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Nomes em disputa entre os Tukano do baixo Uaupés

Names in dispute among the Tukano of the lower Uaupés

Resumo

Este artigo trata de alguns movimentos de dispersão territorial do povo Tukano, localizados na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro, a partir da análise de narrativas que versam sobre as histórias dos nomes de dois de seus (cerca de 40) subgrupos, os Duca porã e os Inapé porã. Argumento que as trajetórias desses coletivos que se estabeleceram em uma microrregião do baixo curso do rio Uaupés são marcadas por transformações, alterações e composições nos nomes pelos quais são e/ou pleiteiam ser reconhecidos. Pretendo demonstrar que ocorre uma disputa por proeminência atrelada à apropriação de nomes e que tal processo vincula-se à colonização do alto rio Negro, cujo um dos efeitos foi a intensificação do contato com o mundo dos ‘brancos’ a partir, principalmente, das relações de patronagem em curso ao longo da segunda metade do século XIX. O esforço mais geral é o de descrever um mecanismo de atribuição de qualidades e reputação que codifica as disputas intergrupos em que os nomes ocupam uma posição proeminente. Irei demonstrar que o nome é fundamental nos processos de constituição de subgrupos, pois é marcado por disputas e conflitos – isto é, um nome sempre implica (des)reconhecimento por outros.

Palavras-chave
Tukano; Uaupés; Socialidade; Nome; Disputa

Abstract

This article deals with some movements of territorial dispersion of the Tukano people, located in the Alto Rio Negro Indigenous Land, based on the analysis of narratives that deal with the histories of the names of two of their (about 40) subgroups, the Duca porã and the Inapé porã. I argue that the trajectories of these collectives that established themselves in a microregion on the lower course of the Uaupés River are marked by transformations, alterations and compositions in the names by which they are and / or claim to be recognized. I intend to demonstrate that there is a dispute for prominence linked to the appropriation of names and that this process is linked to the process of colonization of the upper Rio Negro, one of the effects of which was the intensification of contact with the world of whites based, mainly, on relations of ongoing patronage throughout the second half of the 19th century. The more general effort is to describe a mechanism for attributing qualities and reputation that codifies intergroup disputes in which names occupy a prominent position. I will demonstrate that the name is fundamental in the processes of constitution of subgroups, as it is marked by disputes and conflicts – that is, a name always implies (un) recognition by others.

Keywords
Tukano; Uaupés; Sociality; Name; Dispute

INTRODUÇÃO

Neste artigo, abordo alguns movimentos de dispersão do povo indígena Tukano como um processo de proliferação e diferenciação de coletivos (subgrupos) fortemente marcado por pleitos por nomes. Argumento que a configuração socioespacial contemporânea desse grupo exogâmico, composto por cerca de 40 subgrupos1 1 O termo subgrupo é utilizado para referenciar as divisões internas ao grupo exogâmico. A terminologia consagrada pela literatura rionegrina para se referir a essa unidade social é o clã e/ou o sib. O termo clã será utilizado somente quando tratar-se de um conceito nativo, ou seja, quando anunciado pelos interlocutores da pesquisa, e quando forem feitas citações a autores que também o utilizam. , vincula-se a um conjunto extenso de deslocamentos. Em síntese, pretendo demonstrar que a disputa por proeminência atrelada à apropriação de nomes, um fenômeno em curso no baixo Uaupés, vincula-se à descida de rio pelos Tukano – um processo histórico que implica constantes rearranjos de condições/posições no interior do grupo.

Os Tukano, Ye’pâ Mahsã, ou ainda, Ye’pâ-Di’ro-Mahsã2 2 Em que Ye’pâ = ‘terra’; Mahsã = ‘gente’; e Ye’pâ-Di’ro-Mahsã = ‘gente de carne da terra’ (Maia & Andrello, 2019). Os Tukano compõem, ao lado de outros grupos exogâmicos, como os Desana, os Tuyuka, os Pira Tapuia, os Arapasso, os Wanano, entre outros, a família linguística Tukano Oriental. estão localizados, principalmente, na bacia do rio Uaupés, região fronteiriça entre Brasil e Colômbia. O Turí igarapé, no rio Papuri, afluente do rio Uaupés em seu alto curso, aparece nas narrativas tukano como um local ocupado desde o surgimento do grupo3 3 O surgimento do grupo coincide com o surgimento da própria humanidade, ou seja, dos vários grupos indígenas do alto rio Negro e também dos não indígenas. Trata-se de um tema complexo e sobre o qual não poderei me ater neste artigo. O leitor interessado na narrativa tukano deve consultar, principalmente, Andrello (2006, 2012). . No entanto, a dispersão territorial dos Tukano envolve uma região bem mais extensa do que os limites do Turí. Vários homens tukano afirmam que o verdadeiro nome do Turí igarapé seria Niriri ya, ‘igarapé da expulsão’, uma referência ao fato de que o lugar se tornou, com o tempo, insuficiente para todos os subgrupos tukano.

Ao abordarem os motivos da saída do igarapé Turí, os narradores tukano geralmente fazem referência a um episódio específico, uma espécie de motivo primordial, a partir do qual uma série de deslocamentos passaria a ocorrer. Trata-se de um duelo entre dois irmãos, Yu’pûri Waûro – ‘irmão maior’ – e Ye’pârã – ‘irmão menor’. De acordo com o relato registrado por Andrello (2006)Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. UNESP., o conflito, e o posterior confronto entre os dois irmãos, teria sido motivado pela revolta de Yu’pûri Waûro face ao crescimento do subgrupo de seu irmão mais novo. Yu’pûri Waûro acabou sendo morto por Ye’pârã.

A saída dos tukano da região do igarapé Turí é narrada como um dos efeitos desse fratricídio (Andrello, 2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. UNESP.), pois a história do ancestral tukano Yu’ pûri Waûro conta-nos que seus descendentes, reconhecidos pelo mesmo nome do ancestral, deslocaram-se das regiões a montante para as regiões da foz do rio Uaupés, adentraram o rio Negro e continuaram em sentido ao leste geográfico, atingindo as cidades de Manaus, na foz do rio Negro, e Belém, já na foz do rio Amazonas. De uma forma geral, também podemos considerar que os descendentes de Yu’ pûri Waûro foram ao encontro dos não indígenas, dos ‘brancos’.

Essa descida do rio pelos descendentes de Yu’ pûri Waûro é particularmente emblemática porque narrativas de outros subgrupos tukano, que também deixaram seus lugares de habitação nas regiões próximas ao Turí igarapé, tomam a trajetória dos Yu’ pûri Waûro como um ponto de referência comum para, em seguida, sublinharem pontos específicos referentes às trajetórias de seus subgrupos. Esse é o caso, por exemplo, dos narradores dos subgrupos tukano Inapé porã e Duca porã, com quem venho trabalhando desde 2010. Como veremos com mais detalhes, os Inapé porã e os Duca porã deixaram a moradia no alto curso do rio Uaupés para se estabelecerem no baixo rio Uaupés, em uma área onde se localiza a comunidade de Ananás.

O interessante a anotar é que ao narrarem as trajetórias de seus subgrupos tomando como ponto de referência o deslocamento dos descendentes de Yu’ pûri Waûro, os narradores Duca porã tendem a minimizar os feitos dos descendentes do ancestral tukano no baixo Uaupés, enfatizando o estabelecimento desses descendentes nas cidades grandes localizadas a leste, como Manaus e Belém, assim como nos conta o registro supracitado feito por Andrello (2006)Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. UNESP.. Já os Inapé porã, em específico um de seus narradores, argumentam em favor de uma vinculação de seu próprio subgrupo como também descendentes de Yu’ pûri Waûro. Em suma, a história de Yu’ pûri Waûro, narrada de diferentes maneiras, empresta a diferentes subgrupos uma referência para se posicionarem em uma espécie de esquema geral dos subgrupos tukano.

O fato de esses narradores, a depender de seu subgrupo, afastarem ou tentarem se aproximar de Yu’ pûri Waûro é indicativo, ao meu ver, de um quadro de disputa pelo reconhecimento enquanto ‘chefes’, atributo inconteste dos descendentes do ancestral Yu’ pûri Waûro. Essa disputa me parece marcada, no caso dos Inapé porã, pela tentativa em ser reconhecido a partir de um nome que evoca uma condição de chefia. Nesse sentido, a análise sobre a dispersão territorial dos tukano não pode ser dissociada de uma discussão sobre os nomes ancestrais, pois envolve trajetórias atreladas a processos de reivindicação ou recusa de nomes. Outro ponto que conecta, por assim dizer, a trajetória dos Inapé porã e dos Duca porã à história do ancestral Yu’ pûri Waûro é o fato de que o deslocamento daqueles em direção ao baixo Uaupés também se relaciona ao encontro com o mundo dos ‘brancos’.

Antes de adentrar com detalhes as trajetórias dos Duca porã e dos Inapé porã, faz-se necessário retomar alguns aspectos relacionados ao processo colonial levado a cabo no alto rio Negro. Isso porque a ocupação do baixo Uaupés por grupos de língua tukano durante o século XIX – como os Duca porã e os Inapé porã (Rodrigues, 2012Rodrigues, R. (2012). Relatos, trajetórias e imagens: uma etnografia em construção sobre os Ye’pâ-masa do baixo Uaupés [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/216/4633.pdf?sequence=1
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, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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) – provavelmente ocorreu após o esvaziamento da área ao longo de um primeiro período da colonização. Esse primeiro período trata-se do século XVIII, quando povos arawak teriam sido escravizados ou ‘descidos’ para as vilas e povoações coloniais do rio Negro (Wright, 2005Wright, R. M. (2005). História indígena e do indigenismo no alto rio Negro. Mercado de Letras.; Neves, 2006Neves, E. G. (2006). Tradição oral e arqueologia na história indígena do alto rio Negro. In L. C. Forline, R. S. Murrieta & I. C. G. Vieira (Orgs.), Amazônia, além dos 500 Anos (pp. 1-37). Museu Paraense Emílio Goeldi.).

O esvaziamento da região do baixo rio Uaupés pode ser observado no mapa etno-histórico fornecido por Wright (2005)Wright, R. M. (2005). História indígena e do indigenismo no alto rio Negro. Mercado de Letras.. Utilizando fontes que informam acerca das operações escravistas ocorridas nas décadas de 1740 e 1750 na região do alto rio Negro, nesse mapa, a região do baixo rio Uaupés aparece como uma área de ocupação arawak esvaziada demograficamente devido às pressões coloniais sobre seus moradores.

É por isso que ao longo deste artigo tentarei demonstrar que o baixo Uaupés, após esse esvaziamento demográfico decorrente da escravização de povos arawak, foi ocupado por subgrupos tukano ao longo do século XIX que, por conta desse pioneirismo, passaram a exercer e a disputar uma condição de ‘chefes’ frente aos subgrupos indígenas que viriam, em um momento posterior, a ocupar a região. Tal contexto irá se complexificar com o estabelecimento na região de relações de patronagem, na segunda metade do século XIX, em que ‘patrões brancos’ passam a percorrer o baixo Uaupés em busca de mão de obra. Com isso, aqueles subgrupos tukano pioneiros também passam a ser reconhecidos como tuxauas, ou seja, ‘chefes’ por esses ‘patrões brancos’.

