de Teresita, na margem colombiana do Papuri, que pertencem, em sua maioria, ao grupo Sõãlia. O fato interessante é que, segundo o autor, os Bua Poné teriam sido apontados por alguns, juntamente com os outros clãs do final da lista, como os ‘escravos’ dos Piratapuia. Se, por um lado, tal dado sugere que esta relação de subordinação pode mesmo ter existido no passado, por outro, parece validar a hipótese de que os princípios e as prerrogativas associados às posições hierárquicas estão sujeitos a flutuações e inversões, decorrentes tanto das contingências da história, quanto de uma habilidosa atuação na esfera político-ritual.

Mas o que os modelos apresentados por Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]. sugerem é que estas flutuações e rearranjos a que o sistema está sujeito parecem operar não apenas no nível das relações práticas e da política de prestígio, mas na própria forma de conceber o arranjo da hierarquia. Enunciado a partir de diferentes posições e descrito com base em interpretações concorrentes, tal arranjo parece estar aberto a agenciamentos diversos que se utilizam da história para validar ou redimensionar aquilo que seria a ordem fundadora da hierarquia. Penso que é justamente isso que os modelos construídos por este antropólogo waikhana nos ajudam a compreender. A partir deles, vemos que a configuração hierárquica se coloca, em grande medida, como uma questão de ponto de vista, uma vez que se mostra aberta a variações e rearranjos, conforme o lugar ocupado por aquele que enuncia. Desse modo, ao mesmo tempo em que constituem uma rica fonte de informações etnográficas a respeito da organização social waikhana, tais modelos prestam-se a evidenciar o caráter dinâmico da hierarquia no contexto tukano, apontando, no limite, para certa qualidade perspectivista que parece também a definir.

A Figura 2, reproduzida diretamente de uma ilustração constante no trabalho de Chagas (2001, p. 32)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]., e que representa a hierarquia dos ancestrais fundadores dos clãs waikhana cravada num bastão-maracá (yagu)18 18 Yagu, também chamado cetro maracá ou bastão de comando, é um objeto ritual que teria sido dado pelo ‘Avô do Universo’ aos primeiros ancestrais míticos para que eles pudessem comandar a grande viagem da ‘canoa de transformação’ desde o ‘lago de leite’ (no extremo leste) até o centro do mundo que, conforme já mencionei, para os Waikhana é a serra Ehedi Wu’u (‘Casa do Suspiro’), localizada na cabeceira do igarapé Macucu. , mostra bem o tipo de agência a que o sistema está sujeito, pelo menos no que se refere a seu aspecto formal.

Figura 2
Ordenação hierárquica dos grupos waikhana. Fonte: Chagas (2001, p. 32).

O desenho representa a ordenação hierárquica dos ancestrais waikhana a partir do ser criador, chamado por eles de Uhpó Kõãkhun e traduzido para o português como ‘Deus Trovão’. Uhpó Kõãkhun foi o criador do universo e dos seres que mais tarde se transformaram em humanos e deram origem aos diversos povos indígenas do Uaupés. Um desses seres, que se chamava Sõãliã Ñali Kenein, é considerado o primeiro ancestral do povo Waikhana, o qual foi sucedido por Bu’sanuno, seu irmão menor, reconhecido como o dono dos enfeites de dança (bahsa bu’sa)19 19 Bu’sanuno é também chamado de Miniã Pona, nome que designa as flautas de jurupari na língua waikhana. Dizem que, ao partir, Bu’sanuno levou com ele os enfeites e as flautas sagradas dos Waikhana. Por isso, alguns afirmaram que os enfeites e as flautas que os antepassados possuíam já não seriam aqueles originais, e sim versões fabricadas no tempo histórico, digamos assim, portanto, mais enfraquecidas. . Wehetada foi o terceiro a aparecer, mas foi a partir dele que o povo Waikhana começou a se multiplicar, uma vez que Kenein, o irmão maior, por só ter tido descendentes do sexo feminino, teria partido para outras terras e se misturado a outro grupo – alguns dizem que ele se misturou aos Kubeo, outros, que ele se juntou aos Wanano –, enquanto que Bu’sanuno, o segundo irmão, teria abandonado o grupo e rumado para o sul, para as terras do rio Japurá. Portanto, Wehetada é considerado o ascendente de todo o povo Waikhana, pois foi a partir dele que surgiram os ancestrais fundadores dos três subgrupos. O primeiro desses ancestrais, que também ganhou o nome de Wehetada – e que, conforme já ressaltei, aparece às vezes como o próprio Wehetada ascendente –, teve vários filhos e desses filhos surgiram os clãs da primeira série, classificados como wamisumã (‘irmãos maiores’). Sõãliã e Wehetada Bahuí, o segundo e o terceiro descendentes de Wehetada, também tiveram muitos filhos, os quais ficaram conhecidos como ‘irmãos menores’ (baané) dos filhos de Wehetada.