A esse processo histórico particular somam-se as tensões envolvendo a disputa por nomes entre os subgrupos tukano, uma vez que os deslocamentos rio abaixo implicarão, como veremos, uma transformação nas formas como tais subgrupos passariam a ser reconhecidos e também a se autorreconhecer. Como os atributos de chefia e proeminência no interior do grupo exogâmico tukano vinculam-se a possuir um nome que carrega tais potencialidades, o que, por sua vez, reflete em um (re)ordenamento de posições, um campo aberto para disputas é constituído. Vejamos.

OS FILHOS DE LUCAS (DUCA PORÃ)

Duca porã é um nome de um subgrupo tukano ao qual pertence Pedro Meireles, um reconhecido ‘benzedor’ do baixo Uaupés e, desde 2013, interlocutor de minha pesquisa. Ocorre que o grupo de Pedro M. também pode ser referido como Sanapó porã ou Sanadepó porã. Ou seja, um grupo e três nomes possíveis. A variação Sanadepó porã é anunciada particularmente pelos membros do grupo Inapé porã, seus corresidentes históricos na comunidade de Ananás. Nesta seção, irei apresentar as narrativas que conjecturam acerca do que chamarei de situações de aparecimento dos três nomes do grupo de Pedro M.

O nome Duca porã é explicado como uma referência a um comerciante não indígena chamado Lucas. De acordo com um interlocutor inapé porã, Lucas realizava incursões até o rio Papuri, afluente do rio Uaupés em seu alto curso, recrutando mão de obra indígena na segunda metade do século XIX (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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). Conta-nos a narrativa que um desses trabalhadores, especificamente um tukano sanadepó porã, com o tempo passaria a se autodenominar Duca (por sua vez, uma variação em língua tukano de Lucas). Em suas viagens com o comerciante, o tal Duca viria a conhecer o médio e o baixo rio Uaupés, noticiando seus parentes a montante sobre a existência de um bom lugar para se estabelecer moradia a jusante. Após alguns desentendimentos entre os Inapé e os Sanadepó porã, e munidos com as informações de Duca, os Sanadepó porã teriam descido o rio. Estabelecidos no baixo Uaupés, esses Sanadepó porã ficariam conhecidos como Duca porã, ‘os filhos de Lucas’ (Rodrigues, 2012Rodrigues, R. (2012). Relatos, trajetórias e imagens: uma etnografia em construção sobre os Ye’pâ-masa do baixo Uaupés [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/216/4633.pdf?sequence=1
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). É assim que a história do surgimento do nome do grupo de Pedro M. é anunciada pelos interlocutores inapé porã (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 210).

Pedro M., entretanto, apresenta outra versão para explicar a atribuição do nome do comerciante não indígena a seu próprio grupo. Ainda no rio Papuri, diz o interlocutor que uma mulher sempre cantava expressando seu desejo em se casar com um comerciante chamado Lucas que visitava a região, como já vimos, à procura de mão de obra indígena. Mas ela acabou se casando e tendo filhos com um homem do grupo Sanapó porã. Os filhos desse casal passariam a ser chamados de Duca porã, os “filhos de Lucas” (Rodrigues, 2012Rodrigues, R. (2012). Relatos, trajetórias e imagens: uma etnografia em construção sobre os Ye’pâ-masa do baixo Uaupés [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/216/4633.pdf?sequence=1
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). Por certo, uma chacota motivada pelo tema do casamento desejado pela mulher. Ou seja, ainda que não se altere o significado imediato da expressão “filhos de Lucas”, há uma diferença significativa na explicação sobre o aparecimento do nome (Rodrigues, 2012Rodrigues, R. (2012). Relatos, trajetórias e imagens: uma etnografia em construção sobre os Ye’pâ-masa do baixo Uaupés [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/216/4633.pdf?sequence=1
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). Na versão de um interlocutor inapé porã, um homem sanadepó porã se autodenomina Duca, o que acaba se tornando nome de um grupo em um contexto que envolve o deslocamento rio abaixo por aqueles que teriam seguido suas indicações. Em suma, a partir do ponto de vista de quem não pertence ao grupo, ocorre uma autodesignação por meio do empréstimo de um nome de ‘branco’. Já no relato de Pedro M., que pertence ao grupo, o desejo de casamento de uma mulher com um comerciante branco, expresso através de seu canto, aparece como o motivo pelo qual passaria a ocorrer uma hetero-designação, ou seja, a atribuição do nome por terceiros (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 210).

Em ambas versões, o vínculo factual (o trabalho como remador) ou potencial (desejo de casamento) com o comerciante não indígena aparece como elemento comum na explicação sobre os motivos pelos quais tal nome haveria surgido. Teria sido o contato com os não indígenas que fez com que o nome Sanapó porã passasse a coexistir com o nome Duca porã? De toda forma, o que vale anotar aqui é que um nome de grupo, especificamente um apelido, possui uma trajetória na qual os deslocamentos rio abaixo e o contato com os não indígenas adquirem centralidade. No caso que estamos tratando, também é possível argumentar que os nomes vão se proliferando, o que, por sua vez, indica o pouco rendimento em compreendê-los como categorias classificatórias e estanques (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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).

Maia e Andrello (2019)Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81. afirmam que os nomes resultam de uma série de movimentos em sentidos distintos e que a narrativa sobre esses movimentos é a base para o reconhecimento dos grupos que os possuem, pois a trajetória no tempo e no espaço consiste em um movimento que enseja a aparição dos vários subgrupos cujas narrativas são chamadas de pa’mûri-kiti, ‘histórias de transformação’ ou ‘histórias de surgimento’. É preciso ponderar que os autores estão se referindo ao aparecimento dos grupos ocorrido ao fim de uma era pré-humana, ou seja, ao processo de transformação e aparecimento da própria humanidade. No entanto, como também afirmam os autores, o movimento prossegue em um tempo propriamente humano, já que grupos aparecem e seguem crescendo em uma série de episódios de deslocamentos e paradas, distanciamentos e aproximações no espaço, ao longo de um período indeterminado. Por isso, é o movimento que, em alguma medida, lhes garante reconhecimento entre si e por outros que, nesse caso, ocorre, via de regra, através dos apelidos. Em suma, um reconhecimento atrelado ao movimento. No Quadro 1, é possível entrever as formulações a respeito do nome Duca porã vinculadas aos deslocamentos efetuados pelo grupo (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 211).

Quadro 1
Explicações para o surgimento do nome Duca porã. Fonte: Rodrigues (2019, p. 211)Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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.

É preciso mencionar que o nome Sanapó também é marcado por imprecisões e variadas explicações. Pedro M. relatou que, certa vez, recorreu a um parente tukano do subgrupo Oyé (Bibiano Maia) a fim de compreender o seu significado. O parente em questão foi consultado porque, segundo Pedro M., “os Oyé sabem mesmo a origem dos Tukano por completo. Sabem desenrolar bem desde o primeiro, descendo toda a geração” (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 212). A fala de Pedro M. vai ao encontro do material apresentado por Maia e Andrello (2019)Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81., que diz respeito ao conjunto dos subgrupos tukano a partir de ocorrências dos nomes no interior de um extenso corpus narrativo. Pedro M. está se referindo, de acordo com os autores supracitados, ao exercício de listar os diversos nomes compostos dos grupos ou subgrupos (kurupá, ‘conjunto de pessoas’, em tukano) que compõem o que se costuma chamar de ‘etnia tukana’ (aspas de Maia e Andrello, 2019Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81.). Em suma, Pedro M. atribui legitimidade ao conhecimento do tukano Oyé Bibiano Maia. Vale dizer que o coautor do artigo elaborado com Andrello é Arlindo Maia, precisamente um Oyé (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 212).

Bibiano Maia haveria indicado a Pedro M. que Sanapó deveria ser algo como Diásana, por sua vez, uma referência ao pássaro martim-pescador (Megaceryle torquata). Diásana porã, ou seja, ‘filhos do martim-pescador’. A variação sana viria de diásana, gerando algo como Sanapó porã e até mesmo Sanadepó porã. Pedro M. concluiu, a partir dessa informação obtida com o parente Oyé, que o nome Sanapó porã deve ter sido uma forma equivocada pela qual os mais antigos passaram a se referir a esses Diásana porã. Vale notar que o nome martim-pescador, espécie que ocorre desde o México até a Terra do Fogo, se deve ao hábito alimentar preferencial por peixes e que o baixo Uaupés é uma região abundante em peixes, algo a ser considerado para compreender o estabelecimento desses grupos nesse local (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 212).

Também é preciso observar que a palavra sanapó é muito próxima de sarapó que, por sua vez, é um peixe da espécie Gymnotus carapo (família Gymnotidae), que produz sinais elétricos. Etimologicamente, a palavra sarapó decorreria de sara’pó, de origem tupi, significando algo como ‘desliza da mão’ (Ferreira, 1986Ferreira, A. B. H. (1986). Novo dicionário da língua portuguesa (2. ed.). Nova Fronteira.), talvez uma referência à superfície extremamente lisa desta espécie. Carneiro da Cunha e Almeida (2002)Carneiro da Cunha, M., & Almeida, M. B. (Orgs.). (2002). Enciclopédia da floresta: o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. Companhia das Letras. registram um relato kaxinawá que indica que mulheres grávidas podem comer o peixe sarapó para facilitar o nascimento da criança, já que o sarapó desliza, ou seja, é escorregadio, uma alusão ao parto ideal. Também é preciso considerar que, no noroeste amazônico, os sarapós de tamanho pequeno ocorrem nas cabeceiras dos igarapés e os maiores, no baixo curso dos rios (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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). Essa informação é bastante sugestiva se nos atentarmos para a posição entre o alto e o baixo rio Uaupés do grupo tukano de Pedro M. De toda forma, o que merece ser notado aqui é o fato, aparentemente não incomum, de os nomes serem passíveis de elucidação com pessoas de alguns poucos grupos que parecem possuir autoridade para tanto. Em suma, é preciso que a aferição de um nome seja como que certificada por outros (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, pp. 212-213).

Já a variação Duca para o nome Lucas me parece apontar para o que S. Hugh-Jones (2002Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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, pp. 52-53 citado em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 213) sugere com relação aos nomes estrangeiros, ao afirmar que:

Mais lugar comum ainda são os nomes de estrangeiro (gawa wame), a maioria nomes cristãos colombianos ou brasileiros que são, em geral, abreviados e modificados tanto de acordo com as demandas da fonologia das diferentes línguas tukano, quanto com o capricho individual. Embora possam ser alterados ou acrescentados mais tarde, nomes como estes são conferidos logo após o nascimento, quase sempre pelos pais, mas, idealmente, por um agente externo e, melhor ainda, por um missionário em um rito de batismo. Tal como os nomes jocosos, os nomes de estrangeiros podem formar par com os nomes de espírito, de modo que, através de várias gerações, diferentes indivíduos podem compartilhar a mesma combinação de nomes sagrados e nomes de estrangeiros.