Contudo, vemos que, na figura apresentada por Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]., Sõãliã e Wehetada Bahuí aparecem no topo da hierarquia, no mesmo bloco do Wehetada, enquanto que os clãs da primeira série, apesar de serem maiores hierarquicamente, estão listados abaixo. Tenho a impressão, pelo modo como o senhor de Aracú me apresentou a listagem dos clãs, de que este esquema seria bastante contestado por membros dos clãs do primeiro grupo, os quais provavelmente colocariam os outros dois subgrupos no final da lista, em um padrão linear de encadeamento hierárquico.

Mas, pelo que foi descrito até aqui, vemos que este modo de apresentar a ordenação das divisões e subdivisões waikhana não deixa de representar um ponto de vista possível sobre o sistema de clãs. Conforme já argumentado em minha dissertação de mestrado (Caetano da Silva, 2012Caetano da Silva, A. S. (2012). Falas Waikhana: conhecimento e transformações no alto rio Negro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/212
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), nesse modelo, a estrutura hierárquica aparece mais enquanto um esquema de múltiplas escalas e que enfatiza certa transversalidade nas linhas de descendência, do que como um modelo linear e vertical. Ainda que não deixe de evidenciar a existência da assimetria relacionada à ordem de nascimento/surgimento dos ancestrais fundadores de cada subgrupo, esta perspectiva parece conceber cada subgrupo como um subsistema mais ou menos autônomo que, em si mesmo, reproduziria a cadeia de relações hierárquicas, tida como uma estrutura de ressonância global pelo outro ponto de vista, linear e vertical. Aqui, as posições de ‘chefes’ e ‘servos’ são enfatizadas apenas no interior dos subsistemas, sendo eclipsadas quando se passa ao nível macro do grupo de descendência.

É claro que, para que pudéssemos aprofundar este argumento, seriam necessários dados mais detalhados e consistentes, coletados também junto aos Waikhana dos outros subgrupos, sobretudo do Wehetada, mas também junto aos Soãliã e aos clãs reconhecidos como peona (‘servidores’). Assim, poderíamos ter acesso a outras perspectivas que, sem dúvida, operam nessa política interclânica. Por ora, arrisco-me a abrir um breve parêntese para indicar apenas algumas ideias muito gerais que podem, talvez, ajudar a abrir um caminho para uma análise e um desenvolvimento futuro.

Penso que esta diferença de perspectiva a respeito do sistema de clãs waikhana faz lembrar o famoso caso winnebago, analisado por Lévi-Strauss (1975)Lévi-Strauss, C. (1975). As organizações dualistas existem? In Autor, Antropologia estrutural (pp. 155-189). Tempo Brasileiro., em seu clássico artigo sobre as organizações dualistas; o que, por sua vez, nos remete às análises de Lima (2008)Lima, T. S. (2008). Uma história do dois, do uno e do terceiro. In R. C. Queiroz & R. F. Nobre (Orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras (pp. 209-263). Editora UFMG. a respeito da problemática dualista. Lembremos que ali, mesmo em um sistema social supostamente dualista, como o dos Winnebago, se delineavam duas visões nativas concorrentes e aparentemente contraditórias a respeito da organização socioespacial de suas metades, as quais variavam de acordo com a posição dos informantes no sistema social: os da metade ‘de baixo’ apresentavam-na como uma estrutura concêntrica; os da metade ‘de cima’, como uma estrutura diametral. Servindo como fio condutor das análises do autor – as quais se estendem a outras sociedades supostamente duais, tais como os Bororo –, esta divergência de ponto de vista entre os informantes de cada metade prestava-se a evidenciar, por um lado, a erupção da própria assimetria no coração de um sistema pretensamente simétrico; mas também, como sugeriu Lima (2008)Lima, T. S. (2008). Uma história do dois, do uno e do terceiro. In R. C. Queiroz & R. F. Nobre (Orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras (pp. 209-263). Editora UFMG., trazia à tona a problemática etnográfica da perspectiva. Para a autora, seria este, aliás, o passo decisivo dado por Lévi-Strauss (1975)Lévi-Strauss, C. (1975). As organizações dualistas existem? In Autor, Antropologia estrutural (pp. 155-189). Tempo Brasileiro. em seu tratamento ao problema do dualismo: evidenciar que este “implica não só oposições e complementaridades, mas, também, perspectivas...” (Lima, 2008Lima, T. S. (2008). Uma história do dois, do uno e do terceiro. In R. C. Queiroz & R. F. Nobre (Orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras (pp. 209-263). Editora UFMG., p. 232). A aparente contradição entre os pontos de vista nativos a respeito de sua própria realidade, antes que uma falha ou uma imprecisão do sistema, apontava, conforme dirá a autora, para uma evidência fundamental, a de que “existe não uma única, mas duas perspectivas diferentes a partir das quais os Bororo [e os Winnebago, poderíamos também acrescentar] se concebem” (Lima, 2008Lima, T. S. (2008). Uma história do dois, do uno e do terceiro. In R. C. Queiroz & R. F. Nobre (Orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras (pp. 209-263). Editora UFMG., p. 231). Assim, avançará Lima (2008, p. 231)Lima, T. S. (2008). Uma história do dois, do uno e do terceiro. In R. C. Queiroz & R. F. Nobre (Orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras (pp. 209-263). Editora UFMG.:

O ponto digno de nota é este: quer se maneje a perspectiva diametral, quer a concêntrica, o ponto de vista é sempre da ordem das metades, é sempre da ordem das partes . . . . não há ponto de vista do todo! De um todo superior à metade! O que não significa, todavia, que uma perspectiva não seja um todo.

Apesar de estarmos um tanto distantes do solo dualista, penso que o tratamento dado pela autora ao problema do dualismo pode oferecer elementos interessantes para se pensar a própria problemática da hierarquia no universo tukano, pois, se, por um lado, pode ser exagerado imaginar uma ‘dissolução perspectivista da hierarquia’, por outro lado, parece plausível afirmar, a partir do que foi apresentado até aqui, que esta implica não apenas rank e assimetrias, mas também perspectivas. O que parece haver são maneiras diversas de conceber o arranjo das assimetrias que constituem o modelo hierárquico, as quais variam de acordo com o polo enunciador do discurso, isto é, de acordo com a posição ocupada por aquele que conta a história das segmentações e que apresenta o princípio de sua organização.

Conforme conjecturamos acima, entre os Waikhana, ao menos duas maneiras diversas de conceber o sistema da hierarquia interclânica parecem operar, dentre outras possíveis: uma que enfatiza a verticalidade e linearidade de suas relações, e outra que ressalta certa transversalidade nas linhas de descendência e que destaca uma estrutura de escalas variadas. Em outras palavras, teríamos, de um lado, uma perspectiva para a qual a hierarquia apareceria concentrada numa única escala linearmente ordenada, do maior para o menor, a partir do princípio mais básico da senioridade; de outro, um segundo modo de olhar a partir do qual o princípio da hierarquia funcionaria de forma mais nuançada e expandida, distribuindo-se transversalmente entre as três escalas que formam, cada qual, um dos subgrupos waikhana.

Podemos dizer que as diferentes perspectivas apontam para dimensões possíveis a partir das quais o modelo pode ser concebido: ora enfatizando as relações verticais da descendência e da hierarquia, ora destacando seu aspecto transversal, conforme viemos discutindo até aqui – já que a assimetria entre siblings é, em qualquer circunstância, um dado do sistema. Como nos casos bororo e winnebago discutidos por Lima (2008)Lima, T. S. (2008). Uma história do dois, do uno e do terceiro. In R. C. Queiroz & R. F. Nobre (Orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras (pp. 209-263). Editora UFMG., penso que não se trata, pois, de versões ou representações mais ou menos parciais acerca de uma estrutura empírica que existiria independentemente de qualquer perspectiva. Ao contrário, no Uaupés é o próprio sistema que parece se fazer e se refazer no tempo e no espaço, com o idioma da hierarquia operando como um princípio de funcionamento ativado pelos diversos pontos de vista em disputa. Assim, estas divergências de forma alguma se colocariam enquanto uma contradição passível de resolução, já que contradição seria aqui uma qualidade do próprio sistema, algo ativamente produzido; antes, é o que parece constituir a socialidade e a imaginação desta socialidade no universo tukano e o que conforma a dinâmica das relações interclânicas.