Nesta passagem, S. Hugh-Jones (2002)Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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está tratando de um dos três tipos de nomes pessoais tukano, pois, como temos visto, além dos nomes estrangeiros, também existem os nomes sagrados e os apelidos. O trecho citado ilustra bem a operação fonológica do nome Lucas para Duca. Por isso, Duca me parece se tratar de um nome que transita entre as categorias nome estrangeiro e apelido. Nome estrangeiro porque, mais que uma simples alusão a um nome cristão ou nome de branco, há uma referência concreta ao patrão Lucas. Mas é também um apelido, uma vez que remete claramente ao que sugeriu S. Hugh-Jones (2002)Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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sobre esse tipo de alcunha: “não transferíveis e biográficos, servem para individualizar o portador” (S. Hugh-Jones, 2002Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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, p. 52). No entanto, o nome Duca extrapolou o aspecto de nome pessoal, uma vez que, nome estrangeiro e/ou apelido, a trajetória do qualificativo Duca (singular) o alçou a uma categoria coletiva, a um nome de subgrupo (plural). Nesse sentido, a transformação de um nome singular (Lucas/Duca) em um nome de subgrupo (Duca porã) seria indicativa de um princípio de fractalidade, de padrões escalares autossimilares (Kelly Luciani, 2001Kelly Luciani, J. A. (2001). Fractalidade e troca de perspectivas. Mana, 7(2), 95-132. https://doi.org/10.1590/S0104-93132001000200004
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200100...
citado em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 213). Consideremos o que também afirma S. Hugh-Jones (2002)Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200200...
a respeito desses nomes estrangeiros e/ou apelidos:

. . . esses nomes exóticos são uma alternativa conveniente aos nomes indígenas secretos. . . . compreendem partes desejadas e cada vez mais necessárias do processo de modernização. . . . esses nomes também incorporam os poderes exóticos e externos (ewa) dos estrangeiros

(S. Hugh-Jones, 2002Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200200...
, p. 54 citado em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 214).

A denominação Duca porã ganhou amplitude no baixo curso do rio Uaupés, uma vez que o subgrupo conhecido por este nome experimentou, no curso da história, uma expansão de suas relações sociais, algo diretamente atrelado ao reconhecimento dos Duca porã enquanto ‘chefes’ por alguns grupos. Se, como propõe S. Hugh-Jones (2002)Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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, os nomes vindos do exterior (estrangeiros e apelidos) incorporam poderes exóticos e externos dos estrangeiros, então é preciso olhar com cuidado para a conformação sociopolítica do baixo Uaupés – microrregião em que os Duca porã parecem ter assumido proeminência em um dado período, a qual atualmente vem à tona com as memórias de alguns moradores locais não necessariamente pertencentes a esse subgrupo quando dizem, por exemplo, que os Duca porã ‘mandavam’ nessa área (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 214). Vejamos.

Tendo sido o primeiro subgrupo tukano a se estabelecer num determinado trecho do baixo curso do rio Uaupés, os Duca porã passariam a ser considerados chefes tanto por alguns outros grupos que também vieram a se estabelecer na região quanto pelos patrões brancos. Pelos brancos, eles são chamados de tuxauas, insígnia de chefia atribuída pelas autoridades às lideranças indígenas aliadas (Andrello, 2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. UNESP., 2011Andrello, G. (2011). Escravos, descidos e civilizados: índios e brancos na história do rio Negro. Revista de Estudos Amazônicos, 5(1), 107-144.). Já para alguns outros grupos indígenas, como para os Sipiá, subgrupo do povo desana residente na comunidade Monte Alegre, vizinha a Ananás, a chefia dos Duca porã fundamenta-se no fato de terem sido os primeiros a se estabelecerem no local, ou seja, uma chefia alicerçada no pioneirismo protagonizado pelo grupo de Pedro M. nessa microrregião (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, pp. 214-215).

O importante para o argumento é o fato de que, rio abaixo, os Duca porã alcançam uma posição de destaque. Eis a questão: qual peso exerceria o nome nesse processo? Se os nomes estrangeiros são uma alternativa conveniente aos nomes indígenas, como propõe S. Hugh-Jones (2002)Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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, o nome Duca porã parece-me atender adequadamente a posição adquirida pelo grupo rio abaixo, indicando um status de ‘chefes’ entre grupos indígenas específicos e, simultaneamente, ao olhar dos não indígenas. Em outras palavras, se a chefia diante dos Desana Sipiá de Monte Alegre repousa principalmente em seu pioneirismo na ocupação do território, ela não está vinculada à relação entre nomes sagrados e papéis rituais, tal como, via de regra, é preconizado pelos Tukano (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 215).

O que legitima a posição da chefia aqui não é a posse de um nome de chefe, mas a relação de precedência mantida com um determinado lugar, bem como as relações mais cedo travadas com os não indígenas. Para os Desana Sipiá, os Duca porã são ‘chefes’ não porque carregam um ‘nome sagrado’ tukano que os designa como tal, mas sim devido à chegada pioneira desse grupo no baixo rio Uaupés. Por outro lado, se Duca porã não é um ‘nome sagrado’ ou de espírito previamente associado a uma posição de chefia, enquanto nome estrangeiro carrega em si os atributos próprios de um chefe, pois é nome de um ‘patrão branco’4 4 Aqui, vale mencionar que os profetas dos movimentos milenaristas do século XIX muitas vezes assumiram os nomes de santos, ou mesmo de Cristo. O batismo com nomes cristãos é algo também documentado na história do rio Negro (Andrello, 2006; Wright, 1999). . Os poderes exóticos e externos incorporados pelo nome Duca porã estariam vinculados à posição de patrão de Lucas, que atuava na região recrutando mão de obra indígena (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 215).

Os Duca porã, estabelecidos territorialmente no baixo curso do rio Uaupés, construíram uma rede de alianças com outros grupos tukano oriental e passaram a ser amplamente conhecidos por um nome que tem como referência as atividades comerciais e suas mercadorias. Até aqui, esta é uma lógica implícita ao apelido: ou seja, tendo o nome Sanapó porã sido atribuído por terceiros, com o tempo, a coexistência com ele estará estabelecida (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 215).

No mais, há um detalhe que é preciso considerar. O subgrupo tukano que ficou conhecido como os ‘filhos de Lucas’ (um ‘patrão branco’) ao longo de sua história viria a reiterar tal designação, pois seus membros teriam sido os responsáveis por trazer desde Manaus um menino que, crescido, tornar-se-ia o principal comerciante do rio Uaupés no início do século XX, o tristemente célebre Manduca. Visando a exploração econômica e obtendo controle sobre a região por cerca de vinte anos através da violência e do regime de endividamento, Manduca figura na bibliografia do rio Negro como um importante comerciante que se instalou no baixo Uaupés no início do século XX, e cujo declínio está associado à chegada dos padres salesianos para a construção de um internato, em 1914, na ex-missão de Taracuá (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 215).

Talvez seja mera coincidência o apelido Duca porã ter sido sobreposto pelos acontecimentos da história local. No entanto, trata-se de um evento nada trivial que compõe sua trajetória. Como me disse Pedro M., os Duca porã ocultaram o fato de terem sido os responsáveis pela chegada de Manduca ao Uaupés. É certo que não esperavam que Manduca se tornasse algoz. “Era pra ele cuidar bem dos indígenas, mas ele não cuidou bem não” (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 216), disse-me certa vez um morador do baixo Uaupés. Sem pretender aferir exatidão aos processos até aqui descritos, meu argumento é de que o nome Duca porã evoca, sim, as relações dos subgrupos tukano com os patrões brancos e, nesse sentido, compreender a trajetória desse nome passa, necessariamente, pela compreensão do envolvimento dos Duca porã com as relações de patronagem vigentes no baixo Uaupés no curso da história, em especial, a partir da segunda metade do século XIX (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 216).

Aqui me parece interessante considerar em quais termos a trajetória dos Duca porã se aproxima ou não dos Waûro porã – esses últimos amplamente considerados chefe maior dos Tukano que, como vimos na primeira seção, desceram o rio e vivem hoje como os não indígenas nas grandes cidades brasileiras. De acordo com Andrello (2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. UNESP., 2016)Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia: coletivos em transformação no Alto Rio Negro. Ilha, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
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, os descendentes de (Yu’pûri) Waûro decidiram descer o rio e tornaram-se civilizados, como se conta em diversas narrativas. Ou seja, ambos – Duca porã e Waûro porã – descem o rio. Seus deslocamentos são expressões parciais da trajetória pós-mítica que envolve todos os Tukano nas quais, rio abaixo, ‘chefes’, ‘irmãos maiores’ e ‘irmãos menores’ buscam novos sítios de moradia e relações com outros povos (Andrello, 2016Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia: coletivos em transformação no Alto Rio Negro. Ilha, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
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). Mas há uma diferença fundamental entre Waûro e Duca. Os descendentes de Waûro passam a se casar com mulheres não indígenas ou baré (povos arawak considerados de contato antigo e profundo com os não indígenas) e não esquecem seus nomes sagrados. Já os ‘filhos de Lucas’ estabelecem no baixo Uaupés uma relação de trocas matrimoniais com os grupos Tukano Oriental – Desana, Pira Tapuia, Tuyuka – e com os Tariano (Arawak) que enviam suas mulheres localizadas a montante (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 216).

A situação é mais ou menos a seguinte: os Duca porã casam-se com mulheres indígenas a partir das relações de aliança estabelecidas com outros grupos tukano oriental e arawak (Tariano); os descendentes de Waûro se casam com mulheres não indígenas e baré (Arawak). O que me parece estruturar essa situação é a intensidade, no sentido do espaço físico e do espaço relacional, do deslocamento. Enquanto os descendentes de Waûro foram se estabelecer a extrema jusante, atingindo cidades como Manaus, Belém e Rio de Janeiro – inserindo-se no mundo dos não indígenas de modo definitivo –, os Duca porã efetuaram um deslocamento mais contido, em termos de distância geográfica, ocupando áreas esvaziadas do baixo rio Uaupés sem adentrar com muita intensidade o rio Negro. Ainda que alguns indivíduos duca porã tenham se estabelecido no rio Negro, em cidades como São Gabriel da Cachoeira, ou tenham visitado Manaus, é a localização na comunidade Ananás que possibilitou a construção de uma rede de alianças com os povos vizinhos5 5 Como veremos na próxima seção, outros subgrupos tukano do baixo Uaupés elaboram narrativas sobre seus ancestrais não terem acompanhado Waûro porã em direção a extrema jusante, e sim permanecido “no meio do caminho”, por assim dizer, próximos à foz do Uaupés, tal como os Duca porã (Rodrigues, 2019, p. 216). . Em seu conjunto, todos esses fatos se relacionam à história de descimentos que o alto rio Negro experimentou desde o século XVIII e continua experimentando na contemporaneidade (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, pp. 216-217).