Toda essa discussão é, sem dúvida, instigante e merece ser objeto de desenvolvimentos futuros. Por ora, fecho o parêntese, destacando duas questões que penso serem importantes de considerar aqui. Primeiro que, ainda que o sistema se mostre aberto a oscilações e redimensionamentos conforme venha a ser agenciado por perspectivas divergentes, as classificações hierárquicas dos clãs enquanto wamisumã (‘irmãos maiores’), baané (‘irmãos menores’) e ñehkunsumã (‘avôs’ ou ‘servos’) parecem ser de uso corrente entre os Waikhana e, até onde pude perceber, não são alvos de contestações20 20 Sobre essa terminologia relacionada à hierarquia entre sibs, ver Chernela (2018), que a descreve a partir do caso kotiria. Em trabalhos recentes, também Andrello (2020; Maia & Andrello, 2019) se debruçou sobre essas terminologias num esforço por demonstrar a lógica que rege os usos desses termos de parentesco egocentrados para o âmbito sociocentrado, argumentando que mesmo essas terminologias estariam suscetíveis a inversões ocasionadas por um eventual desequilíbrio no crescimento dos sibs, o que implicaria, por sua vez, desequilíbrios e inversões nas próprias posições hierárquicas. . Os Waikhana de Pohsaya Pitó (comunidade São Gabriel), por exemplo, chamam aos parentes dos outros grupos (Sõãliã e Wehetada) de wamí (‘irmão maior’), aos parentes dos clãs menores de seu próprio grupo de bau (‘irmão menor’) e aos parentes pertencentes aos clãs reconhecidos como antigos peona (‘servos’) dos Wehetada Bahuí, eles chamam de mainkidó (termo usado para ‘avô’ no tratamento direto) – os quais, por sua vez, os chamam de panamí (‘netos’)21 21 Na verdade, o uso do termo ‘avô’ parece ser reservado apenas para determinados contextos em que se visa enfatizar estas distâncias hierárquicas; pois, no geral, como um sinal de respeito, prefere-se a denominação de ‘irmão menor’, mesmo para os clãs de servidores. . Mas hoje, ainda que os termos de tratamento persistam, as relações práticas que existiam entre ‘chefes’ e ‘servos’ não mais vigoram entre os Waikhana; e, do mesmo modo, as relações entre irmãos maiores e menores estão marcadas por dinâmicas que vão além da simples hierarquia de senioridade, conforme pudemos observar no caso das oscilações no sistema de prestígio.

Em segundo lugar, de modo importante, a própria possibilidade de assumir uma perspectiva sobre a história ancestral e sobre o sistema de clãs cuja gênese ela narra, parece estar condicionada ao domínio de certos conhecimentos que, sobretudo nos dias de hoje, aparece como um recurso escasso. Nesse sentido, a ampliação do acesso e da circulação destes saberes por meio das iniciativas de registro e documentação cultural – o que inclui a pesquisa empreendida por Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]., mas também outros casos que pude verificar ao longo da pesquisa – parece suscitar novas perspectivas e criar novos espaços de atuação nessa política tradicional, na qual as controvérsias sobre precedência, status e prestígio marcam diversas esferas das relações sociais. Ou seja, na medida em que outros circuitos de transmissão e apreensão de conhecimentos se abrem, abre-se também a possibilidade para novos agenciamentos na arena da política uaupesiana. Isso demonstra que o sistema social está aberto tanto aos acasos e contingências da história, quanto às diferentes competências no campo político-ritual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho pretendeu trazer à luz novos materiais etnográficos que colaboram com as discussões e problematizações em torno da ideia de hierarquia no Uaupés e no alto rio Negro de modo geral. O foco priorizado abarcou apenas uma das dimensões e relações que parecem produzir e reproduzir os sistemas sociais no Uaupés. Aqui, não tratei da esfera de relações com os grupos afins, por exemplo, condição para a reprodução e o crescimento dos grupos agnáticos e que também parece constituir uma variável crucial no funcionamento da ‘hierarquia em perpétuo desequilíbrio’ que vigora na região (ver Andrello, 2020Andrello, G. (2020). Cunhados em comum: transformações do parentesco entre os Ye’pâ Mahsã (Tukano). Maloca. Revista de Estudos Indígenas, 3, e020008. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13491
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). Também não chegamos a tocar naquela dimensão que abarca as relações com o universo não humano e com o tempo-espaço ancestral, mediadas pelo xamanismo, pelos benzimentos e pelos rituais. Ainda que esta esteja significativamente implicada na temática da hierarquia e constitua um domínio fundante da socialidade rionegrina, como demonstra a maior parte dos etnólogos que trabalham com povos da região22 22 Para o caso dos Waikhana, em particular, ver minha dissertação de mestrado (Caetano da Silva, 2012, especialmente a parte III), em que avanço algumas ideias nesse sentido. E também a dissertação de Chagas (2001). , abordar tal dimensão extrapolaria os objetivos e o espaço deste artigo.

Aqui, me ative ao intuito de mostrar como o material waikhana parece corroborar algumas das problematizações já aventadas por outros pesquisadores acerca da ideia de hierarquia no Uaupés enquanto um mecanismo instável, potencialmente aberto a inversões e rearranjos, flutuações e disputas entre pontos de vista divergentes. Tentei apontar, para o caso analisado, alguns dos fatores que parecem engendrar essa instabilidade e que implicam uma tensão constante entre as prerrogativas fundamentadas no ideal de senioridade e os princípios que, no limite, estariam abertos a outras dinâmicas de diferenciação e poder. Conforme vimos, alguns dos atributos valorizados como índices de uma maior proeminência política e espiritual – isto é, cultural – nem sempre estão do lado dos irmãos maiores. Tanto pelas contingências da história, como, justamente, por um manejo habilidoso das flutuações da história na esfera político-ritual, aqueles que são menores podem vir a assumir certos papéis que, idealmente, estariam relegados aos maiores. E isto valeria tanto para o nível mais amplo do grupo de descendência e das relações interclânicas, quanto para a esfera mais circunscrita dos subgrupos e clãs, bem como das relações entre linhas e agnatos próximos. Ao que tudo indica, e o caso waikhana parece reforçar essa ideia, manter posições na política uaupesiana não é tarefa fácil, já que apenas a ordem de senioridade não é suficiente para sustentá-las. E mais, mesmo a ordem de senioridade, princípio mais fundamental do idioma da hierarquia, estaria aberta a inversões na medida em que um crescimento demográfico desigual passa a desequilibrar as relações no interior do grupo agnático, conforme demonstrou recentemente Andrello (2020)Andrello, G. (2020). Cunhados em comum: transformações do parentesco entre os Ye’pâ Mahsã (Tukano). Maloca. Revista de Estudos Indígenas, 3, e020008. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13491
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Ou seja, as flutuações do ‘sistema’ parecem se dar em vários níveis, chegando mesmo ao próprio modo de conceber e apresentar o arranjo das posições hierárquicas, conforme procurei demonstrar. Ao se tornar mais proeminente em determinados contextos, um grupo, ou mesmo indivíduos que estariam em posições mais baixas na escala hierárquica, passa a angariar maior legitimidade para assumir pontos de vistas divergentes sobre a história ancestral e sobre o sistema de clãs cuja gênese ela narra. Mas, de modo importante, só há pontos de vista ou perspectivas se houver conhecimento, e conhecimento no universo uaupesiano parece se apresentar como um recurso escasso, valorizado por muitos, mas ‘controlado’ por poucos. Assim, aqueles que ‘sabem mais’ estão em melhores condições de assumir perspectivas e, conforme notamos em alguns momentos deste trabalho, esse conhecimento nem sempre está com os irmãos maiores.

Conhecimento, crescimento, coesão, estabilidade territorial e competência político-ritual. Estes são atributos que, ao meu ver, constituem operadores importantes na política de prestígio que vigora na região, os quais, vale notar, se tornaram ainda mais significativos no contexto da ‘revalorização cultural’. São também fatores que concorrem para as flutuações às quais estão sujeitas as relações assimétricas que marcam o idioma da hierarquia no Uaupés. Um grupo que cresce em população se mantendo ao mesmo tempo coeso, sem grandes fissões e rupturas, é um grupo que demonstra possuir mais vitalidade, mais força e, no limite, mais competência política-ritual. Vimos que, entre os Waikhana, este parece ser, inclusive, um dos fatores que teriam levado os Wehetada Bahuí a assumirem uma posição de destaque na política interna, apesar de constituírem o último dos subgrupos. O fato de terem crescido sem se dispersar territorialmente, formando um importante nexo regional num território reconhecidamente waikhana (ou piratapuia), parece constituir, aos olhos dos outros que se segmentaram e se dispersaram mais dramaticamente, uma demonstração de força e um índice de sua maior ligação com a ‘cultura dos antigos’.

Sendo assim, tudo aquilo que se coloca enquanto um movimento contrário a este estado de coisas, isto é, a diminuição populacional, as segmentações, a dispersão e a perda da riqueza ancestral, seria uma evidência da diminuição do poder do grupo, ou, nos termos atuais, do enfraquecimento da ‘cultura’. É por isso que, ao que parece, do ponto de vista daqueles que há tempos saíram do Papuri e se dispersaram pelo Uaupés, os Waikhana que permaneceram no território tradicional guardariam hoje mais conhecimento, ou mais ‘cultura’, do que eles mesmos, o que explicaria, inclusive, o seu protagonismo nos movimentos de ‘revitalização cultural’. Mas, para os próprios Waikhana da margem brasileira do Papuri, as iniciativas de ‘resgate e revitalização da cultura’ com as quais se envolveram parecem ter significado, em grande medida, um modo de tentar conter ou ao menos atenuar estas forças centrífugas que insistem em atuar no âmbito dos grupos agnáticos e dos grupos locais e que estão o tempo todo gerando rupturas, instabilidade e transformações nos sistemas uaupesianos.