Como afirma Andrello (2016, p. 83)Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia: coletivos em transformação no Alto Rio Negro. Ilha, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
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, “. . . o epíteto tukano refere-se a uma posição situada numa parcela específica no continuum jusante-montante”, pois se trata de um apelido atribuído por mulheres desana a seus cônjuges preferenciais. Nesse sentido, os Duca porã parecem-me ter efetuado um deslocamento que, ao mesmo tempo, possibilitou a expansão de suas relações a ponto de serem reconhecidos por alguns como ‘chefes’ a partir do pioneirismo no baixo Uaupés. É preciso ponderar que o reconhecimento como ‘chefes’ é veementemente contestado pelos Inapé porã – o motivo para também terem efetuado o deslocamento rio abaixo foi justamente a indisposição dos Inapé porã com essa situação. É bem possível que os demais subgrupos tukano que se consideram irmãos maiores dos Duca porã também discordem da posição de chefia alcançada por eles (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 217).

Já os descendentes de Waûro se deslocam a ponto de passarem a viver como os não indígenas. Com isso, em certo sentido deixam a condição tukano, pois passam a se casar com mulheres não indígenas ou baré. No entanto, e aqui um ponto fundamental, ao contrário dos Duca porã, que se autodenominam a partir de um apelido contraído no curso da história, os Waûro porã ainda guardariam os seus nomes sagrados (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 217).

Ao contrário dos descendentes de Waûro que foram viver entre os não indígenas, os Duca porã foram até a jusante e teriam trazido o menino Manduca para viver com eles. O território do baixo rio Uaupés reconhecido como a área cujos limites estariam sob a responsabilidade dos Duca porã se estende, no sentido rio abaixo, desde um ponto acima da atual comunidade de Ananás, passando pelas atuais comunidades de Monte Alegre e Açaí Paraná até a ilha de Maku, um pouco acima da atual comunidade Uriri. É justamente próximo a essa última comunidade, Uriri, em um sítio chamado Bela Vista, cujas ruínas são visíveis até os dias atuais, que Manduca estabeleceu moradia após ter se casado com uma indígena pira tapuia. “Nós demos uma mulher nossa pra ele”, relatou-me certa vez Pedro M. A afirmação sugere que uma das intenções desses indígenas com Manduca foi, justamente, fazê-lo cunhado (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, pp. 217-218).

Vale dizer que existem outras versões sobre a chegada de Manduca na região. Em uma delas, o pai dele é descrito como um português também casado com uma indígena pira-tapuia e que Manduca teria se criado no baixo Uaupés. Haveria partido, em seguida, para Manaus, a fim de concluir seus estudos para retornar anos mais tarde, já como Diretor de Índios. Teria sido esse retorno proporcionado pelos Duca porã? Impossível precisar. O mais importante a apreender dessas informações diversas a respeito da biografia de Manduca é que, se as relações dos Duca porã e demais indígenas estabelecidos no baixo Uaupés com os comerciantes não se iniciaram com seus empreendimentos, no período de sua atuação elas se intensificaram, pois com a presença de Manduca o acesso às mercadorias era facilitado, mas o preço a se pagar foi se mostrando cada vez mais alto. Desde aplicação de duros castigos a estupro de suas filhas e mulheres, a época de Manduca é rememorada pelos moradores do baixo Uaupés como um período de escravização que só teve fim com a chegada dos missionários salesianos, nos anos 19106 6 É preciso destacar, no entanto, que a chegada dos missionários salesianos inaugura uma nova fase de violência contra os povos indígenas na região, ainda que de outro tipo. (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 218).

Uma forma possível de compreender a aliança inicialmente firmada entre os indígenas e Manduca é considerá-lo como uma espécie de ‘cunhamena’, termo em Nheengatú (cunhã = mulher, mena = marido) que, de acordo com Meira (2017)Meira, M. (2017). A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no noroeste amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro]. http://www.repositorio-bc.unirio.br:8080/xmlui/handle/unirio/11512
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, designava os homens – no caso, traficantes ou patrões não indígenas – que se casavam com as filhas dos ‘chefes’ indígenas. Meira (2017)Meira, M. (2017). A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no noroeste amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro]. http://www.repositorio-bc.unirio.br:8080/xmlui/handle/unirio/11512
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retoma Sommer (2005)Sommer, B. (2005). Colony of the Sertão: Amazonian expeditions and the Indian slave trade. The Americas, 61(3), 401-428. https://doi.org/10.1353/tam.2005.0053
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para indicar que o termo cunhamena remete à história do comércio de escravos no rio Negro, na qual as práticas dos cunhamenas datam desde o final do século XVII, afirmando tratar-se de mestiços ou mamelucos, capitães de descimentos amplamente familiarizados com os modos de vida do sertão e da cidade. Meira (2017, p. 188)Meira, M. (2017). A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no noroeste amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro]. http://www.repositorio-bc.unirio.br:8080/xmlui/handle/unirio/11512
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, por sua vez, argumenta que “. . . tais alianças comerciais, associadas às relações de parentesco por afinidade, consolidaram então uma rede hierárquica de comércio no Grão-Pará, e mais especificamente, no noroeste amazônico”. As relações de parentesco e a forma dos empreendimentos perpetrados por Manduca parecem-me, de fato, aludir ao processo histórico envolvendo o aviamento no alto rio Negro, tal como descrito por Meira (2017 citado em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 218).

Os Duca porã, em sua descida de rio, teriam experimentado uma transformação profunda, pois o contato com os não indígenas os vincula a um dos episódios mais violentos da história do baixo Uaupés. Nesse processo, expandiram seu campo de ação e, ao descerem o rio, subiram na escala hierárquica. Compreenda-se escala hierárquica, aqui, não como uma grade fixa de posições com uma única cadeia de comando, e sim como um campo aberto a disputas por reconhecimento, prerrogativas no manejo de recursos, autoridade sobre conhecimentos especializados e, principalmente, sucesso na política de alianças e crescimento demográfico. Aqui, é importante dizer que, embora a trajetória dos Duca porã no baixo Uaupés sugira uma relação entre descida de rio e fortalecimento político, tal relação não é meramente causal e/ou extensiva para outros grupos. Em suma, tal feito seria uma das particularidades da história do grupo em questão. Algo que me parece corroborar esse argumento é a contestação de tal escalada empreendida pelos Duca porã, levada a cabo por seus parentes agnáticos mais próximos, os Inapé porã (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 219).

Alguns relatos de Pedro M. indicam que os Duca porã podem ter sido vítimas de sopros, ou seja, podem ter sido enfeitiçados. Em decorrência disso, suas gerações mais recentes assistiram a um nítido declínio populacional, pois muitos morreram jovens, sem se casar e ter filhos. Foram muitos, hoje são poucos. E aqui a imagem da pequenez dos Duca porã está associada não apenas à quantidade numérica dos moradores contemporâneos da antiga comunidade Ananás (em 2017, menos de duas dezenas), e sim à dispersão de outros integrantes pelas cidades rio Negro abaixo. O que quero salientar com isso é que ser menor ou ser maior não se restringe a termos quantitativos. Um exemplo: certa vez, o interlocutor tukano inapé porã Maximiliano Menezes me disse que todos os indígenas do rio Negro não dariam conta de ocupar um estádio de futebol. Ao mobilizar esse exemplo, Maximiliano me parecia apontar para o fato de que, se os indígenas rionegrinos fizerem um movimento de se misturar às multidões de não indígenas, eles desapareceriam, não em um sentido absoluto, mas relativo. Por isso, a permanência nos locais tradicionais de habitação é algo que tendem a enfatizar como uma espécie de condição para permanecerem, em sentido sobretudo qualitativo, fortes e grandes (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 219).

Afetar o crescimento de um grupo passaria por fomentar conflitos que impliquem o abandono de suas comunidades: a expressão tukano ‘mahkari uase’, em uma tradução livre, seria algo correspondente a ‘ir embora da comunidade sentindo raiva’. As afirmações de que os Duca porã teriam sido soprados sugerem, a meu ver, que, em contextos fortemente marcados por disputas entre os subgrupos, a feitiçaria é utilizada tanto para a destruição da capacidade reprodutiva quanto para a expulsão dos desafetos, parentes agnáticos ou afins, de um determinado lugar, ainda que, muitas vezes, na forma de verdadeiras expedições guerreiras, as motivações da feitiçaria fossem, sobretudo, políticas (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 219).

Eis que é preciso também tentar responder qual o lugar da nominação, em suas várias modalidades, em um regime de socialidade tão marcado por disputas por influência (Andrello, 2020Andrello, G. (2020). Cunhados em comum: transformações do parentesco entre os Ye’pâ-Mahsã (Tukano). Maloca: Revista de Estudos Indígenas, 3, 1-30. https://doi.org/10.20396/maloca.v3i00.13491
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). Talvez uma resposta inicial possa ser observada na recusa dos Inapé porã em reconhecerem seus vizinhos históricos de Ananás como Duca porã. Ao se referirem ao grupo de Pedro M. como Sanapó porã, estariam os Inapé tentando eclipsar a posição de chefia ainda hoje amplamente associada ao nome Duca porã no baixo curso do rio Uaupés? Ou ainda, se, como vimos, sanapó se trata de sarapó – o peixe que é pequeno rio acima e grande rio abaixo –, os Inapé estariam afirmando a condição de peixe pequeno que desejariam manter para os seus corresidentes agnáticos? (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, pp. 219-220).

Talvez aqui estejamos tratando, nos termos de Munn (1992)Munn, N. D. (1992). The Fame of Gawa: a symbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) society. Duke University Press., de fama e reputação. Munn (1992)Munn, N. D. (1992). The Fame of Gawa: a symbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) society. Duke University Press., ao descrever os processos de criação de valor em Gawa (Papua Nova Guiné), conceitua a fama como uma forma virtual de influência. Nesse sentido, para os Tukano do baixo Uaupés mais do que o nome denota, parece-me tratar-se do que o nome conota e/ou evoca. Em caso positivo, e para além de nomes, o que temos tentado descrever é um mecanismo de atribuição de qualidades e reputação que codifica as disputas intergrupos, onde, evidentemente, os nomes ocupam uma posição proeminente.

Inapé, Sanapó/Sarapó e Duca porã também parecem tratar-se de nomes que circulam em zonas de ambivalência em que os diversos grupos tukano se posicionam e se deslocam na conformação de contextos sociopolíticos específicos (Andrello, 2016Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia: coletivos em transformação no Alto Rio Negro. Ilha, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
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). Ora ‘irmãos menores’, ora ‘irmãos maiores’, ora ‘tuxauas’ ou ‘chefes’. Já foram muitos, hoje são poucos. O fato é que o nome parece ser fundamental nos processos de constituição de subgrupos marcados por disputas e conflitos – isto é, um nome sempre implica (des)reconhecimento por outros (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 220).