  • 1
    Outros autores e pesquisadores contemporâneos, como A. Cabalzar (2000Cabalzar, A. (2000). Descendência e aliança no espaço Tuyuka. A noção de nexo regional no noroeste amazônico. Revista de Antropologia, 43(1), 61-88. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100003
    https://doi.org/10.1590/S0034-7701200000...
    , 2009)Cabalzar, A. (2009). Filhos da Cobra de Pedra: organização social e trajetórias tuyuka no rio Tiquié (noroeste amazônico). Editora UNESP/ISA/NuTI. e F. Cabalzar (2010)Cabalzar, F. D. (2010). Até Manaus, até Bogotá. Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentos: geração e transformação de conhecimentos a partir do alto rio Tiquié (noroeste Amazônico) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-07052010-122546
    https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-07...
    , por exemplo, também abordaram o tema da hierarquia e suas implicações na organização social, na esfera política-ritual e na ‘economia do conhecimento’ que vigora entre os povos tukano. Mas estes que cito são os que se debruçaram ou ainda têm se debruçado sobre o problema com um foco mais específico.
  • 2
    Expressão utilizada por Rosa (2013)Rosa, D. P. (2013). “Quem veio primeiro?” Imagens da hierarquia no Uaupés (Noroeste Amazônico) [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-12022014-122745/
    http://www.teses.usp.br/teses/disponivei...
    no trabalho acima citado.
  • 3
    Sem dúvida, esse movimento dos Waikhana se insere em um contexto mais amplo que marcou esse período logo após a demarcação da Terra Indígena Alto Rio Negro, entre fins da década de 1990 e início dos anos 2000. Foi uma fase de ebulição do movimento indígena e consolidação de parcerias, em que despontaram pela região do alto rio Negro diversas iniciativas e projetos de fortalecimento e documentação cultural.
  • 4
    Os Waikhana contaram com apoio da linguista Kristine Stenzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que realizou diversas oficinas com eles e os auxiliou na elaboração de cartilhas e materiais na língua. A língua waikhana, como outras da família tukano, vem pouco a pouco deixando de ser falada e sendo substituída pelo tukano, isso nas comunidades do lado brasileiro. A perda da língua é motivo de preocupação para os waikhana mais velhos, conforme veremos mais adiante.
  • 5
    Dorvalino Chagas foi um dos precursores nas pesquisas acadêmicas realizadas por indígenas no rio Negro, especialmente no campo da antropologia. De lá para cá, houve um crescimento significativo de indígenas da região cursando mestrado e doutorado em antropologia, com trabalhos relevantes e tratando de temas sensíveis à etnologia regional.
  • 6
    A triste notícia do falecimento de Laureano, vítima da COVID-19, chegou quando eu havia finalizado a primeira versão deste texto. Laureano tinha cerca de 80 anos e era um conhecedor muito respeitado entre os Waikhana.
  • 7
    Os Waikhana compartilham com os demais grupos tukano a história da viagem da cobra-canoa que levou os ancestrais do ‘lago de leite’ (no extremo leste do mundo) até os seus territórios na bacia do Uaupés. Essa viagem marca também o surgimento da humanidade a partir da transformação dos primeiros ancestrais e o advento de conhecimentos, práticas e regras sociais que, desde então, passaram a fundamentar a existência e a sociabilidade dos diversos povos da região.
  • 8
    Para uma história e uma etnografia do povoado de Iauaretê, ver Andrello (2006)Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. Editora UNESP/ISA/NuTI..
  • 9
    Um ótimo trabalho sobre essa temática complexa da mobilidade e da atração que o povoado de Iauaretê e, depois, a cidade de São Gabriel passaram a exercer nas últimas décadas, neste caso entre os Hup’däh, é a tese de doutorado de Marques (2015)Marques, B. R. (2015). Os Hupd’ah e seus mundos possíveis:transformações espaço-temporais do Alto Rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional]..
  • 10
    É importante lembrar aqui que o problema da tensão e/ou complementariedade entre os idiomas da descendência e da aliança (agnação e cognação; consanguinidade e afinidade) enquanto princípios estruturadores das relações e dos arranjos socioespaciais entre os povos tukano já rendeu e continua rendendo muita discussão na etnologia regional. Não cabe aqui entrar neste debate, mas deixo como referência os trabalhos de S. Hugh-Jones (1993)Hugh-Jones, S. (1993). Clear descent or ambiguous houses? A re-examination of Tukanoan social organization. L’Homme, (126/128), 95-120., Århem (1981)Århem, K. (1981). Makuna social organization: a study in descent, alliance, and the formation of corporate groups in the North-Western Amazon (Uppsala Studies in Cultural Anthropology). Almqvist & Wiksell., A. Cabalzar (2000Cabalzar, A. (2000). Descendência e aliança no espaço Tuyuka. A noção de nexo regional no noroeste amazônico. Revista de Antropologia, 43(1), 61-88. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100003