Uma forma pertinente para compreender os processos de disputas e conflitos intergrupos dos tukano orientais tal como estamos tratando também é fornecida por Cayón (2020)Cayón, L. (2020). Disputas fraternas e chefia bicéfala: hierarquia e heterarquia no Alto Rio Negro. Revista de Antropologia, 63(2), 1-27.. O autor argumenta que a política makuna (Tukano oriental) vinculada à aquisição de poder tende a ser marcada por disputas fraternas. Como o autor retoma, na literatura regional essa tensão tem sido tratada em termos da presença de um modelo dual em que se opõem hierarquia e igualdade. No entanto, o autor opta pelo conceito de heterarquia no lugar de igualdade, pois sua proposta é a de tratar essa tensão em termos de assimetria e simetria – um princípio estrutural que possibilita distintas configurações sociopolíticas e trânsitos entre escalas. Uma vez que são constituídas de forma mútua, hierarquia e heterarquia operam em defesa da multiplicidade, da autonomia e da diferença.

Como retoma Cayón (2020)Cayón, L. (2020). Disputas fraternas e chefia bicéfala: hierarquia e heterarquia no Alto Rio Negro. Revista de Antropologia, 63(2), 1-27., o tema da hierarquia entre os Tukano orientais tende a ser abordado a partir da distribuição territorial dos clãs e do controle de recursos rituais e econômicos. Dessa forma, clãs patrilineares exogâmicos reivindicam a posse de territórios e bens rituais específicos. Trata-se, no entanto, de um esquema ideal de uma estrutura social baseada na patrilinearidade replicada linearmente no espaço (clãs de irmãos mais velhos, na foz, e irmãos mais novos nas cabeceiras dos rios). Ocorre que, via de regra, não há ocupação exclusiva de um território por um clã em específico, uma vez que há dispersão de seus membros por diferentes lugares. Tal dispersão, no caso dos Tukano, é algo que temos enfatizado ao longo deste artigo.

Cayón (2020)Cayón, L. (2020). Disputas fraternas e chefia bicéfala: hierarquia e heterarquia no Alto Rio Negro. Revista de Antropologia, 63(2), 1-27. também demonstra que os Makuna combinam a ideologia da descendência patrilinear com o princípio da aliança simétrica na ordenação das unidades básicas da organização social e política no espaço. Dessa forma, ocorre a dispersão progressiva dos consanguíneos em que a aliança é fator preponderante da produção de uma organização espacial de grupos pequenos. Isso reforça o argumento do autor de que existe uma relação dialógica entre hierarquia e heterarquia, uma vez que, junto à linguagem hierárquica que sublinha a diferença temporal estabelecida pela ordem de nascimento, há relações entre elementos diferentes e equivalentes à margem das gradações de valores próprias das posições hierárquicas.

Para o caso que temos descrito, a dispersão territorial dos subgrupos tukano para o baixo Uaupés põe em evidência que a linguagem hierárquica precisa ser reconfigurada, uma vez que, distantes de seus territórios de origem, tais subgrupos deixam de ter a vinculação imediata entre posição hierárquica e território. Por um lado, passa a existir uma espécie de suspeição potencial do status hierárquico de outrora (montante), em que a diferença assimétrica é atualizada a partir do desreconhecimento que alguns subgrupos passam a ter. Por outro, também é verdade que a equivalência simétrica (heterarquia) via, principalmente, constituição de alianças emerge como vetor transformacional potencialmente positivo daquele status hierárquico abalado, uma vez que há campo aberto para a constituição de trajetórias marcadas por atributos amplamente valorizados, como o domínio sobre territórios específicos e o sucesso na política matrimonial.

Cayón (2020)Cayón, L. (2020). Disputas fraternas e chefia bicéfala: hierarquia e heterarquia no Alto Rio Negro. Revista de Antropologia, 63(2), 1-27. argumenta que a tensão entre a diferença assimétrica (hierarquia) e a equivalência simétrica entre diferentes (heterarquia) é um princípio estrutural da relação entre irmãos no sistema regional do alto rio Negro. Essa tensão, por sua vez, produz formas de atualizar os coletivos e de, ao mesmo tempo, marcar as diferenças para que não ocorra a concentração do poder. Tais argumentos contribuem de maneira significativa para a compreensão dos fenômenos que temos descrito para o baixo Uaupés. Isso porque a ideologia da descendência patrilinear com o princípio da aliança simétrica, enquanto campos marcados por disputas e arranjos, somam-se, no baixo Uaupés, aos mecanismos de atribuição de qualidades e reputação vinculados a nomes. Nesse sentido, as trajetórias dos subgrupos tukano do baixo Uaupés evidenciam que a permanência em territórios que não lhe são de origem faz emergir uma organização social em que o princípio da tensão deverá ser controlado a partir do sucesso político. Tal sucesso, por sua vez, como temos demonstrado, envolve o reconhecimento por outros de uma chefia que tem no nome um elemento sintetizador de qualidades coletivamente valorizadas, mas que, ao invés de cristalizada, é suscetível a um estrutural dualismo em perpétuo desequilíbrio (Lévi-Strauss, 1992Lévi-Strauss, C. (1992). História de Lince. Anagrama. citado em Cayón, 2020Cayón, L. (2020). Disputas fraternas e chefia bicéfala: hierarquia e heterarquia no Alto Rio Negro. Revista de Antropologia, 63(2), 1-27.).

Cabe aqui também retomar que Andrello (2016)Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia: coletivos em transformação no Alto Rio Negro. Ilha, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
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demonstra como nomes e apelidos são instrumentos fundamentais na conceituação de diferenças internas e vinculam-se à noção local de hierarquia, cujo um dos elementos refere-se, justamente, às categorias de que lançam mão os atores locais para designar a si e a outrem. Nesse sentido, o autor evidencia uma dinâmica social na qual as diferenças hierárquicas dizem respeito, de fato, a um componente metaestável intrínseco a esse sistema. Isso porque, em concomitância à profusão de nomes particulares associados à origem mítica dos clãs patrilineares, ocorre a recorrência de categorias englobantes vinculadas a posições instáveis e contrastivas, que podem ser perseguidas ou rejeitadas.

Andrello (2016)Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia: coletivos em transformação no Alto Rio Negro. Ilha, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
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afirma que os nomes integram um mecanismo pelo qual coletivos podem aparecer em distintos graus de proeminência e magnitude. Nesse ponto, indico que, ao mobilizar o termo proeminência ao longo deste artigo, estou me referindo exatamente a um indicativo de poder político que ocorre em termos propriamente tukano-orientais, em que a chefia está atrelada à posse de prestígio e de qualidades valorizadas (Cayón, 2020Cayón, L. (2020). Disputas fraternas e chefia bicéfala: hierarquia e heterarquia no Alto Rio Negro. Revista de Antropologia, 63(2), 1-27.). Em síntese, perseguir nomes e categorias carregadas de prestígio e recusar designações pejorativas me parece ser um elemento fundamental da disputa por poder político, que pode ser traduzida enquanto uma condição/posição indicava de proeminência ou, dito de outra forma, de importância e grandeza entre os Tukano.

É por isso que na próxima seção passo a demonstrar como essa perseguição a nomes específicos encontra largo campo no baixo Uaupés, quando vem à tona um nome específico entre os Tukano, referenciado ainda no início do artigo e do qual o leitor deve se lembrar: Yu’pûri Waûro, o ‘irmão maior’ e incontestável chefe, morto em duelo por seu irmão mais novo.

POR ONDE ANDARÁ WAÛRO?

Nesta seção, passaremos a considerar alguns elementos relacionados ao nome do outro subgrupo tukano historicamente residente em Ananás, os Inapé porã. Vejamos, inicialmente, a explicação de Pedro M., um tukano Duca porã, sobre tal nome:

Esse Inapé porã é apelido de um clã, não é um nome de origem que veio desde o início não! Foi mais tarde que apareceu Inapé porã. Porque um homem desse grupo disse assim: “a vagina da minha mulher é do tamanho do buraquinho da formiguinha”. Aí os outros falaram: “ah...então você é filho desse tipo, do buraquinho da casa da formiguinha”

(Pedro M., comunicação pessoal, abr. 2016 citado em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 220).

Pedro M. inicialmente mobiliza uma chave temporal para localizar o nome Inapé porã, um apelido que teria surgido mais recentemente, e não um nome de origem. Na sequência, o interlocutor passa a narrar uma situação jocosa que envolve a reação, por certo de cunhados e demais parentes afins, diante de algo que teria sido anunciado por um homem do grupo (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 221).

Maximiliano, à época de nossa pesquisa conjunta, em 2010, ao contrário, não forneceu tal explicação para o significado do apelido de seu grupo, restringindo-se a indicar que Inapé se tratava de uma formiguinha preta. Algo plausível, se considerarmos que o episódio de atribuição do apelido descrito por Pedro M. envolve um tom de zombaria por parte de quem o atribui, pois não se trataria de uma associação direta, e sim indireta, ao animal, já que aparece em primeiro plano como uma característica do órgão sexual da esposa de um dos membros do grupo: sua vagina teria a dimensão de um buraquinho de formiguinha. Seus membros passariam a ser referidos como os ‘filhos da formiguinha’ ou, de uma maneira mais ampliada, “os filhos daquele que tem como esposa alguém que possui a vagina do tamanho do buraquinho (que é a casa) de uma formiguinha preta”. Em suma, a atribuição do nome ocorre em um contexto jocoso entre homens em que uma característica do órgão sexual da esposa de um deles se torna o motivo do apelido (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 221).

Viveiros de Castro (2006)Viveiros de Castro, E. (2006). Appendix to chapter 4: On Tukanoan Onomastics: four remarks and a diagram. In G. V. Bruck & B. Bodenhorn (Orgs.), The Anthropology of names and naming (pp. 90-97). Cambridge University Press., em um frutífero diálogo com S. Hugh-Jones (2006)Hugh-Jones, S. (2006). The substance of Northwest Amazonian names. In G. V. Bruck & B. Bodenhorn (Orgs.), The Anthropology of names and naming (pp. 74-90). Cambridge University Press. sobre a onomástica tukano, sugere que entre os nomes pessoais o apelido manifesta o aspecto corpóreo da pessoa, sua história individual ou curso de vida; uma biográfica e não transferível individualização do nome, uma noção propriamente amazônica de conceber o corpo como um aspecto que singulariza os seres. Uma lógica semelhante me parece ocorrer com o nome Inapé porã. Ainda que tal nome designe um subgrupo tukano e não se trate de um nome pessoal, a narrativa de Pedro M. se refere justamente à ocorrência de um apelido atribuído a um indivíduo em específico. O que também podemos notar é que, assim como nas narrativas sobre o surgimento do nome Duca porã, um nome de indivíduo, ainda que apelido, torna-se nome de um coletivo, evocando a já acima citada fractalidade dos nomes. No mais, é bom relembrar a escala temporal mencionada por Pedro M., que localizou o nome Inapé em tempos mais recentes, algo que corrobora outra proposição de Viveiros de Castro (2006)Viveiros de Castro, E. (2006). Appendix to chapter 4: On Tukanoan Onomastics: four remarks and a diagram. In G. V. Bruck & B. Bodenhorn (Orgs.), The Anthropology of names and naming (pp. 90-97). Cambridge University Press. sobre os apelidos, qual seja, tendem a ocorrer em brincadeiras entre afins e situar-se-iam temporal e espacialmente próximos à experiência (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 221).

Dito isso, é preciso relembrar aqui as expectativas de Maximiliano que anunciou, ainda em 2010, um grande interesse em descobrir o verdadeiro nome de seu grupo. Estaria ele desejando encontrar o tal nome de origem anunciado por Pedro M., uma vez que o apelido Inapé seria insuficiente para situá-los entre os grupos tukano? O problema apresentado por Maximiliano era o de que os Inapé porã seriam um grupo de alta hierarquia que vinha perdendo o reconhecimento como tal entre os demais subgrupos tukano. Isso porque, em sua opinião: i) com o deslocamento a jusante e estabelecimento em Ananás, passaram a ser confundidos com os Duca porã e, por isso, identificados como um clã de baixa hierarquia; ii) uma grande dispersão ocorrida em Ananás, na década de 1990, fez com que muitos integrantes inapé porã se deslocassem para São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. Sem uma comunidade ou um território de referência, a perspectiva de Maximiliano, à época, era a de que os Inapé porã estavam lidando com a possibilidade iminente de desaparecimento. Ou seja, o movimento a jusante efetuado pelos Inapé porã teria produzido um efeito oposto ao da descida dos Duca porã, uma vez que os primeiros veem sua notoriedade na escala hierárquica diminuir (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 222).

Ao demonstrar seu interesse pela ajuda de um estudante não indígena de antropologia, talvez Maximiliano tenha acreditado na possibilidade de que com uma pesquisa colaborativa esse quadro pudesse ser revertido. Como? Registrando no papel a trajetória dos Inapé porã para reafirmar a alta posição hierárquica que o grupo um dia haveria ocupado. Mas a tarefa não foi tão simples assim, pois, ao buscar reunir informações para formar um ponto de vista, várias possibilidades vieram à tona e o que se conseguiu foi mais um apanhado heterogêneo de relatos e especulações, algo que me parece compor a política tukano quando esse tipo de assunto vem à tona. Em suma, Maximiliano não conseguiu reunir um repertório suficiente para solucionar o problema em definitivo e a posição/condição dos Inapé porã permaneceu uma incógnita: suas conexões mais primordiais – o ‘nome sagrado’, ‘nome de origem’ ou ‘nome de benzimento’ – não puderam ser acessadas. Isso porque, como argumentam Maia e Andrello (2019)Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81., as classificações ganham consistência se baseadas em um controle eficaz do conhecimento relativo às trajetórias dos grupos e aos mitos de origem que as precedem (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 222).

Note-se que a empreitada de Maximiliano era particularmente inglória, pois não havia tal consistência, uma vez que seu pai, aquele que talvez pudesse rememorar de maneira aprofundada a trajetória do grupo a partir de um corpus narrativo robusto, estava, à época, impossibilitado para executar tal tarefa. Para afirmar-se como ‘irmão maior’ dos Duca porã e, mais do que isso, argumentar que seu grupo deveria ocupar, em seus próprios termos, uma alta posição hierárquica, Maximiliano necessitava recontar uma história sobre a qual, aparentemente, faltavam-lhe elementos para produzir ascendência. Como também argumentam Maia e Andrello (2019)Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81., os modos de tratamento, tais quais esses que Maximiliano pleiteava a favor de seu grupo, estarão sempre a expressar o ponto de vista de alguém acerca das origens míticas e do processo subsequente de proliferação dos grupos no interior de um conjunto maior, com a finalidade de estabelecer posições mais ou menos distantes, para reforçar ou atenuar diferenças de status (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, pp. 222-223).

É por isso que, de acordo com Maia e Andrello (2019)Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81., do ponto de vista dos clãs maiores (expressão dos autores), é fundamental a manutenção de uma posição originária. Uma das formas de conseguir transmitir tal status ao longo de sucessivas gerações passa por gerar muitos filhos homens e ser bem-sucedido na obtenção de esposas junto aos clãs de cunhados, já que os clãs podem diminuir e até desaparecer por terem poucos filhos homens ou somente filhas. A partir dessas considerações, é possível visualizar parte da preocupação de Maximiliano, uma vez que seu grupo, como já dito, se dispersou de tal modo que o sucesso na obtenção de esposas já não estava mais assegurado como no tempo de crescimento de Ananás, no qual puderam fomentar alianças com cunhados de outros grupos exogâmicos. Por último, como também observam os autores, além da replicação de alianças tradicionais, alguns grupos tukano conseguiram diversificar tais alianças ao longo do tempo e tornaram-se, por isso, demograficamente fortes e reconhecidos por ocuparem posições de destaque em seus respectivos conjuntos. Ao que tudo indica, não foi exatamente essa a trajetória dos Inapé porã. No entanto, continuemos observando as tentativas de Maximiliano que, ao contrário de seu grupo, conseguiu tornar-se e tem se mantido grande enquanto uma destacada liderança indígena amazônica (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 223).

Após a primeira etapa da pesquisa ser concluída, outra forma de abordar o mesmo assunto passou a ser elaborada por Maximiliano. Tendo lido e feito alguns poucos comentários à dissertação que lhe entreguei como contrapartida de nossos esforços conjuntos, seu principal argumento passou a ser de que os Inapé porã por certo seriam um grupo vinculado aos próprios Waûro porã, os descendentes do chefe maior dos tukano, como já anunciado no início deste artigo. Segundo ele, os Waûro porã não teriam todos se deslocado até Belém ou Rio de Janeiro – alguns haveriam permanecido no baixo Uaupés (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 223).

Interessante é que a presença dos Waûro porã no baixo Uaupés anunciada por Maximiliano também pode ser visualizada em algumas fontes. Seus descendentes são identificados como moradores de Ananás nas compilações realizadas pelo antropólogo salesiano Silva (1962)Silva, A. B. A. (1962). A civilização indígena do Uaupés. Linográfica.7 7 Alciolínio Bruzzi Alves da Silva redigiu parte de seu livro “A civilização indígena do Uaupés” (Silva, 1962) em Taracuá, ex-missão salesiana vizinha a Ananás. O padre antropólogo salesiano costuma ser lembrado pelos moradores de Taracuá por sua rigidez e severidade extremas no tratamento com os interlocutores indígenas, e muitos questionam fortemente suas observações etnográficas (Rodrigues, 2019, p. 224). . Também há um dado muito interessante no relatório do I Encontro de Manejo dos Peixes do Baixo Uaupés8 8 Evento realizado em 2013, vinculado a um Plano de Manejo Pesqueiro levado a cabo na região como uma das iniciativas da Política Nacional de Gestão Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI) e executado pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, Fundação Nacional Indígena (FUNAI) e Instituto Socioambiental (ISA) (Rodrigues, 2019, p. 224). (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 224):

Waûro, quando chegou na região de Taracuá, mandou tirar lenha e em seguida fez fogo. Depois que o fogo apagou, Waûro comeu a terra queimada, percebeu que não tinha gosto, pois a mesma era ácida. Isso significava que a terra não era fértil. Por isso resolveu continuar a viagem, pernoitando no igarapé Tucano, no rio Uaupés, defronte a atual comunidade Ananás. Nessa oportunidade, Omo sici (avô [expressão utilizada para se referir a grupos de irmãos menores] do último grupo dos Tukano), foi convencido pela esposa Sipió (Dessana), para fugirem, pois a mesma acreditava que estavam cometendo suicídio se continuassem a viagem. Na mesma noite, de madrugada, fugiram para floresta adentro. Waûro, no dia seguinte, ao perceber a ausência dos dois, antes de continuar a viagem, resolveu esperar por um bom tempo na parte da manhã. Antes de partir, enfeitiçou o local para que os fugitivos ficassem arrependidos de não terem continuado a viagem. Depois de sua partida, Omo sici juntamente com sua esposa retornaram ao local de pernoite e caíram na armadilha do feitiço colocado pelo Waûro. Caíram aos prantos, sentiram muitas saudades e se arrependeram de não ter continuado a viagem. Ao perceber que estava enfeitiçado, Omo sici benzeu um cigarro para servir como antídoto contra o feitiço e criou a coragem de recomeçar a vida, tudo sozinho juntamente com a esposa. No decorrer dos dias, prepararam a roça, plantaram maniva. Viveram por ali por muito tempo

(líder de Ananás (não identificado) durante a apresentação do histórico da ocupação das comunidades do Baixo Uaupés, comunicação pessoal, 2014, citado em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, pp. 224-225).

O excerto acima reforça a narrativa de Pedro M., divergente a de Maximiliano, de que a presença de Waûro fora passageira em Ananás9 9 É preciso também mencionar que, nas narrativas, ora é citada a pessoa do chefe, o próprio Waûro, ora é narrado o coletivo, no caso, seus descendentes. Acredito que se trata menos de imprecisão dos interlocutores e mais de um recurso linguístico que revela a tênue fronteira entre o ser individualizado e o grupo, o que, mais uma vez, aponta para o princípio de fractalidade existente nos nomes. . É preciso considerar ainda o feitiço deixado por Waûro sobre o local. Nesse ponto, é interessante notar um de seus efeitos: o sentimento de arrependimento de não terem continuado a viagem rio abaixo. Algo controlado somente com o uso de um cigarro benzido. Considerando se tratar de um local historicamente esvaziado, tal feitiçaria perduraria sobre Ananás? No mais, ao sugerirem vínculo com Waûro, alguns tukano do baixo Uaupés estariam atualizando o arrependimento de não terem acompanhado esse incontestável ‘chefe’? Por outro lado, a presença controversa – tanto pelo fato de ter ou não ocorrido quanto por sua natureza (afinal, teria enfeitiçado o local?) – de Waûro no baixo Uaupés me parece assumir um caráter virtual, que pode ser acionado ou não, a depender de quem a enuncia. Mas, afinal, por que, como faz Maximiliano, tentar vincular-se a Waûro? Por que, como me parece anunciar Pedro M., pretende-se afastá-lo do baixo Uaupés? (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 225).

Acredito que a afirmação de Maximiliano de que os Inapé são um grupo ligado ao chefe Waûro seja indicativa de uma disputa por proeminência atrelada à apropriação de nomes em curso no baixo Uaupés. Explico: ao longo da história, e como já mencionado ao fim da última seção, a descida do rio pelos Tukano rearranjou condições/posições existentes a montante. Aqui, não pretendo projetar uma imagem de fixidez que se diluiu com os deslocamentos a jusante, e sim que tais deslocamentos adicionam às trajetórias dos subgrupos tukano elementos que precisam ser rememorados/mobilizados quando necessitam afirmar quem são. Nesse sentido, as falas e investidas de Maximiliano ilustram as estratégias contemporâneas dos Inapé porã: reivindicar sua posição/condição entre os Tukano, apontando sua ascendência em direção a Waûro. É preciso também ponderar que as falas sugerindo pertencimento ao grupo de Waûro não são exclusivas de Maximiliano. Outros moradores da região também já afirmaram que os subgrupos ao quais pertencem teriam baixado o rio com o chefe maior dos Tukano. Em suma, parece-me tratar-se de um fenômeno que envolve a disputa por um lugar de reputação no interior dos grupos Tukano (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, pp. 225-226).