    https://doi.org/10.1590/S0034-7701200000...
    , 2009)Cabalzar, A. (2009). Filhos da Cobra de Pedra: organização social e trajetórias tuyuka no rio Tiquié (noroeste amazônico). Editora UNESP/ISA/NuTI. e um artigo mais recente de Andrello (2020)Andrello, G. (2020). Cunhados em comum: transformações do parentesco entre os Ye’pâ Mahsã (Tukano). Maloca. Revista de Estudos Indígenas, 3, e020008. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13491
    https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13...
    , onde essa discussão se abre para novas problematizações.
  • 11
    É importante ressaltar que as análises do autor no artigo referido se debruçam sobre um tema amplo e bastante complexo que diz respeito à problematização do conceito de afinidade potencial no universo do alto rio Negro, a partir de uma revisão dos modelos de organização social produzidos pela etnografia regional e de narrativas míticas que apontam para pontos críticos desses modelos. Assim, a citação acima abarca várias outras dimensões que perpassam as análises e problematizações desenvolvidas pelo autor e de maneira alguma se reduz ao aspecto do problema aqui enfatizado.
  • 12
    Agradeço ao próprio Pedro Lolli por me chamar a atenção para esse aspecto do problema.
  • 13
    Como Pedro Lolli me chamou atenção na leitura da primeira versão deste texto, essa é, afinal, uma característica amplamente destacada em relação aos grupos da região do alto rio Negro. Os grupos são marcados por constantes processos de fissão, fusão e desaparecimento, conforme pontuam vários trabalhos, dos mais antigos até os mais atuais (Goldman, 1963Goldman, I. (1963). The Cubeo: Indians of the Northwest Amazon. University of Illinois Press.; C. Hugh-Jones, 1979Hugh-Jones, C. (1979). From the milk river: Spatial and temporal processes in Northwest Amazonia. Cambridge University Press.; Århem, 1981Århem, K. (1981). Makuna social organization: a study in descent, alliance, and the formation of corporate groups in the North-Western Amazon (Uppsala Studies in Cultural Anthropology). Almqvist & Wiksell.; Jackson, 1983Jackson, J. (1983). The fish people. Cambridge University Press.; Pozzobon, 1983Pozzobon, J. (1983). Isolamento e endogamia: observações sobre a organização social dos índios Maku [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul].; S. Hugh-Jones, 1995Hugh-Jones, S. (1995). Inside-out and back-to-front: the androgynous house in Northwest Amazonia. In J. Carsten & S. Hugh-Jones (Eds.), About the house. Lévi-Strauss and Beyond (pp. 226-252). Cambridge University Press.; Lasmar, 2005Lasmar, C. (2005). De volta ao Lago de Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. Editora UNESP, ISA, NuTI.; Andrello, 2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. Editora UNESP/ISA/NuTI., 2016Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia. Coletivos em transformação no rio Negro. Ilha. Revista de Antropologia, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
    https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v1...
    ; A. Cabalzar, 2009Cabalzar, A. (2009). Filhos da Cobra de Pedra: organização social e trajetórias tuyuka no rio Tiquié (noroeste amazônico). Editora UNESP/ISA/NuTI.; Maia & Andrello, 2019Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’iro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Vaupés. Mundo Amazônico, 10(1), e74221. http://dx.doi.org/10.15446/ma.v10n1.74221
    https://doi.org/10.15446/ma.v10n1.74221...
    ; Lolli, 2010Lolli, P. A. (2010). As redes de trocas rituais dos Yuhupdeh do igarapé Castanha, através dos benzimentos e das flautas Jurupari (Ti’) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-07122010-144829
    https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-07...
    ; Marques, 2015Marques, B. R. (2015). Os Hupd’ah e seus mundos possíveis:transformações espaço-temporais do Alto Rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional].; dentre outros).
  • 14
    Cada clã chega a ter três ou quatro nomes diferentes, dentre os quais podem aparecer os apelidos e os nomes de lugares reconhecidos como seus antigos sítios de ocupação. Por isso, a variação de nomes pode aparecer até mesmo no decorrer de uma mesma narrativa.