É bom relembrar aqui o que me disse o tuyuka Higino Tenório quando certa vez conversávamos sobre a ocupação do baixo Uaupés: “ao se deslocar você se torna outra pessoa”, refletiu10 10 Infelizmente, Higino faleceu, em 2019, em decorrência da COVID-19. . Com o cuidado para não esgotar a complexidade do pensamento do intelectual tuyuka, gostaria de reter algo específico para meu argumento. A meu ver, ao se autodesignar como Waûro, os Inapé porã, via Maximiliano, para além de se identificarem como Tukano, reivindicam um nome amplamente associado à posição de chefia. Note-se que o projeto em se afirmar como Waûro é levado a cabo por alguém como Maximiliano, uma liderança política de destaque no alto rio Negro, conhecida no âmbito do movimento indígena panamazônico como Max Tukano11 11 Maximiliano atua no movimento indígena rionegrino desde a criação da FOIRN, no final da década de 1980, tendo sido duas vezes seu vice-diretor. Entre 2014 e 2017, ocupou a coordenadoria geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e foi membro diretor da Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (CUENCA). Graduado em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Amazonas, já trabalhou no departamento de Educação da FOIRN e no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Negro. Trata-se de uma liderança indígena que tem participado ativamente de diversas discussões em fóruns internacionais sobre direitos indígenas e mudanças climáticas (Rodrigues, 2019, p. 26). . Ou seja, quem fala é alguém que ocupa um lugar de destaque na política feita com os não indígenas. No entanto, mais do que o reconhecimento como liderança indígena na política travada com o Estado, o que me parece ser fundamental para Maximiliano é a consideração entre os Tukano como alguém que pertenceria a um grupo de ‘chefes’. No mais, é preciso retomar que Waûro é retratado como um chefe que perdeu seu status devido ao crescimento do grupo de um irmão mais novo. Ou seja, ao projetar seu grupo a Waûro, Maximiliano acaba por replicar uma condição de chefia abalada (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 226).

O ponto é que, aparentemente, os Inapé porã não são considerados Waûro por outros grupos Tukano que permaneceram a montante e argumentam, como os Oyé (subgrupo residente em Iauaretê, no médio Uaupés), que os Waûro porã passaram a viver como não indígenas ao se deslocarem até Manaus ou Belém (Andrello, 2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. UNESP.). Tratar-se-ia, aqui, de um jogo de perspectivas acionadas no interior do próprio grupo Tukano. Para esses localizados a montante, os Inapé porã são Tukano, mas não são Waûro, não são ‘chefes’. O ponto de vista de Pedro M., um tukano Duca porã, é ainda mais duro com os Inapé, pois, além de afirmar que Waûro apenas pernoitou em Ananás, para ele, os Inapé porã seriam originalmente seus irmãos menores e também não descendem de ‘chefes’ (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 226).

É interessante pensar que os Waûro porã sejam menos um grupo fixo/materializado e mais uma condição/posição que pode ser acessada/alcançada ou negada em contextos de referências específicas. Aqui, vale relembrar que, na narrativa dos Oyé, os descendentes de Waûro tornam-se civilizados, ao passo que eles próprios (os Oyé) acabam por assumir a posição de atuais ‘chefes’ entre os Tukano. Tornar-se Waûro, como o intenta Max Tukano, ou não (como a posição de Pedro M. e dos Oyé), seria, de fato, uma forma interna de disputar reputação (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 227).

No artigo a que vim fazendo referência, Maia e Andrello (2019)Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81. argumentam que é notável a quantidade variável de unidades nomeadas no interior do conjunto tukano. Por isso, não parece haver uma lógica específica a determinar essa variação, ao contrário do que se passa entre os povos Jê-Bororo, conforme demonstrado por Crocker (1979)Crocker, J. C. (1979). Selves and alters among the Eastern Bororo. In D. Maybury-Lewis (Org.), Dialectical societies: the Gê and Bororo of Central Brazil (pp. 249-300). Harvard University Press. e Lea (2012)Lea, V. (2012). Riquezas intangíveis de pessoas partíveis: os Mebêngôkre (Kayapó) do Brasil Central. Edusp.. Como argumentam os autores, se tais quantidades podem variar no tempo, a questão passa a ser como as unidades nomeadas são reconhecidas ou de como cada unidade se faz, ela própria, reconhecer. Se, por um lado, há incerteza quanto à ordem interna dos clãs (principalmente nos blocos intermediários) e as pessoas expressam dúvidas sobre a posição correta ou o nome verdadeiro de seu grupo, por outro, há consenso quanto ao fato de que o tema é objeto de conhecimento especializado12 12 Maia e Andrello (2019) afirmam que a zona intermediária dessa escala suscita questionamentos com certa frequência. No entanto, o que se passa em suas pontas superior e inferior não parece ser objeto de grandes divergências. Tal ponto já teria sido notado por C. Hugh-Jones (1979 citado em Rodrigues, 2019, p. 227). (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 227).

É preciso ainda notar algo importante. Os nomes tukano apresentados neste artigo – Duca/Sanapó/Sarapó e Inapé – carregam a mesma terminação porã (cuja tradução é ‘filhos de’). Talvez aqui resida um aspecto específico desse processo de diferenciação, uma vez que isso conecta os membros do grupo a um ascendente específico, ainda que indeterminado. Acima, dissemos que se tornar Waûro ou se afastar disso parece vincular-se a uma disputa por reputação. As histórias sobre Waûro são muitas. Certa vez – talvez ironicamente –, disseram-me que os descendentes de Waûro haveriam se transformado em políticos do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), por isso o uso do animal tucano como símbolo do partido. Mas não para por aí. Durante uma visita à comunidade São Pedro, também no baixo Uaupés, explicava para alguns moradores os contornos mais gerais da pesquisa que pretendia desenvolver. Em um dado momento da conversa, o professor Geraldo Baltazar, que, infelizmente, faleceu, em 2017, vítima de afogamento no rio Negro, me disse que havia um motivo específico em meu interesse em trabalhar com os indígenas da região. Eu lhe respondi que meu interesse se devia, sobretudo, ao fato de ser um estudante de antropologia. Geraldo Baltazar começou a rir da minha resposta. Ele então afirmou que não se tratava daquilo que havia informado, pois eu estaria na região por ser descendente de Waûro. Nesse momento, perguntei (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 228):

RR: Não sei se entendi direito, seu Baltazar. Os descendentes, netos e bisnetos de Waûro voltam para a região?

GB: Tá voltando! É por isso que o senhor fica se preocupando com isso daí, quer fazer mapa, quer fazer trabalho pra organizar, pra voltar a língua, voltar de novo os saberes, quer saber onde estão os lugares sagrados, quer conhecer quem mora hoje atualmente, como vive... Waûro está preocupado com isso!

As formulações nativas sobre os descendentes de Waûro que retornam para a região já foram suficientemente discutidas por Andrello (2016)Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia: coletivos em transformação no Alto Rio Negro. Ilha, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v1...
e a inserção de tal ponto aqui se justifica mais como uma contribuição etnográfica ao tema, ou seja, para demonstrar que Waûro pode reaparecer de diversas formas – até mesmo na pessoa do pesquisador, uma presença espectral, por assim dizer. Para o que temos considerado sobre o assunto, até aqui dissemos que a figura de Waûro ora é ativada – seja na tentativa de se conectar a ele, seja nesses retornos à região – ora é refutada. Sobre Waûro estar em locais distantes, geralmente as referências disponíveis são genéricas: vivem nas cidades grandes como os brancos. No entanto, Pedro Meirelles, ainda em 2013, fez um relato interessante sobre a presença dos descendentes de Waûro. No relato, Pedro M. diz que um parente tukano do rio Tiquié, chamado Fortunato, encontrou com Waûro no porto de Belém. Após se reconhecerem como pessoas do povo tukano, o rapaz o levou até sua casa (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, pp. 228-229). Vejamos o relato:

Esse Fortunato é daqui do Tiquié, comunidade Maracajá. Fortunato foi muito jovem pra cidade trabalhar com os comerciantes. Ele acabou encontrando essa profissão de dirigir barcos nesse trecho: São Gabriel para Manaus e de Manaus para Belém. Ele era um marujo muito procurado. Fortunato aprendeu a dirigir barcos pequenos e foi subindo até que ele andava com esses barcos grandes como da marinha, foi quando Fortunato encontrou com o neto ou bisneto de Waûro no porto de Belém e conversou com o Tukano. Fortunato contou para meu irmão, trouxe o endereço do Waûro em Belém. Esse endereço que nós perdemos! Meu irmão perdeu. Era para um de nós, ou um dos parentes daqui ir pra lá com eles, porque eles [Waûro] que pagariam a passagem.

Fortunato contou pro meu irmão que quando chegou em Belém o comandante deixou ele como vigia. Então nesse tempo que ele [Waûro] chegou num carro preto. E o Fortunato se movimentando, trabalhando e avistou esse cara, esse rapaz de carro preto, olhando para o navio e pra ele. O rapaz chamou o Fortunato e perguntou de onde veio o barco. Fortunato disse: “nós viemos de

São Gabriel da Cachoeira”. O rapaz perguntou se ele morava em São Gabriel da Cachoeira mesmo. Fortunato disse que morava em um lugar chamado Maracajá. Depois o rapaz perguntou de que etnia era Fortunato. Então o rapaz disse que era tukano também. O rapaz perguntou se Fortunato conhecia a história do Waûro. Fortunato respondeu que seus avós contavam essa história e o rapaz disse que era da classe do Waûro. Enquanto os dois estavam conversando, o comandante chegou e ralhou com o Fortunato. Fortunato respondeu: “É meu parente! Ele fala tukano!”. O comandante disse: “barbudo fala tukano?”. O comandante mandou os dois falarem em tukano. Depois que eles falaram, o comandante disse: “será que ele estudou? Será que ele não é linguístico?”. Depois disso o rapaz waûro pediu para o comandante deixar ele levar o Fortunato para conhecer onde ele morava com os outros parentes. O comandante deixou ele ir por três horas. Eles foram pro centro da cidade.

Chegaram num prédio grande de quatro andares. Embaixo ficava a lanchonete. Em cima tinha uma sala de visita com aparelho de som e mais em cima é a biblioteca. Biblioteca com os vídeos e gravações e os livros deles. Eles têm essa biblioteca para guardar tudo o que o avô dele falou. “Nossa sabedoria está aqui”, disse. E aí ele perguntou se o Fortunato sabia benzer. Fortunato disse que não tinha aprendido. O rapaz perguntou se ele sabia benzer alguma coisa do parto, antes durante e depois do parto. Fortunato disse que não. “Poxa, vocês perderam muito! Vocês esqueceram tudo! Nós temos tudo, temos gravação e temos livros digitados também!”. Fortunato disse que lá tinha vários livros com fotos dentro. Aí ele desceu pra tomar lanche. Chegaram duas moças: uma de cabelo loiro e outra de cabelo preto, liso. Elas tomaram refrigerante. O moço disse pra elas em tukano que Fortunato era parente deles. Fortunato disse para o meu irmão que ele não parece mais com nós, já são muito diferentes dos Waûro: barbudo e branco.