  • 15
    Ressalto, no entanto, que o senhor que me deu a informação sobre os Waikhana de Miriti não tinha muita certeza se estes eram realmente do clã Padakodoa (conforme consta no Quadro 1), mas disse achar que seriam de um clã bem abaixo na escala hierárquica.
  • 16
    Ressalto que o Quadro 1 apresenta os locais de ocupação tradicional de cada clã, pois hoje muitos não vivem mais nesses sítios. Conforme já discutimos na sessão anterior, alguns destes grupos locais se transferiram em massa para o povoado Iauaretê ou mesmo para São Gabriel da Cachoeira. Este é o caso, por exemplo, das famílias de Ucapinima e Ituim. E outros baixaram ainda mais, até o médio rio Negro.
  • 17
    É importante elucidar o que estou chamando aqui de competência político-ritual. No contexto dos Waikhana, que não fazem mais os ritos e cerimônias de outrora, as competências rituais dizem respeito, sobretudo, ao manejo habilidoso do corpus de conhecimentos e poderes ancestrais responsáveis pela vitalidade dos grupos, isto é, pela sua manutenção e pelo seu crescimento. São os conhecimentos próprios ao kumu (um tipo de especialista ritual do universo tukano). O crescimento demográfico de um grupo é um índice dessa competência.
  • 18
    Yagu, também chamado cetro maracá ou bastão de comando, é um objeto ritual que teria sido dado pelo ‘Avô do Universo’ aos primeiros ancestrais míticos para que eles pudessem comandar a grande viagem da ‘canoa de transformação’ desde o ‘lago de leite’ (no extremo leste) até o centro do mundo que, conforme já mencionei, para os Waikhana é a serra Ehedi Wu’u (‘Casa do Suspiro’), localizada na cabeceira do igarapé Macucu.
  • 19
    Bu’sanuno é também chamado de Miniã Pona, nome que designa as flautas de jurupari na língua waikhana. Dizem que, ao partir, Bu’sanuno levou com ele os enfeites e as flautas sagradas dos Waikhana. Por isso, alguns afirmaram que os enfeites e as flautas que os antepassados possuíam já não seriam aqueles originais, e sim versões fabricadas no tempo histórico, digamos assim, portanto, mais enfraquecidas.
  • 20
    Sobre essa terminologia relacionada à hierarquia entre sibs, ver Chernela (2018)Chernela, J. M. (2018). Estrutura social do Uaupés. Anuário Antropológico, 6(1), 59-69. https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6186
    https://periodicos.unb.br/index.php/anua...
    , que a descreve a partir do caso kotiria. Em trabalhos recentes, também Andrello (2020Andrello, G. (2020). Cunhados em comum: transformações do parentesco entre os Ye’pâ Mahsã (Tukano). Maloca. Revista de Estudos Indígenas, 3, e020008. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13491
    https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13...
    ; Maia & Andrello, 2019Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’iro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Vaupés. Mundo Amazônico, 10(1), e74221. http://dx.doi.org/10.15446/ma.v10n1.74221
    https://doi.org/10.15446/ma.v10n1.74221...
    ) se debruçou sobre essas terminologias num esforço por demonstrar a lógica que rege os usos desses termos de parentesco egocentrados para o âmbito sociocentrado, argumentando que mesmo essas terminologias estariam suscetíveis a inversões ocasionadas por um eventual desequilíbrio no crescimento dos sibs, o que implicaria, por sua vez, desequilíbrios e inversões nas próprias posições hierárquicas.
  • 21
    Na verdade, o uso do termo ‘avô’ parece ser reservado apenas para determinados contextos em que se visa enfatizar estas distâncias hierárquicas; pois, no geral, como um sinal de respeito, prefere-se a denominação de ‘irmão menor’, mesmo para os clãs de servidores.
  • 22
    Para o caso dos Waikhana, em particular, ver minha dissertação de mestrado (Caetano da Silva, 2012Caetano da Silva, A. S. (2012). Falas Waikhana: conhecimento e transformações no alto rio Negro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/212
    https://repositorio.ufscar.br/handle/ufs...
    , especialmente a parte III), em que avanço algumas ideias nesse sentido. E também a dissertação de Chagas (2001)Chagas, D. S. J. V. (2001). O mundo dos Pamulin Mahsã Waikhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]..
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Editado por

Responsabilidade editorial: Priscila Faulhaber Barbosa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2023
  • Aceito
    27 Fev 2024
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