Fortunato voltou para o porto e no outro dia era domingo. Aí o rapaz waûro chegou outra vez acompanhado com outros parentes, um era Oâkapea e o outro era Desana. O rapaz apontou para Fortunato e disse para o Desana que ele era um cunhado. Fortunato contou essa história pro meu irmão e chorou muito de emoção. Fortunato deu o endereço pro meu irmão. Meu irmão perdeu o endereço! (Pedro Meirelles, comunicação pessoal, jun. 2013, citado em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, pp. 229-230).

A imagem que surge do relato é de Waûro com um corpo com características distintas das dos indígenas, que possui bens tecnológicos e que consome outros alimentos. Em suma, a própria imagem do branco. No entanto, ao contrário de alguns Tukano que permaneceram no rio Tiquié, Waûro mantém o conhecimento sobre os ‘benzimentos’, principalmente, aqueles utilizados antes, durante e após o parto. Como citado na seção anterior, Andrello (2016)Andrello, G. (2016). Nomes, posições e (contra)hierarquia: coletivos em transformação no Alto Rio Negro. Ilha, 18(2), 57-97. https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v18n2p57
https://doi.org/10.5007/2175-8034.2016v1...
diz que os descendentes de Waûro, ao se deslocarem a ponto de se tornarem civilizados, deixariam de ser Tukano, embora permaneçam Ye pa masã por guardarem seus nomes de espírito. O relato de Pedro M. me parece apontar justamente para isso, uma vez que o ‘nome sagrado’ ou ‘nome de espírito’ é atribuído para os recém-nascidos a partir de um ‘benzimento’ específico, com o qual Waûro continuaria produzindo pessoas ye pa masã, porém com corpos mais próximos aos dos brancos

(Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 230).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerar que mesmo se tornando civilizado Waûro continua sendo Ye pa masã pode ser uma chave para compreender as tentativas contemporâneas de alguns em se vincularem a esse grupo. Isso porque localizar o grupo de pertencimento dentro do conjunto tukano nunca foi uma tarefa simples (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 230). Como retomam Maia e Andrello (2019 citados em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 231):

. . . consensos parciais entre esses pontos de vista eram no passado objeto de diálogos cerimoniais. Durante as “cerimônias do cigarro” (mu’rô tu’asehé) dois chefes de grupos punham-se alternadamente a recitar a lista dos grupos que encabeçavam. Este ato prestava-se a renovar a força de vida de todos que compunham a lista. Com isto, os chefes revalidavam a sequência de surgimento dos grupos reafirmando seus diferentes papéis rituais. Por sua vez, a cerimônia do cigarro corresponderia a uma reencenação da própria distribuição de papéis originalmente desempenhada por Doêtihiro, o demiurgo nomeador de todos os grupos que comandou a Pa’mûri- yukûsu, a cobra-canoa que subiu pelos rios Negro e Uaupés desde o Lago de Leite, no extremo Leste do mundo, até a Cachoeira de Ipanoré, no médio rio Uaupés.

Seguindo os argumentos dos autores, após a fixação de todos os grupos como verdadeiros seres humanos, já no rio Papuri, as narrativas de origem passam a mencionar novos personagens, portadores dos nomes distribuídos por Doêtihiro, o demiurgo nomeador de todos os grupos, mas agora diferenciados por apelidos. Tais narrativas não contam a origem de todos os nomes diferenciados por apelidos e parte deles é mencionada em episódios específicos relacionados à dispersão dos Tukano pela região. Essas narrativas também são recheadas de conflitos relacionados ao crescimento diferencial dos grupos maiores, doenças e mortes ocasionadas por feitiçaria. Os autores também afirmam que poucos nomes se mantêm e os apelidos abundam. Enfim, algo muito próximo ao que descrevemos ao longo deste artigo, quando tratamos tanto do nome Duca porã quanto do nome Inapé porã, ambos apelidos (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 231).

Maia e Andrello (2019)Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81. afirmam que a distribuição socioespacial dos Tukano no presente reflete uma trajetória de crescimento e diversificação. O ponto é que a memória desse processo seria feita, sobretudo, de nomes e apelidos. Por sua vez, nome e apelido estariam em relativa contradição, uma vez que o primeiro é autoatribuído e o segundo é atribuído por terceiros. Outra diferença é que o nome do grupo viria da saga pré-humana do mito (distribuídos por Doêtihiro) e o apelido apareceria em uma história marcada pelas relações entre grupos que estão a medir seus respectivos sucessos (crescimento e ampliação de alianças). Isso conformaria um regime de alternâncias ou reversibilidades virtuais em que os efeitos cumulativos do tempo impedem a cristalização de algum sistema encerrado em si mesmo. Talvez seja por tudo isso que os Inapé porã, e também os Duca porã, tenham ao longo de suas trajetórias se deparado com situações de imprecisão com relação ao lugar que ocupariam entre os Tukano – um grupo exogâmico fortemente marcado pela plasticidade (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, pp. 231-232).

Ao carregarem apelidos atribuídos por terceiros, há de se esperar que partam dos Tukano do baixo Uaupés, aqui referidos, tentativas em precisar aspectos específicos com relação às suas origens. Os efeitos conjugados e cumulativos dos deslocamentos e do tempo produzem trajetórias marcadas por conflitos, acusações de feitiçaria e dispersões (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
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, p. 232).

De toda forma, também há que se considerar que se, por um lado, não possuem um corpus narrativo de memórias que os tornem amplamente reconhecidos como nomes/grupos proeminentes, alguns elementos em suas respectivas trajetórias devem ser considerados, pois as biografias do Tukano Inapé porã Maximiliano e do Tukano Duca porã Pedro Meirelles mobilizam, ainda que em âmbitos distintos, um corpus considerável de conhecimento. Como dito, Maximiliano Menezes é uma liderança política amplamente reconhecida no movimento indígena nacional e Pedro Meirelles é um benzedor muito respeitado no baixo curso do rio Uaupés. De uma determinada perspectiva, os Duca porã e os Inapé porã continuam grandes (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
, p. 232).

  • 1
    O termo subgrupo é utilizado para referenciar as divisões internas ao grupo exogâmico. A terminologia consagrada pela literatura rionegrina para se referir a essa unidade social é o clã e/ou o sib. O termo clã será utilizado somente quando tratar-se de um conceito nativo, ou seja, quando anunciado pelos interlocutores da pesquisa, e quando forem feitas citações a autores que também o utilizam.
  • 2
    Em que Ye’pâ = ‘terra’; Mahsã = ‘gente’; e Ye’pâ-Di’ro-Mahsã = ‘gente de carne da terra’ (Maia & Andrello, 2019Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81.). Os Tukano compõem, ao lado de outros grupos exogâmicos, como os Desana, os Tuyuka, os Pira Tapuia, os Arapasso, os Wanano, entre outros, a família linguística Tukano Oriental.
  • 3
    O surgimento do grupo coincide com o surgimento da própria humanidade, ou seja, dos vários grupos indígenas do alto rio Negro e também dos não indígenas. Trata-se de um tema complexo e sobre o qual não poderei me ater neste artigo. O leitor interessado na narrativa tukano deve consultar, principalmente, Andrello (2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. UNESP., 2012).Andrello, G. (Org.). (2012). Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do Rio Negro. Instituto Socioambiental.
  • 4
    Aqui, vale mencionar que os profetas dos movimentos milenaristas do século XIX muitas vezes assumiram os nomes de santos, ou mesmo de Cristo. O batismo com nomes cristãos é algo também documentado na história do rio Negro (Andrello, 2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. UNESP.; Wright, 1999Wright, R. M. (1999). O tempo de Sophie: história e cosmologia da conversão baniwa. In R. Wright (Org.), Transformando os deuses: os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígena no Brasil (pp. 155-215). Editora da UNICAMP.).
  • 5
    Como veremos na próxima seção, outros subgrupos tukano do baixo Uaupés elaboram narrativas sobre seus ancestrais não terem acompanhado Waûro porã em direção a extrema jusante, e sim permanecido “no meio do caminho”, por assim dizer, próximos à foz do Uaupés, tal como os Duca porã (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
    https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
    , p. 216).
  • 6
    É preciso destacar, no entanto, que a chegada dos missionários salesianos inaugura uma nova fase de violência contra os povos indígenas na região, ainda que de outro tipo.
  • 7
    Alciolínio Bruzzi Alves da Silva redigiu parte de seu livro “A civilização indígena do Uaupés” (Silva, 1962Silva, A. B. A. (1962). A civilização indígena do Uaupés. Linográfica.) em Taracuá, ex-missão salesiana vizinha a Ananás. O padre antropólogo salesiano costuma ser lembrado pelos moradores de Taracuá por sua rigidez e severidade extremas no tratamento com os interlocutores indígenas, e muitos questionam fortemente suas observações etnográficas (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
    https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
    , p. 224).
  • 8
    Evento realizado em 2013, vinculado a um Plano de Manejo Pesqueiro levado a cabo na região como uma das iniciativas da Política Nacional de Gestão Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI) e executado pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, Fundação Nacional Indígena (FUNAI) e Instituto Socioambiental (ISA) (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
    https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
    , p. 224).
  • 9
    É preciso também mencionar que, nas narrativas, ora é citada a pessoa do chefe, o próprio Waûro, ora é narrado o coletivo, no caso, seus descendentes. Acredito que se trata menos de imprecisão dos interlocutores e mais de um recurso linguístico que revela a tênue fronteira entre o ser individualizado e o grupo, o que, mais uma vez, aponta para o princípio de fractalidade existente nos nomes.
  • 10
    Infelizmente, Higino faleceu, em 2019, em decorrência da COVID-19.
  • 11
    Maximiliano atua no movimento indígena rionegrino desde a criação da FOIRN, no final da década de 1980, tendo sido duas vezes seu vice-diretor. Entre 2014 e 2017, ocupou a coordenadoria geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e foi membro diretor da Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (CUENCA). Graduado em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Amazonas, já trabalhou no departamento de Educação da FOIRN e no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Negro. Trata-se de uma liderança indígena que tem participado ativamente de diversas discussões em fóruns internacionais sobre direitos indígenas e mudanças climáticas (Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
    https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
    , p. 26).
  • 12
    Maia e Andrello (2019)Maia, A., & Andrello, G. (2019). Ye’pâ-Di’ro-Mahsã, gente de carne da terra: os Tukano do rio Uaupés. Mundo Amazônico, 10(1), 53-81. afirmam que a zona intermediária dessa escala suscita questionamentos com certa frequência. No entanto, o que se passa em suas pontas superior e inferior não parece ser objeto de grandes divergências. Tal ponto já teria sido notado por C. Hugh-Jones (1979Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press. citado em Rodrigues, 2019Rodrigues, R. (2019). Descendo o rio: memórias, trajetórias e nomes no baixo Uaupés [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos]. https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/12050/RRODRIGUES_TESE_2019.pdf?sequence=4
    https://repositorio.ufscar.br/bitstream/...
    , p. 227).
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Editado por

Responsabilidade editorial: Claudia Leonor López-Garcés

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2023
  • Aceito
    29 Nov 2023
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